SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Ensino Médio em tempo integral: uma aposta na qualidade de ensino?Trajetórias escolares no Ensino Médio Integrado: uma análise da atribuição de sentidos de jovens estudantes por meio da história oral temática índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020  Epub 11-Dic-2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4577 

Seção Temática: O Ensino Médio no Brasil: quais possíveis rumos?

Mudanças curriculares no Ensino Médio a partir da Lei n°13.415/2017: percepção de estudantes secundaristas1

Curricular changes in High School Education from Law n°13.415/2017: Perception of High School Students

Lurvin Gabriela Tercero Reyes2 
http://orcid.org/0000-0001-6058-1845

Suzane da Rocha Vieira Gonçalves3 
http://orcid.org/0000-0002-3156-2693

2Escola Jaime Martinez Guzmán, San Antonio de Oriente, Francisco Morazán, Honduras.

3Universidade Federal do Rio Grande, Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Av. Itália, Km 8, 96203-900, Rio Grande, RS, Brasil.


Resumo

O presente artigo objetiva problematizar as mudanças curriculares que a Lei n°13.415/2017 impõe ao Ensino Médio brasileiro, assim como verificar a percepção que estudantes secundaristas, da Escola Estadual Dr. Augusto Duprat na Cidade do Rio Grande (RS), têm sobre essas mudanças. A base empírica foi construída a partir de uma investigação dissertativa de cunho qualitativo, contando com a participação de 61 alunos de 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio. Como procedimento para produção de dados, formaram-se 4 grupos focais, um com cada turma da escola; ademais, também foi aplicado um questionário fechado. Para a análise dos dados utilizou-se a metodologia de análise do conteúdo, a partir de 4 categorias estabelecidas a priori, sendo o presente trabalho produto de uma dessas categorias. A partir da análise dos dados, aponta-se um discurso reprobatório por parte dos estudantes, no que se refere à determinação de dispor de Língua Portuguesa e matemática como únicas disciplinas obrigatórias nos três anos de Ensino Médio. Os estudantes também discordaram da proposta de tornar uma percentagem do Ensino a Distância, afirmando que atualmente o ensino é precário e que essas disposições iriam fragilizá-lo ainda mais. Nas falas, identificou-se também uma associação da retirada de disciplinas como Filosofia e História com intenções governamentais de controlar a população. Por fim, considera-se fundamental que os jovens sejam ouvidos, visto que são os sujeitos do Ensino Médio os mais afetados com essas mudanças.

Palavras-chave:  Currículo; Ensino Médio; Políticas públicas em educação; Reforma de ensino

Abstract

The present article addresses the curricular changes set out by Law n°13.415/2017 regarding Brazilian High School, and seeks to verify the perception that secondary school students of the State School Dr. Augusto Duprat of the City of Rio Grande, State of Rio Grande do Sul (Brazil), have about the changes proposed in the Law. The empirical basis was acquired from a qualitative thesis investigation, with the participation of 61 students of the 1st, 2nd and 3rd year High School. As a procedure for data production, four focus groups were formed, one for each class of the school; moreover, a closed questionnaire was applied. For the analysis of the data the methodology of content analysis, from four categories established a priori was used; the present work derives from one of those categories. Based on the data analysis, a students’ rejection discourse was identified, with regard to the determination of setting Portuguese and Mathematics as the only obligatory disciplines in the three years of secondary education. In addition, students disagreed with the proposal to include a percentage of e-learning in the school program; they also indicated that teaching is currently precarious and that such provisions would further weaken it. In the statements voiced by the students, an association between the withdrawal of disciplines like philosophy and history with government intentions to control the population was also detected. Finally, it is fundamental to listen to these young people, since they are the subjects of High School and the most affected by these changes.

Keywords:  Curriculum; High School; Public policies in education; Educational Reform

Introdução

A Lei nº13.415, aprovada em 16 de fevereiro de 2017, é resultado da Medida Provisória nº746, emitida em setembro de 2016, e trata da Reforma do Ensino Médio (Brasil, 2017). A referida lei é parte de um projeto político societário que começou a ser tramitado junto com outras medidas legislativas a partir do golpe parlamentar, jurídico e midiático da Presidente eleita democraticamente Dilma Rousseff em agosto de 2016. Por sua natureza jurídica, a conversão da Medida Provisória nº746/2016 na Lei n°13.415/2017 se deu sem participação de grupos organizados da sociedade no prazo de 147 dias.

As mudanças que essa reforma apresenta para a Educação Básica e, em especial, para o Ensino Médio, têm sido abertamente rejeitadas por boa parte da comunidade acadêmica, a partir de manifestos e declarações. Um dos principais sujeitos na resistência à atual reforma é o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, criado no início de 2014 com vistas a atuar junto à Câmara dos Deputados na interlocução sobre o Projeto de Lei n°6.840/2013 (Brasil, 2013b).

É importante destacar que a rejeição não foi exclusivamente por grupos acadêmicos ou associações educativas; parte da população brasileira se manifestou contrária nas redes sociais principalmente. Muitas escolas de Ensino Médio foram ocupadas no País inteiro, exigindo a revogação da Medida Provisória nº746/16. Apesar de todas as manifestações da população brasileira, o Governo Federal continuou com o processo de tramitação da medida legislativa, que foi aprovada no Senado em fevereiro de 2017 com 43 votos a favor e 13 contra.

A Proposta de Reforma do Ensino Médio, denominada pelo governo de “Novo Ensino Médio”, representa uma mudança na estrutura pedagógica e curricular das escolas, mas, além disso, articula o controle do empresariado sobre a formação da força de trabalho. Ademais, a lei permite a oferta do Ensino Médio por meio de parcerias com o setor privado no que diz respeito ao itinerário do ensino técnico-profissionalizante e ao oferecimento por meio da Educação a Distância (EAD).

