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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub Aug 18, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349259025 

Artigos

O jogo teatral e a construção do conhecimento simbólico: do jogar à experiência significativa

Mariana Tagliari1 
http://orcid.org/0000-0002-2364-9609

Robson Corrêa de Camargo1 
http://orcid.org/0000-0003-3740-4722

1-Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil


Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar a prática do jogo teatral de Viola Spolin (1906-1994) em sua construção do simbólico e como propulsor da experiência significativa (Dewey 1859-1952). A definição de simbólico será pautada nos escritos do filósofo Ernst Cassirer (1874-1945) e da filósofa e educadora Susana Langer (1895-1985). Nesses pensadores, o simbólico se apresenta como elemento fundamental de conhecimento e estruturação da cultura humana, no mito, na religião, na linguagem, na história e na arte. O problema central desta pesquisa baseia-se em estudos teatro-educativos vivenciados pelos autores, tomando-se as práticas do jogo teatral como forma de ampliação do conhecimento para uma integralização do ser, como ser cultural, social, simbólico, na construção das práticas de atos significativos no mundo. Para tanto, a metodologia utilizada é a revisão bibliográfica dos conceitos fundantes dos jogos teatrais em correlação com a construção do conhecimento simbólico. Visamos compreender a arte na produção do contexto simbólico para então fundamentarmos a corporificação como símbolo. Tais estudos objetivam a promoção da experiência consumatória dos praticantes do jogo no contexto teatro-educativo, respaldados no princípio de que a experiência estética jogada possibilitará a ampliação da vivência do jogador, de modo que ele possa ressignificar o seu mundo, construindo-se autonomia e conhecimento da/na experiência estética em constante processo de vivência e aprendizagem, forjado nas teias da cultura.

Palavras-chave Jogo teatral; Simbólico; Experiência; Performances culturais

Abstract

This article aims to analyze the practice of the theater games by Viola Spolin (1906-1994) in her construction of the symbolic form and as a driver of meaningful experience (Dewey 1859-1952). The definition of symbolic form will be based on the writings of the philosopher Ernst Cassirer (1874-1945) and the philosopher and educator Susana Langer (1895-1985). For these thinkers, the symbolic is presented as a fundamental element of knowledge and structuring of human culture in myth, religion, language, history, and art. The central problem of this research is based on theater-educational studies experienced by the authors, taking the practices of the theater games as a way of expanding knowledge for an integration of the being, as a cultural, social, and symbolic form being, in the construction of practices of significant acts in the world. Thus, the methodology used is the bibliographic review of the fundamental concepts of theater games in correlation with the construction of symbolic knowledge. We aim to understand art in the production of the symbolic context so that we can base the embodiment as a symbol. Such studies aim to promote the consummate experience of game practitioners in the theater-educational context, supported by the principle that the aesthetic experience played will enable the expansion of the player’s experience so that they can re-signify their world, building autonomy and knowledge of/in the aesthetic experience in a constant process of living and learning, forged in the webs of culture.

Keywords Theater games; Symbolic form; Experience; Cultural performances

Introdução

Este artigo tem como objetivo o estudo do jogo teatral, tal como criado e propulsionado pela atriz, diretora e educadora Viola Spolin (1906-1994), na perspectiva da construção do conhecimento simbólico humano como ato educacional. Spolin, imigrante de origem russa nos Estados Unidos, elaborou sua metodologia multicultural com base em intensas experiências das casas de recepção de imigrantes dos Estados Unidos ( Hull House) e em Chicago na década de 1920. Para tanto, iremos relacionar as práticas e os conceitos estruturantes de conhecimento em jogo de Spolin com os estudos filosóficos e simbólicos de Ernst Cassirer (1874-1945) e de Susanne Langer (1895-1985). Cassirer, entende o ritual, o mito e a arte como formas concretizadas de expressão das emoções. Assim, a experiência estética em jogo, ao ser visada no ensino, permeia a imaginação criativa, a prática da cooperação social, o desenvolvimento da sensibilidade, o jogo improvisacional em tempo presente, as regras e a relação intensa de trocas entre ator e plateia, em uma nova construção do mundo no contexto educacional.

O ato primeiro deste artigo é o compreender da arte no contexto simbólico e como o simbólico se manifesta, tomando-se por base uma apreensão no campo sensível e pertinente do jogador, em eventual compartilhamento de sua percepção com espectadores não alheios, também partícipes da experiência desenvolvida. Após a análise e relação dos conceitos de simbólico com os temas centrais e constituintes dos jogos teatrais, com base nas pesquisas de Ernest Cassirer e Susanne Langer, traremos o simbólico presente na corporificação (também denominada por muitos pesquisadores por fisicalização 2 ), aspecto fundante e essencial para a compreensão dos jogos teatrais e da construção do simbólico no ato educacional/experiencial, tendo como aporte teórico o educador e filósofo John Dewey (1859-1952).

A metodologia deste artigo fundamenta-se nos conceitos prático-teóricos estabelecidos por Viola Spolin para aprofundar e relacionar o conhecimento simbólico postulados por Cassirer e Langer, visando a um ensino pautado na experiência vivencial do jogador-estudante, sendo este um ser simbólico, produtor de símbolos, capaz de refletir e se posicionar no mundo de forma auto governativa, crítica e humana. Corroboramos assim com Dewey ( 2010) em seu Arte como experiência:

[...] as experiências que a arte intensifica e amplia não existem exclusivamente dentro de nós nem consistem em relações separadas da matéria. Os momentos em que a criação está mais viva, assim como mais composta e concentrada, são os de interação mais plena com o ambiente, aqueles em que o material sensorial e as relações se fundem de maneira mais completa. A arte não ampliaria a experiência caso recolhesse o eu no eu, e a experiência resultante dessa reclusão tampouco seria expressiva. ( DEWEY, 2010 [1934], p. 211).

