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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.24 no.2 Campinas maio/ago 2019  Epub 19-Jun-2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4324 

Artigos

Democratização ou massificação do Ensino Superior no Brasil?

Higher Education in Brazil: democratization or massification?

Maria Ligia de Oliveira Barbosa2 
http://orcid.org/0000-0002-7922-8643

2Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de Sociologia. Largo de São Francisco, 1, Centro, 20051-070, Caixa Postal 22240-006, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. : <mligiabarbosa@gmail.com>.


Resumo

Este artigo busca compreender em que medida o Sistema de Ensino Superior brasileiro, que apresentou um notável processo de expansão em relação ao número de matrículas nas últimas décadas, tem oferecido, ou não, maior igualdade de oportunidades educacionais e sociais. Em sentido complementar, visa analisar os possíveis graus de democratização do Ensino Superior no Brasil. O texto explora a estrutura geral do Sistema de Ensino Superior no Brasil, a seletividade no acesso aos cursos de graduação e informações sobre depois do acesso a partir de informações principalmente aquelas disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geográfia e Estatistica e pelo Instituto Nacional de Educação e Pesquisa. Como resultado, sugere que apesar de alguma abertura no acesso, características como origem social, raça e sexo ainda são um fator muito relevante na definição da trajetória social. Ademais, há fortes indícios de que algumas características desse sistema poderiam ser, hipoteticamente, lidas como barreiras institucionais e fatores de aumento e não de redução das desigualdades. Estudantes menos favorecidos socialmente (pobres, negros e mulheres) são “encaminhados” para os setores e instituições menos prestigiados do sistema de ensino. As evidências nessa direção começam a ser pesquisadas no nosso país, tornando o debate sobre a democratização do Ensino Superior um ponto essencial na construção de uma sociedade melhor.

Palavras-chave:  Brasil; Desigualdades Sociais; Ensino Superior; Pobreza

Abstract

This article intends to understand if the Higher Education System in Brazil, which has experienced a remarkable increase in enrollments in the past two decades, offers greater equality in terms of educational and social opportunities than before. In a complementary sense, it aims to analyze the possible degrees of higher education democratization in Brazil. The text explores the general structure of the System of Higher Education in Brazil, the selectivity in access to undergraduate courses, and post-access data. As a result, it suggests that some characteristics, such as social origin, race, and sex, are still a very relevant factor in the definition of social trajectories. In addition, there are strong indications that some of the system’s characteristics could be read as institutional barriers and factors of increase, not reduction, of inequalities. Socially disadvantaged students (poor, blacks, and women) are “forced” to the less prestigious sectors and institutions of the educational system. The evidence in this direction begins to be researched in our country, making the debate about democratization of higher education an essential point in building a better society.

Keywords:  Brazil; Social Inequalities; Higher Education; Poverty

Introdução

Ao longo da última metade de século o Sistema brasileiro de Ensino Superior experimentou uma expansão muito significativa. Aumentaram os números de estudantes, professores, instituições, bem como surgiram novas alternativas e caminhos de formação. O prêmio econômico pela passagem por Ensino Universitário tem aumentado ao mesmo tempo em que novos grupos sociais incrementam sua participação nesse nível de escolarização. Jornais de ampla circulação passaram a publicar e discutir fortemente a situação desse sistema escolar, em particular do Ensino Superior brasileiro. Por seu lado, a pesquisa social tem se debruçado sobre as novas características desse sistema e os sentidos a ele atribuído nas condições atuais. Nesse artigo busca-se compreender em que medida esse sistema de Ensino Superior em expansão tem oferecido, ou não, maior igualdade de oportunidades educacionais e sociais. Ou seja, procura-se analisar os possíveis graus de democratização do Ensino Superior no Brasil.

A análise se inicia por breves pinceladas da abordagem teórica, construída a partir das teorias da estratificação e mobilidade social que geraram os modelos Desigualdade Maximamente Mantida (Maximaly Mainteined Inequality, MMI), Desigualdade Efetivamente Mantida (Effectivelly Maintained Inequality, EMI) e Desigualdade Efetivamente Expandida (Effectively Expanded Inequality, EEI) como base para explicação dos processos de construção e aprofundamento das desigualdades sociais nos sistemas escolares. Ao mesmo tempo, como forma de integração dos atores nesses processos, utiliza-se a sociologia da experiência de François Dubet e a teoria dos valores e ação racional de Raymond Boudon. Os estudos sobre instituições e atores completam a análise sobre as forças e grupos sociais que controlam o funcionamento e a expansão do Ensino Superior (ES) garantindo ao mesmo tempo seus espaços privilegiados (Bourdieu, 1989, Grusky; Sorensen, 1998, Grusky; Weeden, 2001, Triventi, 2013).

Como princípio fundador dessas análises persiste uma pergunta clássica, feita por Alexis de Tocqueville: em que momento uma diferença se torna desigualdade? A resposta combina a definição durkheimiana do social como generalidade e regularidade das regras morais com o conceito weberiano de estamento como grupo social capaz de ordenar ou hierarquizar as relações sociais ou o sentido compartilhado/dominante das ações sociais. Nesse quadro, a desigualdade social pode ser abordada como sendo a capacidade socialmente desigual de estabelecer as regras dominantes em algum espaço da sociedade. Ou seja, trata-se da possibilidade de definir os valores que diferenciam os grupos sociais e, assim, definem suas diferentes posições nas hierarquias da sociedade. Com todas as recompensas, direitos e deveres associados a cada uma delas.