Cabe destacar que a Lei n°13.415/2017 propõe uma reforma técnica-disciplinar dos processos educativos. Isso quer dizer que ela modifica a dinâmica do Ensino Médio para uma lógica concorrencial pela disputa na oferta de itinerários formativos. Dessa forma, ela faz parte de um conjunto de dispositivos legais que legitimam a apropriação, por parte de setores privados, da sociedade dos fundos públicos, caracterizando-se por um processo de privatização educacional, conforme vem sendo discutido por Adrião (2018) e Peroni (2018).

Neste texto, será focalizada a análise nas mudanças curriculares, considerando o estabelecimento da Língua Portuguesa e da Matemática como as únicas disciplinas obrigatórias nos três anos de Ensino Médio e a divisão do tempo escolar entre uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e itinerários formativos. Além disso, será levada em conta a proposta de tornar uma percentagem da carga horária do Ensino Médio para a Educação a Distância.

Dado que a Lei n°13.415/2017 prevê um prazo de cincos anos a partir de sua aprovação em 2017 para concretizar as mudanças propostas e considerando que as prescrições oficiais não se consolidam de forma espelhada na escola (Silva, 2008), este artigo visa analisar o plano de possibilidades em relação aos impactos, efeitos e consequências quanto às mudanças curriculares propostas na lei. Ainda, pretende analisar as percepções dos jovens secundaristas sobre essas mudanças.

Procedimentos Metodológicos

Para atingir os objetivos do estudo, foi escolhida uma metodologia com abordagem qualitativa. Com base nos pressupostos metodológicos de Triviños (1987), que explica que a pesquisa qualitativa não procura a quantificação da amostragem, mas decide intencionalmente “sujeitos que sejam essenciais, segundo o ponto de vista do investigador, para o esclarecimento do assunto em foco” (Triviños, 1987, p.132), decidiu-se atingir toda a população estudantil no Ensino Médio da escola, para obter uma visão mais ampla das opiniões sobre as mudanças curriculares que a reforma vai trazer.

Para a produção dos dados, optou-se pelo desenvolvimento de grupos focais e a aplicação de questionários com as turmas do Ensino Médio da Escola Estadual Dr. Augusto Duprat no município do Rio Grande no Rio Grande do Sul, totalizando a participação de 61 estudantes. Para a análise e interpretação dos dados, buscou-se o método da análise de conteúdo, na perspectiva de Bardin (2011), o qual compreende que

[...] a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (Bardin, 2011, p.47).

A primeira etapa do processo analítico consistiu na pré-análise dos dados com o objetivo de sistematizar as ideias iniciais com base no referencial teórico, além de fornecer elementos para a interpretação dos dados coletados. A partir da leitura flutuante que, segundo Bardin (2011), é o primeiro contato com os documentos da coleta de dados, começou-se a conhecer os materiais, que permitiu a formulação de hipóteses e objetivos e a escolha de indicadores para a interpretação dos registros coletados.

Na segunda etapa, com a exploração dos materiais, obteve-se a construção das operações de codificação. Assim, nessa fase foram construídas as quatro categorias de análise: Meios de informação e construção do conhecimento; Mudanças no currículo; Condições físicas e organizativas da escola; e Reforma e dualidade do Ensino Médio. Neste artigo, o foco é a categoria que trata das Mudanças no Currículo, na qual se busca compreender os sentidos que os estudantes outorgam à reforma, bem como se discute o que os estudantes conhecem e opinam sobre as mudanças relacionadas ao currículo.

Na terceira etapa da análise, procedeu-se ao tratamento dos resultados, realizando-se o exercício de compreensão, inferência e interpretação. Essa fase consistiu em identificar os conteúdos presentes no material coletado para análise à luz dos referenciais teóricos.

Por questões éticas, e como estabelecido no termo de consentimento livre e esclarecido assinado por cada um dos participantes do estudo, as identidades dos jovens participantes da pesquisa permanecem no anonimato, razão pela qual se utilizaram códigos para a identificação de cada questionário, assim como para as falas produzidas pelos grupos focais.

Os códigos referentes à transcrição das conversas dos grupos focais estão estruturados, na ordem ascendente, segundo o Grupo (indicado nas transcrições com a letra G); a pergunta (indicado pela letra P) – apesar de haver um roteiro previamente estruturado, a ordem dos questionamentos foi variando em cada grupo, pois as perguntas foram realizadas de acordo com o ritmo de conversa de cada um deles –; e, finalmente, a “fala” (indicado pela letra F), que se refere a cada uma das respostas que foram registradas de forma individual. No caso do questionário fechado, códigos foram elaborados a partir da letra “E correspondente a “Estudante” e dos números romanos “I”, “II” e “III” correspondentes ao ano de matrícula dos participantes, sendo:

  • I – Primeiro ano

  • II – Segundo ano

  • III – Terceiro ano

Além desses elementos, o código consta de números em ordem ascendente que representam a quantidade de estudantes que responderam ao questionário. A partir da análise desses dados, pretendeu-se conhecer as percepções desses estudantes sobre a reforma educacional que está ocorrendo nessa etapa de ensino.

