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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub Aug 18, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349264315 

Artigos

Uma herança a ser lida: reflexões educacionais a partir de Hannah Arendt e Paul Ricoeur 1

An inheritance to be read: educational reflections based on Hannah Arendt and Paul Ricoeur

Vanessa Sievers de Almeida1 
http://orcid.org/0000-0002-7820-9504

1-Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil.


Resumo

A educação oferece aos mais novos uma herança de conhecimentos e experiências, porém, com a crise da tradição, a relação das novas gerações com esse legado se torna problemática, seja porque ele perdeu sua legibilidade, seja porque é visto como ultrapassado. Este artigo sustenta que, apesar disso, cabe aos herdeiros ler, interpretar e ressignificar essa herança imperfeita. Nessa perspectiva, indaga-se, por um lado, se a tentativa de se apropriar desse legado pode provocar transformações no passado supostamente findo, e, por outro lado, questiona-se em que medida essa herança afeta os que com ela se envolvem. Ponto de partida para essa reflexão são o pensamento sobre educação de Hannah Arendt, em especial, o ensaio “A crise na educação” e a obra Tempo e narrativa de Paul Ricoeur, em particular sua abordagem da leitura no contexto da mímese III. O ato de ler, de acordo com o filósofo, se caracteriza por uma dialética que provoca transformações na narrativa e no leitor. Esse movimento mimético transformador entre leitor e texto ocorre também na dinâmica entre herdeiros e herança, que está no centro da formação dos jovens e das crianças? A partir dessa questão, busca-se estabelecer um diálogo entre a análise de Ricoeur da leitura e a reflexão sobre a tarefa da educação, segundo Arendt, de convidar os mais novos à “leitura” da herança de um mundo que os antecede.

Palavras-chave Filosofia da educação; Hannah Arendt; Paul Ricoeur; Ato de leitura; Crise da tradição

Abstract

Education offers the younger ones an inheritance of knowledge and experiences, however, with the crisis of tradition, the relationship of the new generations with this legacy becomes problematic, either because it has lost its legibility or because it is seen as outdated. This paper argues that, despite this, it is up to the heirs to read, interpret and re-signify this imperfect inheritance. In this perspective it is questioned, on the one hand, if the attempt to appropriate this legacy can cause transformations in the supposedly ended past, and, on the other hand, to what extent this inheritance affects those who are involved with it. The starting point for this reflection is Hannah Arendt’s thought on education, in particular, the essay “The crisis in education” and Paul Ricoeur’s work Time and narrative, in particular his approach to reading in the context of mimesis III. The act of reading, according to the philosopher, is characterized by a dialectic that causes transformations in the narrative and in the reader. Does this transforming mimetic movement between reader and text also occur in the dynamics between heirs and inheritance, which is at the heart of the formation of young people and children? Based on this question, the paper seeks to establish a dialogue between Ricoeur‘s analysis of reading and the reflection on the task of education, according to Arendt, of inviting the youngest “to read” the inheritance of a world that precedes them.

Keywords Philosophy of education; Hannah Arendt; Paul Ricoeur; Act of reading; Crises of tradition

Em seu ensaio “Em busca dos jardins de nossas mães”, a escritora Alice Walker conta a vida de sua mãe, que labutava na colheita de algodão, trabalhava em casa e criava os filhos. Uma vida dura, que consistia na luta pela sobrevivência de uma mulher cujo nome não seria lembrado. “[…] nenhuma canção ou poema levará o nome de minha mãe”, diz Walker ( 2021, p. 292), e acrescenta que “mesmo assim tantas das histórias que eu escrevo, que todas nós escrevemos, são as histórias da minha mãe”. Se a filha enxergava sobretudo a dureza dessa existência, mais tarde descobriu que sua mãe, embora silenciada de muitas formas, era uma artista, cuja criatividade se revelava em um lugar que antes tinha escapado à atenção da escritora, porque “é comum olharmos para o alto, quando deveríamos ter olhado para o alto e também para baixo” ( WALKER, 2021, p. 290). Foi no seu jardim que a força criativa de sua mãe ganhou forma: “Um jardim tão reluzente e colorido, tão original em seu paisagismo, tão magnífico em sua vivacidade e criatividade, que até os dias de hoje as pessoas passam pela nossa casa na Geórgia [...] e pedem para entrar e caminhar em meio à arte de minha mãe” ( WALKER, 2021, p. 293). Assim, a história da mãe, embora já conhecida por muito tempo, mudou: “A artista que minha mãe foi e é se revelou para mim somente depois de muitos anos” ( WALKER, 2021, p. 293).

A experiência de Alice Walker revela algo notável: o legado que recebemos de nossos antecessores não é imutável, mas, dependendo da maneira como nos apropriamos dele, pode se transformar. Demanda ser lido e relido, e, como diz Paul Ricoeur ( 2010c, p. 388), é possível “abrir no passado considerado findo possibilidades esquecidas, potencialidades abortadas, tentativas reprimidas”. Na leitura que dele fazemos, está em jogo a experiência pretérita, mas, ao ressignificá-la, também refiguramos a nós mesmos e ao mundo em que vivemos.