No caso das análises da desigualdade social associada ao sistema de Ensino Superior, essa abordagem mais abstrata tem inúmeras definições mais concretas e específicas, das quais serão aproveitadas especialmente as contribuições mencionadas acima, destacando-se o estudo de Sigal Alon (2009), que criou o conceito de Desigualdade Efetivamente Expandida (EEI). No artigo mencionado, Alon indica dois fatores explicativos possíveis para o aumento da desigualdade verificado nos EUA mesmo após períodos de expansão do sistema de ensino superior: a maior seletividade dos cursos e instituições mais prestigiados e as estratégias de adaptação da elite para tornar seus filhos mais competitivos nos processos de seleção. Mais que discutir os ricos meandros da construção abstrata em cada estudo, se utilizará alguns dos conceitos propostos para facilitar a discussão de alguns dos elementos sociais característicos do sistema de ensino superior no Brasil. Nesse ponto da pesquisa, as evidências ainda são pouco conclusivas: se terá pela frente um imenso trabalho de produção e análise dos dados primários e mesmo secundários3. Junte-se a isso a necessidade de fazer avançar a abordagem teórico-metodológica participando do debate internacional particularmente sobre as constelações de sentido social constituídas em torno da divisão técnica do trabalho.

Para responder se a expansão da matrícula, diversificação dos cursos e percursos teria ensejado maior igualdade de oportunidades educacionais, se poderá tentar caracterizar o sistema de Ensino Superior em duas dimensões: Estrutura geral do Sistema de Ensino Superior (SES) e Fatores institucionais relativos ao acesso, permanência, acompanhamento dos egressos. Os dados empíricos utilizados no artigo são, em sua maioria, secundários produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) ou pelo Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (INEP) e trabalhados por pesquisadores do Laboratório de Pesquisa em Ensino Superior, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LAPES/PPGSA/UFRJ).

Estrutura geral do sistema de Ensino Superior no Brasil

Nos últimos cinquenta anos a matrícula no sistema de Ensino Superior brasileiro cresceu consideravelmente: em 1900 havia apenas 10 mil estudantes. Em 1945, eles eram aproximadamente 45 mil, tendo passado para 95 mil em 1964 e para 8 milhões em 2015. Segundo Neves (2015), essa expansão teria ocorrido em duas ondas: a primeira, relacionada à reforma universitária feita em 1968 pelos governos militares. Em poucos anos, as matrículas passaram de 425,478 (49% no setor público) em 1970 para mais de um milhão (62% no setor privado) em 1975. A segunda onda teria ocorrido na virada do século XXI, quando o número de estudantes passou de 1,7 milhões em 1995 para 8 milhões em 2015.

Essa expansão não é um fato exclusivo do Brasil: como mostram Schofer e Meyer (2005) o sistema mundial de Ensino Superior teve um crescimento impressionante. Também Rocha et al. (2017) mostram que o aumento da taxa líquida de matrícula para a faixa etária no Brasil cresceu em sintonia (em um ritmo talvez um pouco menor) com aquela de outros países nos anos 2000, passando de 9,82% em 2002 para 15,14% em 2012. Nos mesmos anos, esses indicadores foram de 38,93% e 47,61% para 41,61% e 57,38% nos Estados Unidos e na Coréia do Sul, respectivamente. Os argentinos passaram de 23,87% para 28,69% no período analisado. Esse indicador, que mede a proporção de jovens na idade adequada para cursar o Ensino Superior que estão efetivamente matriculados nesse nível, já mostra uma das questões problemáticas para o sistema brasileiro: seu atraso relativo.

A distribuição das proporções entre setores público e privado ao longo dos anos indica outra característica importante do sistema brasileiro, cuja expansão foi sempre apoiada no crescimento do setor privado. Assim, passa-se de 1,5 milhões de estudantes em 1991 para 8 milhões em 2015. Em 1991, o setor público recebeu 38,7% das matrículas, proporção que cai para 24,3% em 2015.

Uma característica comum aos países BRICS (sigla que se refere aos seguintes países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), como mostra Schwartzman (2015) é o crescimento das matrículas nas ciências sociais, humanidades, profissões sociais e educação. O caso brasileiro é bastante similar, apresentando o mesmo crescimento nos últimos 20 anos bem como o aumento significativo da proporção de matrículas nas áreas mencionadas. Mais de um terço dos alunos (39,5%) em 2015 estão nos cursos de ciências sociais aplicadas, que incluem negócios e direito. 18,1% deles têm matrícula em cursos da área de educação.

Como bem mostram os estudos de Arum e Roksa (2011, 2014) ou de Triventi (2013), esse tipo de expansão, fortemente apoiado em áreas específicas, tem consequências importantes para o tipo de papel que o sistema de Ensino Superior pode ter numa determinada sociedade. A primeira impressão que se pode ter a partir desses dados é que o sistema brasileiro não abre um espaço muito amplo para disciplinas científicas ou para formação técnica. A expansão das humanidades, seja nos cursos de administração ou de educação, passando por outros como ciências sociais, é bem mais expressiva do que aquela, por exemplo, das engenharias.

