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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.24 no.2 Campinas mayo/ago 2019  Epub 19-Jun-2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4197 

Artigos

A legislação brasileira de Educação a Distância à luz da democracia dubetiana1

Brazilian legislation of Distance Education in light of Dubetian democracy

Amanda Miranda Ramalho Eid2 
http://orcid.org/0000-0003-2800-3476

Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis2 
http://orcid.org/0000-0003-3759-4845

2Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais.Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo,13083-970, Campinas, SP, Brasil. Correspondência para/: A.E.S.Q. ASSIS. : <anaelisasqa@gmail.com>.


Resumo

Desde seu surgimento, no início do século XX, a modalidade de Educação a Distância, no Brasil, corrobora concepções de democratização do ensino. Assim, ao se tratar dessa temática, inclusive na legislação referente à modalidade, diversas concepções de justiça, igualdade e democratização aparecem e se fundem. Uma dessas concepções é dada por François Dubet, que entende a democratização do ensino como um conceito multifacetado e multidimensional, que inclui a massificação, a igualdade do valor dos diplomas, a equidade de acesso, e outras várias características. Com vistas ao fomento dessa discussão, e sendo essa concepção de democratização de suma importância para que se atinja uma sociedade mais igualitária, é objetivo deste trabalho verificar se a democratização dubetiana se faz presente na legislação referente à Educação a Distância de 1996 a 2007. Para cumpri-lo, foram realizadas leituras de obras pré-selecionadas de Dubet e da legislação, e por meio da análise documental, foi feita a comparação entre a democratização descrita pelo autor e a que está presente na Legislação Nacional de Ensino a Distância. Notou-se que alguns elementos da concepção de democratização dubetiana apareceram, enquanto massificação, democracia interna e igualdade do valor dos diplomas. No entanto, o autor critica a estratégia brasileira de universalização, a qual ele chama de massificação, antes de se pensar na qualidade.

Palavras-chave:  Democratização; Educação a Distância; Ensino Superior; François Dubet; Legislação

Abstract

Since its emergence at the beginning of the twentieth century, Distance Education in Brazil corroborates conceptions of democratization of education. Thus, when dealing with the theme and its legislation, different conceptions of justice, equality, and democratization appear and merge. One of these conceptions is given by François Dubet, who understands democratization of education as a multifaceted and multidimensional concept, which includes massification, equal value of diplomas, equity of access, and other characteristics. To stimulate this debate and considering the conception of democratization’s great importance to reach a more egalitarian society, this work seeks to verify if the Dubetian democratization is present in the legislation regarding Distance Education from 1996 to 2007. To accomplish this goal, readings of Dubet's pre-selected works and of the legislation were made and a comparison between democratization as described by the author and as found in the Brazilian Legislation of Distance Education ensued. While some elements of the Dubetian conception of democratization appeared as massification, internal democracy, and equal value of diplomas, the author criticizes the Brazilian strategy of universalization, which he labels “massification without quality”

Keywords:  Democratization; Distance Education; Higher education; François Dubet; Legislation

Introdução

Dentre as diversas modalidades de ensino existentes é possível dividi-las entre três grandes categorias: Educação Presencial (EP), a Educação Semi-presencial e a Educação a Distância (EaD) (Moran, 2009). De acordo com Santos (2013), desde seu surgimento no final do século XIX, a modalidade de Educação à Distância, no Brasil, corrobora com ideais de democratização do ensino. Em princípio, essa modalidade de ensino era pública, via correspondência e fomentada pelo Estado, sofrendo ampla discriminação por parte daqueles que tinham acesso a uma educação de qualidade, devido a seus objetivos de atender à população mais desfavorecida, que buscava se equiparar aos segmentos mais abastados e compensar o sistema educacional que deixava a desejar. Como a Educação Básica não era universal, para essa população era nítida a dificuldade em conciliar estudos e trabalho (Santos, 2013).

Os trabalhos de François Dubet passam a fazer sentido neste contexto, ao passo que este filósofo francês durante sua carreira se debruçou sobre a temática da democratização escolar, definindo as características que uma verdadeira democratização do ensino deveria ter, em sua concepção. Neste trabalho são considerados os escritos desse autor como principais referenciais teóricos, de forma que o texto “Qual a democratização do Ensino Superior?” de 2015 pode ser entendido como a principal base para análise.

Por vezes, concepções de democratização se confundem e se relacionam intimamente com concepções de justiça e igualdade de acesso. Saviani (2001) em seu livro Escola e Democracia, por exemplo, aborda como a principal função da escola a igualdade de acesso aos conhecimentos, e para se retratar a essa igualdade de acesso ele se refere, frequentemente, a uma escola democrática. Dubet (2008) questiona se a massificação do Ensino Superior, ou simplesmente o aumento do número de vagas, realmente vem a significar igualdade de oportunidades e justiça. Segundo o autor, a Instituição de Ensino Superior (IES), deve dispor das mesmas oportunidades de êxito social a todos os estudantes, independentemente de suas condições econômicas, culturais etc. Dubet (2008) afirma que essas oportunidades se dariam a fim de se construir uma justa competição para que, assim, cada qual pudesse assumir o papel na ordem social que seja definido por livre escolha do sujeito e não devido às circunstâncias sociais, econômicas etc. Esse seria um dos papeis do Estado, então, um Estado de direitos que concede acesso e permanência. Entretanto, o autor afirma que ofertar as mesmas oportunidades de sucesso a todos é praticamente impossível ao passo que a instituição de ensino é incapaz de apagar as marcas da desigualdade social em cada um dos estudantes pela sua condição cultural, histórica e social, ou seja, pelo sistema capitalista. Assim, a igualdade de acesso é distinta de oportunidades, ou ainda, a igualdade de acesso não garante a igualdade de oportunidades.

