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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.24 no.3 Campinas set./dez 2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v24n3a4605 

Seção Temática: Educação e civilização

Civilização e habitus fronteiriço na obra de José de Melo e Silva 1

Civilization and frontier habitus in the work of José de Melo e Silva

André Soares Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0001-6082-5184

2Universidade Federal da Grande Dourados, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Rod. Dourados/Itahum, Km 12, Unidade II, Cidade Universitária, 79804-970, Dourados, MS, Brasil. E-mail: soaresandre83@gmail.com.


Resumo

O presente artigo visa refl etir sobre aspectos constituintesdo habitus fronteiriço a partir das obras “Fronteirasguaranis” e “Canaã do Oeste”, de José de Melo e Silva.As referidas obras integram o corpus historiográfi cosul-mato-grossense e revelam elementos integrantes doprocesso civilizador da fronteira Brasil-Paraguai. Utiliza-sea Teoria dos Processos Civilizadores, desenvolvida pelosociólogo alemão Norbert Elias, como aporte teórico.Habitus, entendido como segunda natureza, desenvolve--se no processo histórico-social que se constitui nodesenvolvimento das diversas sociedades marcadas porfi gurações interdependentes. Compreende-se que ohabitus fronteiriço criticado por Melo e Silva na década de 1930, revela aspectos da constituição e dos processos civilizadores da fronteira Brasil-Paraguai.Suas observações revelam as interdependências dos processos sociais e o caráter histórico e social daconstituição da identidade regional. Conclui-se que o processo civilizador fronteiriço está em curso eque as relações interdependentes entre brasileiros e paraguaios, descendentes guaranis, produziramum habitus distinto e característico da região.

Palavras-chave Brasil-Paraguai; Educação; Fronteira; Historiografia; Processo civilizador

Abstract

In this article, the authors propose to discuss the constituent aspects of the frontier habitus from José de Meloe Silva’s “Guaraní Frontiers” and “West Canaan” books. These books are part of the historiographical corpusof the state of Mato Grosso do Sul (Brazil) and reveal elements that are part of the civilizing process of theBrazil-Paraguay border. The Theory of Civilizing Processes, developed by the German sociologist Norbert Elias,is used as a theoretical contribution. Habitus, understood as second nature, develops in the historical-socialprocess that is constituted in the development of the different societies marked by interdependent figurations. Itis understood that the frontier habitus criticized by Melo e Silva in the 1930s reveals aspects of the constitutionand civilizing processes of the Brazil-Paraguay border. His observations reveal the interdependencies of socialprocesses and the historical and social character of the constitution of the regional identity. It is concludedthat the frontier civilizing process is underway and the interdependent relations between Brazilians andParaguayans, both Guarani descendants, produced a distinct and characteristic habitus of the region.

Keywords Brazil-Paraguay; Education; Frontier; Historiography; Civilizing Process

Introdução

A fronteira Brasil-Paraguai em questão está localizada ao sudoeste de Mato Grosso do Sul, antigo sul de Mato Grosso3 (SMT). Ela se caracteriza por ser um espaço permeável, pois, dada a ausência de limites naturais numa extensão de mais de quatrocentos quilômetros, sempre foi possível cruzar de um lado a outro, em cidades ou áreas rurais, sem passar por controles fronteiriços. Apesar de se estabelecer o lócus de análise e tomar como referência a região limítrofe entre Brasil e Paraguai, concebe-se a fronteira como zona que transcende a ideia de divisão e/ou limites entre países. A fronteira é uma área em processo, permeável e de múltiplos contatos. Nela se produziu e se produz uma rede de interdependências para além das questões político-administrativas.

Este trabalho busca compreender, a partir da obra de José de Melo e Silva, aspectos do habitus fronteiriço que integraram os processos civilizadores desenvolvidos na região. Para isso será utilizada a Teoria dos Processos Civilizadores (TPC) desenvolvida por Norbert Elias (1897-1990), com destaque para os conceitos de “habitus” e “civilização”, utilizados como recursos potencializadores e balizadores desta análise.

A fronteira do SMT manifestou-se como ocorrência historiográfica em obras de diversos autores mato-grossenses desde o início da República brasileira. A título de exemplo podem-se citar as obras “Quadro Chorographico de Matto-Grosso” (1906), de Estevão de Mendonça, e “As Raias de Matto Grosso: fronteiras meridionais” (1925), de Virgílio Corrêa Filho, ambos sócios fundadores do Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso (IHGMT). As obras desses autores representam a tentativa de construção memorialista e identitária mato-grossense. Seus autores construíram uma narrativa histórica que objetivava ligar a origem mato-grossense aos bandeirantes, descritos como homens corajosos, destemidos e comprometidos com o projeto de constituição de uma grande nação. A tentativa de filiar a origem de Mato Grosso aos bandeirantes foi entendida pela historiografia como uma estratégia dos intelectuais locais para combater as imagens divulgadas por viajantes, militares e comerciantes oriundos de outras regiões do país, consideradas desenvolvidas e com maior cabedal cultural (Galetti, 2000; Zorzato, 2000).

Serão analisados aspectos das obras “Fronteiras guaranis” e “Canaã do Oeste”, produzidas por José de Melo e Silva4 entre as décadas de 1930 e 1940. O referido autor viveu na fronteira do SMT e, embora não fosse historiador profissional, teve ousadia, sensibilidade e interesse em registrar a realidade histórica de seu tempo e espaço. Sem respeitar o rigor atualmente exigido para a escrita historiográfica, sobretudo no que se refere ao tratamento de fontes, Melo e Silva valeu-se de documentos, de notícias de periódicos da época, da própria historiografia do final do século XIX e início do XX e, principalmente, de suas observações para descrever e interpretar acontecimentos histórico-sociais da região. Ademais, suas obras pertencem ao grupo das primeiras produções de caráter historiográfico produzidas sobre e a partir da fronteira do SMT.