A relação com a nossa herança, no entanto, não é pacífica. Alice Walker enxerga a beleza do jardim, mas não deixa de lembrar do sofrimento, imposto à mãe por um mundo desigual. Como apropriar-se de uma herança que nos enriquece e, ao mesmo tempo, nos impõe dívidas a serem reparadas? Esse é o grande desafio da educação, cuja tarefa é oferecer aos mais novos uma herança multifacetada de práticas e saberes, conhecimentos e obras, experiências e compreensões.

A apropriação desse legado pode ocorrer de diversos modos e em diferentes espaços – Alice Walker nos dá um exemplo disso. A filósofa Hannah Arendt, em seu ensaio “A crise na educação”, atribui uma tarefa específica à escola, que, enquanto instituição pública, tem a incumbência de fazer com que todas as crianças que vêm ao mundo sejam recebidas como herdeiras de um legado comum. É papel dos professores guiá-las por este mundo, que é mais velho do que elas, e, ao mesmo tempo, dar lugar à sua potencial liberdade, pois lhes caberá renovar ou conservar o que recebem. A relação enriquecedora e, ao mesmo tempo, problemática com o legado faz com que a atividade educativa, embora abranja também informações e técnicas, não se reduza a esses elementos, mas busque envolver e engajar os mais novos na “leitura” de uma herança que requer ser interpretada e transformada.

O objetivo deste artigo é tecer reflexões sobre essa “leitura”. Para isso, baseio-me no pensamento de Paul Ricoeur, que dedica parte de sua obra Tempo e narrativa ao ato da leitura. De acordo com o filósofo, esse ato é o encontro entre o mundo do leitor e o mundo do texto. O termo “leitura” tem aqui uma acepção distinta da acima referida porque se trata da leitura de textos, em específico, de narrativas ficcionais e históricas. As análises detalhadas e profundas de Ricoeur acerca da relação do leitor com o texto, no entanto, podem dar novos impulsos às reflexões sobre a relação que estabelecemos com nossa herança.

No que segue, relaciono e confronto a “leitura” da herança com o ato de ler narrativas, criando um diálogo entre o pensamento de Hannah Arendt sobre educação e as análises de Paul Ricoeur sobre o ato da leitura. Tomo, portanto, a liberdade de buscar e criar uma interlocução, que não existiu dessa forma, para pensar sobre um dos grandes desafios da educação, a saber, as possibilidades, os limites e problemas da leitura que fazemos de nossa herança. Não pretendo apresentar uma proposta de educação, mas espero contribuir para a reflexão sobre nossa relação com o passado e suas implicações na educação.

A educação dos herdeiros

De acordo com Hannah Arendt ( 2003), educar é acolher os recém-chegados no mundo que os antecede e que ainda não conhecem. As crianças e os jovens têm o direito de conhecer o mundo comum em que convivemos com uma pluralidade de pessoas – não apenas com os nossos contemporâneos, mas também com aqueles que nos antecederam e aqueles que ainda virão ( ARENDT, 2010). Para ter a possibilidade de participar desse espaço público precisam conhecê-lo, mas sobretudo compreender que podem fazer parte dessa história comum e que o mundo compartilhado é a sua herança ( ALMEIDA, 2011). Assim, os mais velhos convidam os jovens a receber e reconhecer seu legado de histórias, obras e linguagens.

Trata-se de uma herança preciosa porque contém as realizações dos que viveram antes de nós, como, por exemplo, a teoria da relatividade de Albert Einstein, a música de Pixinguinha e a literatura de Alice Walker e, ao mesmo tempo, é problemática porque também somos herdeiros da colonização, da guerra e da violência. Arendt diz que nosso mundo está “fora dos eixos” (ARENDT, 2003, p. 245) e não mais nos sentimos em casa nele. No entanto, é nele que vivemos e é aqui que recebemos as novas gerações. Diante dos recém-chegados, os mais velhos não podem abrir mão da responsabilidade pelo mundo e abandonar as crianças “a seus próprios recursos” ( ARENDT, 2003, p. 247). Em vez disso, é preciso dar-lhes a chance de se apropriarem de seu legado. Nossa esperança é que eles se importem com o mundo e sua história ( ALMEIDA, 2011) e assim talvez compreendam que, apesar de tudo, ele pode ser “o ponto de partida para transformar, para iniciar algo novo” ( ARENDT, 2003, p. 319).

Brayner, em seu livro Educação e republicanismo: experimentos arendtianos para uma educação melhor ( 2008), refere-se a uma metáfora para a educação que é elucidativa. Inspirado em Arendt, ele compara a história do mundo a uma peça de teatro, na qual todos são atores e público ao mesmo tempo. Os que estão chegando sempre vêm atrasados porque a história já estava acontecendo e o cenário já estava posto. Eles perderam o início do enredo e também não verão o final dele, pois a peça continuará depois de sua saída. Não conhecem a história, não sabem quais são os personagens, quais as regras a serem seguidas, não distinguem ainda o que é importante e o que é apenas secundário e não sabem como a trama chegou a seu estado atual. É preciso mostrar-lhes o cenário e contar o início da história, ou seja, familiarizá-los com o lugar ao qual estão chegando para que possam se apropriar dele e, por sua vez, participar da peça, talvez mudando seu enredo.

Porém, a educação que apresenta o legado de um mundo preexistente está ameaçada quando o passado perde sua autoridade e deixamos de ter um vínculo com as experiências pretéritas. “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento” são as palavras de René Char com as quais Arendt ( 2003, p. 28) inicia sua reflexão sobre a ruptura da tradição. O passado não deixa de existir – temos ainda informações sobre fatos e acontecimentos e as obras que ficaram –, mas não há mais uma tradição para guiar o nosso olhar e “que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor” ( ARENDT, 2003, p. 31). Assim, esse mundo do passado corre o risco de se transformar num amontoado de coisas sem sentido.