Dubet (2015), em seu trabalho “Qual democratização do Ensino Superior”, questiona a concepção que considera a democratização apenas como a igualdade de acesso, de oferta de vagas, ou ainda, a democratização como massificação do Ensino Superior. Essa concepção desconsidera as próprias desigualdades que existem entre os diferentes oferecimentos de cursos de Ensino Superior, como por exemplo, o valor do diploma, do curso e da instituição, que continuam gerando novas desigualdades sociais. O autor afirma, então, que a verdadeira democratização exigiria que todas as classes sociais tivessem as mesmas possibilidades de mobilidade social, ou seja, as mesmas chances de ascender na escala social, e para isso ele define algumas facetas que essa democratização deve ter: democratização e massificação, democratização do acesso e democratização interna, democratização e utilidade dos diplomas, democratização e equidade, entre outras. Contudo, essas aqui citadas são as que foram selecionadas como categorias para análise neste trabalho.

Assim sendo, para o autor, democratização é sinônimo de igualdade de oportunidades e não apenas de igualdade de acesso, e ainda, que essa concepção não irá necessariamente se relacionar com o que ele entende por justiça, de modo que para Dubet (2008) justiça significa, dentro do contexto da sociedade meritocrática, a igualdade de condições para competir. Ele afirma que a massificação é importante, mas ela não pode acontecer sem estar atrelada a outros elementos de democratização.

Seguindo essa linha de raciocínio, reflete-se sobre o Ensino Superior a Distância no Brasil e questiona-se sobre a concepção de democratização dubetiana. Dessa maneira, acredita-se que seja importante analisar se essa concepção de democratização que Dubet tece em seus trabalhos se faz presente, ou não, na legislação referente à Educação a Distância.

Procedimentos Metodológicos

O recorte temporal deste trabalho é feito a partir da Lei de Diretrizes e Bases Nacionais da Educação (LDB), Lei nº 9.394/1996 (Brasil, 1996), especificamente com o artigo 80º. Esse recorte termina em 2007 com o Decreto-Lei nº 6.303 de 12 de dezembro de 2007, (Brasil, 2007b) passando pelo Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005 que regulamenta o artigo 80º da LDB (Brasil, 2005), a Portaria nº 2 de janeiro de 2007 (Brasil, 2007a) e o Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001 (Brasil, 2001) que, apesar de não ser uma lei específica sobre a EaD, traz elementos fundamentais para a pesquisa por identificar a Educação a Distância como pilar de democratização do Ensino Superior. Esses documentos foram indicados como a legislação referente à EaD no Brasil segundo o portal nacional online do Ministério da Educação (MEC).

Como procedimento metodológico foi escolhida a análise documental com base nos trabalhos de Ludke e André (1986). Segundo as autoras esse tipo de análise se faz fundamental para pesquisas que têm como fonte de informações documentos. Como no caso desta pesquisa o objeto de análise é a legislação de EaD, a análise documental é uma importante ferramenta investigativa. Essas autoras apresentam algumas sugestões de etapas a serem transcorridas no decorrer da pesquisa de modo livre e sem intenção de esgotar as possibilidades existentes. Nesse contexto, explicitam-se adiante os passos que esta pesquisa seguiu.

Primeiramente, uma revisão bibliográfica foi feita, ou seja, levantou-se a literatura existente sobre a temática a ser abordada no trabalho, a fim de se conhecer o que já foi produzido acerca do assunto. Três palavras-chave foram utilizadas para que essas buscas fossem feitas: Educação a Distância, democratização e Dubet. As buscas na base de dados da Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Google Acadêmico em que se utilizaram a combinação dessas três palavras não apresentaram resultados. Contudo, buscas utilizando-se outras combinações dessas palavras chave apresentaram expressivos resultados: democratização e Dubet; e democratização e Educação a Distância. Foram lidos os resumos de alguns dos textos que foram encontrados e alguns deles foram selecionados e lidos por completo. Uma seleção desses trabalhos tornou-se parte da base bibliográfica desse trabalho e três obras de Dubet foram selecionadas. A partir da leitura de alguns dos trabalhos do autor, as produções relacionadas à democratização escolar foram escolhidas, a saber: O que é uma escola justa? (Dubet, 2004), Democratização escolar e justiça na escola (Dubet, 2008), e Qual Democratização do Ensino Superior? (Dubet, 2015). E toda a legislação a nível nacional referente à Educação a Distância entre 1996 a 2007, indicada no site oficial do MEC como documentos importantes, foi selecionada e analisada.

Por meio dos artigos selecionados na primeira etapa do trabalho, buscou-se reconhecer como se dá o histórico da Educação a Distância no Brasil para que se compreendesse o processo de construção e significação dessa modalidade. O próximo passo foi analisar se a concepção de democratização encontrada nos trabalhos de Dubet e a concepção de democratização encontrada nas leis é a mesma. Contudo, nesse processo concluiu-se que, como o próprio Dubet apresenta, existem múltiplas dimensões de democratização:

Procura distinguir analiticamente várias dimensões da democratização, baseadas, por sua vez, em concepções diferentes da justiça: igualdade de oportunidades, meritocracia, utilidades e equidade dos procedimentos. Cada sociedade constrói modelos de democratização desse ensino. A massificação do ensino superior desempenhou papel democrático objetivo, favorável aos grupos sociais antes excluídos. Mas massificação não equivale à democratização. Todas as categorias sociais não se beneficiam da mesma forma da massificação. A democratização do acesso ao ensino superior não depende apenas das famílias. Depende também da estrutura geral do sistema educativo (Dubet, 2015, p.255).

Assim sendo, após as leituras dos documentos e da obra dubetiana, selecionou-se as dimensões que ele considera as mais importantes, tornando-se também as categorias para a análise deste trabalho: democratização e massificação; democratização de acesso e democratização interna; democratização da utilidade dos diplomas; democratização e equidade (Dubet, 2015). Para a análise, buscou-se traços de cada uma dessas dimensões em cada umas das leis da legislação nacional referente à Educação a Distância. Os resultados dessas buscas são apresentados a seguir.

Resultados e Discussão

Segundo Santos (2013) a Educação a Distância no Brasil caminha a largos passos, mostrando-se cada vez mais presente nas Políticas Públicas de ampliação de acesso ao Ensino Superior. Pensar então sobre a Legislação de Educação a Distância no Brasil exige alguns subsídios para que se melhor compreenda qual é o entendimento do Poder Público sobre a função dessa modalidade no Sistema de Ensino Superior no país.