A escolha das produções de Melo e Silva justifica-se porque, para ele, a fronteira precisava abrasileirar-se. O autor, por meio de seus livros, chamou a atenção para a realidade da fronteira, uma vez que, em sua perspectiva, ela era brasileira apenas geograficamente, ou seja, os habitantes da fronteira Brasil-Paraguai na década de 1930 eram “guaranizados”. Em sua narrativa urge a necessidade de transformação dos costumes dos fronteiriços, a fim de que seus comportamentos se tornassem semelhantes aos de outras regiões do Brasil. Em sua obra, emerge uma proposta educativa para transformar os hábitos dos fronteiriços no sentido de moralizar o indivíduo que ali habitava, assim como distingui-lo do paraguaio descendente guarani. Para ele, os habitantes da fronteira foram influenciados pelos costumes dos descendentes guaranis e tornaram-se guaranizados e detentores de hábitos perniciosos.

Assim, este artigo organiza-se da seguinte maneira: primeiramente apresenta-se uma síntese das obras de Melo e Silva e sua narrativa sobre o fronteiriço. Em seguida, apresentam-se os conceitos de civilização e habitus, bem como se discute o ideal de mudança dos costumes fronteiriços, apresentado por Melo e Silva, em diálogo com a historiografia regional recente. Por fim, analisam-se as propostas civilizadoras do autor para os fronteiriços, nas quais a educação dos costumes adquiriu significativa importância.

A fronteira guaranizada na obra de José de Melo e Silva

“Fronteiras guaranis” foi publicado em São Paulo em 1939, e “Canaã do Oeste” no Rio de Janeiro em 1947. Nesta análise, foi utilizada a segunda edição do livro “Fronteiras guaranis”, revisada e publicada pelo Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS) em 2003, com o título “Fronteiras guaranis: a trajetória da nação cuja cultura dominou a fronteira Brasil-Paraguai”. A obra está dividida em quatro partes, distribuídas em dezesseis capítulos. A presente análise deteve-se na segunda parte, por apresentar aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais da fronteira; e na quarta, por tratar dos chamados “problemas da fronteira” e por propor medidas que o autor considerava indispensáveis para a povoação e nacionalização da região.

Também foi utilizada a segunda edição de “Canaã do Oeste”, publicada pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) em 1989. Nessa obra o autor se debruça sobre os chamados “problemas atinentes à terra sul mato-grossense”, tais como “transporte, ensino, educação, saúde, povoamento e trabalho” (Melo e Silva, 1989, p.13). “Canaã do Oeste” está dividido em 16 capítulos interligados que formam um conjunto sobre o mesmo tema: o sul de Mato Grosso. Os problemas da região, na perspectiva do autor, estão estritamente ligados à própria civilização brasileira e, por conseguinte, são questões nacionais. Dentre vários capítulos, este artigo se deteve sobre os aspectos que tratam dos “problemas típicos da fronteira: educação e trabalho, nacionalização e brasilidade” (Melo e Silva, 1989, p.129).

Os argumentos e conclusões de Melo e Silva (2003) orbitam em torno da ideia de que existia um elemento dificultador do processo de civilização da fronteira: o descendente guarani. Para ele, o descendente guarani (paraguaio) ou o guaranizado – todo e qualquer indivíduo falante da língua guarani e/ou com costumes semelhantes aos dos descendentes dos indígenas da etnia homônima –, era a causa dos problemas da fronteira. Melo e Silva deixa claro que os hábitos, os costumes, a língua, em suma, o habitus guarani/guaranizado, não contribuiu para o desenvolvimento da brasilidade na população presente naquela porção do território brasileiro e impediu que ela se identificasse com o país. É importante salientar que em momento algum de sua obra o autor identifica os brasileiros como descendentes dos guaranis. O autor não vê qualidades nestes últimos e nenhum elemento cultural valoroso capaz de colaborar com o ideário de progresso e civilização da nação brasileira daquele momento.

Em síntese, o pressuposto de “Fronteiras guaranis” é que o habitante da fronteira, seja o descendente guarani ou o brasileiro influenciado por seus costumes – o guaranizado –, carece de civilidade. Na perspectiva do autor, o paraguaio, habitante da fronteira, mas indivíduo estrangeiro, não possui afeto à brasilidade e, quando é descendente de guarani, apresenta-se como elemento nocivo ao projeto de civilização que o Brasil possuía. Por conseguinte, ele defendia que era necessário suplantar toda e qualquer influência deste sobre o brasileiro que residia na fronteira (Melo e Silva, 2003).

Em “Canaã do Oeste”, Melo e Silva (1989) tratou dos “problemas” do SMT, terra próspera, mas que necessitava de investimentos do Estado aliado a indivíduos corajosos, empreendedores e dispostos a trabalhar pelo progresso. O autor, ao tratar especificamente da fronteira, reafirma sua perspectiva sobre o fronteiriço, pois para ele “[...] o mestiço traz para aquele recanto todos os seus hábitos, todos os seus vícios. Sua língua, o guarani, é quase a única que se fala naquele novo meio” (Melo e Silva, 1989, p.64), aspectos esses que deveriam ser suplantados.

Em oposição ao fronteiriço, Melo e Silva exalta os primeiros habitantes não-indígenas do SMT, ligando-os a ideais e estirpe nobre. Apesar dos elogios ao migrante colonizador, ele reafirma constantemente que o problema do desenvolvimento da região está localizado na falta de investimento do Estado e, de forma pontual, na educação do “mestiço guarani” presente em grande número na faixa fronteiriça. Para ele, era imprescindível investir num sistema de educação capaz de reeducar o habitante guarani e guaranizado daquela região conforme os ideais e padrões nacionais. A educação deveria se iniciar pelo ensino da língua portuguesa e da história nacional. Na perspectiva do autor, o descaso dos governos brasileiros permitiu que o guarani se fizesse presente na faixa de fronteira e em todo o SMT, disseminando seus “hábitos perniciosos”. A crítica ao descendente guarani não está relacionada à sua capacidade de trabalho agropastoril, mas a aspectos morais, pois eles disseminaram pela fronteira costumes desconcertantes, nocivos tais como os de seus antepassados indígenas, tornando a região um “pedaço de Brasil exótico e deformado” (Melo e Silva, 1989, p.70). Para o autor, o habitante da fronteira de origem guarani possuía