A Base Nacional Comum Curricular e os itinerários formativos

Ao analisar o texto da Lei n°13.415/2017, é possível deduzir um movimento em direção a uma proposta de formação mais limitada, contrariando o entendimento de educação no seu sentido mais amplo, promovido pela LDB de 1996, que, segundo Carneiro (1998, p.31):

O termo educação tem um sentido abrangente. Fala-se em educação formal, educação não-formal, educação continuada, educação à distância, educação ambiental, educação sexual, etc. Sob o ponto de vista legal, educação tem, quase sempre, sentido limitado. Na legislação anterior4, por exemplo, era sinônimo de ensino, seja de ensino regular, seja de ensino supletivo. Portanto referia-se, sempre à educação formal. Embora a lei estatuísse que poderia ser dada no lar e na escola, de fato, a ação educativa verdadeiramente ‘certificada’ pelos cânones legais era aquela encorpada na modalidade ensino.

O Art. 4 da Lei n°13.415/17 altera o Art. 36 da Lei n°9.396/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A nova redação do artigo 36 da LDB define que o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos. A Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, conforme definição do novo Art. 35-A, será organizada pelas seguintes áreas do conhecimento: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. No que se refere à parte diversificada, a legislação estabelece que esta poderá ser organizada por cada sistema de ensino, respeitando a BNCC. A Lei ainda define que educação física, a arte, a sociologia e a filosofia estão presentes na BNCC como estudos e práticas; ademais, o estudo da língua inglesa será obrigatório no Ensino Médio, o parágrafo 3º do artigo 35-A da LDB define como obrigatório nos três anos do Ensino Médio o ensino da língua portuguesa e da matemática. A nova legislação ainda estabeleceu que, para o cumprimento da BNCC, a carga horária destinada para a base não poderá ultrapassar mil e oitocentas horas do total da carga horária do Ensino Médio.

Como se pode verificar, embora a Lei n°13.415/2017 proponha, inicialmente, que os currículos considerem a formação integral do aluno, determinados conhecimentos científicos permanecem mais valorizados do que outros, havendo, com isso, maior ênfase em determinadas áreas.

Na redação original da LDB, no Inciso IV de seu Artigo 9, já se preconizava que cabe à União: “Estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (Brasil, 1996, online).

Essa é a razão pela qual, em 1998, foram aprovados os Parâmetros Curriculares e as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) documentos que pregavam um ensino baseado nas competências e nas pedagogias do “Aprender a aprender” promovidas pela Unesco na década de 1990.

No ano de 2012, as DCNEM foram atualizadas, portanto, no momento da aprovação da reforma ao Ensino Médio (Lei n°13.415/2017), o País contava com Diretrizes Gerais da Educação Básica, assim como Diretrizes para cada etapa: Educação Infantil, Fundamental e Médio. As DCNEM/2012 representaram um importante avanço para o EM, especialmente no que se refere a sua identidade definida pela “superação do dualismo entre propedêutico e profissional” (Brasil, 2013a, p.171).

No entanto, tendo em vista que as DCNEM/2012 não dialogavam com os interesses e fins do “novo Ensino Médio”, uma das últimas ações do Governo Temer foi a aprovação acelerada da “Atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), observadas as alterações introduzidas na LDB pela Lei n°13.415/2017” (Brasil, 2018, online). Isso se deu através da Resolução CNE/CEB n°03/2018 em novembro de 2018 e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), com 18 votos a favor e duas abstenções (Resolução n°4, de 17 de dezembro de 2018).

A BNCC do Ensino Médio foi elaborada à parte da BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. A versão final da BNCC do Ensino Médio é outro documento, bem diferente das duas primeiras versões que foram divulgadas entre 2014 e 2016. Sua organização é pautada em competências e habilidades, e os únicos componentes curriculares que são tratados no documento é língua portuguesa e matemática. Na apresentação das áreas de conhecimento, há uma breve referência aos componentes curriculares que compõem cada área, porém não há uma discussão acerca de tais componentes. Ao analisar o documento, percebe-se um esvaziamento dos conteúdos da última etapa da Educação Básica.

Com relação aos itinerários formativos, não tem estabelecido como este será organizado, sendo possível diferentes arranjos, principalmente no itinerário da formação profissional. A lei da Reforma do Ensino Médio, apresentada como flexível, permite que as instituições educativas organizem os itinerários de diferentes modos, sendo possível que o estudante inicie o itinerário no primeiro ano do Ensino Médio, ou no segundo ano. Também é permitido que a parte comum ocorra na escola e o itinerário em outra instituição parceira. Entre as atividades realizadas pelos estudantes que podem ser computadas como parte da carga horária do Ensino Médio, segundo as DCNEM/2018, estão aulas, cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários e demais atividades com intencionalidade pedagógica orientadas por docentes. Assim, podem ser realizadas na forma presencial – mediada ou não por tecnologia –, ou a distância, inclusive mediante regime de parceria com instituições previamente credenciadas pelo sistema de ensino.

Em relação ao desmembramento da carga horária em dois momentos, Lino (2017) opina que:

O direito à educação de qualidade e à formação humana são desconsiderados e frontalmente ameaçados com uma pretensa flexibilização curricular que a Lei 13.415/17 introduz na LDB, anulando a concepção de um ensino médio como etapa da educação básica, portanto comum a todos, e que será complementada com a adoção da BNCC, que padroniza os currículos, reduzindo-os, desconsiderando as diversidades do público-alvo, a realidade das instituições e o contexto sociocultural (Lino, 2017, p.88).

A partir desses diferentes aspectos que envolvem a reforma do Ensino Médio, realizou-se o estudo apresentado neste artigo. A seguir, serão discutidas as percepções que estudantes secundaristas da escola investigada possuem acerca do “Novo Ensino Médio”.