Outra característica relevante do Sistema Brasileiro de Ensino Superior é sua reduzida diversidade que poderia, pelo menos hipoteticamente, ser associada ao domínio do modelo único “humboldtiano” formalmente definido. De acordo com a legislação brasileira, pelo menos desde a LDB de 1961, para que uma instituição seja considerada uma universidade ela deve, necessariamente, desenvolver atividades de pesquisa, ensino e extensão. Se este é reconhecidamente um modelo de excelência universitária, sua transformação em formato obrigatório para o Ensino Superior pode ser bastante problemática. Inicialmente, porque impede o desenvolvimento de alternativas que pudessem proporcionar maior igualdade de oportunidades e escolhas educativas ou maior eficiência no atendimento às demandas das famílias e do mercado de trabalho. O modelo adotado legalmente no país, bastante próximo da ideia humboldtiana de universidade, parece oferecer boas condições para o desenvolvimento de pesquisa e para formação de profissionais de alto nível acadêmico. A ideia de formação profissional para o mercado de trabalho – desde os cursos tradicionais, imperiais, como medicina, direito e engenharia, passando pela formação de professores e os novos cursos como hotelaria, logística ou gastronomia –, poderia ser feita em modelos alternativos, talvez mais próximos do chamado modelo napoleônico, que permitia a coexistência de diversos percursos distintos de formação, convivendo ao lado das universidades de elite. As crises por falta de mão-de-obra especializada em áreas técnicas, ou de engenheiros, mesmo de médicos e professores, indicariam que efetivamente se tem alguns problemas com esse modelo.

Esses problemas podem se agravar se, efetivamente, se confirma a tendência indicada por Martins (2015) de que se forma um novo modelo globalizado de universidade e que o Brasil tenta participar – mesmo sem grande sucesso –, desse processo mundial. Segundo Martins, esse novo modelo transcenderia as fronteiras nacionais e teria como foco principal a pesquisa, vista como um mecanismo de desenvolvimento econômico e social. No novo modelo se exigiria também grande eficiência científica e gerencial, o que talvez explique a participação ainda muito restrita do Brasil. Mas o dado que parece mais relevante nesse novo quadro, para essa análise, seria o fortalecimento da vocação acadêmica no sistema de Ensino Superior brasileiro.

A reduzida diversificação do sistema universitário brasileiro pode ser expressa na absoluta preferência dos estudantes pelos cursos que concedem o grau de bacharel, em detrimento das licenciaturas e dos cursos tecnológicos. A matrícula nos bacharelados permanece em torno de 67,00% desde a LDB de 1996, que introduziu os cursos tecnológicos (em franco crescimento – passando de 2,30% das matrículas em 2001 para 14,30% em 2015) e regularizou as licenciaturas, que sofreram um pequeno declínio no período mencionado (de 21,37% das matrículas para 18,10%).

A existência de um modelo legalmente definido (e socialmente bastante legítimo, ao menos aparentemente) de universidade do tipo humboldtiano e de uma estrutura que na prática se assemelha ao modelo napoleônico parece gerar algum atrito. Tanto instituições que oferecem cursos mais vocacionais são levadas a criar dispendiosas fantasias de funcionamento em moldes humboldtianos como as universidades mais próximas do modelo dominante são constrangidas a relegar ao descaso possíveis espaços de formação menos acadêmica e mais profissional ou vocacional.

Outra característica que diferencia o SES brasileiro daquele dos demais BRICS e de vários países desenvolvidos é o não pagamento de mensalidades ou taxas de matrículas em instituições públicas (Schwartzman, 2015). Ao mesmo tempo, o setor privado tem cursos pagos. Como três quartos dos estudantes estão matriculados nesse setor, mesmo contando com importantes aportes de dinheiro público para bolsas e financiamentos há um investimento econômico bastante significativo das famílias na escolarização superior.

A adoção de políticas públicas e ações institucionais que favoreçam o acesso ao Ensino Superior é uma característica comum aos processos de expansão da matrícula nos mais diversos países. Quando se considera o acesso ao Ensino Superior no Brasil, inegavelmente houve uma abertura acentuada permitindo a entrada de estudantes provenientes de setores anteriormente excluídos desse nível de escolarização. Por exemplo, o número “de estudantes matriculados em instituições federais de ensino dobrou de 2003 a 2011; e, o de negros, quadruplicou entre 1997 e 2011” (Neves; Anhaia, 2014, p.383).

Além disso, foram instituídas ou reforçadas políticas de ação afirmativa (como cotas sociais e raciais) e mecanismos de financiamento, tanto através de bolsas (Programa Universidade Para Todos (Prouni) e diversas bolsas institucionais) quanto de empréstimos subsidiados (Financiamento Estudantil (FIES) e financiamentos oferecidos pelas próprias universidades privadas). Essas políticas,

[...] como ações voltadas à inclusão de camadas populacionais no sistema educacional, buscam garantir a equidade – ou seja, garantir que todos tenham oportunidades adequadas, guiadas no sentido de uma diminuição ou abrandamento das desigualdades socioeconômicas e raciais que determinam e diferenciam as oportunidades de acesso à educação superior (Neves; Anhaia, 2014, p.384).

Segundo esse estudo, bastante completo e minucioso, a entrada da questão racial no debate público deu-se a partir da virada do século, quando a presidência da república reconhece o caráter racista da sociedade brasileira e, a partir de 2001, com a participação na conferência de Durban, o Brasil inicia a discussão e promoção de ações para promoção de maior igualdade nesse domínio.

Em agosto de 2012 foi sancionado o decreto que regulamenta a Lei nº 12.711/2012, a Lei de Cotas. O decreto prevê que as universidades públicas federais e os institutos técnicos federais reservem, no mínimo, 50% das vagas para estudantes que tenham cursado todo o ensino médio em escolas da rede pública, com distribuição proporcional das vagas entre pretos, pardos e indígenas, atrelando-se ainda o critério renda familiar per capita de até 1,5 salários mínimos. As IES terão quatro anos para implantar, progressivamente, o percentual de reserva de vagas estabelecido pela lei, mesmo as que já adotam algum tipo de sistema afirmativo na seleção de estudantes. Muitas IES já implantaram as mudanças, buscando cumprir o estabelecido no decreto (Neves; Anhaia, 2014).