Educar tornou-se difícil nessa situação. Quem educa não apenas enfrenta a falta de um testamento que poderia orientá-lo, mas também o desprezo da sociedade moderna pela própria herança. Não são as informações que correm risco de serem esquecidas, mas o sentido que lhes foi atribuído. O jardim da mãe de Alice Walker talvez ainda exista; pode haver fotos ou outros registros dele; pode até ser que as filhas tenham aprendido como plantar, regar e podar as plantas. O perigo, no entanto, está no possível esquecimento do valor extraordinário desse jardim.

Michael Oakeshott ( 2001, p. 37, tradução minha), em seu artigo “Learning and Teaching” (Aprendizagem e Ensino) afirma que “todo homem nasce herdeiro [...] de uma herança de realizações humanas”. É o professor que tem a tarefa de iniciar seus alunos nela, os quais, por sua vez, precisam fazer um esforço para se apropriar dela porque “este mundo só pode ser penetrado, possuído e desfrutado por meio de um processo de aprendizagem. Um ‘quadro’ pode ser comprado, mas não se pode comprar a compreensão dele” ( OAKESHOTT, 2001, p. 38, tradução minha). Por isso, precisamos oferecer aos alunos “muitas coisas que não estão na superfície do mundo presente. [...] caídas em desuso, que vieram a ser negligenciadas ou até algo momentaneamente esquecido. E conhecer somente o dominante é familiarizar-se apenas com uma versão atenuada dessa herança” ( OAKESHOTT, 2001, p. 42, tradução minha).

O legado demanda o esforço educativo deliberado para ser ensinado, lido, interpretado e ressignificado. Sobre essa tarefa da educação, que envolve leitura da herança, estabeleço, no que segue, um diálogo com a obra de Paul Ricoeur. Há certamente inúmeros assuntos que poderiam entrar numa interlocução entre Arendt e Ricoeur. Minha escolha é relacionar as reflexões de Arendt sobre a educação com as análises de Ricoeur sobre o ato de leitura, em sua obra Tempo e narrativa.

O ato da leitura

A leitura ocupa um lugar chave no percurso da análise e da reflexão de Ricoeur sobre as relações entre tempo e narrativa. É na leitura que as narrativas, sejam elas fictícias ou históricas, se tornam significativas a ponto de refigurar a compreensão do leitor de si e do mundo. Ricoeur explica que o texto necessita do leitor, porque “é somente pela mediação da leitura que a obra literária obtém a significância completa” ( RICOEUR, 2010c, p. 269, grifo do autor). Antes, porém, de me deter nesse ponto específico, quero situá-lo brevemente na temática mais abrangente de Tempo e narrativa.

Ricoeur inicia sua obra dizendo que ela é movida por uma pressuposição, que ele formula da seguinte forma: “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal” ( RICOEUR, 2010a, p. 9). Assim, a relação profícua e produtiva entre nossa experiência temporal e as narrativas é o tema da obra.

Nossa experiência é conflituosa, informe e caótica. “Os paradoxos do tempo que afligem nossa experiência humana do tempo [...] acompanham toda tentativa de elaborar a relação dialética entre passado, presente e futuro e a relação dialética entre parte e todo temporal”, anuncia Ricoeur ( 2012, p. 301) numa conferência anterior a Tempo e narrativa. Nesta obra, sua análise das aporias do tempo aborda, em primeiro lugar, o livro XI de As confissões de Agostinho. Para descrever nossa experiência do tempo o autor se refere à “distentio animi” agostiniana, além de usar termos como “dilaceramento”, “falha”, “falta sentida no coração da experiência temporal” e “a tristeza do negativo”. Aqui, portanto, predomina a discordância, que, à primeira vista, parece não ter saída nem fim, sendo ”a especulação sobre o tempo [...] uma ruminação inconclusiva” ( RICOEUR, 2010a, p. 17).

Contudo, se não chegamos a uma solução teórica para as nossas perplexidades, há uma resposta poética na configuração da narrativa. A operação narrativa não dissolve os paradoxos, mas os desvela e clarifica e, assim, “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo” ( RICOEUR, 2010a, p. 93). Segundo Ricoeur, a análise da Poética de Aristóteles mostra que a configuração da intriga estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância, por meio da operação da narrativa que produz uma síntese de incidentes isolados, um enredo uno de elementos heterogêneos e eventualmente conflitantes. Desse modo, extrai uma figura daquilo que antes era apenas uma série de acontecimentos.

É nesse sentido que, em Tempo e narrativa, Ricoeur ( 2010a, p. 11) propõe um “encontro dramático” que vai das Confissões de Agostinho, “obra em que predomina a perplexidade provocada pelos paradoxos do tempo”, à Poética de Aristóteles, “em que, ao contrário, prevalece a confiança na capacidade do poeta e do poema de fazer triunfar a ordem sobre a desordem”. A resposta cabe aqui a Aristóteles, que na tessitura da intriga busca a concordância, a qual, no entanto, não deixa de conter também elementos de conflito, formando, assim, uma concordância discordante.