Preconceitos de tôda ordem, abusões, crendices, prejuízos morais de natureza profunda, pretextos inesgotáveis para o emperramento da marcha de qualquer trabalho, que não seja o dos ervais ou da vaqueirice. O abastardamento da nossa civilização, em tal meio, é fato incontestável, porque os guaranis que estão de nosso lado, quase na sua generalidade, mantêm-se irredutíveis nos seus hábitos, trazem os filhos acorrentados às suas tradições, não se interessando, sequer, que êles aprendam a língua de seu País. Há mesmo umas tantas práticas e atitudes que denotam o desejo que êles têm de que os filhos não se vinculem à nacionalidade brasileira

(Melo e Silva, 1989, p.70).

Sob essa perspectiva, o autor elogia as ações do Governo paraguaio, que fundou várias escolas na faixa de fronteira com professores habilitados e impôs o ensino do castelhano:

O elevado número de escolas primárias que o Govêrno paraguaio mantém ao longo de suas fronteiras com o Brasil deveriam servir de lição e de estímulo para nossos governantes. E não são escolas de fancaria. São escolas de verdade, providas por professores de comprovada habilitação. Na extensão que vai de Pedro Juan Caballero até Igatemi, compreendendo San Fernando, Capitan Bado, Ipêhum e inúmeras outras localidades, encontravam-se instaladas, antes da revolução paraguaia [1936], maior número de escolas do que aquêle que tivemos no Município de Ponta Porã, mesmo na vigência do Território [Federal]. E não eram apenas escolas primárias que alí se encontravam magnificamente instaladas pelo govêrno do General Morínigo. Funcionavam também na mesma região, escolas normais rurais, prevocacionais, secundárias e até de agronomia e contabilidade. A grande verdade é que se nota uma sensível diferença entre jovens que têm o curso primário do Paraguai e aquêles que o fazem do nosso lado. Mais lamentável ainda é que o mestiço do nosso lado mantém--se em nível de cultura muito inferior, não tem noção de pátria e muita vez atinge a idade [maioridade] em estado de analfabeto [...]. Os do outro, vão compulsoriamente para as escolas, são obrigados a aprender o castelhano e têm outra noção de seus deveres cívicos

(Melo e Silva, 1989, p.79).

Melo e Silva defende que o Brasil deveria tomar medidas semelhantes, pois a disciplina das escolas paraguaias possibilitava enfraquecer as “antigas tendências” dos descendentes guaranis. Defendeu um processo de mestiçagem eugênica por meio da incorporação de indivíduos europeus ou com ascendência europeia, que, segundo ele, compunham grande volume da população paraguaia.

Em síntese, Melo e Silva, em seus dois livros, apresenta como solução para aquilo que chamava de “problemas da fronteira” o incentivo do Governo à migração de novos indivíduos capazes de reagir aos “maus” costumes instalados na região. Esses novos indivíduos deveriam apreciar o trabalho e o cultivo da terra. Também sugere que o governo deveria investir na educação, com ênfase na formação moral, a fim de conformar os fronteiriços ao hipotético habitus nacional, símbolo de civilização.

Civilização e habitus na fronteira guaranizada

A obra de Melo e Silva (1989, 2003) apresenta uma preocupação central: a civilização da fronteira. Por civilização, o autor concebe a nacionalização da fronteira; contudo, sua proposta visa a mudanças dos costumes fronteiriços, ao refinamento dos comportamentos socias, à incorporação de valores morais e ao apego ao trabalho. Dadas suas preocupações, pode-se analisar a narrativa de Melo e Silva sob a perspectiva TPC de Norbert Elias. A obra de Melo e Silva revela preocupações sobre o comportamento social, e sua narrativa, em tom de crítica, também visa orientar a conduta dos indivíduos fronteiriços, a fim de adequá-los aos padrões nacionais.

Elias (1994a, p.13), no primeiro volume de “O processo civilizador”, investiga “os tipos de comportamento considerados típicos do homem civilizado ocidental”. Sua análise se debruça sobre os comportamentos oriundos de classes dominantes europeias a partir do século XVI, “isto é, a classe composta inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente de profissionais burgueses” (Elias, 1994a, p.184). Seu objetivo foi compreender como se desenvolveram os modos de conduta humana ou a “civilização dos costumes” no Ocidente. Na análise do processo, ele identificou as causas motivadoras das mudanças do habitus bem como o resultado das transformações de comportamento dos indivíduos. Em síntese, o processo civilizador eliasiano demonstra “como o comportamento e a vida afetiva dos povos ocidentais mudou lentamente após a Idade Média” (Elias, 1994a, p.14).

Elias põe em evidência que as mudanças de comportamento ocorridas a partir das cortes europeias e que posteriormente tornaram-se universais, residem na introjeção, por parte dos indivíduos, de sentimentos de vergonha e fineza no trato com o outro. Esses sentimentos, naturalizados pelos indivíduos, foram impostos por meio de padrões de permissão e proibição social, incorporados ao longo do tempo. Em “O processo civilizador”, Elias investiga os padrões de comportamento, tais como a maneira de sentar-se à mesa para uma refeição, os modos como as pessoas vão para a cama, os lugares e ocasiões em que comportamentos hostis são ou não permitidos e suas mudanças, tudo a fim de demonstrar as transformações sociais em direção ao ideal de civilização construído. “O processo civilizador” investiga os mecanismos e estratégias adotados pelas cortes europeias que, num processo de longa duração, tornaram-se códigos de comportamento e forçaram a sociedade a uma reformulação dos modos de viver, a ponto de os indivíduos tornarem-se mais sensíveis às pressões de outros indivíduos:

[...] a questão do bom comportamento uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo, Castiglione, Della Casa e outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não bruscamente, mas bem devagar, o código de comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente

(Elias, 1994a, p.91).

