Introdução
Há muito a área da educação flerta com tecnologias que automatizam diferentes aspectos dos processos de ensino e aprendizagem sob o discurso de personalização, da liberação do professor de atividades que não sejam em sala de aula e de sua atenção individualizada ao aluno. Embora essa discussão tenha ganhado força na última década com o crescente investimento de empresas de tecnologia, o uso de dispositivos automatizados para o ensino - ou as máquinas de ensinar - já vem sendo projetado e tentativamente concretizado há mais de cem anos. Desde a década de 1920, quando a primeira dessas máquinas foi inventada pelo psicólogo da educação Sidney Pressey, as “ideias sobre instrução programada tornaram-se ‘codificadas’ em todos os tipos de tecnologias educacionais e práticas pedagógicas” (Watters, 2021, p. 15).
As máquinas de ensinar de Pressey e, mais tarde, Skinner, não obtiveram sucesso no século passado, e ainda hoje há incertezas de que sistemas automatizados poderão, um dia, ser inteligentes e comparáveis a um professor em seu ofício de ensinar. Mesmo um dos primeiros inventores da chamada Inteligência Artificial (IA), que criou o chatbot conhecido como ELIZA, não acreditava que sistemas de processamento de informações poderiam ser equiparados aos seres humanos. Contudo, conforme sugere Crawford (2021, p. 5, tradução nossa), “a crença de que a inteligência humana pode ser formalizada e reproduzida por máquinas é axiomática desde meados do século XX”.
Recentemente, a crença no potencial da automação de salvaguardar o humano do trabalho pesado ou tedioso se renovou na educação, campo próspero para o consumo de artefatos baseados em IA, um conjunto de técnicas vistas atualmente como a forma mais promissora de aumentar eficiências. Tais sistemas vêm sendo disponibilizados, implantados e usados de forma cada vez mais corriqueira por alunos, professores e instituições educacionais em diversas partes do mundo, suscitando muitos questionamentos e originando novos focos de investigação. Afinal, trata-se de um novo elemento no processo educacional que envolve, a partir de sua potencialização com o uso de Big Data (grandes conjuntos de dados), uma série de preocupações de cunho ético, considerando o papel dos dados na reprodução de desigualdades por meio de problemas tais como privacidade, representatividade e uma multiplicidade de outros possíveis vieses promovidos por sistemas que os utilizam (O’Neill, 2016).
Chassignol et al. (2018), em estudo sobre o impacto da IA no campo educacional, afirmam que o cenário educativo vem sendo modificado e remodelado pela IA, que já atua no desenvolvimento de conteúdos, métodos de ensino, avaliações dos alunos e na comunicação entre educadores e estudantes. Além disso, ainda segundo os autores, sistemas baseados em IA têm aberto maiores oportunidades para a difusão de cursos online abertos e “massivos” (MOOC) e possibilitam a medição do progresso de aprendizagens com eficácia e rapidez impossíveis para humanos (Chassignol et al., 2018).
Apesar de estar cada vez mais difundida em diversas áreas, encontrar consenso sobre o conceito de IA não é uma tarefa fácil. Wang, D. et al. (2015) definem a IA como uma atividade dedicada a tornar as máquinas inteligentes, sendo a inteligência a qualidade que possibilita a uma entidade funcionar adequadamente, com visão do seu ambiente. Já Ma et al. (2014) entendem a IA como um campo da ciência da computação voltado para a solução de problemas normalmente associados à cognição humana, como a aprendizagem, a resolução de problemas e o reconhecimento de padrões, daí o desenvolvimento de máquinas capazes de executar tarefas que envolvem percepção visual, reconhecimento de fala, tomada de decisões e tradução de idiomas, antes restritas à inteligência humana. Kate Crawford (2021), por sua vez, rechaça definições meramente técnicas para a IA, afirmando que esta não é nem inteligência, nem artificial:
Em vez disso, a Inteligência Artificial é incorporada e material, feita de recursos naturais, combustível, trabalho humano, infraestrutura, logística, histórias e classificações. Os sistemas de IA não são autônomos, racionais ou capazes de discernir qualquer coisa sem treinamento extensivo e computacionalmente intensivo com grandes conjuntos de dados ou regras e recompensas predefinidas. Na verdade, a inteligência artificial como a conhecemos depende inteiramente de um conjunto muito mais amplo de estruturas políticas e sociais. E, devido ao capital necessário para construir a IA em escala e as formas de ver que ela otimiza, os sistemas de IA são projetados para atender aos interesses dominantes existentes. Nesse sentido, a inteligência artificial é um registro de poder (Crawford, 2021, p. 8, tradução nossa).