Com relação à organização curricular dividida entre a BNCC e os itinerários formativos, em todos os grupos focais, verificou-se que os estudantes não tinham pleno conhecimento sobre ela. Considerando as possíveis implicações da nova estrutura do currículo de Ensino Médio, colocou-se a temática na mesa de discussão nos grupos, realizando as seguintes perguntas aos estudantes:

  • − Vocês têm conhecimento sobre a proposta da escolha de itinerários para organização do currículo do Ensino Médio?

  • − Vocês sabem quais são esses itinerários?

  • − No artigo 4 da Lei que aprovou a reforma, afirma-se que o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino. Com isso, as escolas não são obrigadas a possuir todos os 5 itinerários possibilitados pela Lei. Vocês têm conhecimento disso? Qual sua opinião?

A fala dos estudantes evidenciou que eles não reconheciam o termo “itinerário formativo”, mas foi possível identificar que sabiam que a reformapropunha a escolha de uma área específica. Na conversa, exteriorizaram suas preocupações e opiniões a respeito das possíveis implicações que os itinerários teriam na formação da juventude.

Uma preocupação que surgiu nas falas dos estudantes diz respeito à falta de professores para responder à demanda pelos itinerários formativos, como se pode observar nas falas abaixo:

Pensem assim: são eles que fornecem os professores como ela disse nem todas as escolas terão essa possibilidade de ter os cinco itinerários. Então, vamos supor que aqui na nossa escola, eu resolvo fazer Ciências Humanas aplicadas, [cita o nome] Ensino Técnico e essas coisas todas, será que vai ter professor?

Alguem responde: Não, se só para nosso ensino já não tem professor (G1P7F1).

Eu escutei que isso vai de escola para escola, e aí se tiver uma escola com menos professores, se eles acharem tipo: ah! Não temos professor e vocês não precisam, eles não mandam professor, e tu vais ter que te adaptar com as matérias que tem.

Fala complementar: Sim por exemplo, a gente estava sem professor de literatura, aí se não tiver professor no caso a escola não é obrigada a ter (G3P5F13).

A proposta dos itinerários agradou aos secretários de educação dos Estados, pois é uma forma de resolver o problema do apagão docente, ou seja, da falta de professores de algumas áreas do conhecimento. Com a adoção do itinerário, não há necessidade da presença de professores de todas as áreas do conhecimento, ainda mais se for levado em conta que, na parte comum, a proposta é fazer uma organização por áreas do conhecimento, garantindo apenas os componentes curriculares de língua portuguesa e matemática, conforme já mencionado.

Outro aspecto que apareceu na fala dos estudantes é em relação à idade apropriada para fazer a escolha de um itinerário formativo e a preocupação com tomar uma decisão errada. Segundo eles:

A gente está num momento da nossa vida, que a maioria aqui não sabe o que vai fazer na vida, não teria condições de escolher, ah vou fazer isto ou aquilo. Outra coisa, a maioria de nós nunca fomos numa faculdade para ver como é a vida lá, e tal. Por exemplo, eu quero fazer direito, mas eu nunca vi a vida de um estudante de direito e muito menos de um advogado, aí eu vou achando que é uma coisa e é outra, e aí? Se eu escolher no colégio, fazer na área das humanas porque eu tinha ascensão a isso (G1P7F6).

Ainda se manifestaram com relação à redução de disciplinas para se dedicar ao enfoque de uma área de interesse:

Tipo, podem dizer que o negócio não está bem, mas num ponto eu sou a favor disso, porque tem profissões que não precisam de todas as matérias. Quando eu sair daqui, quero ser da civil, então tipo já não precisa de história e geografia.

Várias falas paralelas comentam: “Precisam sim!” “História precisa!

Cara, eu sei, mas tipo não precisa de todas as matérias. Por isso sou a favor.

[Alguns parecem considerar a ideia]

Eu pergunto: tem alguma outra razão para ser a favor?

Acho que só por isso (G2P4F6).

Percebe-se que os estudantes apresentam certo conflito entre concordar ou discordar sobre a redução de disciplinas com a implantação dos itinerários. Para alguns, o acesso às diferentes áreas do conhecimento é fundamental para que possam futuramente escolher os caminhos profissionais que desejam seguir; outros, ainda que possam perceber a importância do acesso aos diferentes conhecimentos, ficam balançados com a possibilidade de estudar apenas as áreas que possuem mais afinidade.

Compreende-se que a proposta de uma formação integral para a juventude deveria passar pelo acesso às diferentes áreas do conhecimento, no entanto, nota-se, a partir do discurso do governo, que este adota uma visão utilitarista do conhecimento, não só pela adoção da noção de competências e habilidades que corroboram com essa visão, mas também por afirmarem que é necessário um Ensino Médio focado na preparação de mão de obra. Nessa linha de pensamento, Silva (2014, p.70) aponta que uma formação integral da juventude brasileira pressupõe a “vinculação dos conhecimentos científicos, com a prática relacionada à contextualização dos fenômenos físicos, químicos e sociais, bem como a superação das dicotomias entre humanismo e tecnologia”.

Entre os argumentos do governo para a proposta dos itinerários, está o desinteresse do jovem permanecer na escola, já que, muitas vezes, eles não veem sentido nos conteúdos trabalhados. Entende-se que, muitas vezes, o problema que se coloca não está necessariamente nos conteúdos, mas nas abordagens metodológicas dos professores que não buscam estratégias didáticas que chamem a atenção da juventude; além disso, existe a falta de recursos didáticos e de infraestrutura para um ensino mais atrativo com o uso de tecnologias, por exemplo.