Quanto às formas de financiamento, os dados analisados por Corbucci, Kubota e Meira (2016) demonstram sua importância mesmo com a redução feita no FIES depois de 2014 (a expansão anterior foi fortemente marcada por disputas eleitorais, deixando de lado a sustentabilidade econômica da política). De qualquer forma fica claro que um pouco mais que a metade dos alunos do setor privado depende de algum tipo de financiamento público!

Entre as políticas de financiamento, deve-se mencionar o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI – Decreto n° 6096/2007) visando criar condições para a ampliação do acesso e permanência na Educação Superior, através de melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes nas universidades federais. Esse programa significou um investimento significativo na expansão das vagas nessas universidades através da interiorização (com criação de novos campi e novas instituições), contratação de novos professores e aumento dos cursos noturnos, especialmente nas licenciaturas em diversas áreas. Como seria de se esperar, esse processo teve resistências, especialmente dos professores estabelecidos em disciplinas mais acadêmicas, além de ter implicado numa expansão – ainda pouco dimensionada –, do gasto público permanente (pela contratação de pessoal cuja necessidade não teria sido adequadamente avaliada). Duas dimensões merecem aplauso nessa política, mesmo que permaneçam vários problemas: a expansão dos cursos noturnos e a interiorização dos campi, que permitiram um aumento das oportunidades educacionais num país tão grande e com população dispersa por quase todo o território. No mesmo sentido de aumento de oportunidades de acesso ao Ensino Superior, o forte crescimento da Educação à Distância, ainda tímido no setor público, favorece o acesso de trabalhadores e de pessoas que vivem em regiões mais distantes dos grandes centros e das melhores universidades.

Finalmente, mas não menos importante, existem as ações institucionais desenvolvidas por universidades e faculdades do setor privado, que, através de bolsas institucionais e programas ou atividades de inserção de alunos (tanto em trabalhos acadêmicos quanto em postos de aprendizagem e treinamento no mercado) conseguem manter seus alunos até a finalização dos cursos e até garantir alguma transição positiva para o emprego (Almeida Neto, 2015).

É nesse quadro que se abre a questão da democratização: a criação de todas essas condições para expansão do acesso, a entrada de novos grupos sociais e o crescimento da matrícula, teriam criado um sistema de Ensino Superior mais democrático? Ele ofereceria maior igualdade de oportunidades educacionais?

O acesso ao Sistema de Ensino Superior: a seletividade

Durante muitos anos, o acesso ao Ensino Superior foi visto como um direito exclusivo da elite. No caso brasileiro, a ausência de um sistema universitário até o início do século XX tornava ainda mais custosa a frequência a esse nível de ensino. Na segunda metade do século XX, com uma classe média urbana já bastante expandida e tendo na escolarização o seu principal recurso de posicionamento social, inicia-se a concorrência pelo acesso à universidade. Com o aumento dos concluintes do Ensino Médio, mais pessoas ficam qualificadas para essa transição e começam as pressões sociais. Em pleno Governo Militar, estudantes “excedentes” – aprovados na seleção, mas sem obter vagas para entrada –, tornam-se um problema. Resolvido, pelo menos parcialmente com a Reforma de 1968 que, entre outras coisas, aumentou vagas no setor público, incentivou o setor privado (Martins, 2009) e transformou o vestibular em classificatório (até o número de vagas oferecido pela instituição) e não mais “habilitatório”. Com isso, acabam-se os excedentes e a matrícula no setor público cresceu de 55 mil para aproximadamente meio milhão de estudantes. Ainda assim, segundo Martins (2009) esse aumento teria ficado aquém das necessidades do país, abrindo um espaço importante para a expansão do setor privado de Ensino Superior.

Nos anos mais recentes, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tornou-se o mecanismo mais importante de seleção para o Ensino Superior, especialmente nas instituições públicas. Além de mecanismo de entrada, é a forma através da qual os estudantes podem obter bolsas (Prouni) ou financiamentos (FIES). A expansão do Ensino Secundário no país (que dobrou sua cobertura nos anos 1990 chegando aos 50% da faixa etária), mesmo considerando a redução recente no número de alunos, produziu um aumento da demanda pela educação terciária (Neves, 2015; Zucarelli, 2016). Assim, mesmo com o crescimento das vagas e com alguma diversificação do Sistema de Ensino Superior, a seletividade social do sistema educativo (Alon, 2009; Triventi, 2013) permanece uma barreira bastante importante. Para o caso brasileiro, o estudo de Prates e Collares (2014), entre outras discussões importantes, destaca a associação complexa, do ponto de vista social e demográfico, entre os níveis Médio e Superior de ensino.

Segundo a literatura pertinente, dois eixos principais diferenciariam o sistema escolar: vertical (níveis distintos dos cursos) e horizontal (tipos de instituição ou de setores educacionais e disciplinas acadêmicas, campos de estudos). Claro que os dois eixos são fatores importantíssimos e bem conhecidos dos estudos sobre desigualdade associada à escolarização. Especialmente a diferenciação vertical tende a ser vista como bastante legítima nas sociedades modernas: quanto mais educada é uma pessoa, maior tende a ser o seu nível de rendimento econômico. Os estudos sobre as desigualdades horizontais no Ensino Superior são mais recentes e ainda são objeto de amplo debate, opondo os autores que consideram que as trajetórias educacionais nesse nível já seriam isentas das influências da origem familiar (Mare, 1980), àqueles autores que detectam essas mesmas influências de forma direta como em Bourdieu (1989) por exemplo, ou indireta como em Davies e Zarifa (2012). Em qualquer hipótese, mas especialmente no caso dos autores que indicam a força da origem social, a seletividade do processo é central para os modos de reprodução da desigualdade social através do Ensino Superior. Na Tabela 1 são apresentados os dados sobre o nível de seletividade segundo o tipo de instituição.

