SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Mudanças curriculares no Ensino Médio a partir da Lei n°13.415/2017: percepção de estudantes secundaristasOs Cursos Técnicos Integrados do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020  Epub 11-Dic-2019

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4581 

Seção Temática: O Ensino Médio no Brasil: quais possíveis rumos?

Trajetórias escolares no Ensino Médio Integrado: uma análise da atribuição de sentidos de jovens estudantes por meio da história oral temática1

School trajectories in integrated High School Education: An analysis of the attribution of meanings of young students through thematic oral history

Tânia Regina Zimmermann2 
http://orcid.org/0000-0001-8107-3102

Anselmo Silva Socorro2 
http://orcid.org/0000-0001-6909-1949

2Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação. Av. João Rodrigues de Melo, Jardim Santa Mônica, 79500-000, Paranaíba, MS, Brasil.


Resumo

Este artigo se insere na problemática dos desafios atuais do Ensino Médio brasileiro no que concerne à relação distanciada de muitos jovens frente à escola, marcada por tensão e altos índices de desistência dos estudantes. Nesta pesquisa entrevistamos 11 estudantes do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul - Coxim, dos quais 4 foram selecionados para este artigo. A instituição foi selecionada por apresentar boa infraestrutura, docentes com alto nível de escolaridade e, em contraponto, altos índices de desistência escolar. O objetivo do estudo foi conhecer as trajetórias escolares dos jovens estudantes, bem como analisar os sentidos atribuídos à experiência escolar no Ensino Médio Integrado da instituição. As narrativas foram analisadas de forma descritiva, com base na metodologia da História Oral Temática, através da qual se estabeleceu um diálogo entre as falas dos estudantes e os interlocutores teóricos. Entre os estudantes desistentes, pôde-se observar a dificuldade de conciliação entre escola e trabalho, o desejo da independência financeira, a timidez e o excesso de reprovações. Também se observou trajetórias de êxito de estudantes ligados a iniciativas de ensino diferenciadas, embora com o reconhecimento do cansaço gerado pelas atividades escolares. Os resultados sinalizam a necessidade de ouvir e reconhecer as particularidades dos estudantes do Ensino Médio.

Palavras-chave:  Desistência escolar; Ensino Médio Integrado; Jovens; Trajetórias escolares

Abstract

This article stems from the current challenges of Brazilian high school regarding the distant relationship of many young people with school, marked by tension and high students dropout rates. In this investigation we interviewed 11 students from Instituto Federal do Mato Grosso do Sul - Coxim Integrated High School, of whom, we selected 4 for this article. The institution was selected because of its good infrastructure, teachers with a high level of education and, in counterpoint, high dropout rates. The objective of this study was to understand the young students’ school trajectories, as well as to analyze the meanings attributed to the school experience in the integrated High School of the institution. The narratives were reviewed in a descriptive way, based on the methodology of thematic oral history, through which we established a dialogue between the students' narratives and the theoretical interlocutors. Among the dropping out students, we could observe the difficulty in balancing school and work; the desire for financial independence; the shyness and the excess of failures. We also observed successful trajectories of students in this institution, in connection with differentiated teaching initiatives, although recognizing the fatigue generated by school activities. The results indicate the need to listen and recognize the peculiarities of High School students.

Keywords:  School dropout; Integrated High School; Youngsters; School trajectories

Introdução

O Ensino Médio brasileiro passou por reformulações. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 transformou o Ensino Médio em etapa de ensino obrigatório, compreendido como última fase da Educação Básica. O Brasil assumiu dessa forma, ainda que tardiamente, o desafio de universalização da Educação Secundária.

Embora em vias de universalização, o Ensino Médio brasileiro sofre de problemas crônicos como a baixa qualidade e a falta de identidade (Corti, 2009; Krawscyz, 2014). A baixa qualidade é resultante de inúmeros fatores, sendo notória a disparidade entre o que se espera da escola de Ensino Médio e o que ela tem ofertado. A falta de identidade, por sua vez, se revela na ausência de especificidade e função clara dessa etapa de ensino, muitas vezes definida apenas como intermediária entre o Ensino Fundamental e o Superior.