Dubet em suas obras recorre a fontes diversas para construir sua teoria acerca da democratização e justiça escolar, a exemplo de Rawls (1993). Para que se faça a discussão sobre a Educação a Distância no Brasil e sua legislação, baseia-se nos estudos dubetianos, principalmente em seu trabalho de 2015 “Qual a democratização do Ensino Superior” e destacam-se quatro das diversas dimensões de uma verdadeira democratização apresentadas pelo autor: democratização e massificação; democratização de acesso e democratização interna; democratização da utilidade dos diplomas; democratização e equidade. Então, utilizaram-se como categorias de análise para os estudos sobre a legislação de EaD no Brasil.

Apresenta-se cada uma das leis e destaca-se quais dessas quatro dimensões ganham destaque ou não, para que assim se possa discutir se a legislação brasileira demonstra a mesma concepção de democratização que é apresentada na obra dubetiana.

As dimensões da democratização dubetiana

Conforme indicado anteriormente, apesar de terem sido escolhidas as quatro dimensões de sua concepção de democratização a partir de obra específica, já mencionadas ao longo deste texto, é importante salientar que a compreensão das mesmas se complementam com elementos de seus outros trabalhos (Dubet, 2004, 2008, 2015). Considerando que a obra dubetiana está aberta a múltiplas interpretações, as dimensões escolhidas e apresentadas passam, consequentemente, por critérios específicos de compreensão e subjetividade.

Democratização e massificação

Dubet afirma que:

Para os conservadores, a massificação teria reduzido o nível cultural das universidades e o teria submetido aos interesses sociais. Para os radicais, ela não alteraria em nada a ordem das desigualdades sociais, exceto por lhe conferir mais legitimidade ainda. As duas avaliações devem ser bastante matizadas (Dubet, 2015, p.256).

Entretanto, segundo o autor, essa massificação trouxe grupos que nunca antes na história haviam tido acesso à universidade como, por exemplo, mulheres e filhos de operários. Anteriormente, a universidade zelava por uma tradição onde apenas os filhos da aristocracia e da grande burguesia, ou seja, um pequeno grupo podia acessar a universidade. A massificação então desempenha esse papel de aumentar, numericamente, as possibilidades de estudo dessas classes. Ainda que elas não tenham a mesma chance de ingresso e de permanência na universidade, a massificação representa uma das dimensões da democratização, e seu primeiro passo, pensando-se que há 50 anos isso seria praticamente impossível.

Essa dimensão da democratização é importante, então, para grupos que inicialmente possuíam pouquíssimas, ou nenhuma chance de acesso ao Ensino Superior, como se a universidade estivesse abrindo suas portas para pessoas que anteriormente não poderiam acessá-la. Ainda, de acordo com Dubet (2015), de certa forma, a participação desses grupos em meios universitários fez com que o capital cultural da sociedade em geral aumentasse, ao passo que o capital cultural valorizado é o produzido pelas elites intelectuais. O autor assinala também mais um aspecto positivo da massificação do Ensino Superior: de acordo com seus estudos os grupos que acessam o Ensino Superior tendem a serem mais democráticos, progressistas e humanistas que os grupos sem Ensino Superior. Dubet (2015) ainda afirma: a massificação, apesar de ser geralmente o primeiro passo a ser tomado para a democratização de um sistema de ensino, não deve ser dado sozinho. Para o autor apenas a massificação sem estar aliada a outras dimensões da democratização não é democratização e pode ter como resultado o aumento do número de diplomas inúteis ao mercado, como dito anteriormente. Há, portanto, que se considerar a massificação do Ensino Superior como uma das dimensões da democratização na concepção dubetiana quando aliada a outras.

Democratização do acesso e democratização interna

Ao falar sobre a democratização do acesso e a democratização interna, Dubet (2015) torna seus pensamentos sobre a massificação do Ensino Superior mais complexos. Ele define uma das dimensões de sua concepção de democratização com base no critério de igualdade de oportunidades oferecida a todos os indivíduos. Torna-se claro, então, que a massificação sozinha não representa democratização. Uma democratização real exigiria que todas as classes sociais tivessem às mesmas possibilidades na sociedade, tornando-a um pouco mais justa. Entretanto, de acordo com o autor, isso está bem longe de acontecer devido ao sistema capitalista. Ele afirma que geralmente quanto mais alta a origem social dos estudantes, maior é a sua chance de cursar o Ensino Superior. Dessa forma, não são todas as classes que se beneficiam da mesma maneira da massificação. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apresentados na Síntese de Indicadores Sociais (SIS), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014, 36,4% dos estudantes do Ensino Superior no Brasil faziam parte da população dos 20,0% mais ricos no país (Dedecca, 2014).

A questão financeira é a maior limitante nesse caso. Os universitários necessitam de recursos para que possam permanecer na universidade, muitas vezes acrescidos com custos de alojamento e alimentação, enfim, permanência em geral e, recorrentemente as famílias de classes menos abastadas não podem dedicar-se financeiramente com tanto afinco para que os jovens permaneçam mais tempo fora do mercado de trabalho, o que acontece quando eles vão para a universidade. Sistemas de bolsas de subsídios diversos são benéficos, entretanto eles não são suficientes para suprir todos os déficits. Pelo que mostra Dubet (2015), na maioria dos casos, são os jovens da classe média os maiores beneficiários da massificação, pois as classes populares optam pelo ingresso precoce no mercado de trabalho, o que exige baixa qualificação. Dessa forma, quanto menores as desigualdades sociais em um país, a probabilidade de ele ser mais democrático cresce.