Hegemonia de Língua Portuguesa e Matemáticas no currículo

Em relação ao ensino da Língua Portuguesa e da Matemática como únicos componentes curriculares obrigatórios nos três anos do Ensino Médio, alguns autores identificam a preocupação do governo na preparação dos jovens para as avaliações externas, bem como uma dinâmica baseada na produção de mão de obra para alimentar o sistema produtivo capitalista, assim como a influência de organizações internacionais. Nessa linha de pensamento, Gonçalves aponta que:

Para melhor compreender a reforma proposta pela MP, é importante analisá-la junto com o documento Exposição de Motivos n.00084/2016/MEC, assinado pelo ministro da Educação Mendonça Filho, no qual o MEC apresenta as justificativas para a mudança. Neste documento, ficam claramente explicitadas as intenções do Ministério em melhorar o desempenho dos estudantes nas avaliações externas e atender as orientações de organismos internacionais com a preparação de mão de obra (Gonçalves, 2017, p.135).

A respeito da obrigatoriedade do português e da matemática, verificou-se que os estudantes não estão de acordo com essa determinação; da mesma forma eles expressaram-se sobre a proposta de tornar uma percentagem do ensino a distância. Afirmam que atualmente o ensino é precário e que essas disposições iriam fragilizá-lo ainda mais. Sobre isso, Krawczyk e Ferretti (2017) denunciam que essas medidas curriculares têm sido impostas sem uma avaliação séria e responsável da organização curricular atual e com justificativas baseadas na eficiência e em exemplos de países considerados avançados, indicativo que não representa uma justificativa confiável. Os autores supracitados também alertam que:

A redução do tempo e conteúdo da formação comum a todos não é uma escolha dos jovens, tal como se intenta convencer através da mídia. Pelo contrário, esse argumento tem sido confrontado pelas mobilizações e demandas juvenis, que buscam, sobretudo, serem autônomos e críticos, possuir os conhecimentos científicos e culturais que a humanidade historicamente produziu e continuamente produz, como um bem social em si mesmo, e também como ferramenta de ação social que permita o enfrentamento dos desafios naturais, sociais, políticos, culturais e econômicos com que o local, o regional e o global se defrontam cotidianamente (Krawczyk; Ferretti, 2017, p.37).

Entre os estudantes participantes da pesquisa, verificou-se que 72%, não concorda com a não obrigatoriedade da maioria de disciplinas que compõe o currículo atual. Apenas um estudante manifestou concordar com a proposta presente na legislação, e 11% dos estudantes concordam parcialmente.

Nas falas dos estudantes, identificou-se uma associação da retirada de disciplinas com as intenções de controle sobre a população por parte do Estado. Segundo as declarações, a proposta minimiza a importância de disciplinas como História e Filosofia, ou seja, aquelas que promovem o pensamento crítico e reflexivo. Krawczyk e Ferretti (2017) concordam com essas colocações; para os autores, a reforma representa uma nova forma de distribuição do conhecimento socialmente produzido. As mudanças objetivam colocar o Ensino Médio a serviço da produção de sujeitos, técnica e subjetivamente, preparados sob uma ótica instrumental, tendo em vista os interesses do capital. “Daí a pouca atenção voltada à formação de sentido amplo e crítico, ou sua secundarização, assim como a exclusão, como obrigatórias, de disciplinas como Filosofia e Sociologia” (Krawczyk; Ferretti, 2017, p.38). Para os estudantes, tais mudanças representam:

Assim, a gente... não pode ser hipócrita e dizer assim: ah a gente não gosta disso! Tudo mundo gostaria de não ter matérias assim, muitas matérias. 16 matérias é muita coisa, não dá! [Outros riem] então a gente não gostaria, mas só português e matemática e ainda falando que são só as obrigatórias, olha quantas faculdades, cursos e trabalhos existem... digamos tirando, não sendo o foco português e matemática. Então, é muito injusto eles dizer que só isso é o que importa... então história não importa? Química não importa? Filosofia não importa? O Que move são os questionamentos e essas coisas que a gente vive discutindo aqui, então quer dizer que eles querem que a gente pare de questionar. Que a gente só aceite as respostas, e não é isso, a gente está aqui para ser contra isso, para com nossos filhos, eu acho (G1P1F5, grifos nosso).

Com menos matérias menos conhecimento, com menos conhecimento a gente fica mais manipulável (G1P11F1).

Eles querem nos incapacitar, nos transformar em robôs, eles querem marionetes.

Fala paralela: e mão de obra barata (G1P11F2).

Nas falas, denotou-se também uma preocupação com a perspectiva do futuro. A possibilidade de ausência de alguns conteúdos na formação se torna alarmante, pois a fragmentação e fragilização do ensino irão colocar os estudantes de Escolas Públicas numa desvantagem em relação aos alunos de Escolas Particulares, que provavelmente terão a possibilidade acessar currículos abrangendo todas as disciplinas, uma vez que a Lei n°13.415/17 possibilita a organização de um itinerário integrado. Acerca disso, Gonçalves adverte que:

As redes privadas que já competem divulgando seu desempenho no Enem e publicizando que ensinam mais que outras escolas não perderão a oportunidade de organizar currículos bastante sólidos para seu público, enquanto os estudantes das escolas públicas estaduais terão que se contentar com a ênfase que o sistema de ensino julgar possível ser ofertada (Gonçalves, 2017, p.141).

Considerando que aproximadamente 83% da oferta do Ensino Médio pertencem à Rede Pública de Ensino, certamente essas mudanças vão afetar um contingente muito amplo de jovens da classe trabalhadora que entrarão na universidade e no mundo de trabalho nas próximas décadas.