Entre as questões enfrentadas pelo Ensino Médio hoje, podemos destacar: o declínio do número de matrículas entre os maiores de 18 anos; os altos índices de desistência; o declínio do valor social dos diplomas (Krawcyz, 2014); as dificuldades de expansão relacionadas às desigualdades regionais; a tensão, e até mesmo a violência, existente na relação entre os jovens e a escola (Dayrell, 2009).

Este artigo é proveniente de uma pesquisa que se insere na problemática da integração dos jovens à escola. Esses sujeitos têm desistido da escola ou, ainda estando nela, não têm estabelecido relações de identificação e pertencimento. Nessa frágil relação, o aluno não está plenamente inserido na escola, alterna momentos de interesse e indiferença, conforme demonstra o seguinte excerto:

[...] encurralados em um ensino no qual veem pouco sentido, uma família que os quer na escola e um cenário competitivo e sobrelotado, muitos jovens deixam-se andar pelos pátios da escola, faltando a algumas aulas, estando distraídos, esforçando-se pouco, num misto de apatia e indiferença, revelando dificuldades em estruturar projetos de vida (Abrantes, 2003, p.100).

Parece ir na mesma direção a reflexão de Sposito e Galvão (2004, p.361) ao apontarem que os estudantes de Ensino Médio desenvolvem uma relação ambígua com a escola e com os saberes escolares. A escola de Ensino Médio é importante para o futuro, entretanto não tem sentido no presente. Consequentemente, alunos e alunas acabam por desenvolver “uma relação predominantemente instrumental com o conhecimento”, ou seja, os estudantes acabam por fazer aquilo que é estritamente necessário para se manterem na escola.

Essa relação instrumental com o conhecimento, ou, por assim dizer, essa adesão distanciada pode ser vista pela escola como desinteresse. Nessa perspectiva, uma grande dificuldade enfrentada pelo jovem no Ensino Médio é a visão de que seria desinteressado. Contudo, Brenner e Carrano (2014) advogam que essa visão é fruto do desconhecimento acerca do jovem em sentido geral, inclusive fora da escola. As concepções tradicionais da juventude têm uma visão pessimista sobre o jovem (Groppo, 2004), e a visão deste como desinteressado, principalmente dentro da escola de Ensino Médio, é exemplo disso.

Segundo Charlot (2014), imputar o jovem do Ensino Médio como desinteressado, nada mais é do que criar uma falsa explicação, que não gera novos questionamentos. Enquanto razão para as dificuldades de aprendizagem, a afirmação não esclarece quase nada sobre os possíveis determinantes do problema. É preciso considerar que o desinteresse do jovem pode ser proveniente da falta de diálogo entre os conteúdos escolares e as experiências juvenis, algo que já vinha sendo denunciado nos escritos de Freire (1987).

Configura-se também como obstáculo ao jovem do Ensino Médio, sua invisibilidade enquanto sujeito, em comparação à figura de estudante. Penatieri, Falcão e Martinez (2012) verificaram, através das afirmações dos próprios jovens, que a escola não os enxerga como tal, mas como estudantes apenas. Normalmente, a escola considera como inimigas as práticas relacionadas entre o ser estudante e as atividades tipicamente juvenis. Na prática se pode observar, por exemplo, os cerceamentos extremos aos namoros entre jovens dentro da escola.

A visão da escola de Ensino Médio sobre os jovens/estudantes4, apenas como tal, em negação aos aspectos juvenis em si, tem produzido dificuldades, principalmente no campo das sociabilidades. A escola é um espaço para fazer amigos, constituir grupos, enfim, um espaço de socialização muito importante, até porque é no espaço escolar que normalmente a juventude passa boa parte do seu tempo (Pereira; Reis, 2014).