Contudo, Dubet (2015) mostra que as diferenças econômicas nos países mais ricos explicam tanto as desigualdades de acesso ao Ensino Superior quanto as desigualdades sociais que são, também, outro limitante, e é esse o núcleo da questão da igualdade de acesso. O acesso ao Ensino Superior é condicionado pelo desempenho dos estudantes no Ensino Médio e Fundamental, e, segundo o autor, o grande determinante desses desempenhos são as desigualdades de capital cultural, que geralmente correspondem ao capital econômico. Para além disso, a democratização do acesso ao Ensino Superior não depende apenas do capital econômico e cultural das famílias, mas também da estrutura geral do sistema educativo do país. Quando nos Ensinos Fundamental e Médio os estudantes possuem desempenhos mais parecidos e nivelados entre si, o Ensino Superior tende a ser mais democrático segundo o que apresenta Dubet (2015). Ao mesmo tempo, em países cujos ensinos secundário e primário são muito desnivelados, o acesso ao Ensino Superior tende a ser menos democrático. Para se dizer em outros termos, o acesso ao Ensino Superior é mais democrático à medida que o país já possua um sistema de Educação Básica relativamente democrático e eficaz (Dubet, 2015). Nesse sentido, ele afirma também sobre as desigualdades internas geradas pela massificação dos diplomas, que, por meio de diversos mecanismos de massificação dos sistemas de Ensino Superior pode-se, de certo modo, reduzir as desigualdades de acesso. Entretanto, isso faz com que as desigualdades internas dos sistemas universitários aumentem, de modo que uma hierarquia dos estabelecimentos educacionais passa a se acentuar. Nesse cenário, as desigualdades se dão menos no ingresso na universidade do que dentro do próprio sistema de Ensino Superior.

Assim, de acordo com Dubet (2015), nos sistemas mais massificados a verdadeira desigualdade é observada dentro dele próprio, com a diferenciação entre as instituições, como aqui no Brasil ocorre, em linhas gerais, entre o Ensino Superior público e privado, entre as modalidades presencial e a distância. Essas diferenças de valorização entre as instituições de Ensino Superior as hierarquiza e essas desigualdades são ainda legitimadas por rankings internacionais das melhores universidades, premiações e avaliações. E, geralmente, as instituições de maior prestígio são as instituições mais seletivas e excludentes. Por outro lado, os menos prestigiosos e menos seletivos buscam estratégias de mercado para atrair estudantes.

Dubet pondera que:

Essa meritocracia acadêmica, com os melhores estudantes sendo selecionados pelos melhores estabelecimentos e melhores cursos, constrói uma hierarquia de competências acadêmicas extremamente pronunciadas. E, quando se olha de perto, fica evidente que essa hierarquia do mérito acadêmico é também uma hierarquia social, que induz frequentemente uma forte reprodução social, pois, mesmo que um elevado número de estudantes tenha acesso ao ensino superior, a distribuição deles no sistema continuará a ser extremamente desigual (Dubet, 2015, p.259).

Dessa maneira pode-se afirmar que um sistema de Ensino Superior democrático leva em consideração as desigualdades internas que podem ser geradas pela diferenciação dos diplomas, e as desigualdades sociais e culturais, para que uma real igualdade de acesso aconteça, e não haja acessos inferiores para alunos oriundos de classes e grupos sociais mais baixas.

Democratização de utilidade dos diplomas

Como dito anteriormente, a democratização dos sistemas de Ensino Superior é analisada tentando-se medir quais os efeitos das desigualdades sociais sobre as desigualdades na academia. Contudo, há que se ir além. Os sistemas universitários distribuem diplomas, e a utilidade deles deve ser levada em consideração, já que isso depende da quantidade de diplomas disponíveis e os empregos que exigem essas qualificações. Dessa maneira, Dubet (2015) define desigualdade fundamental como as desigualdades de utilidade dos diplomas.

O autor assevera nesse trabalho que quando o acesso ao Ensino Superior era apenas reservado para uma pequena elite, a utilidade dos diplomas era garantida pela sua escassez. As certificações de Ensino Superior ainda desempenham papel útil, segundo a lógica do capitalismo, no acesso a empregos e na renda dos indivíduos, mas esse papel é extremamente desigual dentre pessoas com as mesmas certificações vindas de diferentes instituições de ensino. As formações mais seletivas parecem estar reservadas às elites, que mantêm certo monopólio sobre o acesso a esses diplomas. Isso se dá, de acordo com o autor, devido a um sistema de seleção dos estudantes muito excludente. Dessa maneira a correlação entre os empregos e os diplomas é satisfatória, mas ainda, reservada a uma pequena elite. Um exemplo desse fator acontece aqui no Brasil com os cursos de medicina, cujos vestibulares são altamente concorridos, pois existem poucas vagas e um grande número de candidatos. Quem é aprovado geralmente pertence a uma elite intelectual e social; percebe-se isso ao se refletir sobre o perfil socioeconômico dos alunos ingressantes no curso de medicina em 2014 na Universidade de São Paulo (2015) (dados da própria universidade), que apresentava 42% de seus estudantes com renda familiar maior que 10 mil reais.

Entretanto, Dubet (2015) mostra que quanto mais se desce na hierarquia dos diplomas, menor seu valor social e financeiro, o que faz com que o mercado se interesse menos por eles. Os estudantes precisam se especializar e incrementar sua formação de diversos modos para que seu valor cresça no mercado profissional. Essa perda é sentida ainda de modos subjetivos pelos jovens, como uma perda do status social. O autor ainda explica que os estudantes que cursaram maior nível educacional, em comparação com os de seus pais, querem manter posições sociais similares às deles, o que não necessariamente acontece, mesmo esses jovens possuindo maior nível de escolaridade do que a geração anterior.

Aqui rege o problema: a universidade parece prometer certa mobilidade social que os estudantes não veem se concretizar. Com a multiplicidade de opções de formação e a massificação dos diplomas, é preciso estudar e pagar cada vez mais para que alcancem posições sociais próximas às de seus pais. A esse fenômeno Dubet (2015) explica que ocorre o que alguns especialistas chamam de “over education”, como se o mercado e os diplomas não tivessem mais essa proporcionalidade, acontecendo assim algo parecido com uma inflação dos diplomas: existem muitas pessoas formadas e poucos empregos nas áreas correspondentes, o que significa que o diploma perde seu valor no mercado, sendo preciso buscar outras saídas. E por fim muitos jovens acabam se empregando em áreas não correlacionadas com suas formações.