Tabela 1 Seletividade segundo Instituições. 

Seletividade média por cursos nos exames de admissão
Tipo de Instituição Média N° Cursos Desvio Padrão
Pública Federal 20,3407 4941 23,92361
Pública Estadual 9,1503 2537 16,14280
Pública Municipal 1,6981 269 5,79189
Privada fins lucrativos 1,7574 8731 3,15150
Privada sem fins lucrativos 1,6756 10327 4,20856
Especial 1,5636 601 3,45931
Total 5,7565 27406 13,74933

Fonte: Elaborada pela autora (2018), com base nos dados do Censo do Ensino Superior de 2014.

Fica evidente nesses números a imensa diferença de demanda por cada tipo de instituição. O prestígio das universidades federais é bem visível, assim como a pouca competição na entrada para universidades privadas. Mas considerando-se que há vários anos a Universidade de São Paulo é a mais bem classificada nos rankings internacionais, verificar a competição desse vestibular permite compreender a segunda dimensão da diferenciação institucional: aquela entre diferentes áreas e, também, segundo os cursos. Em 2017, havia 55.028 candidatos na área de Ciências Biológicas, número que passou para 59.071 no ano seguinte. As Ciências Exatas, área na qual há alguma carência de mão de obra qualificada, o número reduziu-se de 32.131 em 2017 para 30.513 em 2018. A Tabela 2 mostra as carreiras mais concorridas nesse vestibular.

Tabela 2 Seletividade por curso – Vestibular FUVEST 2017-2018. 

Carreira 2017 2018
Medicina 63,04 135,70
Medicina Bauru - 105,90
Medicina Ribeirão Preto 75,90 86,50
Curso Superior do Audiovisual 39,20 65,20
Psicologia 53,45 61,10
Relações Internacionais 46,70 51,90
Psicologia Ribeirão Preto 37,10 47,10
Medicina Veterinária 32,00 40,34
Jornalismo 43,20 38,20
Publicidade e Propaganda 44,30 37,50
Ciências Biomédicas 33,10 36,70
Design 34,90 34,90
Fisioterapia 27,80 34,50
Arquitetura (FAU) 34,20 30,70

Fonte: Elaborada pela autora (2018), com base nos dados da Fundação Universitária para o Vestibular (2018).

Como é fácil verificar, a diferenciação das áreas introduz no sistema de Ensino Superior um grande potencial de distribuição desigual dos estudantes. Mas até esse ponto, esforço, dedicação ou até mesmo inteligência e vocação podem ser evocadas como razões para explicar a capacidade de ultrapassar essa barreira e fazer a transição para o Ensino Superior. Apesar do caráter socialmente seletivo do Ensino Básico, alguns sociólogos, como Mare (1980) analisariam essa transição como aquela que permite se liberar do peso das origens, para usar a expressão de Torche (2011). Utilizando as contribuições dessa autora e também aquela de Triventi (2013) se pode testar a hipótese que associa, de várias maneiras, a origem familiar e o desempenho educacional, mesmo depois da entrada no Ensino Superior. Ou seja, busca-se verificar em que medida esse nível de ensino, tendo recebido de maneira supostamente meritocrática, estudantes que já passaram por todas as seleções sociais prévias, produziria trajetórias acadêmicas mais isentas dos efeitos da origem social.

Depois do Acesso

Para tentar responder essa questão, esse artigo faz uma tentativa de avaliar se haveria diferenças sociais significativas entre os estudantes que entram no Ensino Superior e aqueles que completam esse nível de ensino. A hipótese meritocrática diria que a composição social dos dois grupos seria bastante similar.

Os alunos iniciantes e concluintes em 2015 compunham o seguinte quadro, apresentado na Tabela 3.

Tabela 3 Ingressantes e concluintes Sistema de Ensino Superior em 2015. 

Variáveis Discriminação Ingressantes Concluintes
Idade 14-17 32.780 (1,1%) 5 (0,0%)
18-24 1603.512 (55,3%) 401.510 (34,8%)
25-32 691.825 (23,8%) 418.955 (36,4%)
33-48 504.609 (17,4%) 283.874 (24,6%)
49+ 68.293 (2,4%) 48.114 (4,2%)
Setor Ensino Superior Privado 2.387.547 (82,3%) 912.407 (79,2%)
Publico 513.472 (17,7%) 240.051 (20,8%)
Raça/cor Não Brancos 827.248 (28,5%) 264.436 (22,9%)
Brancos 1.057.796 (36,5%) 440.569 (38,2%)
Missing 1.015.975 (35,0%) 447.453 (38,8%)
Sexo Feminino 1.603.002 (55,3%) 708.200 (61,5%)
Masculino 1.298.017 (44,7%) 444.258 (38,5%)
Ensino Médio Privado 886.113 (30,5%) 289.502 (25,1%)
Publico 2.014.579 (69,4%) 705.860 (61,2%)
Missing 327 (0,0%) 157.096 (13,6%)
Total 2.901.019 (100,0%) 1.152.458 (100,0%)

Fonte: Elaborada pela autora (2018), com base nos dados de Barbosa, Vieira e Tagliari (2017).