Como ressaltado por Dewey, será a relação entre o eu e o ambiente, durante a vivência do jogo teatral, que estabelece uma experiência significativa. Tomando por base vivências significativas, percebe-se que o drama, o conflito, e as experiências vividas fazem parte e constroem nossas vidas, bem como a da nossa sociedade. Drama é ação. Nesse sentido, a experiência fundamenta-se nos aspectos da vida das pessoas em atos de performance, em ato, em ação, em que elas elaboram, constroem e reconstroem seu mundo por meio de múltiplas vivências, danças, sons, teatros, liturgias, jogos, rituais, olhares. Assim reflete o antropólogo John Dawsey ( 2005, p. 3) sobre a questão: “universos sociais e simbólicos se recriam a partir de elementos do caos”. Não apenas uma restauração da cultura, mas também uma ação de ressignificação, uma ação ambivalente.

O jogo teatral, como processo de construção concreta de experiência simbólica, apresenta-se como uma metodologia de prática artística e de conhecimento humano e social estruturada por jogos. A professora e tradutora das obras de Spolin, Ingrid Koudela ( 1984, p. 44) considera que “o processo de jogos teatrais visa a efetivar a passagem do jogo dramático (subjetivo) para a realidade objetiva do palco”. Entretanto, na perspectiva da construção simbólica de Cassirer, devemos considerar tanto o jogo teatral, como jogo dramático, e o próprio teatro como realidades objetivas e subjetivas ou, se quiser, realidade objetiva subjetivada que se estrutura como um ato coletivo. Tanto o jogo teatral como o jogo dramático e o teatro têm como objetivo gerar uma nova realidade, como toda arte. O jogo de regras é um jogo simbólico, o jogo dramático é um jogo simbólico, o teatro é um jogo simbólico.

Nesse contexto, o jogo teatral visa, através de tais atividades, propiciar/criar/estruturar uma nova realidade aos jogadores. Sendo assim, “a improvisação de uma situação no palco tem uma organização própria, como no jogo. O menino não estava simplesmente imitando, mas trabalhava com o problema de dar realidade aos objetos.” ( KOUDELA, 1984, p. 44-45). Cabe assinalar que o professor, durante o jogo teatral, torna-se também um instrutor de tal jogo, e é denominado por nós, de professor-instrutor.

A respeito do jogo teatral no processo de construção de experiências significativas e na transposição da realidade à cena e à construção de novas realidades, muitas possibilidades de entendimento, estudo e relações podem ser empregadas, visto que o lúdico e o jogar sempre fizeram parte da vivência humana. O filósofo alemão Ernest Cassirer compreende o simbólico como elemento fundamental de conhecimento e estruturação da cultura humana: o mito, a religião, a linguagem, a história e a arte. O mundo, segundo esse autor, é recriado constantemente por nós e, também, construímos mundos em nossas experiências. Nesse sentido, a arte e o jogo são símbolos que nos realizam como seres humanos, sendo capazes de recriar esse mundo baseado na experiência que eles nos proporcionam. Segundo Spolin ( 2001), em seu Fichário, os jogos teatrais possibilitam a

Experiência em pensar criativo e independentemente. Imaginação, iniciativa desenvolvem-se rapidamente na atmosfera criada pelo professor; Prática de cooperação social; Desenvolvimento da sensibilidade para relacionamentos pessoais e uma profunda simpatia humana, através da análise e do desempenho de várias personagens em situações diversas; Liberação emocional controlada; Experiências de pensamento independente, expressando ideias claras e efetivamente. O resultado de uma experiência como essa em improvisações é uma conquista de flexibilidade de corpo e voz. ( SPOLIN, 2001, p. 146).

Em Spolin, a imaginação criativa, a prática da cooperação social, o desenvolvimento da sensibilidade para relacionamentos e a simpatia humana são praticados, aprofundados, desenvolvidos no processo de jogar, em que o jogador, por meio de atos coletivos de improvisação, torna-se capaz de expressar/produzir suas ideias de forma crítica e pontual, ressignificando o seu próprio modo de ver e atuar no mundo.

O estudo do simbólico, como entendido por Cassirer, oportuniza à prática do jogo teatral um melhor entendimento da dimensão sensível do sujeito, entendido como um ser simbólico em ação, em produção. A inter-relação simbólica do sujeito no jogo improvisacional possibilitaria a autolibertação do espírito, sendo assim, um construtor de culturas.

Ao se estabelecer a prática do jogo improvisacional, nos termos de Viola Spolin, entendemos que o jogador entra no jogo em ato de experiência, num processo de vir-a-ser, em que há um contínuo esforço físico e intelectual para atuar dentro do aqui e do agora, nas situações que se apresentam, e evitando-se o pré-determinado. De outra forma, compreende-se o papel do estudante jogador e sua relação com a plateia que também está no jogo de forma a vir contribuir com a cena/ação/resolução do problema apresentado, e assim “quando se compreende papel da plateia, o ator adquire liberdade e relaxamento completos”. ( SPOLIN, 1998, p. 11-12).

Vale ressaltar que, na metodologia dos jogos teatrais, enquanto alguns jogadores estão em processo produtivo na resolução do foco em jogo (por exemplo, definir o Onde/lugar em que os jogadores se encontram sem usar palavras), outros encontram-se como uma plateia atuante, visando contribuir com a avaliação objetiva da cena, sem fazer juízos de valor. Nesse sentido, Spolin reforça:

O exibicionismo desaparece quando o aluno-ator começa a ver os membros da platéia (sic) não como juízes ou censores ou mesmo como amigos encantados, mas como um grupo com o qual ele está compartilhando uma experiência. ( SPOLIN, 1998, p. 11-12).

Corroborando com este pensamento, vale salientar que o jogo teatral tem em suas primícias que o jogador saia de seu papel de mero espectador para atuante na cena, tornando-se um sujeito em ação, em experiência compartilhada. Quando este se coloca nesse papel, encontra-se em sua dimensão sensível, como construtor de cultura, ou seja, em formação de elaboração simbólica, pois “o jogo, além de ser uma atividade comum realizada em grupo, proporciona o envolvimento e a liberdade individual, fatores importantes para o desenvolvimento da experiência” ( SPOLIN, 2001, p. 5). Nesse sentido, a comunicação entre os jogadores e a sua expressividade diante do apreciador assistente dão-se como potenciais instrumentos de transmissão simbólica.