Em concordância com essa visão, Schlickmann (2012, p.3) afirma que a escola brasileira pensa os jovens apenas em relação aos processos típicos da escolarização, e adverte que “as culturas juvenis constituem-se como campo fértil para pensar e repensar as práticas escolares nas instituições”. A advertência reafirma a necessidade desse sujeito ser visto não somente como aluno, mas também em sua totalidade (Souza; Reis; Santos, 2015).

Não bastassem as dificuldades dos jovens em nível estrutural e institucional, no campo das sociabilidades, Reis (2012) aponta a dificuldade desses sujeitos quanto à necessidade de serem aceitos no grupo. Em sua pesquisa, a autora, após ouvir os jovens, verificou que os estudantes gastam muita energia tentando se enquadrar nos grupos sociais intraescolares.

Além disso, Reis (2012) também aponta, por parte dos estudantes, o excesso de responsabilização sobre si próprios, em termos de sucesso ou fracasso nos estudos. Adianta-se também que, no presente estudo, um dos principais sentimentos despertados ao investigar os estudantes do Ensino Médio integrado do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul/Campus Coxim (IFMS/Coxim) foi uma grande autoculpabilização, principalmente quando o assunto eram situações de fracasso.

Quanto às dificuldades dos jovens no Ensino Médio dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (IF), ressaltam-se os apontamentos de Penatieri e Rodrigues (2012) quando da realização de uma pesquisa em que entrevistaram, em contraposição, estudantes do Ensino Médio de uma escola estadual carioca e também alunos do Instituto Federal Fluminense (IFF). Averiguaram que, diferentemente da escola estadual, os entrevistados dos IFF, quase nunca se referiram a aspectos negativos da instituição, porém suas falas apontaram para dificuldades existentes. O trabalho das pesquisadoras sugere que os estudantes do IF viam as dificuldades de uma forma mais normatizada do que os alunos do Ensino Médio da escola estadual. Com efeito, os jovens do IF:

Ao se voltarem aos momentos marcantes negativos, um número significativo dos entrevistados disse não se lembrar ou não ter vivido nenhum momento negativo na escola que merecesse registro [...] todavia, em muitos momentos, suas falas voltaram-se às suas lembranças, citando suas notas baixas, reprovações, as dificuldades na realização de trabalhos, as dependências e algumas brigas com professores e com colegas (Penatieri; Rodrigues, 2012, p.9).

Nesse mesmo trabalho, as pesquisadoras ainda observaram que nas narrativas dos estudantes há um processo de “adultização”, de forma que as falas dos jovens quase sempre supervalorizavam o amadurecimento.

Se ressalta que as dificuldades dos jovens no Ensino Médio são agravadas porque eles costumeiramente não são ouvidos (Penatieri; Falcão; Martinez, 2012). Teixeira e Flores (2010, p.115) pontuam que as dificuldades dos jovens no Ensino Médio se tornam maiores porque primeiro existe uma “sístole de literatura sobre a voz dos alunos, se tivermos em conta os volumes publicados sobre professores”. Além do espaço da escola e nas pesquisas, a opinião dos discentes jovens continua a ser ignorada, inclusive nas reformas do sistema educativo.

Da mesma forma, Schlickmann (2012) aponta que uma das dificuldades dos jovens no Ensino Médio é a ínfima participação juvenil nos processos de gestão da escola. A razão para essa dificuldade é a ausência, em muitos casos, de gestões institucionais mais democráticas. O pesquisador ressalta que a participação desse sujeito pode produzir uma experiência escolar mais significativa.

Essa falta de participação do jovem remete ao tema do protagonismo juvenil. Segundo Azevedo, Silva e Medeiros (2015, p.83). “O termo ‘protagonismo’ refere-se à nossa capacidade de participar e influir no curso dos acontecimentos, exercendo um papel decisivo e transformador no cenário da vida social. Exercer o protagonismo significa não ser indiferente em relação aos problemas de nosso tempo”.