As mulheres formam a maioria (55,3%) dos ingressantes assim como estudantes provenientes do setor público de educação básica (quase 70,0%). Os dados sobre raça são muito difíceis de serem analisados em função do excesso de informações faltantes (mais de um terço do total). É impressionante a proporção de ingressantes no setor privado (82,3%). Ao mesmo tempo verifica-se que pouco mais da metade desses alunos estariam naquela que é considerada a idade adequada para cursar o Ensino Superior (55,3%). Todos esses dados, com a possível exceção da entrada maciça no setor privado, podem indicar algum nível de abertura no sistema brasileiro de Ensino Superior. Há mais mulheres, não-brancos e alunos do sistema público de Educação Básica. No entanto, o detalhamento e análise das condições institucionais permitem compreender melhor o sentido dessa abertura. Há variações importantes na distribuição dos estudantes por área de conhecimento e por categorias administrativas que merecem ser analisadas com maior atenção.

A entrada no mundo novo da universidade tem impactos importantes na vida desses jovens. Mais que efeitos econômicos, eles indicam que houve uma abertura para o mundo do conhecimento. A experiência da vida universitária pode produzir mudanças no cotidiano desses jovens, alterando muitas vezes os roteiros previstos.

Junto disso vem também um orgulho por estar numa posição mais elevada, pelo fato de ter chegado onde ninguém na família anteriormente teria conseguido. A entrada na universidade é valorizada por alguns jovens porque essa entrada daria a eles a possibilidade de desenvolver uma “cultura” que valoriza a educação. Sua escolarização superior faria com que suas famílias aprendessem a dar maior valor à escola. A integração moral e o fortalecimento da coesão social produzidas por atividades coletivas nas instituições são bases essenciais para garantir a permanência dos indivíduos na universidade (Barbosa; Dwyer, 2016).

As experiências vividas pelos estudantes dentro das instituições têm impactos relevantes na permanência deles na universidade: o ambiente universitário e as interações com outros estudantes impactam a maior ou menor integração/permanência dos estudantes na instituição. A sociologia de Durkheim sobre o suicídio oferece também as bases metodológicas para o uso da chamada “análise de sobrevivência” e o trabalho de Dubet (1994) sobre a experiência escolar indica caminhos analíticos para a compreensão das diferentes trajetórias dos estudantes. É importante compreender as razões sociais pelas quais alguns estudantes são mais, ou menos, capazes que outros de lidar com esse mundo que se abre para eles com a entrada para a universidade.

O espaço institucional novo pode ser difícil, estranho e até mesmo hostil, como mostra o estudo de Almeida (2009). Num item que pode parecer irrelevante, mas a pesquisa de Honorato e Heringer (2015) confirma que os alunos da Pedagogia da UFRJ sentem falta de indicações e informações claras sobre a localização física dos prédios: é como se os campi tenham sido desenhados para ser lidos e vividos por aqueles que “naturalmente” aprenderam a lógica dos locais, ou seja, aqueles alunos que provêm de famílias mais educadas.

A ausência de conhecimentos sobre as regras do jogo burocrático (como ter acesso ao alojamento estudantil ou às bolsas para cotistas) e/ou acadêmico (como fazer trabalhos aceitáveis para os professores, como dialogar com os colegas, como se comportar nos ambientes coletivos) talvez seja um dos obstáculos mais significativos para os novos estudantes, especialmente aqueles com menor capital cultural familiar. Todos esses elementos tornam a “experiência escolar/universitária” muito mais difícil para os estudantes provenientes das classes populares do que para aqueles “experimentados” nas instituições de elite do sistema de ensino.

Uma das formas de se analisar a força dos fatores institucionais na definição da igualdade de oportunidades no Ensino Superior seria a descrição dos perfis dos concluintes para se comparar aqueles dos ingressantes. É fácil verificar pelos dados da Tabela 3 que diminui o percentual dos estudantes na faixa de idade associada ao Ensino Superior (18 a 24 anos) e que aumenta significativamente o número de mulheres em relação à entrada. Não há diferenças importantes quanto à escola pública ou privada no Ensino Básico. Mas é interessante notar que aumenta a proporção de brancos e de falta de informação para o caso de raça, indicando que provavelmente seria correto inferir que os estudantes não-brancos têm mais dificuldades (ou levam mais tempo) para concluir o seu curso. O mesmo parece acontecer, em proporções um pouco menores, com a comparação entre formandos no setor público e no setor privado. Haveria um pequeno aumento nas instituições públicas, correspondendo ao pequeno decréscimo nas universidades privadas, quando se comparam iniciantes e concluintes. Essas diferenças dizem respeito, até aqui, principalmente à origem social e outras características adiscritas, como sexo, raça ou idade. A única dimensão institucional analisada foi a setorização entre público e privado que, por enquanto, parece não ter um impacto muito significativo.

No entanto, seguindo as indicações de Torche (2011) e Triventi (2013), se utilizará a contribuição de Barbosa, Vieira e Tagliari (2017) para compreender outra dimensão institucional (a área de conhecimento) que, aliada ao setor, pode ter efeitos importantes sobre as diferenças sociais de trajetórias escolares.