A configuração da narrativa se insere no contexto da vida, que a antecede e sucede, ou, como explica Ricoeur ( 2010a, p. 95), “a configuração textual faz mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refiguração pela recepção da obra”. O filósofo enfatiza que a importância da narrativa não se encerra nela mesma, mas no percurso dinâmico que se inicia com a nossa pré-compreensão da ação, seguida pela escrita da narrativa, que imita a ação, e termina com a leitura que refigura a experiência. Esses três momentos – prefiguração, configuração e refiguração – também são denominados de mímesis I, II e III, sendo que a mímesis aqui não é entendida como mera imitação ou cópia, mas como re-criação ou imitação transformadora. Ricoeur ( 2010a, p. 95) ressalta que o “operador por excelência” do percurso mimético é o leitor, pois, com a leitura “a narrativa alcança seu sentido pleno”, sendo “restituída ao tempo do agir e do padecer na mímesis III” ( RICOEUR, 2010a, p. 122-123).

Este momento de extrema relevância, que coloca o leitor e a leitura num patamar igual ou até acima ao do poeta e da poiesis, é abordado por Ricoeur em vários pontos de Tempo e narrativa. Em especial no item “ Mímesis III” ( RICOEUR, 2010a, p. 122-155) e, de modo mais detalhado e aprofundado, no capítulo “Mundo do texto e mundo do leitor” ( 2010c, p. 267-309). 3

Em sua abordagem da teoria da leitura, o pensador dialoga com vários autores, com destaque para Wayne Booth, Wolfgang Iser e Hans-Robert Jauss do campo dos estudos literários, além de inspirar-se na filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Não me detenho nos detalhes dessas interlocuções por me interessar sobretudo como, ao final, o próprio Ricoeur compreende e discute o ato da leitura.

Na sua perspectiva, esse ato ocupa um lugar estratégico entre a obra e a vida. A leitura ou a mímesis III “marca a interseção entre [o] mundo do texto e [o] mundo do ouvinte ou do leitor, a intersecção portanto entre mundo configurado pelo poema e mundo no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua temporalidade específica” ( RICOEUR, 2010c, p. 270). Esse encontro é o momento chave que opera e desencadeia a refiguração. Na leitura, “o mundo do texto [...] entra necessariamente em colisão com o mundo real, para refazê-lo, confirmando-o ou negando-o” ( RICOEUR, 2001, p. 21, grifo do autor, tradução minha).

É importante notar que o mundo do texto não está dado de antemão por sua estrutura. Ele precisa do leitor e de sua imaginação para se ”concretizar“. É mediante a atividade imagética que ”o leitor se esforça para figurar para si os personagens e os acontecimentos narrados pelo texto” ( RICOEUR, 2010c, p. 287, grifo do autor). Por isso, todo texto é passível de várias interpretações, podendo projetar mundos diversos. De modo metafórico, Ricoeur ( 2010c, p. 287) diz que o “texto é como uma partitura musical, suscetível de diferentes execuções”. Ler é, assim, um evento cujo protagonista é o leitor.

O acontecimento da leitura pode ser harmonioso ou conflitivo. O vocabulário adotado por Ricoeur para falar da interação entre os dois mundos vai do “combate” ou “confronto” até o “concerto musical”; mais tarde o autor ainda nos presenteia com a metáfora do “piquenique”. Esta última surge quando ele explica que a leitura pode ser difícil e exigente. É o que ocorre com obras pouco legíveis – como, por exemplo, o romance moderno –, que colocam “nas costas do leitor a tarefa de configurar a obra” ( RICOEUR, 2010c, p. 289), isto é, o leitor não apenas figura para si mesmo a narrativa, mas precisa ainda lhe dar forma propriamente, suprindo ele mesmo “a falta de legibilidade maquinada pelo autor”. A criação da obra é, portanto, trabalho conjunto de autor e leitor, ou, para voltar à metáfora: “A leitura torna-se esse piquenique em que o autor traz as palavras e o leitor a significação” ( RICOEUR, 2010c, p. 289).

O ato de ler não se resume a uma atividade pontual, mas tem um antes e um depois, isto é, a dinâmica da refiguração se desdobra em vários momentos. De certo modo, a leitura começa antes do leitor ou fora dele, na estrutura do texto que já prescreve (ou tenta prescrever) um tipo de leitor e um modo de ler. Além disso, o texto dispõe de estratégias de persuasão que buscam produzir no leitor uma forma de se relacionar com os acontecimentos e os personagens da trama. Uma estratégia importante é a voz narrativa ou o autor implicado no texto (que não é o da biografia, mas um elemento textual), que pode agir de diversos modos. Pode, por exemplo, buscar a confiança do leitor ou aterrorizá-lo, também podendo guiá-lo pela leitura ou desorientá-lo propositalmente. Assim, o leitor que, em princípio, se movimenta no texto por conta própria, não é totalmente livre, já que é também movido pelo texto por meio do autor implicado nele. No entanto, pode recobrar sua liberdade, escolhendo aceitar ou não a ajuda ou a provocação da voz narrativa.