Dubet (2015) aponta em seus trabalhos outro dos efeitos da massificação por si só que é a deterioração econômica da população que não possui diploma. Quando os diplomas eram raros, não possuí-los não representava problema algum; entretanto, se a escolarização sobe, mesmo que sucateada, os não diplomados se veem desempregados e desqualificados. As igualdades de utilidade das formações no mercado de trabalho também é, então, um dos critérios para se observar a verdadeira democratização. Para que o sistema de Ensino Superior seja democrático, deve haver essa preocupação com a utilidade dos diplomas, para que as desigualdades educacionais não aumentem, pois esse é justamente o objetivo oposto disso. A influência do nome da instituição, qual foi a profissão escolhida, qual foi a concorrência para o ingresso no curso, entre outros, operam sobre o valor do diploma e aumentam as desigualdades internas e a sua reprodução. O sistema universitário não deve dar conta desse problema sozinho, principalmente pelo fato de que esses valores não são apenas reproduzidos internamente, mas isso, definitivamente, deve ser uma de suas preocupações para que se torne mais democrático.

Democratização e equidade

Cada país tem um sistema de escolha e seleção dos estudantes, e cada um deles pode ser considerado mais ou menos democrático. Mesmo um sistema gratuito e meritocrático, como o sistema público brasileiro, pode ser visto como justo e equitativo. Seguindo essa linha de raciocínio, percebe-se que cada um dos sistemas seleciona diferentes critérios de democratização e justiça e os combina. Um desses critérios é a gratuidade dos estudos superiores; geralmente os sistemas gratuitos tendem a ser mais equitativos do que os que exigem um alto pagamento, segundo Dubet (2015). Com o Ensino Superior gratuito, o peso das desigualdades econômicas diminui em certas medidas, pois não é preciso pagar para entrar, mas as desigualdades culturais, os desempenhos acadêmicos e todas as outras esferas sociais ainda exercem papeis cruciais na vida dos estudantes.

Como acontece aqui no Brasil com as universidades públicas que são gratuitas: os estudantes que têm acesso a esse ensino são procedentes de categorias sociais mais favorecidas, como se pode ver na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apresentada anteriormente, que mostra que 36,4% dos alunos das universidades públicas em 2014 pertencem aos 20,0% da população com a mais alta renda mensal familiar per capita; ao mesmo tempo, as formações menos prestigiosas são privadas, abrindo portas para quem puder pagar (Dedecca, 2014). Nesse caso, a universidade pública é um presente dado aos ricos. Assim, para se pensar sobre a justiça no financiamento da educação é importante avaliar quem o faz e quem se beneficia diretamente.

A mesma questão surge ao se pensar sobre as bolsas de financiamento de estudos fornecidas pelas universidades ou agências de financiamento: beneficiar muitos de forma reduzida ou poucos de forma abastada? Dubet (2015) afirma que os sistemas mais justos teriam critérios de distribuição de bolsas “médias” misturando diversas categorizações como desempenho acadêmico e critérios econômicos.

Outra característica a ser levada em conta são os procedimentos de seleção dos estudantes. Dubet (2015) apresenta duas opções em seus trabalhos: selecionar os estudantes antes de ingressarem no Ensino Superior, ou ainda, selecioná-los no decorrer dos percursos acadêmicos. A primeira opção não parece ser justa pelo fato de favorecer os estudantes mais privilegiados, mas ao mesmo tempo, a segunda opção também não é justa, pois os estudantes que não conseguirem, ou não forem selecionados para prosseguir com seus estudos durante o processo, terão perdido tempo e dinheiro, apesar da experiência adquirida. Portanto, há que se atrelar medidas de discriminação positiva juntamente com seus sistemas de seleção para que não haja perdas de nenhuma espécie.

Essas políticas de discriminação positiva que introduzem negros e indígenas, ou membros de classes menos abastadas nas universidades também são fonte de dilemas de justiça. Essas medidas buscam compensar injustiças históricas, reconhecendo assim, que a competição acadêmica exclui grupos culturais e sociais, tornando as universidades espaços mais democráticos de acordo com Dubet (2015). Contudo, a implementação dessas políticas não é simples, mas é extremamente importante e deve ser debatida.

É possível então julgar medidas que pareçam ser mais justas que outras; contudo, há que se notar que algumas das medidas equitativas passam a se voltar contra si mesmas, como é o caso da massificação, que para se tornar realmente democrática precisa atrelar outras medidas, como a igualdade de oportunidades e de valorização dos diplomas. Ao se pensar sobre o financiamento, penso que a educação pública é um investimento, ao passo que os estudantes formados têm benefícios pessoais, mas de certa forma retornam o investimento à sociedade, levando-se a pensar que a questão aqui é quem são esses estudantes.

Análise da legislação

Tendo em vista a determinação das dimensões da teoria dubetiana, passa-se à fase da análise da legislação em que cada um dos documentos são analisados tendo em vista o que foi apresentado nos tópicos anteriores, seguindo-se a metodologia de análise documental de Ludke e André (1986).

Lei nº 9.394/1996, artigo 80º – Lei de Diretrizes e Bases Nacionais da Educação

O artigo 80º da LDB é curto, sendo conveniente para a análise sua reprodução na íntegra:

Art. 80. O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação-continuada.

§ 1º A educação a distância, organizada com abertura e regime especiais, será oferecida por instituições especificamente credenciadas pela União.

§ 2º A União regulamentará os requisitos para a realização de exames e registro de diploma relativos a cursos de educação a distância.

§ 3º As normas para produção, controle e avaliação de programas de educação a distância e a autorização para sua implementação, caberão aos respectivos sistemas de ensino, podendo haver cooperação e integração entre os diferentes sistemas3.

§ 4º A educação a distância gozará de tratamento diferenciado, que incluirá:

I - custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens e em outros meios de comunicação que sejam explorados mediante autorização, concessão ou permissão do poder público; (Redação dada pela Lei nº 12.603, de 2012);

II - concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas;

III - reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais (Brasil, 1996, online).

No caput desse artigo lê-se que o poder público busca o incentivo e o desenvolvimento de programas de EaD, mostrando ampliação dessa modalidade ao permiti-la nos diversos níveis e modalidades de ensino, ele foi inovador nesses termos. Ao ler e interpretar o artigo percebe-se ainda a participação do poder público na regulamentação da Educação a Distância.