Usando dados do Censo do Ensino Superior (CES) de 2015, os autores desenharam um perfil social dos formandos em cada área de conhecimento, segundo o setor público ou privado das instituições. Nesse estudo fica claro a especificidade do curso de Medicina: nele estão apenas 1,6% do total de matrículas e 1,5% dos formandos, sendo que esses se distribuem de forma bastante desigual entre os grupos analisados. Apenas 15,0% dos concluintes são não-brancos. Somente 16,4% são provenientes de Ensino Médio público. As mulheres são 54,9%, mas essa maioria não se traduz nas chances de compleição que são maiores para os homens, como se verá adiante. No caso do Direito, as mulheres são 55,8% nas faculdades privadas. Nas universidades públicas elas representam 51,0%. No caso da área STEM (que reúne Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemática) a presença masculina é preponderante (67,2% no setor privado e 60,2% no público). Diferentemente da Medicina, na área das STEM, a maioria dos alunos vem do Ensino Médio público: 65,7% nas instituições privadas e 51,2% nas universidades públicas. Os cursos da área de Educação apresentam os maiores percentuais de presença feminina, especialmente daquelas provenientes de escolas secundárias públicas. Nas faculdades privadas, 40,0% dos formandos nessa área são mulheres vindas de escolas públicas. Nas instituições públicas, 28,2% dos formandos são mulheres não-brancas vindas dessas mesmas escolas secundárias. No setor privado, o campo da Educação tem as maiores taxas de mulheres e estudantes provenientes de Ensino Básico público. Os não-brancos formam maioria tanto na Educação quanto nas profissões de saúde (excetuada Medicina), onde são 43,7%. No setor público, as mulheres são 78,2% dos formandos na área das profissões de Saúde e a Educação congrega maioria de estudantes não-brancos e dos que completaram Ensino Médio em colégios privados.

A forma distinta como cada área lida com os estudantes desiguais socialmente aparece muito claramente na comparação das razões de chance de completar o curso para homens e mulheres (Barbosa; Vieira; Tagliari, 2017).

Novamente, foram usados os dados já mencionados do CES 2015. Talvez o ponto mais interessante do trabalho mencionado seja o efetivo domínio masculino nas chances de formação quando se fala dos “cursos imperiais”. O que parecia natural para as engenharias e similares também se repete no caso da Medicina e do Direito. Não será discutida a área de humanidades pois ela é muito abrangente e demanda estudos mais detalhados. Ainda assim, o domínio masculino não deixa dúvidas nas demais áreas. É estranho que haja mais formandas mulheres na Medicina, mas que os homens tenham mais chances de se formar quando são definidos controles relativos à origem social e trajetória escolar. A vantagem relativa das mulheres é bem mais alta no caso das profissões de saúde, independentemente de ser no setor público ou privado. Ao mesmo tempo, o setor público oferece uma vantagem mais significativa para as mulheres que o setor privado. O problema, nesse ponto, é que as vantagens das mulheres só aparecem em campos do conhecimento que têm uma posição subordinada nas hierarquias de prestígio, renda e poder.

A apresentação da comparação entre os profissionais de algumas carreiras, feita na Tabela 4, permite evidenciar, pelo menos em parte, o impacto fundamental da divisão técnica do trabalho sobre as formas de organização e hierarquização social (Durkheim, 1977; Grusky; Sorensen, 1998, Grusky; Weeden, 2001).

Tabela 4 Situação de profissionais em carreiras selecionadas. 

Direito Ciências Sociais Física Engenharia Civil Biologia Medicina
Cor
Brancos 69,8 53,4 53,3 69,7 61,4 77,4
Negros 5,0 11,6 8,7 5,0 6,7 1,9
Pardos 22,2 29,0 34,4 22,3 29,0 17,4
Renda
Até 3 SM 19,2 38,5 46,9 20,2 51,2 6,2
Entre 3 e 10 43,8 43,4 41,3 46,7 38,9 23,1
+ 10 SM 37,0 18,0 11,9 33,0 10,0 70,8
Escolaridade da mãe
Até EF 38,0 42,4 43,3 29,7 48,1 7,4
EM 31,3 32,0 34,7 33,7 30,9 25,6
ES 30,8 25,5 21,9 35,7 21,1 66,9

Nota: SM: Salário Mínimo; EF: Ensino Fundamental; EM: Ensino Médio; ES: Ensino Superior.

Fonte: Elaborada pela autora (2018), com base nos dados do Censo 2010 e Martins e Machado (2015).

Os dados sobre os médicos evidenciam o caráter elitista da posição social desse grupo, o que inclui sua própria origem: 77,4% se declaram brancos, 70,8% tem renda superior a 10 salários mínimos e 66,9% dos médicos têm mães com Ensino Superior. No caso dos profissionais da Biologia, mais da metade ganha até três salários mínimos e 48,1% das suas mães completaram no máximo o Ensino Fundamental. As duas profissões imperiais, além da Medicina, o Direito e a Engenharia, mesmo sendo um domínio de brancos, mostram uma distribuição de renda mais homogênea e proporções menos brutais de mães com Ensino Superior (respectivamente 30,8% e 35,7%). O estudo de Martins e Machado (2015) é muito completo e essencial para a compreensão das desigualdades entre aqueles que têm Ensino Superior. Uma das indicações fundamentais é que a escolha da área de conhecimento, mesmo sendo fortemente influenciada pela origem social, também tem efeitos importantíssimos sobre a trajetória ocupacional e social, como no caso do texto de Davies e Zarifa (2012).

Um sistema de Ensino Superior democrático?