O leitor pode ser seduzido pelo autor implicado a se identificar com ele, mas pode também não se deixar levar por essa voz e distanciar-se do texto, tomando consciência desse afastamento. Assim, por um lado, a leitura pode resultar num sentimento de familiaridade, que, no extremo, leva à ilusão de uma total identificação; por outro lado, o ato de ler pode também produzir estranhamento. A “boa leitura” alterna entre familiaridade e desconfiança, ou, em outras palavras, “a ‘boa’ distância em relação à obra é aquela em que a ilusão se torna alternadamente irresistível e insustentável. Quanto ao equilíbrio […] ele nunca é alcançado” ( RICOEUR, 2010c, p. 290). Uma leitura em que predomina o encontro com o familiar pode ser mais tranquila, mas Ricoeur destaca que a estratégia de desfamiliarização ”é uma das mais aptas a estimular uma leitura ativa, uma leitura que permite dizer que algo acontece nesse jogo em que o que se ganha é proporcional ao que se perde” ( RICOEUR, 2010c, p. 290-291, grifo do autor). Assim, a leitura que desestabiliza seu leitor produz perdas, mas também suscita a busca de novos modos de compreensão.

Finalmente destaco – entre muitos outros pontos que não cabem neste artigo – que, segundo Ricoeur, a leitura tem dois papéis divergentes. “Ela aparece alternadamente como uma interrupção no curso da ação e como um novo impulso para a ação” ( RICOEUR, 2010c, p. 308, grifos do autor). Dessa forma, há um momento em que o leitor sai de si e de seu mundo e emigra para o mundo do texto. Nisso, ele se “irrealiza” para habitar o lugar irreal do texto. Em outro momento, passa a incorporar os ensinamentos do texto a seu mundo, aumentando assim a legibilidade prévia deste. Dessa forma, o texto é, num momento, um lugar de permanência e, em outro momento, um local de passagem, isto é, ele é atravessado pelo leitor que está voltando para o mundo real. Numa leitura ideal, esses momentos da estase e da remissão se alternam, formando uma unidade frágil e dinâmica. Ricoeur diz que “quanto mais o leitor se irrealiza na leitura, mais profunda e mais longínqua será a influência da obra sobre a realidade social. Não é a pintura menos figurativa que tem mais chances de mudar nossa visão de mundo?” ( RICOEUR, 2010c, p. 309). Assim, um deslocamento maior ou mais intenso realizado na emigração para o texto e um maior esforço do leitor para lidar com o diferente possibilitarão uma refiguração mais radical de sua vida.

A educação como ato de leitura

Pensar sobre a apropriação de uma herança à luz do ato da leitura é uma possibilidade à qual o próprio Ricoeur se refere. No capítulo final de Tempo e narrativa, ele indaga o que significa “ser-afetado-pelo-passado”, e explica que há “uma equivalência parcial entre uma hermenêutica dos textos e uma hermenêutica do passado histórico”, afirmando ainda que “a compreensão dos textos herdados do passado pode ser erigida, com as devidas ressalvas, em experiência-testemunho no tocante a toda relação com o passado” ( RICOEUR, 2012, p. 378, grifo meu). Ele salienta, portanto, que em certa medida interpretar um texto e interpretar o passado se equivalem. Nessa mesma direção, destaco, a seguir, algumas possíveis equivalências entre a leitura de textos e a “leitura” da nossa herança.

O ponto principal está na relação dinâmica que se estabelece entre o texto e o seu leitor e, de modo semelhante, entre a herança e seus herdeiros. O texto não está pronto, mas requer o leitor que o transformará em obra. Também as experiências e realizações pretéritas por si só pouco significam se não houver herdeiros que delas fazem a sua herança. Isso se torna mais relevante ainda se consideramos, junto com Arendt, que não mais temos “um testamento” que nos diga como nos apropriar do legado. A pensadora ressalta, contudo, que essa ausência é ambígua. A falta do testamento nos deixa desnorteados, mas também possibilita “olhar o passado com novos olhos, sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições e, assim, dispor de uma enorme riqueza de experiências brutas, sem estarmos limitados por quaisquer prescrições sobre a maneira de lidar com estes tesouros” ( ARENDT, 2000, p. 12). De todo modo, ressaltando as vantagens ou os problemas da situação dos herdeiros, o esforço e a responsabilidade que a leitura dessa herança coloca nas suas mãos tem dimensões intimidadoras, ou, dito de outra forma, a ausência de uma tradição que nos guia deixa um desafio enorme a cargo dos herdeiros.

Há aqui uma interface interessante entre a situação de quem lida com uma herança sem testamento e o lugar do leitor que está diante de uma narrativa pouco legível, como a descreve Ricoeur, citando como exemplo a leitura do romance moderno. Um texto inóspito, que não dispõe de uma voz narrativa para guiar seus leitores por meio dos acontecimentos do enredo, requer um leitor que se dê ao trabalho de sanar lacunas, de estabelecer conexões entre elementos desconexos e compor uma figura onde só encontra fragmentos. Acrescenta-se a isso que leituras diversas são possíveis, de modo que as escolhas do leitor adquirem um caráter constitutivo para a consumação da obra final. Tal leitura demanda dele a disposição de criar, por sua conta, o mundo do texto e se engajar nele, ainda sem saber de antemão de que forma esse percurso poderá atingi-lo. Apesar desse custo, Ricoeur destaca o valor do texto mais difícil porque ele favorece a atividade do leitor, que pode por si mesmo buscar a coerência da narrativa que, em princípio, não está dada pelo texto. Quanto mais esse leitor se envolve na leitura, maiores as possibilidades de que seja afetado pelo texto, de modo que a leitura poderá vir a ser um impulso para refigurar seu mundo.