Já no parágrafo 4º afirma-se o tratamento diferenciado para a Educação a Distância que nada mais é do que a abertura dessa modalidade para o capital privado, ao encontro do trabalho de Santos (2013) que explica que a partir desse momento os investimentos na EaD passam a crescer, juntamente com o número de vagas. No que se trata desse esforço, o artigo 80 da LDB é aqui compreendido como inovador ao prever a possibilidade da EaD ser utilizada como estratégia de ampliação de vagas no Ensino Superior via o compromisso do Poder Público no incentivo ao “desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (Brasil, 1996, online).

Aqui é possível começar a ver os caminhos que levaram a EaD a ser vista como possível solução para a democratização do Ensino Superior de acordo com o Poder Público. Entretanto, se nota aqui apenas uma dimensão da democratização dubetiana, qual seja, a democratização como massificação, que conforme discutido anteriormente, sem que nenhuma das outras dimensões caminhe ao seu lado, não representa democratização.

Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005

Diferentemente do artigo 80 da LDB/1996 (Brasil, 1996), esse decreto é longo, com 6 capítulos e 36 artigos, nesse caso é inviável sua reprodução na íntegra, além do fato de muitos desses artigos serem de caráter burocrático, dispensando minuciosa análise pois fogem do escopo da discussão que aqui se propõe. Esse decreto regulamenta o artigo 80 da LDB/1996 (Brasil, 1996); juntos, esses dois documentos formam o eixo central que permitiu a criação e o desenvolvimento do Ensino Superior a Distância no Brasil. Logo no início do decreto, no artigo 1º, vê-se certa preocupação com a avaliação da EaD:

Art. 1o Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos.

§ 1o A educação a distância organiza-se segundo metodologia, gestão e avaliação peculiares, para as quais deverá estar prevista a obrigatoriedade de momentos presenciais para:

I - avaliações de estudantes;

II - estágios obrigatórios, quando previstos na legislação pertinente;

III - defesa de trabalhos de conclusão de curso, quando previstos na legislação pertinente; e

IV - atividades relacionadas a laboratórios de ensino, quando for o caso (Brasil, 2005, online).

Segundo Lessa (2011), nesse artigo vê-se a tentativa de quebrar preconceitos ou desconfiança que a população em geral carrega quanto à Educação a Distância, numa investida em igualar os valores sociais dos diplomas presenciais e a distância. Também com a exigência da presença física dos estudantes em momentos de estágio e laboratórios. De acordo com o autor, a intenção do legislador nesse trecho foi a de depositar certa noção de qualidade na EaD, assumindo que alguns momentos presenciais são essenciais para uma Educação a Distância de qualidade. Dessa maneira o sistema começa a transmitir certa credibilidade à sociedade, tentando-se igualar à modalidade presencial.

Outros exemplos dessa tentativa de melhorar a imagem transmitida à sociedade do que vem a ser a Educação a Distância no Brasil são vistos no artigo 3º do Capítulo I:

Art. 3o A criação, organização, oferta e desenvolvimento de cursos e programas a distância deverão observar ao estabelecido na legislação e em regulamentações em vigor, para os respectivos níveis e modalidades da educação nacional.

§ 1o Os cursos e programas a distância deverão ser projetados com a mesma duração definida para os respectivos cursos na modalidade presencial.

§ 2o Os cursos e programas a distância poderão aceitar transferência e aproveitar estudos realizados pelos estudantes em cursos e programas presenciais, da mesma forma que as certificações totais ou parciais obtidas nos cursos e programas a distância poderão ser aceitas em outros cursos e programas a distância e em cursos e programas presenciais, conforme a legislação em vigor (Brasil, 2005, online).

Nesse artigo podem-se ver as tentativas do legislador em tentar equiparar a modalidade a distância à presencial de duas formas: duração dos cursos e a possibilidade de transferência entre cursos presenciais e via EaD, mostrando a equivalência entre os diplomas advindos dessas diferentes modalidades. E, ao mesmo tempo, essas medidas visam proteger de possíveis abusos na oferta de EaD, como Instituições de Ensino Superior que poderiam oferecer diplomas de forma “fácil e rápida”.

O Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005) ao longo de todo seu texto busca estabelecer mecanismos para se garantir a legitimidade e autenticidade da avaliação de seus estudantes, mostrando a preocupação em provar que a qualidade das Instituições de Ensino Superior que ofertam cursos a distância é tão boa quanto as que ofertam cursos presenciais, uma vez que é garantido que, desde que expedidos por instituições credenciadas e registradas na forma da lei, não pode haver qualquer distinção entre diplomas de cursos superiores presenciais e a distância. É possível perceber, ainda, que a norma tem como finalidade diminuir a desconfiança que se tem sobre a qualidade e a validade dos diplomas de EaD no Brasil, em uma tentativa de se amenizar a carga cultural que se tem sobre a modalidade, desvalorizando-a. Por meio da análise descrita procura-se esclarecer que esse Decreto vigente tenta garantir que não existe diferença entre curso presencial e a distância, procura-se certificar e garantir a seriedade, a credibilidade, a amplitude, a qualidade e a certificação dos cursos ministrados na modalidade a distância.

Aqui vê-se então um esforço normativo para que haja igualdade de utilidade dos diplomas e formações, como um dos critérios para a democratização dubetiana e ainda, a preocupação com a democratização interna, ao passo que o argumento sobre a igualdade dentre as modalidades está incluso de diferentes modos. Essa preocupação está presente então na legislação de Educação a Distância no Brasil em busca de que as desigualdades educacionais não aumentem, de modo que a modalidade não influencie o valor do diploma no mercado de trabalho. Como dito anteriormente, o sistema universitário não deve dar conta desse problema sozinho, entretanto, isso deve ser, como visto nesse decreto, uma preocupação em busca da democratização do Ensino Superior4.

Portaria nº 2 de janeiro de 2007

Esse documento é mais técnico e acaba por reiterar alguns aspectos levantados sobre a tentativa de igualar a Educação a Distância à educação presencial apresentados no Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005).