Nesse sentido, a IA pode ser entendida como um terreno de disputas econômicas e políticas, como o são as tecnologias de modo geral (Winner, 2017). Referindo-se especificamente a tecnologias na educação, Selwyn (2014) argumenta que qualquer tecnologia educacional é produto de conflitos entre pautas diferentes e promove ideologias próprias, sobretudo valores e concepções específicas acerca da própria educação. Os discursos em torno das tecnologias na educação, também na academia, têm sido predominantemente otimistas, em uma aposta de que tecnologias educacionais, agora digitais, resolveriam problemas antigos da educação ou, ao menos, serviriam para melhorar as práticas pedagógicas, tornando-as mais eficientes (Selwyn, 2011; Carvalho; Rosado; Ferreira, 2019). Nesta perspectiva, as emergentes tecnologias com IA poderão vir a somar-se a uma longa lista de artefatos propostos como panaceia para as mazelas de uma educação carente de inovação de diversas formas. Assim, cabe questionar se teria mudado, em relação à IA, a “[...] possível cumplicidade dos acadêmicos na reprodução de preconceitos e desigualdades por meio da aceitação natural das tecnologias educacionais” (Gallagher; Breines, 2023, p. 58, tradução nossa). Seguindo essa linha de questionamento, o presente artigo discute se, no caso da IA em contextos educacionais, estariam os velhos discursos - fundamentados na naturalização da tecnologia - sendo reproduzidos. O texto explora um recorte de achados da revisão de literatura conduzida no escopo de um projeto de pesquisa em andamento, que aborda os discursos sobre a IA na educação em uma perspectiva crítica.
Procedimentos metodológicos
O levantamento de literatura que sustenta nossa discussão foi conduzido no escopo de um projeto mais amplo em andamento, com o objetivo de analisar como as publicações mais recentes da área têm abordado a presença da IA na educação. As buscas foram conduzidas entre agosto e setembro de 2022 utilizando as seguintes bases de indexação: a Pesquisa Integrada da Divisão de Bibliotecas e Documentação da PUC-Rio (DBD PUC-RIO), que é integrada à EBSCO Information Service e fornece resultados indexados nas principais bases de dados acadêmicos do mundo; a ERIC, que aglutina artigos exclusivamente da área de Educação; e a SCOPUS, uma das maiores bases de artigos científicos do mundo e fonte de indicadores de produtividade utilizados em avaliações de pesquisa em diversos países. Além disso, consultamos também a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Priorizamos trabalhos publicados nos últimos cinco anos, revisados por pares e com texto completo disponível, restringindo a busca por trabalhos indexados na área da educação. Após a seleção, o corpus ficou composto de 20 trabalhos, sendo 19 artigos revisados por pares e uma dissertação, conforme mostrado no Quadro 1.
Quadro 1 Síntese da busca
Base de dados | Descritores | Filtros | Primeiro levantamento | Seleção final | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Artigos acadêmicos | Dissertações e teses | Artigos acadêmicos | Dissertações e teses | |||
ERIC | “Artificial Intelligence in Education” | Since 2017 / Peer reviewed only / Full text available on ERIC | 20 | - | 10 | - |
Scopus | “Educational technology AND EdTech” | 2017-2022 / All open access / Article / Final | 14 | - | 4 | - |
DBD PUC-RIO | “Inteligência artificial AND educação” | Texto completo / 2017-2022/ Analisado por especialistas | 40 | - | 5 | - |
BDTD | “Inteligência artificial AND educação AND tecnologia educacional” | - | - | 42 | - | 1 |
Total | 116 | Total | 20 |
Fonte: Elaboração própria.