Na educação apresentamos aos mais novos uma herança que, com frequência, se mostra como um texto pouco legível e, muitas vezes, sem sentido. Arendt ( 2003, p. 243) observa que, do ponto de vista das novas gerações, o mundo é velho e sempre “obsoleto e rente à destruição”. Contudo, é da responsabilidade dos mais velhos convidar os jovens a se apropriarem desse legado e habitarem esse mundo, que depende dos seus habitantes para ser continuado e transformado. Assim, ao educar, chama-se os mais novos a participar da árdua tarefa da “leitura” de um mundo problemático, que não exige apenas ser decifrado, mas demanda dos herdeiros que busquem um sentido para essa história da qual passam a fazer parte.

Vimos com Ricoeur que a leitura difícil tem a virtude de exigir um leitor mais engajado. Isso valerá também para a “leitura” do legado que fazemos na educação? Um leitor envolvido poderá dar novas formas a uma herança que perdeu os seus contornos claros? Poderá discernir realizações, onde há vicissitudes e vice-versa? Poderá descobrir beleza onde parece haver apenas injustiça e sofrimento? O professor que aposta na “leitura” do legado talvez possa, com sua interpretação, mostrar aos alunos que é possível aceitar esse desafio e dispor-se a buscar, mesmo numa herança inospitaleira, experiências que tornam o mundo habitável. O inicialmente estranho pode ser enriquecedor em vários sentidos, pois suscita identificações ou distanciamentos. Assim, os “leitores” são provocados a experimentar perspectivas diversas e eventualmente a refigurar a si mesmos ou a sua compreensão de mundo. O professor certamente não exerce a função de um facilitador, mas do professor que convida seus alunos a uma busca, que pode trazer algum significado para aquilo que à primeira vista pode não ter valor para eles.

De acordo com Ricoeur, a leitura muito fácil frequentemente tem pouca relevância para o leitor, mas, embora o autor questione o texto excessivamente didático, também reconhece que ler um texto árido, por vezes, pode se transformar numa incumbência demasiadamente pesada. “Ao contrário de um leitor ameaçado de tédio por uma obra didática demais, cujas instruções não deixam espaço para nenhuma atividade criativa, o leitor moderno corre o risco de vergar sob o fardo de uma tarefa impossível, quando lhe pedem para suprir a falta de legibilidade” ( RICOEUR, 2010c, p. 289) que o autor tramou. Os novos habitantes do mundo se encontram numa situação semelhante ao leitor moderno, porque se defrontam com o passado sem ajuda da tradição, isto é, sem “o fio que [por muito tempo] nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado” ( ARENDT 2003, p. 130). Assim, apropriar-se do pretérito tornou-se uma tarefa custosa, o que afeta a educação. A crise da tradição, isto é, “a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado” atinge especialmente o papel do professor: “é sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo” ( ARENDT, 2003, p. 243-244). Arendt, contudo, alerta contra o perigo do esquecimento, isto é, não podemos abrir mão de nossa herança sob pena de destituir a atividade educativa de seu sentido. Cabe aos mais velhos resistir a esse perigo, ou, como diz a filósofa ( 2003, p. 247): “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”. Em outras palavras: não podemos, apesar de tudo, desistir da nossa história comum, mas é preciso engajar-se em sua leitura de modo que haja a possibilidade de continuação e, com isso, a esperança de novo inícios. Assim como Paul Ricoeur diante do texto difícil e Alice Walker diante de uma história de sofrimento, Arendt não se resigna, mas insiste na nossa capacidade de leitura. “Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir” ( ARENDT, 2003, p. 130).

Herdeiros e leitores

Voltemos agora nosso olhar para o leitor. Segundo Ricoeur, o ato da leitura pode vir a refigurá-lo, isto é, mudar sua compreensão de si e do mundo. Na formação escolar, ocorre algo equivalente – ou, ao menos, é desejável que ocorra. A escola oferece ao aluno a possibilidade de se envolver com os conhecimentos herdados ( ARENDT, 2003) e as experiências de seus antecessores, e espera que esse envolvimento não passe ao largo da pessoa do aluno.

Um momento importante da refiguração do leitor é o deslocamento que ocorre na medida em que ele sai do seu lugar habitual para adentrar no mundo do texto. Ao ler, ele passa a habitá-lo por um momento, isto é, se vê inserido nesse lugar e experimenta suas possibilidades. Essa experiência reflete novamente nele mesmo e em seu mundo. Ricoeur ( 1988, p. 374) explica que “compreendemos a nós próprios no espelho da fala” e, na mesma direção, acrescenta que “uma hermenêutica é bem mais do que uma exegese, no sentido estrito da palavra; é a própria decifração da vida no espelho do texto”. O espelho nos fala desse lugar que pode ser estranho e familiar e que nos ajuda a ver a nós mesmos e nosso mundo a partir de novos ângulos.