Art. 2o O ato autorizativo de credenciamento para EAD, resultante do processamento do pedido protocolado na forma do art. 1o, considerará como abrangência para atuação da instituição de ensino superior na modalidade de educação a distância, para fim de realização dos momentos presenciais obrigatórios, a sede da instituição acrescida dos endereços dos pólos de apoio presencial.

§ 2o Os momentos presenciais obrigatórios, compreendendo avaliação, estágios, defesa de trabalhos ou prática em laboratório, conforme o art. 1o, § 1o, do Decreto no 5.622, de 2005, serão realizados na sede da instituição ou nos pólos de apoio presencial credenciados (Brasil, 2007a, online).

Lê-se então que a Portaria dispõe que para que o curso via EaD seja devidamente aprovado, as estruturas físicas do polo também serão consideradas, não apenas as estruturas virtuais, afirmando então a importância de momentos presenciais para que o curso seja de qualidade. Segundo Santos (2013), antes dessa normativa, os polos não eram obrigatórios e muito menos a avaliação de sua qualidade. Dessa forma, a expansão da EaD ficou condicionada também à sua estrutura física. Mais uma vez observa-se, então, o ímpeto legislativo por tentar amenizar as desigualdades entre os diplomas, remetendo à faceta da democratização dubetiana de igualdade de utilidade dos diplomas, numa tentativa de frear o crescimento da EaD sem qualidade.

O Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001

O PNE 2001-2010 foi o primeiro no formato como se conhece atualmente. Uma de suas principais metas era: “Prover, até o final da década, a oferta de educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos” (Brasil, 2001, online). Assim, para que essa meta se cumprisse, era preciso que novas vagas fossem criadas. Dessa maneira, a Educação a Distância se apresenta como uma solução rápida e menos custosa. Aqui já se mostra claramente a concepção de democratização como massificação; o PNE diz explicitamente em seu texto que a Educação a Distância deve desempenhar uma maneira de universalizar o Ensino Superior:

No processo de universalização e democratização do ensino, especialmente no Brasil, onde os déficits educativos e as desigualdades regionais são tão elevados, os desafios educacionais existentes podem ter, na educação a distancia, um meio auxiliar de indiscutível eficácia. Além do mais, os programas educativos podem desempenhar um papel inestimável no desenvolvimento cultural da população em geral (Brasil, 2001, online).

Como se lê, o documento considera a EaD uma “maneira de auxiliar a educação em geral de indiscutível eficácia” (Brasil, 2001, online). Nessa expressão moram muitas brechas para interpretações diversas, como a visão da Educação a Distância como ferramenta para cobrir as falhas da falta de acesso a educação, ou ainda a aposta na EaD como uma solução de “indiscutível eficácia” para a ampliação do Ensino Superior.

Gomes (2006) realiza uma análise sobre o PNE 2001-2010 (Brasil, 2001) relativa justamente às metas sobre a Educação a Distância, e nesse trabalho a autora revela que das 22 metas referentes à EaD que foram apresentadas no PNE, somente 3 delas foram atingidas. As outras 19 metas avançaram em seu curso, entretanto não foram concluídas. Esse trabalho mostra como o PNE estimulou o desenvolvimento da Universidade Aberta do Brasil (UAB)5 e regulamentação da EaD, elementos chave para que a modalidade se expandisse.

A Educação a Distância, então, ao flexibilizar o tempo e o espaço, vem como pilar de mudança no que se entende por meios de educar na visão do Estado, trazendo assim, novas possibilidades para os dirigentes e as políticas públicas “solucionarem” o acesso à educação. Tendo em vista essas novas possibilidades, o PNE apresenta 22 metas para a EaD, relacionadas aos mais distintos aspectos como a democratização do acesso, o Ensino Superior e a formação de professores. Apresentando-se como uma solução rápida para defasagens educacionais no país e claramente considerando a massificação, ou universalização como dizem no documento, como democratização.

Leitura da democracia dubetiana na legislação

Ao fazer a análise documental da legislação referente à Educação a Distância no Brasil foi possível encontrar diversos elementos presentes na obra de François Dubet como dimensões da democratização. Diferentemente da hipótese inicial, não foi apenas a massificação do Ensino Superior via Educação a Distância que apareceu como preocupação nos documentos, apesar das preocupações que apareceram não serem suficientes para uma democratização por completo, de acordo com as obras do autor francês.

A massificação, como previsto, é o principal fator que foi encontrado nos documentos. O Plano Nacional de Educação e o artigo 80 da LDB/96 (Brasil, 1996) apresentam explicitamente a massificação do Ensino Superior pela EaD como elemento redentor da democratização do acesso ao Ensino Superior. Entretanto, nesses documentos não apareceram indícios de preocupação com outras facetas da democratização e nem com as consequências de uma massificação desenfreada como mostra a obra de Dubet. Mas, as preocupações com a abertura da universidade para novos grupos e o aumento do capital cultural da população aparecem brevemente.

Assim, esses documentos mencionam a massificação como abertura para novos públicos na universidade, mas nada é aludido sobre a permanência estudantil, ou sobre as desigualdades de acesso na escolarização básica e obrigatória e nenhuma preocupação quanto ao número excessivo de profissionais no mercado; esses elementos são destacados por Dubet como importantes para um sistema educacional democrático.

No Decreto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005) e na Portaria nº2 de janeiro de 2007 (Brasil, 2007a) a preocupação com as desigualdades internas aparece juntamente com uma tentativa de amenizá-las com medidas como a avaliação presencial, a obrigatoriedade das aulas de laboratório e estágios, os polos presenciais certificados dentro de padrões de qualidade etc. A hierarquia entre as universidades, que é uma preocupação de Dubet, é materializada nesses documentos pela dualidade “Educação a Distância e Presencial”, os documentos incisivamente tentam igualar essas duas modalidades através dessas medidas para que não existam diferenças internas entre as Instituições de Ensino Superior, nem entre os diplomas. Existe ainda a preocupação para que os diplomas valham exatamente o mesmo e sejam aceitos em concursos públicos e processos seletivos.