O processo civilizador proposto por Elias (1993) deve ser entendido a partir de figurações interdependentes e do autocontrole dos indivíduos frente às suas pulsões. Para ele, esse processo caracterizou-se por “mudanças específicas” na forma como os indivíduos se relacionam uns com os outros e, nessa interrelação, a personalidade individual é moldada de maneira civilizadora. Para Elias (1993, p.195), desde o “período mais remoto da história do Ocidente até nossos dias, as funções sociais, sob pressão da competição, tornaram-se cada vez mais diferenciadas”. Essa diferenciação das funções sociais dos indivíduos e das instituições criadas por eles, pode ser entendida como a complexificação da sociedade. Todavia, no processo de diferenciação ou complexificação social existe a interdependência, pois “quanto mais diferenciadas elas [as sociedades] se tornavam, mais crescia o número de funções e, assim, de pessoas das quais o indivíduo constantemente dependia em todas suas ações, desde as simples e comuns até as complexas e raras” (Elias, 1993, p.195).

De acordo com análise de Miranda (2018), foi a partir do século XVI que “os Estados ampliaram suas funções, a economia de mercado se desenvolveu e novas camadas de plebeus ascenderam continuamente”. Esse processo de transformação e complexificação social “intensificou a necessidade de observação mútua e as pressões interpessoais”, pois diversas foram as estratégias para inibir a “livre manifestação dos impulsos passionais e das pulsões orgânicas em favor do respeito à dignidade do outro, o que favoreceu uma vida coletiva mais pacífica, regular e previsível” (Miranda, 2018, p.237). À medida que as Cortes se tornaram centros de poder político, econômico e cultural, e à medida que houve o desenvolvimento de grandes cidades aliadas a economias de mercado com padrões cada vez mais globais, era necessário um ordenamento regular e previsível, pois “o ato de um indivíduo afetava mediata ou imediatamente muitos outros” (Miranda, 2018, p.238).

Nesse sentido, Elias compreende que:

À medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, as teias de ações teriam que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual desempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável [...] o controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse

(Elias, 1993, p.196)

Outro aspecto fundamental do processo civilizador é que ele “não segue uma linha reta” (Elias, 1994a, p.185) rumo ao aprimoramento do ser humano, embora ele constitua “uma mudança na conduta e sentimentos humanos” (Elias, 1993, p.193) que se caracteriza pelo fato de o controle deixar de ser efetuado por meio de terceiros sobre o indivíduo e ser convertido, em diversos aspectos, em autocontrole individual. É a respeito desse processo de autorregulação dos sentimentos e da conduta que diversos manuais de civilidades foram publicados a partir da modernidade e alguns deles analisados por Elias, a fim de compreender como a estrutura da personalidade individual se transformou em meio à “crescente divisão do comportamento no que é e não é publicamente permitido” (Elias, 1994a, p.189).

Na perspectiva do processo civilizador, pode-se aceitar que a educação e os programas educacionais, sejam eles formais/institucionais ou informais/familiares, ou ainda baseados em manuais de civilidade, visam desenvolver o controle das emoções do indivíduo, para que o comportamento seja adequado em sociedade. Segundo Miranda (2018, p.238), as instituições educativas desde o século XVIII, além de pretenderem afetar o comportamento público dos indivíduos, também “objetivavam controlar a maneira como vivenciavam seus sentimentos. Assim, por meio da introdução de hábitos e experiências intensas, programas e instituições educacionais alimentaram desejos, ambições, temores, vergonhas, alegrias e tristezas”.

É possível compreender a obra de Melo e Silva na perspectiva do processo civilizador, pois, tanto em “Fronteiras guaranis” quanto em “Canaã do Oeste”, o autor preocupou-se em demostrar os “problemas típicos da fronteira”. Ele descreveu os costumes fronteiriços como o modo de vestir, o “sistema de habitação”, a forma de alimentação, a religiosidade, assim como apresentou, sob tom de reprovação, os modelos de comportamentos marcados pela aversão ao trabalho e pelo gosto por diversões e jogos (Melo e Silva, 2003, p.81). Não obstante, a crítica de Melo e Silva é mais incisiva ao que ele intitula de “práticas nocivas ou pouco recomendáveis” (Melo e Silva, 1989, p.134). Essas práticas “nocivas” são de ordem moral. Ele manifesta preocupação com os “casamentos livres”, com a prostituição, com homicídios por motivos fúteis ou ausência de motivação aparente, dentre outros exemplos que permeiam sua obra. Embora o autor critique o fronteiriço e seus hábitos, ele também elogia as possibilidades de progresso da região e de transformação do comportamento fronteiriço. Por isso, conclamava os brasileiros a povoar a região, pois acreditava que o contato com indivíduos de conduta moral adequada aos costumes nacionais, bem como a instalação de escolas, poderiam modificar o habitus fronteiriço.

Por habitus deve-se compreender a segunda natureza humana. Elias desenvolveu o conceito de habitus social para superar a dicotomia entre “sociedade” e “indivíduos”. Assim, o habitus social, que é sócio-historicamente apreendido, refere-se às formas de comportamento, aos modos de pensar, agir e até mesmo sentir dos indivíduos; em síntese: o habitus refere-se a “a autoimagem e a composição social dos indivíduos” (Elias, 1994b, p.9) em determinada figuração social. Por “figuração”, Elias compreende toda formação social, na qual os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de interdependências que resultam em um equilíbrio móvel das tensões sociais. O habitus se constitui na figuração social e se aproxima do que comumente chamamos cultura, entendida como “todo um modo de vida social complexo” (Fedatto, 1995, p.31). Nessa perspectiva, Alikhani explica que

[…] the social habitus is an integral part of the individual and personal habitus. In other words, it is a specific “stamp” that every individual, despite his diversity, shares with other members of his figuration. […] Basically, this customary “stamp” for the individual in a figuration forms the frame of reference of their perception and interpretation. The possibility of self- and external evaluation by people in a figuration requires this “stamp”. In this way, shared experiences of particular people in a figuration are socially inherited and transmitted to subsequent generations in the form of verbal and non-verbal symbols. These institutionalized and as such independent symbols also have a significant survival function for humans. Without these shared symbols, the orientation and control of behavior, thoughts, feeling, and action by single individuals in a human group is hardly possible

(Alikhani, 2018, p.53)5.