Chama atenção a busca realizada na BDTD. Usando um grupo de palavras-chave relacionadas ao tema (conforme Quadro 1), e sem qualquer filtro, obtivemos 42 resultados, mas apenas uma dissertação atendeu aos critérios postos para o levantamento e foi mantida para a revisão. Muitos desses trabalhos são do final da década de 1990 e início dos anos 2000, época em que a IA começou a se recuperar do chamado inverno que sucedeu uma onda de duras críticas, sobretudo de filósofos (Nilsson, 2010).
A seleção foi feita a partir da leitura dos resumos, que mostrou inicialmente um número de trabalhos apenas indiretamente relevantes ao questionamento posto. Como resumido no Quadro 2, a seguir, o corpus de artigos selecionados contém somente aqueles que trazem dados de campo e/ou reflexões mais ou menos aprofundadas sobre os processos de ensino e aprendizagem, bem como sobre como essas tecnologias afetam os sujeitos envolvidos nos processos e suas relações, incluindo alguns estudos de caso de implantação de uso de tecnologias em contextos educativos.
Quadro 2 Critérios de inclusão e exclusão
Critérios de exclusão | Critérios de inclusão | |
---|---|---|
Primeiro Levantamento | Textos técnicos sobre desenvolvimento de IA e o funcionamento de máquinas; textos específicos de áreas como engenharia, computação, medicina, entre outros, sem muita relação com a formação humana numa perspectiva mais ampla. | Trabalhos que abordem questões educacionais relacionadas a tecnologias com IA. |
Seleção final | Trabalhos que têm como foco avaliar comportamentos ou emoções de estudantes ou professores em situações específicas, também sem relação direta com a formação humana ou questões educacionais mais amplas. | Textos com dados de campo e/ou textos teóricos que refletem sobre os processos de ensino e aprendizagem, bem como sobre como as tecnologias com IA afetam os sujeitos envolvidos nos processos e suas relações. |
Fonte: Elaboração própria.
O corpus de literatura selecionado foi submetido a uma análise de conteúdo temática que seguiu, principalmente, as recomendações de Bardin (1977), resumidas por Claudinei Campos (2004), obedecendo às seguintes fases:
- Pré-exploração do corpus, quando fizemos leituras flutuantes do material com o objetivo de tirar as primeiras impressões dos textos, apreendendo as suas ideias gerais, ainda sem compromisso de sistematização;
- Seleção das unidades de análise, quando identificamos os principais recortes temáticos que emergiram da literatura, dentro do universo da IA na educação. Nessa etapa, também optamos por nos concentrar nas seguintes dimensões dos textos selecionados: objetivos da pesquisa, referencial teórico, procedimentos metodológicos e achados;
- Classificação dos recortes temáticos identificados na etapa anterior. Nesse momento, organizamos os textos selecionados de acordo com as temáticas identificadas nas leituras anteriores e procedemos com a análise dos sentidos dos textos, tendo como norte o objetivo e a questão da pesquisa proposta para o trabalho.
A discussão a seguir apresenta um recorte dos achados da análise.
Achados: o que nos mostra a literatura?
A discussão a seguir apresenta inicialmente, uma caracterização geral da literatura incluída no corpus de análise, para, subsequentemente, passarmos a aspectos mais diretamente relacionados às temáticas em discussão.
Caracterização geral do corpus analisado
No recorte selecionado, predominam os estudos oriundos do Brasil e do Reino Unido; outros países aparecem com produção menos numerosa, e há produções de pesquisadores de diferentes lugares de origem, conforme mostrado no Quadro 3. Seis trabalhos produzidos por pesquisadores brasileiros também foram selecionados, incluindo a dissertação de mestrado.
Quadro 3 Origem dos estudos levantados
País de origem | Quantidade de trabalhos cada |
---|---|
Reino Unido | 4 |
Brasil | 6 |
Mais de um país | 3 |
Alemanha, Arábia Saudita, China | 2 |
Israel, Turquia | 1 |
Fonte: Elaboração própria.
Prevalecem estudos qualitativos na forma de pesquisa bibliográfica e documental e revisões de literatura, e há alguns estudos de caso, cujos instrumentos de produção de dados são questionários, entrevistas e levantamento documental. As revisões de literatura encontradas nos ajudam a ter um panorama prévio de recortes da produção sobre o tema em tela.