O protagonismo pode ser visto, portanto, como uma forma de visualização do potencial do jovem, ou ainda como “um tipo de ação de intervenção no contexto social para responder a problemas reais, onde o jovem é ator principal” (Castro, 2008, p.1). A primeira esfera do protagonismo juvenil se traduz numa forma de visualização dos jovens que os reafirma não como problemas, mas como beneficiários e, principalmente, atores das mudanças em seus espaços coletivos, sejam institucionais ou comunitários.

Nesse processo, conceitos como sentido e memória tornam-se explicativos em relação às experiências escolares juvenis. Segundo Gonzalez Rey (2003), o sentido dado a um determinado evento é um processo simbólico. Seria correto, portanto, falar em produção de sentidos. Essa produção ocorre carregada emocionalmente, pois o intelecto ou aquilo que se produz racionalmente não é separado dos sentimentos e emoções. Nesse processo de construção conjunta, ocorre o fenômeno da subjetividade, entendida como participante paralela atuante do raciocínio e do intelecto.

Nas palavras de Gonzalez Rey (2003, p.251):

A dimensão do sentido constitui um aspecto essencial na definição do subjetivo, em que o sentido não pode ser visto como emoção ou significado abstrato, mas como a expressão de uma nova síntese, que só pode ser compreendida dentro do movimento permanente dos significados e emoções dentro das quais se define o sentido subjetivo.

Quanto à memória, se compreende, conforme Delgado (2007), que assim como a produção de sentidos e a subjetividade, não pode ser vista como fator unicamente interno. Ela também se materializa como ação.

Com relação à metodologia utilizada na pesquisa, se estabeleceu a História Oral como uma possibilidade de reconhecimento das trajetórias escolares juvenis e da análise dos sentidos das experiências escolares dos jovens estudantes. A História Oral se utiliza da gravação de narrativas, que posteriormente são transformadas em documentos escritos e, calcadas no rigor das etapas de transposição para o escrito, são tratadas como fonte histórica. Dentre os gêneros da História Oral, se optou pela História Oral Temática, pois ela pode partir de um tema específico do qual se quer saber, bem como admite o uso de questionários, além da possibilidade de discussão, entre entrevistado e entrevistador, sobre o tema em questão (Meihy; Holanda, 2017).

Esta pesquisa selecionou jovens do IFMS/Coxim, uma instituição que oferta Ensino Médio Integrado e vive o paradoxo ao apresentar boa infraestrutura, docentes com alto nível de escolaridade, e em contraponto, altos índices de desistência escolar. Esclarecendo, segundo o Plano de Desenvolvimento do Campus (PDC) 2014-2018, 72% dos docentes da instituição tinham mestrado ou doutorado. Dos 373 jovens matriculados, entre os anos de 2016 e 2018, 135 desistiram, perfazendo aproximadamente 36% dos estudantes.

Dessa forma, se define como objetivo geral deste estudo conhecer as trajetórias escolares dos jovens estudantes, bem como analisar os sentidos atribuídos à experiência escolar no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim. A seguir, demonstramos detalhadamente os procedimentos metodológicos realizados para atingir tal objetivo.

Procedimentos Metodológicos

Participantes

Entre os 373 jovens matriculados no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim durante os anos de 2016 e 2018, participaram dessa pesquisa 11 estudantes, dos quais 5 são desistentes e seis frequentam o curso. Esses estudantes foram escolhidos com base em levantamentos da equipe de assessoria pedagógica, conversas com professores e no próprio desenvolver das entrevistas, assim como preconiza a História Oral Temática.

Selecionamos jovens com histórias marcadamente diversas, através dos quais fosse possível visualizar diferentes experiências escolares e que, portanto, viessem a responder ao objetivo do estudo. Desses 11 estudantes, apresentamos nesse artigo as narrativas de 4, dos quais 2 são desistentes e 2 ainda frequentam o curso. As narrativas foram escolhidas por representarem diferentes trajetórias no Ensino Médio Integrado, bem como por apresentarem distintas atribuições de sentido ao Ensino Médio e à instituição.