A civilização dos fronteiriços exigia a mudança do habitus. Para Melo e Silva (2003), a ação e a presença do Estado eram fundamentais para a transformação do habitus fronteiriço e, por isso, defendia dois campos de ação por parte do Estado para a civilização da fronteira. O primeiro campo era a ampliação da educação escolar, pois essa seria capaz de incutir nos indivíduos novos hábitos morais. O segundo era o investimento em infraestrutura, pois isso aceleraria o processo de povoamento da região, proporcionando novas interações sociais que auxiliariam na mudança de comportamento dos fronteiriços.

O fronteiriço deve ser educado para se desguaranizar

Para Melo e Silva (2003, p.78), a fronteira era um Brasil distinto: “Tudo lá é diferente: costumes, língua e, nalguns pontos, o próprio caráter do povo sofreu grande modificação”. Suas observações centraram-se sobre os hábitos dos guaranis e dos guaranizados, pois, para ele, esses eram o grande problema da fronteira e o que impedia seu progresso.

As observações de Melo e Silva também revelam diferentes formas de educação presentes na fronteira. A transmissão de conhecimentos, hábitos e valores que resultam na constituição de um habitus pode se constituir de inúmeras formas. Por meio dos diversos processos sociais interdependentes é que se constitui a cultura dos indivíduos. Para o autor, a responsabilidade de educar o descendente guarani recaía sobre a mãe, e assim os descendentes guaranis nascidos no Brasil só adquiririam a cultura brasileira e, sobretudo, somente aprenderiam a falar a língua nacional se as mães fossem brasileiras:

[...] não se adaptam facilmente a nossa educação os filhos dos guaranis [...] é lastimável que nós, os brasileiros, nos mostremos pouco ciosos pelo emprego regular de nossa língua em toda a extensão daquelas fronteiras e em nosso trato com os paraguaios. Não vemos como justificar essa insistência de um grande número utilizando vocábulos castelhanos em criminoso esforço para o afeamento do idioma nacional

(Melo e Silva, 2003, p.82).

Um paradoxo emerge a todo momento na narrativa de Melo e Silva, pois, mesmo afirmando que os guaranis eram inferiores no aspecto civilizacional, atribui-lhes características positivas, tais como alegria, argúcia, astúcia nos negócios, religiosidade e caráter reservado. O grande problema dos guaranis e seus descendentes, na ótica de Melo e Silva, era sua aversão ao trabalho e sua inclinação à música e à bebida, elementos que retardariam o progresso.

Seriam outras as condições da fronteira e de modo especial da baixada sulina, se machados, foices e enxadas tivessem aceitação na razão de um décimo das sanfonas, violões, violinos e bandolins que lá se vendem [...] Há ali comerciantes que venderam em menos de três anos cerca de quatrocentos violões, ao passo que no mesmo espaço de tempo não conseguiam vender uma só enxada ou machado

(Melo e Silva, 2003, p.84).

Melo e Silva (2003), ao apresentar as potencialidades da fronteira, deixa claro que o problema é o fronteiriço – guarani ou guaranizado –, pois ele é preguiçoso e dado a vadiagem e festas: “[...] dominado pelas diversões, perdendo na prática de religiosidade grande parte de seu tempo [...] dificilmente presta o descendente de guarani a seu concurso da agricultura [...]. A inconstância é sua principal característica” (Melo e Silva, 2003, p.99).

Quando lança o olhar na direção dos que não são descendentes guaranis ou guaranizados, Melo e Silva fala de elite e elogia suas ações, culpabilizando o governo pela situação, em razão da ausência de investimentos capazes de colaborar com o progresso da região:

A fronteira tem sua elite, constituída por elementos tradicionais e estrangeiros [não descendentes de guaranis]. Essa, que leva uma vida à parte, distinta e diferente da que leva a massa, guaranizada ou não, mantém a forma de vestir dos centros adiantados do país. Excetuada essa parte da população, o restante apresenta-se com indumentária própria do meio, especialmente no que se refere ao traje masculino [...]. Os demais, de elevada situação, social ou econômica, residem nas cidades, nas sedes distritais ou nas fazendas, melhoram um pouco as suas residências, mas só excepcionalmente constroem casas de boa aparência, porque ninguém se anima à edificação de vivendas elegantes, dado o elevado preço de tudo

(Melo e Silva, 2003, p.104).

Toda e qualquer atividade identificada por ele como própria do homem fronteiriço está aquém das atividades desenvolvidas em outros núcleos urbanos. Suas preocupações em ambos os livros são duas: o progresso e a moralização do povo. Ambas somente serão resolvidas por meio da povoação da fronteira, da presença do Estado e da educação.

Em Canaã do Oeste o autor reconhece que o grande problema fronteiriço que deveria ser enfrentado era o da “educação de seu povo” (Melo e Silva, 1989, p.129). Melo e Silva insiste na necessidade de o Governo Federal investir em educação na região, pois sua falta impediu a resolução de outros problemas, tais como o desenvolvimento das cidades e de infraestrutura. Todavia, não via a necessidade de investimento em educação desvinculada da questão da povoação e da nacionalização da região:

[...] não permitamos que se abandone o problema do povoamento do solo, da educação do homem, que ali se encontre e que para ali venha, e da conseqüente nacionalização da fronteira. Educado, o homem fará o restante. Não cremos, porém, no povoamento daquela terra, na educação do homem e na conseqüente nacionalização daquele meio, se o Govêrno Federal não reclamar a si, integralmente, essa tarefa, ampliando o regime de colonização, criando novos núcleos, interferindo na distribuição das terras, fiscalizando as escolas primárias, rurais e urbanas, mantendo escolas normais e profissionais

(Melo e Silva, 1989, p.133).