A revisão bibliométrica de Talan (2021) informa que o interesse em estudos de IA na educação tem aumentado, com os Estados Unidos liderando o número de publicações. O trabalho de Hinojo-Lucena et al. (2019) explora a produção científica sobre IA no ensino superior (ES) indexada nas bases de dados Web of Science e Scopus durante o período de 2007 a 2017, e observa que, embora a IA já seja uma realidade e haja interesse mundial pelo tema, a produção científica sobre a sua aplicação no ES é incipiente, conclusão consistente com Gatti (2019). Já a revisão sistemática de Vicari (2021) aponta que, após décadas de existência como aplicação na educação, a IA finalmente vem sendo convocada a fornecer respostas a algumas perguntas fundamentais: se a tendência da tecnologia educacional será personalização da educação, assertividade com os usuários ou fornecer interação social com resultados educativos; em que consistirá a disrupção da educação; como os sistemas educacionais vão desenvolver as pessoas em um mundo em que a IA e a robótica substituem postos de trabalho.
Uma característica importante da literatura é a caracterização da IA como “ferramenta”, apontada também por Gatti (2019), bem como um achado consistente com revisões de literatura internacionais (Zawacki-Richter et al., 2019; Zhai et al., 2021; Flores et al., 2022): a maioria das pesquisas produzidas são oriundas das áreas de Ciência da Computação ou Engenharia. E mais: “a pesquisa voltada para a IA está baseada na construção de ferramentas de ensino e distante das discussões sobre ‘O que é?’, ‘Para que serve?’, ‘De que forma é feita?’, ‘Quais os riscos, os potenciais?’” (Gatti, 2019, p. 85). Em outras palavras, a abordagem à IA é frequentemente instrumental e otimista, com a IA apresentada predominantemente como facilitadora do processo educacional.
Em linhas muito gerais, o foco dos trabalhos se divide nos seguintes aspectos: estudos sobre educação à distância baseada ou facilitada por tecnologias de IA (Seren; Ozcan, 2021); trabalhos sobre uso dessas tecnologias durante o ensino remoto emergencial (ERE) adotado em virtude da pandemia de Covid-19 (Nagro, 2021); estudos de caso e análises da percepção do uso das tecnologias pelos sujeitos atuantes na educação (Parreira; Lehmann; Oliveira, 2021); o desenvolvimento de tecnologias para contextos educativos (Luckin; Cukurova, 2019); e estudos com viés crítico sobre tecnologias educacionais (Gray, 2020; Davies; Eynon; Salveson, 2021), apresentando diversos tipos de preocupações que serão expostas adiante.
No que se refere aos contextos dos quais foram recrutados os sujeitos de pesquisa, vários estão focalizados no ensino superior (Williamson, 2019; Aldosari, 2020); e em questões referentes aos professores (Wang, S. et al., 2020). No caso da China, Yang (2019) justifica a ênfase de estudos no nível do ES com base em uma realidade na qual esse é o contexto onde a implementação de IA está mais avançada no país, juntamente com a educação cívica. Apenas um estudo incluído no corpus aborda exclusivamente a educação básica (Gatti, 2019) e três tratam da educação como um todo, sem foco em uma única etapa (Yang, 2019; Renz; Hilbig, 2020; Santos; Freitas Jorge; Winkler, 2021). Artigos de cunho mais crítico tomam como objeto a própria indústria de tecnologia educacional, conforme discutido a seguir.
O professor no centro das discussões
Tendo o ERE como contexto, alguns dos trabalhos analisados refletem sobre o papel dos professores frente ao uso de tecnologias educacionais. Nagro (2021), por exemplo, questiona o papel das técnicas de e-learning e da IA na melhoria do comportamento e das práticas de docentes do ES em circunstâncias imprevisíveis, nas quais a educação presencial não é possível. Por meio de estudo empírico baseado na aplicação de questionário com 406 professores de universidades sauditas, o autor afirma que os profissionais consideram que o e-learning e a IA influenciaram positivamente suas práticas educativas durante a pandemia, com a automação tornando mais eficientes etapas desafiadoras tais como a avaliação. O autor sugere a abertura de novas portas para a educação on-line, mesmo após a Covid-19, tendo uma visão bastante positiva da aplicação de IA em contextos educacionais.