Em trabalhos recentes, Dubet (2015) chama a atenção para o fato de que, mesmo com mais vagas e com políticas para o acesso e permanência, a democratização do acesso dependeria também da estrutura geral do sistema educativo. Segundo o autor, esses sistemas não garantem que todos os grupos sociais sejam igualmente beneficiados por sua expansão. Eles tenderiam a desenvolver/fortalecer uma hierarquia de competências que se traduziria em hierarquias sociais. No caso do sistema brasileiro, a forte preferência pelo bacharelado, em detrimento das licenciaturas e dos cursos tecnológicos já seria uma evidência dessa hierarquia. Mas os dados apresentados sobre as diferenças, tanto de seletividade quanto de retornos econômicos e sociais, entre as carreiras profissionais indicam que essa hipótese provavelmente se confirmaria no caso brasileiro. Ou seja: há mais mulheres no Ensino Superior mas suas chances de formação nos cursos mais prestigiados são menores. Aumenta o número de negros nos cursos de Medicina mas o percentual deles ainda é muito menor do que sua proporção na população total.

Portanto, do ponto de vista do sociólogo francês, o sistema de Ensino Superior brasileiro, apesar de sua importante expansão e de algum grau de abertura, não teria se tornado democrático. Como se explicaria que o sistema permaneça tão elitista num contexto de expansão? Talvez aqui se poderá trabalhar com as hipóteses de fatores institucionais que funcionariam como barreiras para estudantes de origem popular. Alguns estudos recentes indicam possibilidades explicativas que vem sendo trabalhadas entre os pesquisadores do LAPES.

A primeira delas, desenvolvida a partir dos estudos de Shavit, Arum e Gamoran (2007), seria a de que a segmentação do sistema entre público e privado permite um tipo de expansão que pode “divergir” os alunos não provenientes da elite para os setores menos privilegiados do sistema e com retornos menores. Por exemplo, fazendo com que esses alunos acabem “escolhendo” áreas e instituições menos prestigiadas e que dão origem a retornos sociais e econômicos bem menores. Há estudos importantes, como o de Bangnall (2015), sobre a natureza dessa “escolha”, que também é objeto de pesquisa no LAPES.

Outra possibilidade, reforçando a primeira hipótese, seria a existência de alguns mecanismos institucionais de redução das escolhas disponíveis aos estudantes. A presença extremamente forte do chamado viés acadêmico, que desenha um modelo único para qualquer instituição de nível superior e que se soma à preferência pelo bacharelado, seria um desses mecanismos. O modelo único torna menos legítimos alguns caminhos no sistema escolar (quem gostaria que suas crianças se tornassem tecnólogos ao invés de cursarem bacharelados importantes?) e tem o efeito de reduzir o quadro de escolhas. Obviamente, a seletividade das diferentes instituições e cursos funcionaria também como fator de redução de escolhas, principalmente considerando o razoável discernimento dos estudantes em relação às suas próprias competências. O mesmo pode ser dito dos horários ou turnos do funcionamento dos cursos. A implantação de cursos noturnos nas universidades públicas foi um passo importante para aumentar as oportunidades para os estudantes que trabalham. O problema é que se estabeleceram cursos noturnos, em sua maioria, de licenciatura, cujo efeito de canalização dos mais pobres, indicando algum tipo de confirmação das perspectivas de “divergência” dos estudantes indicadas acima. Mesmo assim, é um fator institucional relevante: a existência de cursos noturnos funcionaria como um dos fatores decisivos para a participação e compleição nos cursos superiores. Principalmente para estudantes de origem mais modestas.

Considerações Finais

Apesar de alguma abertura no acesso, apesar das muitas políticas de permanência, as características adiscritas (origem social, raça e sexo) ainda são um fator muito relevante na definição da trajetória social em geral. E parecem ser importantes também na definição das chances de se formar ou completar seu curso superior. Nessa linha, o Sistema de Ensino Superior parece abrir, ao lado da porta principal, uma série de entradas de serviço, que só dariam acesso aos espaços subordinados do mercado de trabalho. Se for mesmo o caso, haveria fortes indícios que algumas características desse sistema poderiam ser hipoteticamente lidas como barreiras institucionais e fatores de “aumento” e “não redução” das desigualdades. Estudantes menos favorecidos socialmente (pobres, negros e mulheres) são “encaminhados” para os setores e instituições menos prestigiados do sistema de ensino. As evidências nessa direção começam a ser pesquisadas no Brasil, tornando o debate sobre a democratização do Ensino Superior um ponto essencial na construção de uma sociedade melhor. Alguns caminhos de pesquisa aparecem nas comparações internacionais que permitiriam verificar o quanto a tendência à diferenciação desigual – que é universal –, teria caráter mais perverso no quadro brasileiro de imensas desigualdades de base. Mas, talvez, o ponto essencial seja uma pergunta muito dura. O Brasil é um país moderno? Os critérios modernos e legítimos de hierarquia social associados à educação são comparativamente mais fortes ou mais fracos no Brasil? Todos esses são caminhos abertos a novas pesquisas e que vem sendo trilhados pelos diferentes pesquisadores e centros em nosso país.

Referências

3Deve-se destacar o importantíssimo conjunto de dados disponíveis no país, por exemplo, no IBGE e no INEP, bem como a crescente produção na área temática.

Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo n° 303783/2016-8 com atividades desenvolvidas no Laboratório de Pesquisa em Ensino Superior (LAPES/PPGSA/UFRJ)

Como citar este artigo/How to cite this article Barbosa, M.L.O. Democratização ou massificação do Ensino Superior no Brasil? Revista de Educação PUC-Campinas, v.24, n.2, p.240-253, 2019. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4324

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1Artigo elaborado a partir do projeto de pesquisa, intitulado “Patrimonialismo e Mérito: os valores da desigualdade no Brasil”. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.

Recebido: 26 de Julho de 2018; Revisado: 13 de Novembro de 2018; Aceito: 06 de Dezembro de 2018

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