A ênfase na educação presente em “Canaã do Oeste” não se distancia dos problemas elencados em “Fronteiras guaranis”, na medida em que ela visa conformar o fronteiriço ao ideal de civilização que o autor identificava em outras porções do país. Na fronteira, era preciso disciplinar o indivíduo e afastá-lo de tendências viciosas:

[...] nenhuma conveniência existe para nossa civilização em que o filho daquela fronteira se eduque em função das suas tendências viciosas. Meio mal formado, desajustado, onde imperam hábitos destoantes do padrão de moral adotado em média nos demais recantos nacionais, seria um grande absurdo o permitir-se que tais costumes tivessem influência na vida das escolas que lá se forem instalando

(Melo e Silva, 1989, p.133).

Melo e Silva (1989) destaca os aspectos que chama de ‘vícios’ e a necessidade de adequar a educação para suplantá-los. Sua preocupação é formar o indivíduo para o trabalho no campo, pois segundo ele, ‘[...] uma das preocupações mais sadias e fundamentais do sistema educativo moderno é estabelecer um vínculo, uma íntima relação entre educando e o trabalho, de preferência aquêle gênero de atividade mais preferido na região onde se instalem as escolas’

(Melo e Silva, 1989, p.134).

A respeito das dificuldades de se implantar a educação para o trabalho, o autor argumenta:

[...] a grande dificuldade que se apresenta para harmonizar o ensino na fronteira, onde a idéia do trabalho é quase sistematicamente repelida, e onde, via de regra, a tendência é para diversões, jogos, vadiagem e outras práticas nocivas ou pouco recomendáveis, não sendo de mencionar-se a propensão que determinado número denota para o pastoreio, porque, além do mais, este não é bem recomendado como um dos meios de educação

(Melo e Silva, 1989, p.134).

Embora exija o investimento em educação, Melo e Silva resguarda o migrante, ou colonizador pioneiro de sua crítica, pois este, aliado ao investimento estatal, sempre buscou ascender rumo à civilização, formando quadros que, aliados à chegada de novos migrantes e/ou imigrantes, contribuiriam para o desenvolvimento da região. Em tom de cobrança, Melo e Silva chamava a atenção dos brasileiros para a situação que ele descreveu sobre a região:

É justo, portanto, que construamos lá, naquela fronteira nossa, uma civilização que reflita o progresso, a cultura, os encantos, as maravilhas e a civilização mesma do Brasil [...] a sublime e delicada missão de construir a civilização da fronteira deve ser cometida preferentemente ao brasileiro. Sem o cunho inconfundível da brasilidade, não será nossa aquela civilização. Lá se infiltraram e até dominam costumes que não são nossos [...]. Imponhamos ali nossos hábitos e costumes [...]. Que venham, portanto, os brasileiros de outros recantos para se fixarem naquele solo

(Melo e Silva, 2003, p.185).

Sua proposta de nacionalizar a fronteira – e nacionalizar, para Melo e Silva, é sinônimo de progresso e/ou civilização –, não implica banir o descendente guarani paraguaio, pois, segundo ele, era grande “nossa afinidade com esse povo, tais são os laços que nos vinculam, que seria absurdo a pretensão de afastar da fronteira o elemento paraguaio” (Melo e Silva, 2003, p.185). Contudo, a primeira medida que visa solucionar todos os problemas apontados por ele na fronteira é a migração de brasileiros para que haja a miscigenação:

É necessário que se dê a fusão com os estrangeiros que lá se encontram, e que desta amalgama resulte o predomínio dos nossos costumes, o império da civilização nacional. Sem que se introduza ali um grande número de brasileiros fortes, de reconhecida persistência na observância de seus hábitos e também resistência física experimentada no trabalho, a nacionalização daquele pedaço de território pátrio não se realizará e não irá além de um jogo de palavras

(Melo e Silva, 2003, p.185).

A migração de um grande número de brasileiros de outras regiões para a fronteira se justifica porque, segundo seu entendimento, o número de migrantes de “boa” índole moral, trabalhadores e dados ao progresso deveria superar o número de guaranis e guaranizados. Nesse contexto, ilustra seu pensamento com a anedota de um homem que introduz um cão de caça numa zona de muitos cães porém desprovidos dessa habilidade e, assim, acaba por perdê-lo: “[...] precisamente isso o que se dá com o homem que se entrega ao trabalho naquelas alturas do Brasil: cai sobre ele a canzoada humana, que vive ociosa, bebendo, jogando, politicando, até que ele recua vencido, acovardado” (Melo e Silva, 2003, p.145).

A defesa de Melo e Silva em favor da introdução de novos indivíduos no mundo fronteiriço, visa desenvolver um ambiente urbano e civilizado na fronteira, afastando-a dos hábitos guarani que a influenciará: “É justo, portanto, que construamos lá, naquela fronteira, uma civilização que reflita o progresso, a cultura, e os encantos, as maravilhas e a civilização mesma do Brasil. [...] a sublime e delicada missão de construir a civilização da fronteira deve ser cometida preferencialmente ao brasileiro” (Melo e Silva, 2003, p.185). Observe-se que o ideal de civilização proposto por Melo e Silva pode ser compreendido na perspectiva eliasiana, pois, ainda que não defina civilização, ele deixa latente que se trata de um objetivo a ser atingido, uma consciência ou espírito nacional, um caráter especial de que se orgulha e que é melhor do que o habitus fronteiriço.

A educação ocupa lugar de destaque nas propostas de Melo e Silva para sanar os problemas da fronteira. Sua preocupação com a educação divide-se entre a formação moral e a instrução escolar, sendo que esta última figura como estratégia eficaz para incutir os valores civilizacionais nos indivíduos e torná-los virtuosos e trabalhadores. A educação moral, para Melo e Silva (2003), está intimamente ligada à colonização/povoamento, pois a fronteira estava corrompida por hábitos perniciosos que só poderiam ser suplantados por meio da educação, fosse ela familiar, desde que com mãe brasileira, ou escolar.