Por outro lado, é possível observar outro movimento no pensamento dos Grupos 2 e 3. No Grupo 2, percebeu-se um sentimento de conformismo, pois concordaram que o ideal seria ter todas as matérias, no entanto consideram que a obrigatoriedade das duas disciplinas significa que, “pelo menos”, garantiriam alguma coisa.

Eu acho que por esse lado estão obrigando a gente a fazer pelo menos uma coisa, mesmo assim não concordo com isso, prefiro ter todas as matérias e acrescentar alguma coisa no dia a dia e não tirar, acrescentar mais aulas (G2P12F1).

Já o Grupo 3 apresentou alguns jovens que se expressaram de forma oposta aos primeiros grupos. Eles consideraram essencial o ensino de português e matemática, como se mostra na fala.

Isso daí é essencial.

Fala paralela: Mas já é obrigatório.

Eu acho que é a única coisa certa que tem (G3P13F1).

Se tu parares para pensar, o pessoal tira melhor nota no inglês que no português que é tua língua básica. Em que lugar acontece isso. No Brasil só (G3P13F2).

Não é uma posição unanime, mas manifesta o pensamento de alguns dos estudantes. Ainda que se tenha problematizado a oferta da língua portuguesa e matemática como únicas disciplinas obrigatórias, utilizam-se dos mesmos argumentos do governo, ou seja, os baixos indicadores educacionais nessas disciplinas, consideradas as mais importantes, para defender suas ideias.

O Ensino Médio e a Educação a Distância

No que se refere ao Ensino a Distância, segundo o inciso XV do Art. 17 das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, aprovadas em 2018, as atividades realizadas a distância podem contemplar até 20% da carga horária total no Ensino Médio regular, até 30% no Ensino Médio noturno e 80% na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. As referidas atividades podem incidir tanto na formação geral básica quanto, preferencialmente, nos itinerários formativos do currículo, desde que haja suporte pedagógico e tecnológico – digital ou não (Brasil, 2018).

Quanto à possibilidade de realizar parte da carga horária a distância, as posições dos estudantes seguiram uma direção semelhante do expressado em relação à posição privilegiada do português e da matemática em comparação com o resto de disciplinas que atualmente compõem o currículo. Os resultados dos questionários revelaram uma inconformidade nos estudantes, pois 87% dos alunos afirmaram que não concordam com essa determinação do CNE. Esclarece-se que, na época que se produziram os dados, havia sido publicada somente a Minuta das Diretrizes. Com relação a elas, perguntou-se aos estudantes sobre a proposta de tornar 40% da carga horária de Ensino Médio a distância. No entanto, em dezembro de 2018, foi aprovada pelo CNE as novas diretrizes do EM que regulamentaram 20% da carga horária diurna para essa modalidade de ensino.

Com base nas falas dos estudantes, acredita-se que, independentemente da porcentagem destinada ao ensino a distância, os resultados seriam semelhantes, pois os motivos expressos pelos alunos estão relacionados à falta de recursos para realizar esse tipo de ensino. Isso pode ser observado nas falas abaixo:

Claro que não, é totalmente utópico, ainda mais que a escola pública, ela tem alunos que não tem condições de ter internet em casa. Como esse aluno vai estudar pela internet, sendo que ele não tem? Já começa por aí! (G1P12F2, grifos nossos).

Ou não tem internet, ou não vai quer (G1P12F5).

Os estudantes ainda reconhecem que, dada a posibilidade de realizar parte da carga horária obrigatória fora da escola, muitos se dedicariam a realizar outras atividades, dentre elas atividades empregatícias. Esse argumento foi um do mais recorrentes, como se pode apreciar nas seguintes falas:

Se já é difícil o cara vindo assim formalmente, já é difícil o cara vir e ficar dentro da sala de aula, tu imaginas em casa (trecho ininteligível) se a gente não faz nada as vezes.

Fala paralela: imagina comendo ou bebendo.

Alguém responde: isso a gente faz de qualquer jeito.

Não é o mesmo, se estiver em casa e alguém bater à porta o cara larga lá e vai falar, entendeu? Não vai ter prioridade, no caso (G3P8F2).

E agora quem tem emprego, imagina [...] vou consertar uma máquina e ganhar dinheiro ou estudar? (G3P9F5).

Claro que vai começar isso também, a pessoa vai pensar pô eu trabalho ou estudo? O que é mais obvio? Trabalhar e ganhar dinheiro, do que estudar e ter uma formação (G3P9F6).

Ontem a gente debateu sobre o ensino a distância, falamos sobre tipo que nós somos obrigados a vir a escola, tanto pela lei quanto por nossos pais, só que tipo quando a gente não tiver que ser obrigada a vir, então ninguém vai querer estudar, ninguém tipo que vai sentar em casa e vai estudar, então vai ser pior (G3P8F1).

Eles ainda apontaram que a adoção da EAD pode afetar o desenvolvimento de aptidões de caráter social que, segundo eles, encontram-se estreitamente ligadas à convivência com pessoas que possuem pensamentos divergentes.

É importante a gente ter aula presencial, porque tipo, tu tens opiniões de pessoas diferentes, isso ajuda a formar a tua, porque tu tomas um pouco de cada e tu formas tua opinião.

Fala complementar: Se dá um debate totalmente diferente que tu darias sozinho (G3P8F7).

Tem outra coisa, não viver em sociedade, uma pessoa por si só. O que for certo para ele, e que nem tipo para mim algumas coisas são certas, para aprender alguém fala alguma coisa e é tipo ‘poderia ter pensado nisso’, e agora o que for certo para ele vai ser certo para ‘ele’, ele não vai estar vivendo em sociedade (G3P8F4).