A utilidade dos diplomas aparece então ao ser mencionada a validade dos diplomas nacionalmente e sua equivalência com os diplomas expedidos por IES que ofertam a modalidade presencial. E ainda, a preocupação com as desigualdades internas também se mostra presente ao se tratar dessa equivalência, remetendo-se ao que Dubet escreve quanto à hierarquia entre as instituições e a importância de seu nome.

A questão da avaliação sempre presente como um meio de afirmar a qualidade do ensino ofertado através da modalidade a distância e ainda, de afirmar que, diferentemente do que se acredita, esse não é um meio rápido e sucateado, mas que tem qualidade.

Em toda a legislação referente à EaD, nada é mencionado quanto à dimensão de democratização e equidade, que seria o passo final e real para a democratização, nada se menciona sobre os públicos que acessam a universidade através dessa modalidade, nada se diz sobre nenhum tipo de discriminação positiva. Enfim, diversos elementos chave não são encontrados nos documentos. Questiona-se: onde então eles aparecerão?

Considerações Finais

Como foi afirmado no início deste trabalho, há que se ter muita cautela e compreender que a análise que aqui se propõe é sobre a Legislação de Educação a Distância no Brasil, e não sobre o que se dá na realidade, ou sobre quaisquer outros documentos, se não esses.

Para se articular as discussões tecidas neste trabalho se faz interessante pensar também na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), apesar de não apresentar informações exclusivas sobre a Educação a Distância, se situa acima das outras leis, e traz elementos que são importantes para que se compreendam concepções que aparecem no Legislativo que são anteriores às analisadas. A Constituição Federal mostra uma concepção de igualdade que se relaciona intimamente com a concepção de Dubet. O princípio da igualdade pressupõe que pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, dar tratamento isonômico às partes significa então tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Dubet (2004) defende que existem desigualdades justas, pois existem desigualdades injustas que precisam ser corrigidas.

Outro elemento constitucional importante de ser referenciado aqui é que apesar da constante preocupação com a universalização dos diversos níveis e modalidades de ensino, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 208 está garantido o acesso ao Ensino Superior “segundo a capacidade de cada um”. Assim a meritocracia está calçada como um princípio constitucional da universalização do Ensino Superior:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (Brasil, 1988, online).

Dessa maneira, o acesso ao Ensino Superior é garantido constitucionalmente apenas para os que têm “capacidade”, e os demais princípios descritos no artigo 206 da Constituição Federal (qualidade, igualdade de acesso, gratuidade, valorização dos profissionais) apenas serão garantidos quando todas as modalidades de ensino estiverem universalizadas.

Após a exposição das obras dubetianas, vê-se que o autor tece uma crítica à estratégia brasileira de universalização, a qual ele chama de massificação, antes de se pensar na qualidade. E ainda, de acordo com as metas do PNE de 2014 a 2024 (Brasil, 2014), ao final desse período ainda não haverá nenhum nível nem modalidade de ensino universalizado, pois todas as metas se encontram abaixo de 100%.

Dubet inicia seu trabalho mostrando de que maneiras a massificação do Ensino Superior pode vir a significar um meio de democratização; entretanto, no decorrer de seu trabalho explica quais são as consequências dessa massificação para os sistemas em geral. Chega-se à conclusão, portanto, que a massificação do acesso ao Ensino Superior, apresentada como principal estratégia para a democratização do Ensino Superior via a educação a distância aqui no Brasil, como se pôde averiguar em sua legislação, nada mais passa de uma falácia onde a solução para esse problema mantém morada. A preocupação com a validade e igualdade dos diplomas se comparados aos diplomas de cursos presenciais é marcada, mas como um discurso que vai contra a opinião popular. Reitero a opinião do autor ao afirmar que a massificação do Ensino Superior tem seus pontos positivos, mas há que se colocar em xeque a massificação pela massificação sem pensar sobre o crescimento do número de diplomas desordenadamente, sem pensar sobre permanência, sobre o sistema meritocrático desequilibrado e desigual, sobre políticas de discriminação positiva etc.

Assim, este trabalho buscou esquematizar a democracia apresentada por François Dubet em suas obras dentro de quatro facetas principais, a partir dessas facetas a legislação de EaD no Brasil foi analisada através de uma análise documental. Notou-se que os documentos da Educação a Distância selecionados apresentaram alguns elementos das dimensões descritas, supreendentemente, ao passo que a hipótese dizia o oposto. Essa constatação apresenta elementos para se discutir sobre qual é a função das leis, e de que modo o escopo legislativo se materializa na educação nacional como um todo. E, ao mesmo tempo, perceber que a legislação apresenta elementos tão importantes para uma democratização justa, e demonstra que talvez o primeiro passo já tenha sido dado. Os outros elementos que não apareceram são importantes, se não cruciais, para que se obtenha uma educação de qualidade para todos. Há que se analisar, então: por que eles não estão presentes? E também, os que estão presentes são realidade ou apenas estão ali para formalidades?

1Artigo elaborado a partir do Trabalho de Conclusão de A.M.R. EID, intitulado “A democracia dubetiana e a legislação de educação a distância”. Universidade Estadual de Campinas, 2016.

3No parágrafo 3º os sistemas aos quais se refere são os órgãos de ensino dos Estados e do Distrito Federal.

4As leituras feitas do Decreto nº 5.622 já consideraram as alterações dadas pelo Decreto-Lei nº 6.303de 12 de dezembro de 2007

5A Universidade Aberta do Brasil é um sistema integrado por universidades públicas que oferece cursos de nível superior para camadas da população que têm dificuldade de acesso à formação universitária, por meio do uso da metodologia da educação a distância. Prioritariamente, os professores que atuam na Educação Básica da rede pública são atendidos, seguidos dos dirigentes, gestores e trabalhadores em Educação Básica dos estados, municípios e do Distrito Federal.

Como citar este artigo/How to cite this articleEid, A.M.R.; Assis, A.E.S.Q. A legislação brasileira de Educação a Distância à luz da democracia dubetiana. Revista de Educação PUC-Campinas, v.24, n.2, p.254-270, 2019. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v24n2a4197

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Recebido: 03 de Março de 2018; Revisado: 10 de Setembro de 2018; Aceito: 20 de Setembro de 2018

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