Reencontramos a metáfora do espelho no texto de Oakeshott sobre ensino e aprendizagem. No encontro entre a herança recebida e os alunos, não é somente a primeira que sofre transformações, mas, na medida em que os jovens dela se apropriam, também eles mudam. Portanto, não se trata simplesmente de tomar posse de um legado, mas da formação dos alunos que vão se constituindo enquanto pessoas. Para Oakeshott, é preciso sair do seu lugar e desviar o olhar de si a fim de direcioná-lo para o seu legado, porque “não existe para um ser humano outra maneira de fazer o melhor de si mesmo que não seja aprendendo a reconhecer-se a si mesmo no espelho desta herança” (OAKESHOTT, p. 41, tradução minha). Abandonar uma perspectiva autocentrada, deslocar o olhar do imediato para tomar parte nas experiências pretéritas é aqui um movimento inerente à formação escolar.

Arendt, numa direção semelhante, critica a educação progressista, que desvia o olhar do mundo comum e volta-se exclusivamente para a criança. Em sua obra A condição humana, afirma que somente podemos vir a ser alguém na medida em que fazemos parte de um mundo comum. “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original” ( ARENDT, 2010, p. 221). E é nesse sentido que também a educação escolar se volta para o mundo, em especial o mundo herdado, pois é nele que os mais novos poderão se inserir e revelar-se como pessoas singulares. A escola pode, assim, contribuir para a formação dos jovens, oferecendo-lhes um horizonte mais amplo para que seu olhar não fique preso ao aqui e agora. Sair de si, enxergar além dos seus interesses, estar disposto a se colocar no lugar dos outros e ser capaz de se compreender como personagem de uma história mais ampla que começou antes da sua história individual são movimentos nos quais Arendt aposta para a educação escolar.

Um trecho do romance “Diário de escola”, de Daniel Pennac, poderá servir como exemplo instigador para a reflexão sobre os deslocamentos inerentes à formação dos mais novos. O escritor, que relata sua experiência escolar, em determinado momento lembra dos professores que foram significativos para sua trajetória.

Seria ele [o professor Bal] mesmo um grande matemático? E, no ano seguinte, a professora Gi, uma gigantesca historiadora? E, na minha segunda série terminal o professor S., um filósofo fora da norma? Suponho que sim, mas para dizer a verdade ignoro-o; sei apenas que esses três aí eram habitados pela paixão comunicativa de suas matérias. Armados dessa paixão, eles foram me buscar no fundo do meu desencorajamento e só me largaram uma vez que eu tive meus dois pés bem plantados nos seus cursos, o que se revelou a antecâmera de minha vida. […] Em sua presença – em suas matérias – eu dei à luz a mim mesmo: um eu que era um matemático, um eu que era um historiador, um eu que era um filósofo, um eu que, no espaço de uma hora, esquecia um pouco de mim mesmo, me colocava entre parênteses, livrando-me do eu que […] tinha me impedido de sentir que eu estava realimente lá. ( PENNAC, 2008, p. 208, grifo meu).

Nesse trecho, o autor revela a potencial capacidade da escola de compartilhar de modo significativo conhecimentos e experiências do legado público. Eles ganham um sentido para o aluno na medida em que ele é convocado a sair do seu lugar cotidiano. Pennac narra o percurso de um “eu” que, por um momento, habita outro lugar, se faz e se refaz. Ele sai de si, se coloca entre parênteses, para adquirir novas formas no espaço de uma aula. O retorno ao “eu” cotidiano é inevitável, mas talvez seja um retorno refigurado. Essa experiência mostra a escola como um lugar que, ao menos em alguns instantes, possibilita aos seus alunos ir além do imediato e imaginar-se no lugar do outro, isto é, realizar movimentos fundamentais para a educação, segundo Arendt. Ricoeur, por sua vez, se refere a um movimento semelhante no ato da leitura. Talvez possamos dizer que, assim como o leitor emigra para o mundo do texto e depois volta refigurado ao seu próprio lugar, o aluno habita o universo da matemática, da história e da filosofia e, embora não se transforme em matemático, historiador ou filósofo, retorna mudado à sua vida cotidiana.

Masschelein e Simons, em seu livro Em defesa da escola: uma questão pública, distinguem a formação da aprendizagem. A formação envolve a desestabilização e o deslocamento do “eu”. Para os autores, a escola tem a tarefa de criar um tempo e um espaço em que o “eu” (dos seus alunos) pode se expor a saberes e práticas do currículo escolar e esse contato os transforma. O processo de formação exige um momentâneo distanciamento do lugar cotidiano. É justamente neste ponto que reside a diferença entre aprendizagem e formação. A aprendizagem envolve o fortalecimento do “eu” já existente por acumulação de competências e conhecimentos, enquanto a formação pede “sair constantemente de si mesmo e transcender a si mesmo – ir além do próprio mundo da vida por meio da prática e do estudo” ( MASSCHELEIN, SIMONS, 2013, p. 49). Uma formação assim concebida de certo modo se assemelha ao percurso refigurador de uma leitura que é constitutiva para quem nela se envolve. Vimos com Ricoeur ( 2001, p. 109, tradução minha) que com a leitura formamos uma nova compreensão de nós mesmos, pois

[…] só nos compreendemos mediante o grande desvio dos signos da humanidade depositados nas obras culturais. O que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo que chamamos o eu, se isto não tivesse sido levado à linguagem e articulado na literatura?