O tom otimista, porém, encontra um contraponto em uma preocupação legítima: que, para além da emergência instaurada pela Covid-19, sistemas alternativos à educação presencial estejam sendo propostos inclusive em contextos em que a ampla digitalização ainda é mais publicidade que fato. Nesse contexto, as partes interessadas podem ser induzidas a se acostumarem com os desenvolvimentos tecnológicos e se entusiasmarem com seus benefícios de modo pouco crítico, o que coloca diante de nós a realidade de que a educação pode ser confiada aos computadores sem uma discussão séria e aprofundada em todos os campos, especialmente na filosofia (Seren; Ozcan, 2021).
De fato, a literatura mostra haver bastante preocupação com a figura do docente: a questão é como o professor é posicionado. Há certa ambivalência na visão que se tem da agência dos educadores na implantação de IA em contextos educacionais. Em alguns trabalhos, os professores são apresentados como profissionais cuja opinião e práticas devem ser influenciadas por meio de treinamentos específicos para que aceitem e trabalhem eficientemente com a IA, por exemplo, com maior disposição para usar sistemas de tutores inteligentes (Wang, S. et al., 2020), partindo da premissa de que professores tendem a ser avessos a essas tecnologias em virtude de falta de conhecimento ou preconceito (Nazaretsky et al., 2022).
Olhando para a realidade da educação à distância no Brasil, Santos, Freitas Jorge e Winkler (2021) alegam que, no que se refere à inovação nas relações de ensino e aprendizagem por meio da incorporação de IA e virtualização nos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA), os alunos estão, hoje, muito mais ativos e cognitivamente capazes que em outros tempos, enquanto os professores se encontram em fase de adaptação didática. Para os autores, a incorporação dessas tecnologias implica a abertura de novos desafios e a criação de novas rotas, com a relação entre os envolvidos nos processos tornando-se mais estreita, dinâmica e interativa. Tomados em justaposição, estes trabalhos sugerem que os mesmos discursos que ouvimos há décadas, sobre professores resistentes ou desinteressados na tecnologia educacional, mostram-se agora reproduzidos, também, nos argumentos de defesa do uso de IA.
Por outro lado, em Parreira, Lehmann e Oliveira (2021) há uma escuta dos professores no sentido de entender como eles percebem possíveis modificações no futuro de suas profissões motivadas pelo que chamam de “tecnologias de segunda geração” (os sistemas de IA). Apesar das dificuldades em diferenciar os impactos das diferentes gerações de tecnologias, os autores observam que os profissionais reconhecem que elas devem alterar o perfil de competências da profissão. Concluem, assim, que será necessário reforçar a formação de professores a partir das “competências para o futuro” recomendadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sendo essas principalmente de natureza interpessoal e conceitual-estratégica (Parreira, Lehmann e Oliveira, 2021). Aliás, recomendações constantes em documentos produzidos por organismos multilaterais, como a UNESCO e a OCDE, que mantém vastas bases de conhecimento sobre o assunto3, são comumente mobilizadas para justificar a urgência de adaptações para uso da IA na educação.
Além da formação, uma preocupação presente no corpus é com a substituição do professor pela máquina. Em nosso levantamento, essa questão aparece em Luiz Fernando Campos e Luiz Antônio Lastória (2020), que reflete sobre uso de tecnologias audiovisuais, plataformas digitais e softwares de IA voltados à personalização do ensino. O trabalho destaca, além da possível substituição dos professores, preocupações com a fragmentação dos hábitos de leitura e escrita dos estudantes e com o discurso sobre a “gamificação” para tornar as aulas mais atrativas, afirmando que “é necessário que a educação vá além do que está programado, dando visibilidade ao que não aparece nas interfaces computacionais: as contradições econômicas, políticas e sociais escondidas nas caixas-pretas dos aparelhos” (Campos, L. F.; Lastória, 2020, p. 17).