Instrumento e Procedimentos

Foram realizadas entrevistas individuais com base na metodologia da História Oral Temática, por meio de um roteiro de entrevista construído sobre o assunto em questão. Com base em Meihy e Holanda (2017), as entrevistas foram gravadas com aceitação do jovem ou responsável e depois transcritas. Feita a transcrição, realizamos a textualização, procedimento que possibilitou a organização das ideias dos estudantes entrevistados, sem deixar que o sentido do que eles disseram fosse afetado. Logo após, transcriamos as entrevistas, que é um ato de recriação que visa comunicar melhor o sentido e a intenção do que foi registrado, sempre levando em consideração os elementos extratextuais, como o contexto, as vivências e os próprios registros pessoais do pesquisador. Por fim, optou-se por destacar trechos do texto como forma de exposição das narrativas, tendo em vista tornar a análise mais fluida.

Depois das etapas de tratamento das entrevistas, as narrativas foram analisadas de forma descritiva, com base na metodologia da história oral temática, por meio da qual foi estabelecido um diálogo entre as falas dos estudantes e dos interlocutores teóricos.

Para o desenvolvimento do estudo, houve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (Protocolo n°0750717.2.0000.8030) e no decorrer do trabalho, foram respeitados todos os procedimentos éticos conforme prevê a Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012).

Resultados e Discussão

Nessa seção é apresentada a análise descritiva das narrativas de 4 estudantes do Ensino Médio integrado do IFMS/Coxim, com base na metodologia da História Oral Temática, por meio da qual foi estabelecido um diálogo entre as falas dos estudantes e dos interlocutores teóricos.

Estudante Desistente Anderson5 5

Não trabalha não”.

Diário de Campo

Anderson foi selecionado para a pesquisa em razão da sua situação de estudante/trabalhador. Por ser um estudante desistente, que ousou cumprir essa dupla jornada, os pesquisadores procuraram conhecer um pouco mais dele, de sua trajetória na instituição e dos sentidos por ele atribuídos à temática da pesquisa.

A Entrevista

Anderson chegou um pouco atrasado. Ao entrar na sala comentou sobre as diferenças entre o IFMS e a Escola Estadual em que está estudando atualmente. Uma vez que ele propôs essa discussão, foi dela que iniciamos a conversa.

Ele retratou suas memórias e opiniões, quase sempre ligadas a uma visão “individualista”, isto é, através de uma noção de que o próprio sujeito é sempre responsável por sua trajetória, sucessos e fracassos.

Alguns temas nortearam a narrativa de Anderson, dos quais podemos destacar: a necessidade de independência financeira, apontada inclusive como o grande objetivo do processo escolar; a decisão de exercer um trabalho remunerado e as consequentes dificuldades em manter-se no instituto; e, como resultado dessa dificuldade de conciliação, o acúmulo de reprovações (dependências – DP), as quais vieram, juntamente com outras questões, a provocar a desistência.

Em determinado momento da entrevista, quando perguntado sobre o que ele diria a um amigo seu que quisesse estudar no IF, ele apontou: “Não trabalha não”, seguido de risos. Essa passagem indica, ainda que de forma não aparente, os conflitos de interesse pelos quais passou o estudante nessa fase, conforme excerto:

Se eu fosse informar um amigo que viria estudar no IFMS eu diria: não trabalha não (risos), mas o Instituto Federal é uma instituição muito boa, ela abre muitas portas para tudo, para esporte, para o intelecto e para as coisas que está voltada para o curso; você chega no professor e fala ‘vamos fazer isso’, e é muito bacana.

Esse “tom vital” da entrevista de Anderson foi adotado porque ele concebe que sua passagem pelo Ensino Médio integrado do IFMS teve uma reviravolta quando começou a trabalhar. As dificuldades para conciliar o trabalho e estudo não foram fáceis, segundo ele.