Para o autor, era no seio da família guaranizada que surgiam e se perpetuavam os desvios morais e sociais. A família não ensinava de forma adequada o português, mas a língua guarani, e também não cultivava o gosto pelo trabalho. A criança não era educada de forma adequada, pois possuía liberdade de adulto: “vai onde quer e entende, freqüenta lugares impróprios, inconvenientes, a toda hora, em promiscuidade libertina”, fato que segundo ele não causava estranheza nos pais (Melo e Silva, 2003, p.118).

Outros aspectos ligados à formação moral, tais como “casamentos livres”, contatos e conversas entre mulheres casadas e solteiras com prostitutas, homens dados a bebedeiras, povo inclinado a festas são destacados por Melo e Silva. A solução, em sua perspectiva, seria impor o trabalho sistematizado, pois o indivíduo fronteiriço dedicava a maior parte de seu tempo a diversões, tais como “danças, passeios e musicatas” (Melo e Silva, 2003, p.84).

É importante salientar que muitos dos comportamentos criticados por Melo e Silva são, atualmente, considerados parte constituinte e distintiva da cultura fronteiriça. Fedatto (1995) destaca quatro elementos, que podem ser identificados aos que Melo e Silva criticou, como integrantes da cultura fronteiriça. Para a pesquisadora o primeiro elemento de distinção cultural é a mescla de português, espanhol e guarani, que resulta numa síntese linguística. A utilização mesclada desses três idiomas é uma prática cotidiana na fronteira: “Praticamente todo fronteiriço autêntico fala português, espanhol e guarani [...]. Isso pode parecer estranho para nós outros, mas para eles não há nada de estranho; desde que nasceram, acostumaram-se a ouvir três línguas (Fedatto, 1995, p.96). O segundo aspecto que, para Fedatto, envolve a constituição do fronteiriço é a miscigenação: “[...] a família fronteiriça autêntica é sempre resultado de uma mistura étnica: o avô, a avó, pai ou mãe é altamente paraguaio ou brasileiro” (Fedatto, 1995, p.97). Outro hábito cultural do fronteiriço é beber tereré6 e comer chipa7. Por fim, Fedatto (1995, p.99) destaca a polca paraguaia e a guarânia, esta chamada de choro por Melo e Silva (2003), como “músicas ‘oficiais’ da fronteira”.

Quanto à educação escolar, Melo e Silva insiste que é preciso implantar novas escolas na região, pois elas desempenhariam dupla função: reformar o caráter moral e incutir o gosto pelo trabalho. O governo deveria construir escolas primárias e pré-vocacionais, pois nestas as crianças desenvolveriam suas “aptidões para o artesanato ou para as lides campesinas” (Melo e Silva, 1989, p.134). Não obstante, era preciso contratar professores de outras regiões que fossem dedicados, cultos e capazes de ensinar a língua portuguesa com maestria e a conduta social adequada pelo exemplo. Melo e Silva insiste na necessidade de contratação de professores “hábeis, com suficiente conhecimento pedagógico e didática” (Melo e Silva, 2003, p.195).

Ao reivindicar investimento em escolas para educar as crianças, Melo e Silva reconhece que a mudança de habitus ocorreria num processo de duração relativamente longa. As escolas, de forma especial as técnicas, deveriam incutir nos indivíduos “amor pelo trabalho”, pois esse seria o caminho seguro capaz de conduzir o “homem fronteiriço ao caminho da civilização” (Melo e Silva, 1989, p.83). A educação das crianças era de suma importância, pois o caráter observado e descrito em “Fronteiras guaranis” continuou a ser observado em “Canaã do Oeste”. Para o autor, mesmo após a criação do Território Federal de Ponta Porã e dos investimentos em infraestrutura, educação e nacionalização da fronteira, continuava com seus vícios morais:

A insensibilidade moral observada em vários indivíduos, durante o tempo que exercemos ali judicatura, parece-nos uma anomalia peculiar a tipos daquele meio ambiente. [...]. Mais de uma vez, julgamos pais que entregaram filhas virgens a homens casados, a troco de gado, com a circunstância de que não se faziam compelidos por necessidade, e sim por depravação de sentimento. [...] conhecemos indivíduos que, sem se encontrarem embriagados, nem fora de si, por qualquer gênero de loucura, feriram a bala ou a punhal companheiros a quem pareciam vinculados por laços de fraternal amizade, com absoluta ausência de motivos, e sem que pudessem explicar depois a causa do seu procedimento [...]. É fato comuníssimo a indiferença ou desinteresse pela punição legal ou extralegal de assassínios de pais, irmãos ou parentes conjuntos. Tudo isso indica que existe naquele meio tipos cujas características o diferenciam flagrantemente dos demais de outras regiões nacionais, impondo-se por isso mesmo, um sistema especial de reeducação

(Melo e Silva, 1989, p.140).

Essa citação é elucidativa. Melo e Silva crê que a educação pode transformar os costumes, ou, na perspectiva adotada neste artigo, o habitus fronteiriço. Para ele, o sistema educativo implementado e dirigido pelo Governo não pode se limitar a apenas instruir e alfabetizar; é preciso reeducar, ou seja, incutir novos valores, a fim de frear os impulsos e banir hábitos perniciosos. Dessa forma, pode-se perceber que o autor, embora falasse de costumes guaranis ou de guaranizados, parece ter clareza de que o habitus “não é biologicamente fixado de uma vez por todas; antes, está intimamente vinculado ao processo particular de formação do Estado a que foi submetido” (Elias, 1997, p.16). Sua obra, embora deixe patente que os costumes dos descendentes guaranis devam ser suplantados, busca entender o comportamento do povo fronteiriço e reconhece que mudanças sociais devem ser introduzidas por meio da educação e do contato com novos indivíduos. Exemplo disso é sua defesa para que os jovens fronteiriços, nascidos no Brasil, prestassem serviço militar em quartéis distantes da fronteira, pois essa experiência incutiria em seu espírito valores nacionais e, ao retornarem à fronteira, agiriam de acordo com os valores civilizados apreendidos:

Daí a conveniência de que os descendentes guaranis, nascidos no Brasil, fossem prestar serviço militar nos melhores centros de nossa civilização, onde tomassem contato com a pátria, aprendessem nossa língua, assimilassem os nossos costumes e de lá voltassem cheios de entusiasmo [...] o Brasil muito aproveitaria com esse processo de adaptação da nossa tropa, preparando, ademais entre os mestiços guaranis, elementos de grande utilidade para o serviço de nacionalização

(Melo e Silva, 2003, p.194).