Questionando as premissas que sustentam a afirmação de que é possível substituir os professores por máquinas, Coelho (2018) reflete sobre o significado da automação da educação e faz uma provocação: considerar possível que máquinas automatizadas substituam o trabalho dos professores é, de pronto, resumir bastante o papel dos professores e até dos estudantes, reduzindo-os à parte que trabalha e ignorando todo o potencial do imponderável, aquilo que é humano e as máquinas existentes (ainda?) não dão conta. Trata-se, aqui, do que Selwyn et al. (2023a, tradução nossa) denominam de “‘redutividade’ da automação na educação”. Revela-se, também, a tendência à substituição, parcial ou total, do professor pela tecnologia, identificada por Barreto (2017) em textos de políticas brasileiras já há décadas. A tendência aparece com força redobrada em documentos de organismos multilaterais relativos à IA (Ferreira; Lemgruber; Cabrera, 2023).
Nesse contexto, intensificam-se as preocupações não apenas com o futuro da profissão docente, mas com as formas que a própria educação poderá tomar a partir dessa subjetivação, que tem decorrências para os processos de socialização implicados na formação humana compreendida como prática, fundamentalmente, comunicacional. As implicações concernem não apenas à preocupação já antiga com as decorrências, para o mundo do trabalho, da substituição do humano por máquinas, mas também, crucialmente, aos tipos de sujeitos que serão formados em contextos que sustentam múltiplas formas de dessocialização do humano por meio de comunicação, na melhor das hipóteses, mediada por máquinas, senão, apenas com elas (Selwyn et al., 2023b).
Questionamentos críticos
Nosso recorte, ainda que limitado, parece refletir diferenças de perspectiva da IA que são observadas em relação a outros tipos de tecnologias digitais. Identificamos, no corpus, duas tendências principais no debate sobre IA na educação: uma que a considera um fato, dado e marcadamente positivo, cabendo aos envolvidos apenas se adaptarem da melhor forma possível para tornar os processos mais eficientes; e outra que pondera sobre a necessidade de avaliar com maior profundidade suas vantagens, as dificuldades que impõem aos processos educativos e aos sujeitos implicados, bem como os interesses políticos e comerciais envolvidos na pressão por sua rápida incorporação ao cotidiano educacional.
Um dos trabalhos de tom mais otimista em nosso levantamento, Aldosari (2020), afirma, a partir das respostas obtidas a uma pergunta feita a uma amostra de acadêmicos, que há total satisfação com o que a tecnologia alcançou na educação, bem como confiança no progresso tecnológico, apontando para um cenário positivo em que a IA pode promover a melhoria da educação acadêmica e da aprendizagem dos estudantes. O autor recomenda ainda, adotando postura semelhante à apresentada em outros trabalhos, que seja feita a preparação do corpo docente para utilizar os produtos de IA de forma eficaz. Segundo os estudos que compartilham essa perspectiva, a incorporação de tecnologias com IA na educação é algo inevitável, iminente, que indubitavelmente trará melhorias para a educação ao possibilitar a efetivação de novas práticas de ensino e aprendizagem, ou seja, uma forma de “inovação pedagógica” pelo mero uso de artefatos digitais (Aldosari, 2020).
Contudo, questionamentos importantes emergem com maior clareza quando a relação entre IA e Big Data é explicitada, ou seja, quando se reconhece que falar em IA implica discutir questões relativas a dados, incluindo segurança e vigilância. Renz e Hilbig (2020) ressaltam que, embora o desejo de flexibilidade e personalização - termos frequentemente utilizados para qualificar tecnologias educacionais com IA - impulsione o debate sobre sistemas de IA baseados em aprendizagem de máquina, a falta de soberania de dados (que idealmente deveriam estar sujeitos às leis do país em que são produzidos), a incerteza sobre os processos a que são submetidos e a falta de compreensão de como os sistemas de IA de fato operam, são fatores que estão impedindo o desenvolvimento e a implementação de soluções apropriadas. Além dessas questões, é importante lembrar, conforme Luckin e Curukova (2019) sugerem, que a maioria dos desenvolvedores de IA sabe pouco sobre aprender e ensinar, daí a importância da pesquisa interdisciplinar nas áreas de IA e ciências da aprendizagem, de modo a possibilitar melhores condições para projetar algoritmos efetivos para usos educacionais. Por fim, é preciso considerar que há “lados obscuros” na educação facilitada por tecnologia, conforme sinalizam Zakharova e Jarke (2022), sobretudo as tentativas de “consertar” e encaixar multiplicidades em uma coisa só, uma dependência da automação em favor da melhoria das condições de produção e processamento de dados, bem como a tendência a forçar ajustes individuais em lugar de abordar desigualdades estruturais. Os dados, neste caso, serviriam como meio para forçar modos diferentes de padronização e obscurecer questões fundamentais que devem ser encaradas na educação.