Em relação ao tema trabalho, Anderson tem como um dos principais norteadores de sua fala a crença de que o objetivo do processo educativo se constituiria na independência financeira:

O objetivo de todo mundo que estuda não é apenas ter conhecimento, mas sim sua independência financeira. A partir do momento que eu conseguir isso, eu vou fazer o melhor, para o melhor.

O ensino médio é importante porque ele te proporciona no mercado de trabalho não só um conhecimento próprio, mas principalmente você poder desenvolver algo que você queira e que você goste. Por exemplo: eu cheguei no meu professor e perguntei ‘depois que eu terminar o ensino médio o que eu posso fazer?’ Ele me contou uma história muito bacana: ele disse a gente estuda, estuda, estuda para alcançar a independência financeira, mas tem pessoas leigas que são ótimas financeiramente. O estudo proporciona conhecimento em si, mas ele bate principalmente na tecla de independência financeira, estudar para ser alguém na vida, como se você já não fosse. E é importante? É. Abre porta? Abre. Eu particularmente quero terminar o ensino médio o mais rápido possível. O ensino é importante para ter uma base na vida.

É uma questão de princípio, quando era pequeno minha mãe perguntava para mim: o que você que ser quando crescer e eu dizia: rico (risos), como se rico fosse uma profissão, entendeu? Aí ela dizia: mas como você vai ser rico? Assim desde pequeno eu quero ter minha própria independência, mas meus planos até para o ano que vem é morar sozinho, não bem sozinho, vai ser eu e meu irmão.

Anderson também se refere ao projeto de morar sozinho – no caso, com o irmão. Desse seu movimento depreende-se que a independência financeira funciona para ele como uma garantidora da constituição de um projeto de vida própria.

Em sua narrativa, Anderson descreve o que é a juventude:

[...] uma coisa muito boa, mas você precisa ter cuidado com aquilo que você ouve, com aquilo que você vê, e com aquilo que você absorve. Ser jovem é uma etapa na qual você tem um amadurecimento pessoal, aquilo que vai mostrar como você vai ser adulto, se você vai ser um adulto responsável, respeitoso, se você vai ter diálogo, por exemplo, a gente está debatendo e você acaba discutindo sobre a situação.

Esse retrato da juventude traçado por Anderson remete à concepção de um vir a ser, a uma fase de amadurecimento. Assim, a juventude não se constitui como fase legitima de ser vivida, mas como fase de preparação (Groppo, 2004).

Além das questões atinentes ao trabalho, a trajetória de Anderson no Ensino Médio Integrado da instituição também esteve marcada pelas “DPs”. As “DPs” são a designação corriqueira que os estudantes e profissionais da escola dão às dependências, ou seja, às reprovações em uma ou mais disciplinas. Ao falar sobre os motivos da desistência dos estudos no IFMS, o estudante as aponta como primordiais:

Sobre as “DPs” eu te digo por exemplo: o que você pensava quando tinha 16 anos de idade? Tem toda essa tecnologia envolvendo o estudante, tem o “relaxismo”. Agora se você entra numa instituição que é um pouco mais rígida, é um pouco mais casca grossa, digamos. Por exemplo: se você entra aqui no instituto e não existe dependência e você passa ou passa. Nesse caso você acha que teria muita gente pegando DP?

A DP facilita porque você pode refazer aquilo de novo, mas é como o adolescente preguiçoso que deixa seu quarto para arrumar mais tarde. Depois que você vê que aquela situação está ficando complicada, você fala ‘vou estudar melhor, vou ter uma estratégia de estudo para poder mudar aquela dependência’.

Comigo por exemplo no começo foi assim. No terceiro semestre eu olhei assim e disse: cara, o que eu estou fazendo? Comecei a pagar, comecei a eliminar, aí eu comecei a trabalhar e foi caindo mais, mais e mais. Tem a questão daquela matéria que você acha fácil: você fala ‘não vou estudar não’ e você acaba reprovando. Você reprova, tem que pagar aquilo de novo e quando você vê foi tarde demais.