Esta última questão coloca em debate a premisa de que a escola não representa somente o espaço onde o aluno aprende os conteúdos explícitos no currículo prescrito, ou seja, a escola não ensina somente o que Althusser (1983) denomina cultura científica ou lilterária; além desses elementos, ela representa um instrumento de integração do indivíduo na sociedade. Segundo o autor supracitado, “a escola ensina também as ‘regras’ dos bons costumes, isto é, o comportamento que todo o agente da divisão do trabalho deve observar, segundo o lugar que está destinado a ocupar” (Althusser, 1983, p.21). Esses argumentos se tornam mais claros nas seguintes falas dos estudantes:

Por mais que uma pessoa ou as pessoas pôr

Fala paralela: opinar diferente.

Não, não opinar diferente de alguém, senão tipo: ter alguém ali, claro tu vai ter o teu pai ou mãe, sei lá, mas não vai ser no nível de uma escola que tu tem um horário para chegar, tu não pode sair da sala de aula, é um negócio que tu tem que focar.

Fala complementar: Em resumo, não vai ter disciplina.

E querendo ou não, isso já vai tipo influir na tua vida profissional. Porque tem horário, em algumas escolas tem que usar uniforme, isso vai ajudar logo na frente (G3P8F5).

Sim, a gente desenvolve isso sozinho, na verdade, porque por mais que durante alguns anos os nossos pais nos insistam nisso, chega lá, nos doze ou treze anos, que a gente já faz automáticos, a gente já sabe qual horário tem que chegar, a roupa que tem que usar, sabe que tem que trazer no dia, que matérias, e sem tudo isso a gente vai ficar perdido (G3P8F6).

A pressão que a escola exerce nos estudantes para eles se integrarem ao sistema educativo e social é vista pelos estudantes como uma insatisfação necessária, pois são essas atitudes que ajudaram a alcançar o êxito na vida adulta. Isso remete à noção funcionalista do currículo oculto. Para os teóricos funcionalistas:

Eram as características estruturais da sala de aula e de situação de ensino, mais do que o seu conteúdo explicito, as que ensinavam certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo [...]. Nessa visão, os comportamentos assim ensinados eram funcionalmente necessários para o bom funcionamento da sociedade e, portanto, desejáveis (Silva, 2005, p.78).

Opostamente ao discurso funcionalista, esta pesquisa se identifica com as análises críticas do currículo oculto, nas quais esta comum associação da tecnicidade do ensino em termos de imposição de horários, uso de uniforme, obrigação de permanência na sala de aula e obediência – citados pelos estudantes –, são comportamentos não desejáveis, já que distorcem os genuínos princípios de uma educação emancipadora, impondo uma adaptação escolar à lógica das estruturas da sociedade capitalista.

Continuando com a discussão da Educação a Distância, foram identificados alguns estudantes que estão de acordo com essa proposta devido à dificuldade que alguns jovens têm para frequentar a escola, conforme expresso nas seguintes falas:

Concordo com o ensino a distância, pois muitas vezes temos problemas de utilizar meios de transporte ou até mesmo a pé (EII07).

Eu acho que isso daí pode ser útil para aquelas pessoas que são de fora, que é muito complicado vir para escola, e tal; mas para nós que temos acesso fácil não tem porque ser assim.

Falas complementares: Eu concordo com tudo o que ela falou.

Tem razão (G2P13F2).

Mais uma vez, percebe-se que os temas que envolvem a Reforma do Ensino Médio não são consensuais. No que se refere à oferta por meio da modalidade a distância, para alguns dos estudantes essa seria uma alternativa interessante. Cabe dizer que esse posicionamento não é da maioria dos estudantes, sendo ainda importante mencionar que a infraestrutura das Escolas Públicas Estaduais não dá conta dessa oferta. Não por acaso, a própria lei da reforma aponta para parcerias com instituições com notório reconhecimento para a referida oferta.

Considerações Finais

No estudo ora apresentado, procurou-se compreender as percepções de um grupo de estudantes secundaristas da Escola Estadual Dr. Augusto Duprat da cidade do Rio Grande (RS), a respeito das mudanças que a Lei n°13.415/2017 propõe para o Ensino Médio. Ainda que esta seção se intitule “Considerações Finais”, não se tem a pretensão de colocar um ponto final, no sentido acabado ou encerrado, pois, seja pela empiria do estudo, seja pela complexidade de estudar fenômenos sociais – ainda mais os que se encontram em desenvolvimento, como no presente caso –, existe um conjunto de arestas analíticas que podem ter escapado da compreensão do presente texto.

Espera-se que este trabalho possa contribuir nas discussões sobre a reforma do Ensino Médio, reforçando a importância de dar voz aos jovens estudantes que são a essência e finalidade das mudanças. Além disso, espera-se que as discussões realizadas possam subsidiar estudos prospectivos acerca da compreensão e opinião de estudantes do Ensino Médio no âmbito das Políticas Públicas Educacionais. Os depoimentos coletados nesta pesquisa deram voz aos estudantes secundaristas, sendo esta talvez uma grande contribuição deste estudo, cuja empiria se centrou em explorar e problematizar o modo como eles percebem a reforma em andamento.

É importante destacar que a maioria dos jovens que participaram da pesquisa expressou não estar de acordo com as determinações propostas para o “Novo Ensino Médio” no que se refere às mudanças curriculares, que foram o foco da discussão neste artigo. No entanto, os dados apresentados também evidenciaram que não há um consenso entre os alunos. Ainda que alguns pontos sejam percebidos por todos, um pequeno grupo dos estudantes tem concordância com as mudanças propostas.