Em relação à forma simbólica, Cassirer, em Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana, afirma que ela é a energia espiritual que reúne o material sensível com o intelectual, ou seja, a forma simbólica está na interconexão do fato em si e sua significação. O autor reflete que, à medida que avançamos na atividade simbólica, mais a realidade física retrocede. Nesse sentido, ao invés de lidar simplesmente com essa realidade física, o homem se envolve com as formas linguísticas, os símbolos mítico-religiosos e a arte, e passa a conhecer as coisas pela interposição e construção desse meio simbólico. Os estudos sobre a arte como uma forma simbólica incorporam temas como a experiência estética, a imaginação, a memória, a criação artística e as teorias psicológicas da arte e, também, sobre as diferentes perspectivas desenvolvidas sobre a arte ao longo da história.

Segundo Cassirer:

[...] a arte pode abarcar e permear toda a esfera da experiência humana. Nada no mundo físico ou moral, nenhuma coisa natural e nenhuma ação humana é por sua natureza e essência excluída do domínio da arte, porque nada resiste ao seu processo formativo e criativo. ( CASSIRER, 1994, p. 258).

O autor aponta o processo formativo e criativo da arte e sua relação com a experiência humana, de forma que todos os sujeitos a vivenciem. O jogo teatral, nesse cenário, reúne o jogar, que também perpassa a vida humana com a arte e a linguagem, em que ambos se completam em experiência, podendo recriar um novo mundo simbólico, unindo o jogar em si com a sua significação artística e humana. O homem em pleno jogo estabelece múltiplas possibilidades de criação e de vivências, transpondo o comum à imaginação, ao estético, ao criativo.

Diante da (re)criação do mundo simbólico visando à imaginação, ao estético e ao criativo, qual seria a percepção de Langer e Cassirer sobre a arte como construção do conhecimento simbólico? Valemo-nos deste questionamento para compreendermos, primeiramente, como os filósofos citados pensam a arte no contexto simbólico para analisarmos o jogo teatral nessa inter-relação.

Cassirer e Langer: o simbólico da (na) arte

A filósofa e professora Susanne K. Langer ( 1971 [1942]), também reflete acerca dos aspectos simbólicos com base em várias perspectivas. Entretanto, são três os aspectos principais do pensamento de Cassirer que ela aprofunda: o simbolismo como uma atividade espiritual e válida a priori; a arte como forma simbólica que representa o mundo no campo objetivo por meio da experiência estética; a arte como comunicação universal, sendo o segundo aspecto o ponto crucial deste artigo. Vale a pena reiterar a arte como dado do mundo no campo objetivo. Há que se destacar que Susanne Langer publicou sua obra Filosofia em nova chave em 1942, dois anos antes da publicação de Cassirer An essay on man: an introduction to a philosophy of human culture de 1944. Essay on man, publicado um ano antes da morte de Cassirer (1945), é a única manifestação escrita por ele, onde se encontra explicitamente o desenvolvimento da arte como forma simbólica. Há que se aclarar que Langer já conhecia as obras anteriores de Cassirer.

Susanne Langer, em sua extensa obra, irá tomar como ponto de partida a criação de formas simbólicas do sentimento humano para a constituição de seu pensamento. E, dentro deste contexto, a arte se encaixa perfeitamente, pois ela lida com relações e até mesmo ambiguidades entre o sentimento, a forma, símbolos, o ato de jogar. Pensar na obra de arte é percebê-la como completa, indivisível. Concordando assim neste pensamento, Langer e Cassirer, veem a obra como importante por si mesma, não como um objeto do qual se separem as partes, mas que deve ser compreendida como um todo completo, relacional.

Cassirer, em seu Ensaio sobre o homem ( 1994 [1944], p. 247) define que “o sentido de beleza é a suscetibilidade à vida dinâmica das formas, e esta vida não pode ser apreendida sem um processo dinâmico correspondente em nós mesmos”. Nesse sentido, a beleza pode ser definida na inter-relação da dualidade integral e dinâmica entre o subjetivo e objetivo e, consequentemente, por meio do olhar e da prática artística, descobre-se a beleza dinâmica das formas e do mundo, sendo, assim, um ato construtivo e auto construtivo. Cassirer/Langer também referenciam a beleza orgânica como a beleza natural de uma paisagem, enquanto a estética decorre de uma experiência que vai além do olhar imediato perante algo. Neste estudo, pontuamos a importância de se conceber a beleza estética como ato em produção, pois ela será a intermediadora das experiências dos jogadores em questão.

Langer defende que não há apenas uma emoção que rege a obra, pois apenas definir a produção artística como produtora ou expressão de emoções é muito vago para o potencial que a obra de arte traz. Isso nos faz compreender a importância do ensino de arte e do teatro permeado pela prática dos jogos, de seu contexto, e por sua forma de incorporar vivências passadas em uma experiência nova que se mescla e dá o caráter estético, ressignificando o mundo do apreciador/jogador através do contato com a arte. A arte produz mundos e pessoas.

Cassirer afirma que:

Viver no domínio das formas não significa uma evasão das questões da vida; ao contrário, é a realização de uma das mais altas energias da própria vida. Não podemos falar da arte como “extra-humana” ou “sobre-humana” sem menosprezar um de seus aspectos fundamentais, o seu poder construtivo na estruturação de nosso universo. ( CASSIRER, 1994, p. 272-273).

Nesse sentido, quando alguém tem contato com a arte, não verá o mundo mais como antes. Terá o acréscimo do olhar do artista e da experiência estética que o desloca. Essa visão nos auxilia na compreensão do processo catártico que a arte produz: transparecendo a alma humana em sua maior complexidade, ela permite ao homem viver paixões e histórias não vividas, transformando-se em um processo formativo de estar no mundo/universo.

Para Cassirer, “A ciência nos dá a ordem nos pensamentos; a moralidade nos dá a ordem nas ações; a arte nos dá a ordem na apreensão das aparências visíveis, tangíveis e audíveis” ( CASSIRER, 1994, p. 274). Nesse sentido, as leis da ciência, a religião, a linguagem são símbolos criados pela mente numa tentativa de produzir um mundo inteligível. Símbolos, para o autor, são a mediação entre percepção e entendimento. Cassirer e Langer apontam ainda que as manifestações da cultura são formas simbólicas de caráter específico, principalmente a arte, de forma que os homens e as mulheres, por meio de sua prática, ressignificam ou simbolizam o real de modo objetivo, por meio da experiência.