Estudos que adotam abordagens críticas são fundamentados em perspectivas que politizam a tecnologia, ou seja, opõem-se à crença na sua neutralidade, situando objetos e atores em contextos marcados por tensões e conflitos de interesses. Assim, reconhecem que importa não apenas aquilo que é feito com artefatos, mas também (e, talvez, crucialmente), como, onde e para que eles são produzidos, vendidos e inseridos em contextos específicos. Em geral, tais trabalhos tendem a considerar relações que as empresas de tecnologias digitais e a educação mantêm. Durante a pandemia de Covid-19 muitas dessas empresas ampliaram sua presença oferecendo seus ambientes e serviços às redes de ensino, amiúde, de forma “gratuita” (Vieira, 2022). Companhias como a Microsoft e a Google, entre outras, vêm investindo pesadamente em desenvolvimento de IA, sustentando-a como uma tendência que vem ganhando cada vez mais espaço também na educação. De fato, a história da tecnologia educacional é longa, mas o avanço financeiro e político das empresas de tecnologias digitais sobre a educação é recente, conforme Watters (2021), sugere:
À medida que o setor de tecnologia da informação se tornou mais poderoso financeira e politicamente na última década, a voz do Vale do Silício se tornou mais alta nos debates sobre a forma e a direção do sistema educacional. Muitos de seus empreendedores lançaram ou investiram em negócios educacionais, muitas vezes orgulhosamente ignorantes da história da educação ou da história da tecnologia educacional. (Watters, 2021, p. 7, tradução nossa).
Em nosso corpus, dois trabalhos lidam, especificamente, com questões relativas à expansão da atuação de grandes empresas. Williamson, Pykett e Nemorin (2018) analisam tecnologias educacionais baseadas em insights neurocientíficos sobre a função e a estrutura do cérebro propostas pela Pearson e pela IBM. Os autores descrevem maneiras pelas quais o cérebro humano está sendo compreendido, modelado, simulado e integrado a aplicativos de IA e “sistemas cognitivos” que essas empresas estão promovendo, de modo que se evidenciam questões que precisam ser vistas com seriedade no mundo contemporâneo, dado que se estabelecem novas formas de governança neuro computacional e biopolítica capitaneadas por grandes empresas privadas. Williamson (2019) explora a articulação entre governos e agentes comerciais nos esforços tecnológicos em larga escala para coletar e analisar dados de alunos do ES do Reino Unido. O estudo mostra que a politização e a comercialização de dados no ES está se traduzindo em métricas de desempenho em um setor cada vez mais orientado para o mercado, o que sinaliza a necessidade de fortalecimento de estruturas políticas para garantir usos éticos e pedagogicamente valiosos dos dados dos estudantes.
Assim como esses trabalhos, que adotam referenciais teóricos mais ricos e, assim, promovem discussões mais aprofundadas, Davies, Eynon e Salveson (2021) apresentam achados de um estudo sociológico que combina, segundo uma metodologia de grafo de conhecimento, as noções de “campo” de Bourdieu (2019) e de “solucionismo tecnológico” de Morozov (2013), com o propósito de investigar como e por que estão sendo mobilizados discursos para defender que a tecnologia com IA pode consertar a educação. Davies, Eynon e Salveson (2021) apontam que a IA disfarçada de personalização é um conceito central dentro do campo, sendo promovido como uma maneira de corrigir a educação ao, por exemplo, tornar a aprendizagem mais eficiente e eficaz. Na contramão da aceitação da inevitabilidade da tecnologia como solução para problemas educacionais, Gray (2020) argumenta que usos educacionais de IA precisam ser um projeto verdadeiramente coletivo e não comercial, não deve ser imposto às comunidades escolares sem suficiente escrutínio e transparência. Para tanto, a autora sugere que os governos precisam assumir a liderança por meio de uma posição regulatória sólida, na qual a inclusão social seja garantida.