Melo e Silva deixa claro que sua reivindicação para que o governo investisse e implantasse escolas na região estava voltada à transformação do habitus fronteiriço. Ou seja, o investimento em educação, assim como a presença de novos indivíduos amantes do trabalho e com moral adequada ao estágio civilizacional brasileiro, possibilitaria ao fronteiriço a autorregulação do comportamento e a transformação de seus hábitos.

Considerações Finais

A proposta da obra de Melo e Silva é civilizar a fronteira, pois ele não via uma identidade nacional no fronteiriço; logo, era preciso transformá-la. Para isso, chama atenção do Governo para três campos de investimento: povoar a fronteira, investir em infraestrutura e investir na educação. Ele propõe o aprimoramento do fronteiriço por meio da mudança de conduta, incentivada pelo contato com outros grupos de indivíduos e com um processo educativo que insuflasse nos fronteiriços novos comportamentos. Essas ações propostas por Melo e Silva deveriam ser planejadas, incentivadas, reguladas e fiscalizadas pelo Estado, fato que aponta o controle que esta instituição deve exercer sobre os indivíduos, a fim de propiciar o autocontrole individual por meio da introjeção de comportamentos sociais considerados adequados. A obra de Melo e Silva revela o processo civilizador da fronteira e a necessidade de autorregulação dos sentimentos e da conduta do fronteiriço.

Para o autor, a fronteira vivia um descompasso em relação ao restante do país, era outro Brasil; por isso criticou os costumes fronteiriços, tais como músicas, danças, festas, religiosidade, maneira de falar, práticas linguísticas, dentre outros que considerava incompatíveis com a moral média brasileira e que deveriam ser suplantados. Melo e Silva acreditava piamente que a educação poderia modificar a cultura fronteiriça. Ele viu na educação escolar, familiar e social a possibilidade de transformação do habitus e de adequação comportamental a padrões sociais provenientes de outras regiões.

O habitus social estabelece-se no processo civilizador. Nesse contexto, as sociedades se civilizaram num processo de longa duração. A fronteira, por sua vez, dada a sua constituição, tem como marca o contato, a troca e, consequentemente, a incorporação de diversos hábitos, a partir das relações interdependentes dos diversos grupos sociais que a compõem. A obra de Melo e Silva, ao propor a transformação da sociedade fronteiriça, revela as especificidades de uma população marcada pela proximidade e interação com o país vizinho. Ao criticar a vestimenta do fronteiriço, seu interesse pelo trabalho sazonal, seu gosto por festas, sua forma de falar, dentre outros aspectos, o autor revela o desejo de introduzir valores de uma sociedade urbana em uma sociedade que, naquele momento, era essencialmente rural.

1Artigo elaborado a partir da tese de A.S. FERREIRA, intitulada “Educação e fronteira sul-mato-grossense (1889-1943): análise a partir da historiografi a regional”. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019.

3Por meio da Lei Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977, foi “criado o Estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do Estado de Mato Grosso”. A instalação do governo da nova Unidade da Federação ocorreu em 1º de janeiro de 1979 (Brasil, 1977, Art. 1º; 4º).

4José de Melo e Silva (1892-1971) era natural do Estado do Ceará e formou-se em direito pela Faculdade de Direito do Ceará no ano de 1919. Em 1933 foi nomeado para exercer a função de Juiz de Direito da Comarca de Bela Vista (MT) e permaneceu no cargo até o ano de 1945; no ano seguinte foi nomeado Juiz Substituto do Território Federal de Ponta Porã, cargo que exerceu até ser transferido para o Território Federal do Guaporé, em 1947.

5Tradução nossa: “[...] o habitus social é parte integrante do habitus individual e pessoal. Em outras palavras, é um ‘selo’ específico que todo indivíduo, apesar de sua diversidade, compartilha com outros membros de sua figuração. [...]. Basicamente, esse ‘selo’ costumeiro para o indivíduo em uma figuração forma o quadro de referência de sua percepção e interpretação. A possibilidade de avaliação própria e externa por pessoas em uma figuração requer esse ‘selo’. Dessa forma, experiências compartilhadas de pessoas particulares em uma figuração são socialmente herdadas e transmitidas a gerações subsequentes na forma de símbolos verbais e não verbais. Esses símbolos institucionalizados e, como tal, independentes, também têm uma significante função para os seres humanos. Sem esses símbolos compartilhados, a orientação e o controle de comportamento, pensamentos, sentimentos e ações por indivíduos singulares em um grupo humano dificilmente seriam possíveis”.

6Bebida com água fria à base de erva mate (Ilex paraguaiensis), que se toma com bombilha em recipiente distinto da tradicional cuia de chimarrão gaúcho ou de mate uruguaio ou argentino. É comum na fronteira utilizar como cuia copos de alumínio ou parte do chifre de boi.

7Biscoito à base de polvilho, óleo vegetal, queijo, ovos e sal. Pode-se acrescentar, dentre outros, a chipaguaçu ou sopa paraguaia (bolo salgado à base de milho, queijo, sal e cebola) como alimento consumido cotidianamente na fronteira.

Como citar este artigo/How to cite this article

Ferreira, A.S. Civilização e habitus fronteiriço na obra de José de Melo e Silva. Revista de EducaçãoPUC-Campinas, v.24, n.3, p.351-365, 2019. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v24n3a4605

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Recebido: 03 de Maio de 2019; Revisado: 05 de Junho de 2019; Aceito: 17 de Junho de 2019

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