Nesse contexto, a cultura e o jogo existem, constroem-se e reconstroem-se com base nas práticas humanas, que podem ser potencializadas no ato educacional. A experiência estética jogada possibilitará assim a ampliação da vivência do jogador no mundo, de modo que ele possa ressignificar o seu mundo, construindo autonomia e conhecimento em constante processo de vivência e aprendizagem, que se constroem nas teias da cultura. Esse conhecimento simbólico, permeado pela experiência do jogar, será o aspecto abordado no tópico seguinte.

Da arte ao jogo teatral: construindo relações simbólicas

O jogo teatral, especificamente, permite que o jogador vivencie o teatro em sua forma mais pura, em ato, sem julgamentos, sem racionalização prévia. Nesse sentido, ele é fruto de uma beleza estética em que o ato improvisacional gera a experiência do jogador. O homem enquanto joga retira sua couraça e permite-se ser em sua maior completude, pois está em ato profundo de experiência e entendimento. Ele tem um conflito a resolver e, por meio de estratégias artísticas que o jogo teatral propõe, ele precisa resolvê-lo não apenas cognitivamente, mas por meio de ações, de combinados, de entrega.

A teatro-educadora, encenadora e pesquisadora, Ingrid Koudela, irá explorar os estudos de Langer sobre o conceito de arte e, consequentemente, do jogo teatral. Koudela, analisando a obra Sentimento e forma de Langer, afirma que a arte é a “criação de formas simbólicas de sentimento” ( KOUDELA, 1984, p. 32). A arte, no contexto do jogo teatral é provedora de conhecimento e, quando o ato criativo é consciente, o jogador-artista irá atuar no mundo como sujeito, posicionando-se perante seu papel social e cultural. Passa a ser então, um ser crítico perante suas próprias escolhas. Como reflete a arte-educadora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo ( 1997, p. 149): “Mediante a ficção vive-se (sic) ‘outras vidas’ que podem conduzir o fruidor a desvendar perspectivas até então não reveladas sobre o ser humano”. Isto se potencializa com o jogo teatral, pois o fruidor é ainda executor/produtor.

No contexto da relação do homem diante do mundo, pensar na obra de arte é também compreender os acontecimentos que, em épocas diferentes, ocorrem em um povo e, também, como essa relação entre experiência e obra se completam e vão além de emoções, mas registram/produzem símbolos que trarão e irão propor indagações e buscas por meio da representação dessas obras.

A formulação da experiência contida no horizonte intelectual de uma época e sociedade é determinada, creio eu, não tanto pelos acontecimentos e desejos, quanto pelos conceitos básicos à disposição das pessoas para analisar e descrever suas aventuras para o seu próprio entendimento. Sem dúvida, tais conceitos surgem à medida que se fazem necessários, a fim de dar conta da experiência política ou doméstica; as mesmas experiências, porém, poderiam apresentar-se em muitas luzes diferentes, de modo que a luz em que aparecem depende de um gênio de um povo, assim como das demandas da circunstância externar. ( LANGER, 1971, p. 18).

Como pontuado por Langer, os acontecimentos que propiciam a experiência ocorrem à medida que se fazem necessários, tendo o seu sentido naquele tempo, para aquele povo. Nesse contexto, além da experiência em si, o jogador irá externá-la, transformá-la em um ato simbólico, uma obra de arte. Por intermédio do jogo teatral, o homem irá expressar, por meio da representação simbólica, os traços materiais, intelectuais, espirituais e emocionais da sociedade ou grupo social em que está inserido. É exatamente essa vivência, acompanhada pelo ato artístico munido de posicionamento crítico e simbólico, que justifica a importância do jogo teatral no cenário educacional.

Além dessa relação do social, Langer ( 1971) pontua que arte e linguagem desenvolvem dois processos distintos do existir simbólico: o discursivo e o presentacional. A discursiva apresenta-se por meio de um discurso atrás do símbolo, e a presentacional como forma de obra percebida no presente, no momento contextualizado da obra de arte, o aqui e agora.

A linguagem presentacional (re)significa-se e interage com a vida emocional do homem e não conseguimos traduzi-la em outras linguagens. Segundo Camargo ( 2022, p. 12): “Para Langer uma obra de arte é sempre um símbolo primário, único, indivisível, não discursivo, um símbolo que chama presentacional, não é meio, não re-presenta, pois presente, se presenta, e este pode ser analisado, mas não reduzido à análise”. Nesse contexto, a arte não pretende transmitir/esclarecer algo, mas sim propiciar uma experiência estética verdadeira, presente, objetiva.

Se a linguagem é um meio, a arte para Langer é um ato, uma ação. O sensível no processo de fruição, concretizado em obra de arte, como em uma relação amorosa de afeto em que o presente significa tudo, não há representação. O jogo teatral, como linguagem presentacional, permite ao jogador estudante desenvolver a percepção e a imaginação por meio da experiência estética, da ação presente. E será essa experiência que poderá transformar o olhar do aprendiz perante o meio em que está inserido, recriando mundos. A arte não é apenas um meio de algo representado, mas um ato em si, presente, como o jogo teatral.

Não há uma verdade única ao se tratar de arte, pois seu significado é flexível, múltiplo, ambíguo, perante os “agoras”, e será a experiência estética que nos permitirá encontrar novos significados durante o ato expressivo do/no jogar. Ressalta-se que a experiência estética em Dewey ( 2010) não se limita a criar objetos artísticos, mas sim investigar/criar soluções para os conflitos vivenciados, seja no contexto geral da arte, seja no jogo teatral.

Esse ato expressivo não se reflete em algo, mas existe em si. Em contraste a isso, ao pensar-se nos símbolos, observamos que há um símbolo na arte que pode simplesmente não representar ou, ao mesmo tempo, representar várias coisas. Por isso o olhar, o sentir, o perceber, a improvisação, a expressão artística, não se limitam a conceitos já pré-definidos, mas devem ser apreendidos em sua essência prática. É fundamental deixar que essas várias representações se comuniquem com quem joga, pois, muitas vezes, essa linguagem torna-se indecifrável para ser reduzida a palavras, mas inteligível ao se tratar de outros sentidos e percepções.