Considerações finais
Este artigo apresentou achados de uma revisão de literatura em torno da IA na educação. De um total de 116 trabalhos em português e inglês publicados nos últimos cinco anos, selecionamos 20 trabalhos para analisar, sendo 19 artigos completos revisados por pares e uma dissertação de mestrado. Nesse corpus, encontramos uma prevalência de trabalhos oriundos do Reino Unido, a maioria de natureza qualitativa. Quanto ao público, o ensino superior se apresentou como o setor de maior interesse dentre os estudos levantados. Destacam-se as preocupações relativas ora à formação dos professores e ao desenvolvimento de seus conhecimentos e competências para o trabalho com as tecnologias, ora ao fato de que esses profissionais não estão sendo suficientemente considerados no desenvolvimento da IA para a educação. Encontramos, também, evidências de receio diante das possíveis decorrências dessas tecnologias para a carreira docente, não apenas em termos de sua precarização, mas também de uma possível substituição do professor pela máquina.
Ainda que o universo constituído pelos trabalhos selecionados para análise seja relativamente limitado, ele nos dá indicações de como a questão da IA vem sendo abordada em pesquisas. É significativo que, de um total inicial de 116 pesquisas, apenas 20 mostrassem, minimamente, um engajamento com questionamentos mais abrangentes sobre o agora e os possíveis futuros da educação. Podemos assumir que grande parte dos trabalhos excluídos toma a IA como inevitável, como é o caso de alguns do nosso corpus. A inclusão de um único trabalho de final de curso de pós-graduação nos sugere um cenário particularmente preocupante no tocante à aceitação da inevitabilidade da IA em contextos de formação de pesquisadores em nosso país. Nesse sentido, é interessante notar o uso da metáfora da ferramenta como forma de conceber a IA em alguns dos trabalhos analisados. De fato, conforme sugerem Ferreira e Lemgruber (2018), esta metáfora, talvez a mais amplamente utilizada para falar da tecnologia educacional (Ferreira et al., 2020), sustenta, de modo consistente, a noção de que a educação está quebrada, metáfora também identificada em nosso recorte. Nessa perspectiva, a resposta à nossa questão inicial não parece ser das mais animadoras: muitos de nós, acadêmicos, parecemos estar, sim, perpetuando uma visão naturalizada da tecnologia em nossas discussões sobre IA, numa manutenção dos velhos discursos que apontamos em nossa introdução.
Contudo, nosso recorte sugere que, para além da futurologia e da perspectiva predominantemente otimista quanto à entrada de recursos tecnológicos em contextos educacionais, estão em pauta importantes considerações de cunho mais crítico, que passam por preocupações outras que o desenvolvimento de tecnologias em perspectivas meramente solucionistas. Ainda que se trate de uma minoria de trabalhos a veicular tais questionamentos (e desses, a maioria internacionais), para além da tendência a tomar a IA como um fato dado e marcadamente positivo, cabendo aos envolvidos se adaptarem, encontramos ponderações cruciais sobre a necessidade de avaliar com maior profundidade tanto suas aplicações práticas quanto os interesses comerciais que pressionam por sua rápida incorporação aos contextos educativos. Há preocupações com o fato de os desenvolvimentos tecnológicos estarem possivelmente desalinhados das necessidades dos estudantes e professores, bem como considerações sobre o uso ético de dados e críticas contundentes aos problemas de vigilância, governança e os discursos em defesa do solucionismo tecnológico na educação.
Assim, parece-nos promissor que a discussão sobre a IA na educação possa vir a extrapolar, com mais frequência, as qualificações dicotômicas da tecnologia como boa ou má - amiúde baseadas simplesmente em juízos de valor - que vêm caracterizando a produção acadêmica em torno da tecnologia educacional já há algum tempo. Conforme defendido por Selwyn (2017, p. 88), precisamos de “um posicionamento inerentemente cético, ainda que resistente à tentação de incorrer-se em um cinismo absoluto”. Nesse sentido, é necessário desconstruir a usual naturalização da tecnologia de forma construtiva e, assim, potencialmente transformativa. Esse é o primeiro passo em um caminho que vislumbramos para uma academia que não reproduza os discursos solucionistas da indústria.