Pode-se considerar, a partir das manifestações dos estudantes, que atualmente todos consideram que há fragilidades na oferta do Ensino Médio. Nesse contexto, a maioria dos alunos considera que a obrigatoriedade de apenas dois componentes curriculares nos três anos do Ensino Médio e a adoção de itinerários formativos tendem a precarizar ainda mais a oferta dessa etapa da Educação Básica e prejudicar a formação dos jovens. Por outro lado, um grupo menor de estudantes considera positiva a adoção da Língua Portuguesa e da Matemática como únicas disciplinas obrigatórias, pois acreditam que, diante das fragilidades atuais, pelo menos focando nessas disciplinas, é possível, na percepção deles, que os alunos atinjam melhor desempenho nas referidas matérias. Como se pode notar, entre os estudantes há modos de pensar e compreender as mudanças no Ensino Médio que não são consensuais.

Considera-se que a pesquisa apresentou e problematizou as opiniões dos jovens de uma Escola Pública urbana que, por suas condições de estrutura física e pedagógica, reflete o cenário de tantas outras ao longo do País. A maioria dos estudantes que participaram do estudo expressou preocupação e oposição frente às determinações da Lei n°13.415 de 2017. Essa preocupação estendeu-se às expectativas para seus futuros filhos e para a educação em sentido geral.

Aponta-se também que as mudanças em curso terão repercussões diretas na formação dos estudantes secundaristas, assim como na formação e no trabalho docente. Espera-se que as discussões geradas a partir deste estudo sirvam para compreender melhor a opinião de parte da juventude secundarista sobre essa política e que possam servir como mecanismo de resistência contra essas medidas.

Agradecimentos

Agradecimentos Ao Programa de Alianças para a Educação e a Capacitação, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, à Organização de Estados Americanos e ao Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras pelo apoio financeiro.

1Artigo elaborado a partir da dissertação de L.G.T. REYES, intitulada “A Reforma do Ensino Médio: O que pensam os estudantes Secundaristas Da Escola Estadual Augusto Duprat da Cidade do Rio Grande, RS”. Universidade Federal do Rio Grande, 2019.

4Refere-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1971 (Lei n°5.692/71).

Apoio: Programa de Alianças para a Educação e a Capacitação (Edital PAEC OEA-GCUB 2016).

Como citar este artigo/How to cite this articleReyes, L.G.T.; Gonçalves, S.R.V. Mudanças curriculares no Ensino Médio a partir da Lei n°13.415/2017: percepção de estudantes secundaristas. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204577, 2020. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4577

Referências

Adrião, T. Dimensões e formas da privatização da educação no Brasil: caracterização a partir de mapeamento de produções nacionais e internacionais. Currículo sem Fronteiras, v.18, n.1, p.8-28, 2018. [ Links ]

Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1983. p.21. [ Links ]

Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. p.47. [ Links ]

Brasil. Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996. [ Links ]

Brasil. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica. Brasília: MEC, 2013a. p.171. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file. Acesso em: 15 fev. 2019. [ Links ]

Brasil. Projeto de Lei n°6.840/2013. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1200428. Acesso em: 15 fev. 2019. [ Links ]

Brasil. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera a Leis n°9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm. Acesso em: 20 jan. 2019. [ Links ]

Brasil. Resolução CNE-CEB n°3, de 21 de novembro de 2018. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://novoensinomedio.mec.gov.br/resources/downloads/pdf/dcnem.pdf. Acesso em: 20 jan. 2019. [ Links ]

Carneiro, M. LDB: leitura crítico-compreensiva: artigo a artigo. Petrópolis: Vozes, 1998. p.31. [ Links ]

Gonçalves, S. Interesses mercadológicos e o “novo” Ensino Médio. Revista Retratos da Escola, v.11, n.20, p.131-145, 2017. Disponível em: http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/753. Acesso em: 10 fev. 2019. [ Links ]

Krawczyk, N.; Ferretti, C.J. Flexibilizar para quê? Meias verdades da “reforma”. Revista Retratos da Escola, v.11, n.20, p.33-44, 2017. Disponível em: http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/757. Acesso em: 10 fev. 2019. [ Links ]

Lino, L. As ameaças da reforma desqualificação e exclusão. Revista Retratos da Escola, v.11, n.20, p.75-90. 2017. Disponível em: http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/756. Acesso em: 7 fev. 2019. [ Links ]

Peroni, V. Múltiplas formas de materialização do privado na Educação Básica pública no Brasil: sujeitos e conteúdo da proposta. Currículo sem Fronteiras, v.18, n.1, p.212-238, 2018. [ Links ]

Silva, M. Currículo e competências: a formação administrada. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

Silva, M. Juventudes e Ensino Médio: possibilidades diante das novas DCN. In: Azevedo, J.; Reis, J. (org.). Ensino Médio e os desafios da experiência: movimentos da prática. São Paulo: Moderna, 2014. [ Links ]

Silva, T.T. Documentos de identidade: uma introdução as teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autentica, 2005. [ Links ]

Triviños, A. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. p.132. [ Links ]

Recebido: 30 de Abril de 2019; Revisado: 18 de Julho de 2019; Aceito: 31 de Julho de 2019

Correspondência para/Correspondence to: S.R.V. GONÇALVES. E-mail: <suzanevieira@gmail.com>.

Colaboradores L.G.T. REYES contribuiu na escrita e redação do artigo e da dissertação, na aplicação de questionários, tabulação e análises de dados produzidos. S.R.V. GONÇALVES colaborou com a concepção do projeto, escrita do artigo e orientação do trabalho dissertativo; revisão crítica do conteúdo intelectual e metodológico da investigação e do presente artigo.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.