As fórmulas lógicas, muito contribuem, mas não se pode limitar a arte a apenas essa compreensão lógica, pois o que há entre a arte e o público, vai muito além dessas fórmulas. É a relação íntima de vidas – do artista e do público – que se entrelaçam, conectam-se e, nem artista, nem público serão os mesmos após essa relação. Nesse sentido, o jogo teatral apresenta-se por meio das relações de símbolos que há no mundo, presentificando-os e percebendo que eles não são fixos, mas relacionam-se com o povo, com suas crenças, seus pensamentos, valores. Enfim, o símbolo não existe sem uma relação íntima com o ser humano e o meio em que ele vive em ato presente.

Segundo Koudela:

No processo de ensino com jogos teatrais, a abordagem intelectual ou psicológica foi substituída por um processo de conhecimento físico. A matéria do teatro – o gesto – foi experimentada fisicamente no jogo. A conquista gradativa da expressão física impulsionava o processo de conhecimento. A realidade simbolizada adquiria textura e substância. ( KOUDELA, 1999, p. 124).

No contexto teatro-educativo, Spolin busca, por meio dos jogos teatrais, demonstrar o processo de conhecimento físico, tendo o corpo e o gesto experimentados no jogo em ação, em ato de experiência, como propulsores de conhecimento. Ela parte do não verbal, indo na contramão das abordagens que defendem que se aprende somente por meio do discurso verbal.

Nesse sentido, o jogo teatral é expresso por duas formas: como discurso e como presentação simbólica, a qual relaciona a vivência cotidiana com a nova experiência elaborada por meio da ação, do jogar. A vivência teatral não pode e não consegue estar separada do cotidiano dos jogadores. Nesse sentido, o drama imaginado deverá ser ressignificado no processo de aprendizagem, podendo promover ações críticas dos sujeitos perante o meio em que está inserido. Dessa forma, as pessoas são encorajadas a questionar seus valores histórico-culturais, já agregados em seus hábitos, para (re)significá-los, demonstrando criticidade e curiosidade, em prol do desenvolvimento da autogovernança.

Destaca-se que o conceito de autogovernança, que parte dos estudos do educador Paulo Freire ( 1999), defende que o homem tem que ser crítico perante o meio em que está inserido, de forma a modificá-lo por meio da aprendizagem, da experiência. Nesse contexto, o homem torna-se um construtor de símbolos, fazendo com que se conecte e se sinta pertencente ao mundo, em que as próprias experiências geram significados, assim como afirma Cassirer ( 1994), em sua obra Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana:

Na linguagem, na religião, na arte e na ciência, o homem não pode fazer mais que construir seu próprio universo – um universo simbólico que lhe permite entender, interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar sua experiência humana. ( CASSIRER, 1994, p. 359).

Como ressaltado, a arte na educação como expressão pessoal e como cultura é um importante instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento por meio da experiência. Por meio dos jogos teatrais, é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada.

O jogo teatral como discurso não verbal e improvisacional permite ao jogador estudante comunicar-se amplamente em ato de experiência no processo educativo. Esse discurso não verbal, defendido por Spolin, denomina-se corporificação, o qual será elucidado no próximo tópico.

O símbolo enquanto corporificação

Cassirer ( 1994), considera a arte como um dos grandes sistemas simbólicos, como o mito e a religião. Entretanto, destaca a arte como um sistema de características próprias, no qual o artista é um descobridor de formas, assim como o cientista é descobridor de leis naturais ou de fatos da natureza. Para Cassirer, a arte se apresenta como um sistema de formas emancipadas da matéria, ao contrário da mitologia, na qual a matéria impregna o signo. Dentro dessa formulação, a arte se apoia na interpretação, não em uma relação de imitação da matéria, mas em um processo de descoberta e leitura da realidade.

Para o filósofo, os símbolos pertencem ao mundo de significados; logo, todas as relações simbólicas são relações significativas; enquanto os sinais 3 são abreviações fixas e convencionais para algo conhecido. Segundo Langer ( 2011, p. 30), ”Um sinal é compreendido, se serve para fazer-nos notar o objeto ou situação que indica. Um símbolo é compreendido quando podemos conceber a ideia que ele representa“.

Para Langer, o signo/sinal, natural ou artificial, é dotado de “mensagem”, transpondo significado. Ao tratar-se do signo natural, falamos de “um sintoma de um estado de coisas” ( LANGER, 1971, p. 67, grifo do autor), ou seja, um choro de um cachorro pode significar fome ou frio, o abrir da cauda do pavão em forma de leque para a fêmea o desejo pelo acasalamento, o céu escuro e com muitas nuvens, a chuva, entre outros. O signo artificial ocorre de forma proposital, como o sino da catedral avisando que em meia hora será celebrada a missa. Ambos os signos repassam uma mensagem que será decodificada e estará diretamente relacionada com a ação do sujeito que pode arrumar-se para ir à missa ou pegar o guarda-chuva para não se molhar.

Ao referenciar-se ao conceito de símbolo, Langer revisitou seus estudos constantemente, tendo uma definição final relacionada com o estudo da arte e dos pressupostos defendidos por Cassirer. Para ela, o símbolo não pretende “conduzir a coisas e comunicar fatos, mas de expressar ideias” ( LANGER, 1957, p. 30, tradução nossa). Ao contrário do signo, o símbolo só ocorre entre homens, entre a racionalidade expandida, sendo mais complexo, permitindo-nos compreender e ressignificar o mundo, exercendo nossa humanidade. Assim, o signo nos propulsiona a uma ação, a uma reação (fato real, factual), enquanto o símbolo dirige-se diretamente ao campo do pensamento (campo dos possíveis).

A ação física se transforma ou se potencializa em ação simbólica na arte ou no ritual, por não ser algo conhecido, mas ressignificado, seja no jogo teatral e/ou nos próprios gestos do ator-jogador. Melhor dizendo, para se construir em etapas didáticas, a ação simbólica se estabelece, num primeiro momento, como algo que se consolida antes de ser percebido, até o estágio final, onde o casulo vira borboleta. O estudante, o ator, a personagem, a ação simbólica que se constrói ao ter um objeto ou realizar um gesto, mesmo sem o objeto, é parte predominante da fisicalidade. Por outro lado, a interpretação do que eles representam (o significado) está no campo simbólico. Tais campos se autoconstroem num processo interativo sujeito-ação no mundo.