Temos de adentrar no mundo do texto, isto é, um mundo estranho para aumentar a legibilidade de nosso próprio mundo e de nós mesmos 4. Para Ricoeur, a refiguração da realidade é consequência da experiência no mundo imaginário, que é o lugar dos possíveis modos de ser e de viver. “O mundo da ficção é um laboratório de formas no qual ensaiamos configurações possíveis da ação para pôr à prova sua coerência e plausibilidade” ( RICOEUR, 2001, p. 21, tradução minha). Nesse sentido, a leitura nos retira do nosso mundo, mas essa suspensão é temporária e seu efeito não é alienante: “a suspensão da referência só pode ser um momento intermédio entre a pré-compreensão do mundo da ação e a transfiguração da realidade cotidiana que a ficção leva a cabo” ( RICOEUR, 2001, p. 21, tradução minha). Não permanecemos desligados do mundo real nem nos tornamos inativos. Muito ao contrário, a interrupção da ação é também o impulso para a ação, um impulso renovado pelas variações imaginativas da narrativa de ficção.

Deslocamentos, interrupções e distanciamentos da experiência imediata dos alunos e de sua vida cotidiana frequentemente são vistos com desconfiança no âmbito da educação. Pensa-se que quanto mais próximos estamos da vivência do aluno, quanto mais podemos “trazer a sua realidade” para a sala de aula, tanto mais impacto terá a educação na sua vida. Ricoeur mostra outra possibilidade. É justamente a oportunidade de “habitar outros mundos” que pode suscitar novos olhares para aquilo que pensávamos já conhecer. Se, no entanto, condenamos, de antemão, todos os deslocamentos como alienantes, só resta o nosso olhar imediato para a realidade dos nossos alunos, privando-os de experiências potencialmente refiguradoras. Carvalho ( 2016, p. 49-50), em seu livro Por uma pedagogia da dignidade, explica que

[...] o caráter trágico da existência desse enorme contingente de jovens [nossos alunos] mergulhados na miséria econômica e existencial só poderá ser superado se lhes propusermos narrativas que, mesmo distantes, atribuem um sentido à experiência do viver. Se ultrapassarmos o meramente vivido em favor da compreensão de sua constituição, se percebermos que o imediato não é, por si, inteligível.

A formação escolar procura oferecer as experiências que antecedem e extrapolam a vivência própria. Assim, sugere-se aos jovens “leituras” que deslocam e podem desestabilizar, mas também abrir uma dimensão de profundidade “que não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação” ( ARENDT, 2003, p. 131).

Considerações finais

O leitor moderno, em Ricoeur, se vê diante do declínio da narrativa. “A erosão dos paradigmas atinge ao mesmo tempo a figuração do personagem e a configuração da intriga” ( RICOEUR, 2016, p. 273). Há os que anunciam a morte da narrativa, porém o filósofo, num movimento de resistência, afirma que a narrativa “pode se metamorfosear, mas não morrer. Pois não temos a menor ideia do que seria uma cultura em que não se soubesse mais o que significa narrar” ( RICOEUR, 2010b, p. 50). Diante do declínio da narrativa, a leitura ocupa, mais do que nunca, um lugar chave. É o leitor que busca configurar a história, quando não encontra um enredo pronto, e não deixa de fazer a pergunta sobre quem é o personagem, mesmo que ele seja inidentificável. Ricoeur acredita no leitor que exige um sentido, ainda que seja difícil encontrá-lo. Que “talvez seja necessário, apesar de tudo, confiar na demanda de concordância” ( RICOEUR, 2010b, p. 50) é a sua aposta. Enfim, se a narrativa não oferece uma mensagem clara, ela ainda pode despertar a disposição para buscar a concordância.

Sob o prisma dessa experiência leitora, algumas dimensões da educação parecem ganhar em nitidez. O que os professores têm a oferecer a seus alunos é uma herança imperfeita, ou, nas palavras de Arendt, “um passado fragmentado, que perdeu sua certeza de julgamento” ( ARENDT, 2000, p. 160, grifo da autora). Se não têm tesouros a entregar, podem ainda oferecer experiências e conhecimentos do passado para que seus alunos possam partir em busca de seus tesouros.

É dessa busca que Alice Walker nos fala, uma procura árdua que, no passado obscuro, quiçá encontra alguma claridade para iluminar o presente: “em busca do jardim de minha mãe, encontrei o meu” nos diz a escritora no final de seu ensaio ( WALKER, 2021, p. 295). Nisto talvez consista a tarefa mais relevante da educação, entre as muitas atribuições que tem: encorajar os alunos a buscar, na leitura de sua herança, alguma luz para o mundo, muitas vezes sombrio, em que vivem.

Referências

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ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. [ Links ]

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Revisão e apresentação Adriano Correia. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]

BRAYNER, Flávio. Educação e republicanismo: experimentos arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Líber Livro Editora, 2008. [ Links ]

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PENNAC, Daniel. Diário de escola. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. [ Links ]

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1Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

3No início desse capítulo, Ricoeur informa que nele trata da narrativa de ficção, mas posteriormente ampliará seu raio de alcance. “Fingimos crer que a leitura só diz respeito à recepção dos textos literários. Ora, somos leitores de história tanto quanto de romances” (RICOEUR, ( 2010c, p. 311).

4Neste ponto certamente poderá ser explorado o tema da identidade narrativa e sua contribuição para a educação. Parece-me que há muitos desdobramentos possíveis que, no entanto, extrapolam o espaço deste artigo.

Recebido: 24 de Maio de 2022; Revisado: 17 de Agosto de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

Contato: vanessa.sievers.a@gmail.com

Editor: Prof. Dr. Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio

Vanessa Sievers de Almeida é doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil.

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