No jogo teatral, o gesto é simbólico, a fim de transmitir algo ao espectador, ao professor instrutor e/ou aos outros jogadores no campo das ideias. Esse é o foco essencial da corporificação, ou seja, transpor ao corpo, aos gestos, um sentido, um significado para ação. O aceno da mão aberta de um lado para o outro pode significar que ele está despedindo-se de alguém; um olhar, um salto, um movimento repassam um significado na improvisação, visando à ação da plateia e dos outros jogadores coparticipantes.

Quando falamos da corporificação nos jogos teatrais, os gestos, como alertou Langer, não são meros movimentos, nem meros sinais sem nenhum sentido ao grupo, mas têm que demonstrar o objeto, a ação realizada na cena de forma crível ao jogador e à plateia. Segundo Viola Spolin (1906-1994), a corporificação é “a manifestação física de uma comunicação; a expressão física de uma atitude; [...] uma maneira visível de fazer uma comunicação subjetiva” ( SPOLIN, 1998, p. 340). Esse processo de corporificação é construído, e se estabelece finalmente como comunicação subjetiva, mas, antes de sua síntese elaborada, passa por um processo de construção e de oposição entre seus possíveis significados e significantes, muitas vezes totalmente contraditórios.

O gesto, nesse sentido, vai auxiliar o aprendiz-jogador a se manter no mundo da percepção, estando aberto ao mundo à sua volta, ou seja, possibilitando a experiência significativa, em que ele pode refletir criticamente sobre o seu papel social. O teatro-educador Ricardo Japiassu ( 2001, p. 76) afirma que “fisicalizar implica a ampliação da capacidade corporal expressiva dos jogadores, de sua atenção, memória sensorial e pensamento conceitual (categorial)”. Tal fisicalização/corporificação permite aos jogadores, por meio dos jogos teatrais, vivenciarem “a dimensão representacional, simbólica, do fenômeno teatral”.

A dimensão simbólica, possibilitada por meio dos jogos teatrais, irá proporcionar uma reflexão crítica ao estudante perante o seu próprio mundo, suas escolhas e seu projeto de vida, por meio da integralidade corporal em ação. Segundo o professor John Dawsey ( 2005, p. 6), “o indivíduo carrega a responsabilidade de dar sentido ao seu universo”. Dawsey também defende que essa experiência é a atitude inerente ao humano de produzir significados. Nesse sentido, ao experienciar algo, possibilita-se uma ação espiritual sem a qual não há o mundo, e o símbolo é o mediador e constituidor da existência e do pensamento humano. Segundo Cassirer ( 1994), os símbolos nos auxiliam a nos expressar não só em palavras, mas em ideias, ações, e são inseparáveis da imaginação:

[...] o homem não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e desilusões, em suas fantasias e sonhos. ( CASSIRER, 1994, p. 49).

Corroborando com o autor, pode-se afirmar que a expressão por meio de ações, ideias e a vivência de emoções imaginárias e da fantasia, são também parte constituintes do jogo. Dessa forma, o homem necessita dos símbolos para interpretar e construir a sua realidade, sendo o jogo um mediador. Para Cassirer ( 1994, p. 234), a arte, como todas as outras formas simbólicas, “é um dos meios que leva a uma visão objetiva das coisas e da vida humana. Não é uma imitação, mas uma descoberta da realidade”. Nesse contexto, o simbólico corresponde às ideias que estão além do alcance da razão humana. Pelo simbólico, o homem é o criador do seu próprio mundo, que se faz presente também na corporificação, nas ações, no ato experiencial educativo.

O jogo, assim como a arte, irá propiciar ao homem esta descoberta da realidade, por meio da própria experiência no ato de jogar. Nesse ato o jogador se coloca diante de um conflito e necessita experienciar situações para a resolução dele, sendo sujeito de sua própria aprendizagem. Segundo Dewey ( 2010, p. 109), “[...] as situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a interação consciente”.

O jogo teatral é, pois, uma importante ferramenta para trabalhar os conflitos sociais e cênicos, presentes em um ambiente escolar ou num grupo de atores profissionais, por meio da ação, da improvisação, podendo propiciar experiências singulares para quem dele participa. Aponta-se para a necessidade da intenção pedagógica do professor instrutor, dando caráter pedagógico ao jogo teatral. Caso o jogo seja vivenciado sem nenhum intento pedagógico, perde-se a oportunidade de experienciar os conflitos sociais presentes no ambiente escolar, podendo não ter sentido ao jovem - jogador e não ocorrer a experiência consumatória.

Para Spolin:

O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que ela está verdadeiramente aberta para recebê-las. (SPOLIN, 2005, p. 4).

Os jogos propõem conflitos que dialogam com estas construções criativas do mundo, pois possibilitam ao jogador identificar-se como sujeito em uma realidade presentificada/vivenciada, tendo de agir e intervir em situações que o jogo irá propor. A experiência propiciada pelo conflito do jogo pode criar uma experiência que não existia na experiência anterior do jogador. Essa nova experiência pode vir a auxiliar na compreensão do sujeito quanto aos papéis sociais que desempenha. Cassirer ( 2001) visa compreender o processo de transformação de um conteúdo sensível em conteúdo espiritual, ou seja, como o espírito propicia representações objetivas na elaboração da própria experiência:

Nesse sentido, o mito e arte, a linguagem e a ciência, são criações que formam o ser: elas não são simples cópias de uma realidade existente, mas representam, ao invés, as linhas gerais do movimento espiritual, do processo ideal, no qual, para nós, o real se constitui como unidade e pluralidade, como multiplicidade das configurações que, entretanto, afinal são unificadas através de uma unidade de significação. ( CASSIRER, 2001, p. 64).

Em outras palavras, o jogo constitui um espaço simbólico e de representação metafórica, ou seja, de uma segunda realidade em que os estudantes experienciam ações que geralmente não realizam em seus cotidianos. A segunda realidade proporcionada pelo ato de jogar possibilita a inversão e o desempenho de papéis figurativos que propiciam uma experiência real, singular. Essa experiência significativa reflete as vivências pessoais de quem joga e, ao mesmo tempo, pode proporcionar a análise e a criticidade acerca desses conflitos sociais promovidos pela experiência oportunizada pela vivência através do próprio jogo.

Para Dewey ( 2010, p. 148):

Enquanto não há expressão, a menos que haja uma ânsia de dentro para fora, aquilo que se avoluma precisa ser esclarecido e ordenado, incorporando os valores de experiências anteriores para poder tornar-se um ato expressivo. [...] Descarregar é livrar-se de algo, descartá-lo; expressar é ficar com a turbulência, levá-la adiante em seu desenvolvimento, elaborá-la até sua conclusão. ( DEWEY, 2010, p. 148).

A corporificação, neste contexto, será o ato em experiência, pois o jogador-estudante irá expressar suas experiências anteriores, transpondo para o corpo o que estava no campo das ideias, do pensamento, em forma de ação, em ato simbólico, vivenciando uma nova experiência munida de aprendizagem estética. Para Dewey ( 2010), o pensamento possibilita a visibilidade da ação, a compreensão. Mas não se limita a isso.

Para ele, o sentimento vem para compreender as consumações realizadas por tal ação. Não só compreender a ação por si só, mas as entrelinhas, o desejo, a esperança, a vivência de tal pessoa, gerando discussões que vão além do visual, passando, assim, a ser uma aprendizagem estética. Nossas experiências se apresentam em uma ação criativa, estando presentes nas construções de personagens, no corpo, voz, atitudes, na nossa relação com o outro, sendo aspectos essenciais ao contexto teatro-educativo.

A compreensão, não só do que é a experiência, mas de tudo o que a envolve, bem como o questionamento que gera, diz respeito à compreensão de tudo o que é significativo para uma sociedade e de sua prática cultural, posto que se trata de espaços socioculturais mediados por símbolos, regras, rituais e signos. Essas práticas culturais são atividades que movem um grupo através de projetos políticos, educacionais, estéticos e ideológicos, centrando a experiência como possibilidade de mediação e resultado delas.

Dessa forma, a experiência significativa torna-se capaz de proporcionar ao jovem uma reflexão crítica acerca do vivenciado. Ele transforma-se, pois as experiências proporcionaram-lhe uma nova relação com o mundo, ou seja, uma criação de um novo mundo, assim como pontua Cassirer. Salienta-se que nem sempre o ato expressivo e até mesmo a própria experiência são agradáveis, sem dor, sem entrega, pois: “Há interesse em concluir uma experiência. É possível que essa experiência seja prejudicial ao mundo, e que sua consumação seja indesejável. Mas ela tem caráter estético” ( DEWEY, 2010, p. 115).

No jogo teatral, quando trabalhamos os elementos teatrais, por meio da corporificação, trabalhamos também a simbologia dos elementos, pois o jovem tem que demonstrar em seu campo físico (gestos e/ou objetos) um significado deste para a cena ou sua personagem. A corporificação, por meio dos jogos teatrais, vai tornar o simbólico visível, vai auxiliar os adolescentes em sua trajetória, em seu processo educativo perante o mundo, em sua vivência estética.

Assim como ressalta Cassirer ( 1994, p. 257), “Um dos maiores triunfos da arte é fazer com que vejamos as coisas corriqueiras em sua verdadeira forma e sob sua verdadeira luz”. Dessa forma, os símbolos serão o campo intermediário entre o espírito e a matéria; por isso, a arte é simbólica, e a função essencial do artista é procurar sua realização no mundo sensorial e sua revelação, ao dar forma à matéria dos sentidos por intermédio da arte. O aluno ao ter esse contato com o teatro de forma vivencial, poderá refletir sobre si, sobre o meio que vivencia, suas escolhas de forma sensorial.

Segundo Pupo:

Mediante a depuração da percepção sensorial, os jogos teatrais – na contramão da ênfase na inventividade, interpretação ou dramaturgia – procuram promover a experiência do acordo tácito coletivo. Neles, a fábula não é ponto de partida, mas decorrência da ação e a ‘fisicalização’ de objetos, lugares, emoções - eixos da aprendizagem teatral - está sempre vinculada à escuta cuidadosa do companheiro. Ao entrar em relação com o parceiro de jogo e com ele construir fisicamente uma ficção partilhada com os jogadores da platéia, aprende-se como se dá a significação no teatro. “Sem parceiro não há jogo”, a máxima recorrente da autora, ilustra bem o caminho proposto. De modo coerente com a premissa do “learning by doing”, o professor não é chamado a explicar ou demonstrar, mas sim a favorecer a auto-descoberta. ( PUPO, 2007, p. 261).

O sensorial irá permitir um acordo de toques, sensibilidades, conexões entre o grupo, em que o professor instrutor não irá demonstrar o jogo, mas, sim, possibilitar a descoberta desse estudante. Por meio do sensorial, o qual decorre da ação, da corporificação e da improvisação, o jovem irá redescobrir vivências passadas e encontrar soluções para o novo desafio propiciado pelo jogo, promovendo uma experiência consumatória. É no contato com o outro, com o companheiro de jogo, com a plateia, com o professor-instrutor que o estudante dará um sentido ao aprender teatral.

O simbólico se dá a partir da apreensão no campo sensível e subjetivo do jogador em contato com o grupo atuante, pois a comunicação entre os jogadores e a improvisação diante do público atuante são potenciais instrumentos de transmissão simbólica. A fábula, o texto decorado, o tecnicismo (a técnica pela técnica), a demonstração por meio da cópia se desfazem na prática dos jogos teatrais, em que o estudante permite descobrir-se, ser atuante, ser criativo, a trabalhar em grupo, a improvisar. É o trabalho em prol da organicidade do estudante, em que ele e o grupo são atores de um grande teatro simbólico e vivencial.

Considerações finais

Os estudos dos jogos teatrais têm uma trajetória importante para o ensino de teatro nas unidades escolares brasileiras. Em um período em que não se possuíam materiais e o professor de arte era ambivalente (educação artística), Ingrid Koudela apresenta-nos esse material riquíssimo de Viola Spolin, o qual foi importante para a formação e atuação desse profissional. Com o avanço dos estudos da pedagogia teatral, nota-se que tal material vem sendo ressignificado, adequando-se às múltiplas realidades escolares atuais. Neste trabalho, visamos evidenciar o jogo teatral como conhecimento simbólico, avançando para um conceito que abarca o ensino de teatro como um ensino humanitário, consoante com a formação integral do estudante.

Vale ressaltar que o uso da metodologia dos jogos teatrais permite que não haja uma separação entre o mundo subjetivo e objetivo do aprendiz. Essa junção se dará por meio da experiência, em que ele irá refletir cenicamente sobre aspectos individuais da criação em relação ao conjunto totalizante que é o teatro. Aprende-se sobre sua consciência corporal e física, mas ela sozinha não terá a construção integradora de uma cena. Segundo Cassirer:

Quando estamos absortos na intuição de uma grande obra de arte, não sentimos uma separação entre os mundos subjetivo e objetivo. Não vivemos na nossa realidade simples e corriqueira das coisas físicas, nem vivemos integralmente em uma esfera individual. Além dessas duas esferas detectamos um novo domínio, o domínio das formas plásticas, musicais, poéticas; e estas têm uma universalidade real. ( CASSIRER, 1994, p. 238).

O jogo teatral, como expressão pessoal e como aprendizagem, vai proporcionar ao jogador em questão uma vivência teatro-educativa frente à sua investigação cênica, podendo desenvolver nele a percepção, o sensorial, a imaginação, a capacidade crítica frente às problemáticas encontradas nas aulas de teatro, propiciando a apreciação estética e uma ação educativa emancipatória.

O jogo teatral, proposto pelos atos improvisacionais e pelo conhecimento simbólico, apresenta-se como possibilidade de mediação entre as experiências vivenciadas nos rituais cotidianos do jogador com o teatro e seu ensino. Os rituais cotidianos do jogador, neste caso, podem ser (re)configurados de maneira mais significativa para a sua vida, pelas práticas que a instituição de ensino pode lhe propor com a inserção das práticas da vida cotidiana, seja dos ritos que estabelece em casa, seja nas ruas, seja na internet, enfim, no universo em que está inserido.

Segundo Spolin:

O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que ela está verdadeiramente aberta para recebê-las. (SPOLIN, 2005, p. 4).

Os jogos teatrais no contexto educativo oportunizam o conhecimento simbólico por meio da experiência vivencial e em grupo. Um conhecimento não só pautado nas técnicas, nos conceitos teatrais, mas na vida, na humanidade, na reflexão crítica do estudante perante o meio. Esse conhecimento ocorre no ato de jogar, na ação, momento propício para a consumação da experiência. É nesse momento que se amplia o conhecimento estético, que o(s) símbolo(s) se torna(m) presente(s) tanto ao jogador quanto à plateia atuante, em que o ato passa a tornar-se simbólico por meio da corporização.

Acrescento uma fala de Camargo apud Tagliari (2009, p. 33): “a formação do conhecimento na criança (e no homem) se processa através de um processo amalgamado e contínuo entre mimesis e simbolização, ou representação. Daí a importância da arte no processo educativo”. É nessa construção do conhecimento simbólico, por meio do jogo teatral, que o jovem passa a dar sentido a tudo que vivencia, pois pode materializar em ações aquilo que está em seu imaginário, atribuindo a elas um novo sentido.

O conhecimento simbólico no contexto teatro educativo, aqui defendido, tem como objetivo dar forma às experiências humanas, trazer presentes vivências que poderão ser socializadas através de canais de expressão mais subjetivos que, para os alunos, são as linguagens expressivas, as quais se transformarão em linguagens artísticas por meio dos jogos teatrais. O jogo teatral como vivência educativa poderá propiciar a exteriorização de símbolos, de sentimentos ou ainda de registros não visíveis, buscando a união da contextualização do jogo e do jovem com o ato de representar.

Este é o grande desafio educacional aqui postulado: aproveitar a bagagem do estudante, questioná-lo, colocá-lo em conflito, de forma que ele possa ter uma experiência consumatória por meio da expressão cênica propiciada pelo próprio ato de jogar, um ato presente. Essa experiência poderá promover uma reflexão crítica do estudante perante o mundo, de forma que ele tenha consciência de suas escolhas e ações, promovendo, assim, um conhecimento simbólico, atuante, que integralize esse ser com o conhecimento. Conclui-se então, que o jogo não é um material para se “passar o tempo da aula”, mas, sim, um importante recurso pedagógico, capaz de propiciar vivências cruciais para a compreensão do sujeito atuante na sociedade, como ser simbólico.

Referências

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2“O termo utilizado por Spolin é”physicalization” e havia sido traduzido, em Improvisação para o teatro, por “fisicalização”. Durante a elaboração deste trabalho, no entanto, fizemos uma revisão da tradução, considerando o termo “corporificação” como mais correto.” ( KOUDELA, 1984, p. 51). Vale ressaltar que tal termo parte dos estudos do ator, diretor, pedagogo Constantin Stanislavski (1889-1938).

3Vale ressaltar que, em Sentimento e Forma e Signs, Language and Behavior, Langer utiliza a palavra sinal e, em Filosofia em nova chave, a autora utilizou a palavra signo (como podemos ver na nota de rodapé no livro Sentimento e forma, 2011, p. 30). Nesse contexto, ambas possuem o mesmo conceito, sendo mais utilizado neste artigo, a denominação signo.

Recebido: 10 de Dezembro de 2021; Revisado: 26 de Maio de 2022; Aceito: 04 de Julho de 2022

Contato: maritagli@hotmail.com

Contato: robson.coorrea.camargo@gmail.com

Editor: Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira

Mariana Tagliari é atriz e professora de teatro da rede estadual de ensino do estado de Goiás. Graduada em artes cênicas, especialista em história cultural, mestre em performances culturais e atualmente doutoranda em performances culturais na Universidade Federal de Goiás (UFG).

Robson Corrêa de Camargo é doutor em teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Idealizador e fundador do Programa de Pós-graduação em Performances Culturais da UFG (2011, Mestrado e Doutorado). Encenador e crítico de teatro, coordena a Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais e o Máskara – Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas em Teatro, Dança e Performance (UFG).

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