Ao analisar a fala de Anderson sobre as reprovações, se pode observar claramente uma autoculpabilização sobre os fracassos no decorrer da sua experiência escolar no Ensino Médio integrado. Segundo ele:

O que falta ao jovem é que ele pode tudo, basta ele querer, entendeu? Só que aí que está o problema: muito jovem não quer muito. Ele não quer porque eu acho que é uma coisa que você escolhe e você está ali, você está vendo e vivendo a situação, só que você não move um dedo para ajudar.

Essa autoculpabilização a que se refere Anderson foi observada por Reis (2012), cuja pesquisa também aponta o excesso de responsabilização dos jovens sobre si próprios quanto ao sucesso ou fracasso nos estudos.

A narrativa de Anderson suscita assuntos importantes a serem tratados na temática da integração dos jovens à escola de Ensino Médio, tais como: as dificuldades na situação jovem/estudante/trabalhador; o excesso de reprovações e os sentimentos advindos delas; o desejo da independência financeira; e a autoculpabilização.

Estudante Desistente Ronaldo

“Eu sou muito tímido”.

Diário de Campo

Alguns aspectos levaram a entrevistar o jovem Ronaldo. Ele ficou cerca de 3 anos e meio na instituição, tempo que seria suficiente para concluir o curso, e depois disso desistiu. Sabiamos que Ronaldo tinha muitas histórias para contar, mas o problema era contar: Ronaldo era reconhecidamente um jovem tímido e introvertido. Entrevistá-lo se revelava um desafio. Normalmente tende-se a ouvir os que falam bastante e são comunicativos, porém Ronaldo fugia a esse perfil.

Ronaldo chegou à entrevista, calmo como sempre, respondeu a todas as indagações, porém com respostas curtas. O resultado da entrevista poderia ter levado a descartar sua narrativa, o que se cogitou inicialmente. Entretanto, assim não foi feito, primeiro porque a característica tímida de Ronaldo pôde ser observada em muitos outros estudantes aos quais se teve acesso durante a experiência na instituição. Excluir a narrativa de Ronaldo seria também excluir uma parte dessa realidade. Outro motivo foi que, através da reflexão sobre as formas de análise da História Oral Temática, vislumbrou-se a possibilidade de não apenas fazer uma análise discursiva da narrativa de Ronaldo. Embora tímido, sua história contava muito.

A Entrevista

O primeiro aspecto a destacar na entrevista de Ronaldo é sua característica de timidez, visível no seguinte excerto:

Eles me ajudavam, mas eu sou muito tímido, tinha vergonha de perguntar para os colegas, quando não entendia, tinha vergonha de chegar ao professor para pedir ajuda.

Com o tempo estou melhorando minha timidez, mas no começo eu era muito tímido, quando eu ia apresentar trabalho eu sempre tinha dificuldade de falar.

Charlot (2014) afirma que o aluno estabelece uma relação com o saber, dentro da qual as razões pelas quais ele estuda estão diretamente relacionadas com o sentido que atribui a isso. Nessa perspectiva, durante sua trajetória escolar na instituição, a relação de Ronaldo com o saber se constituiu mediada por sua timidez. Essa situação faz indagar sobre os canais de comunicação disponibilizados aos tímidos para poderem perguntar e se integrar mais à escola.

Ronaldo parece conclamar esses canais de comunicação, ao se referir a como seria uma escola ideal para os jovens, e reivindicar que os professores poderiam estabelecer relações mais próximas, o que facilitaria o processo de comunicação com os estudantes:

Como eu vou dizer, é complicado, os professores poderiam ser mais amigáveis com os alunos, uns eram mais fechados, outros eram mais focados na matéria.

A situação do jovem Ronaldo remete a Schlickmann (2012), quando este adverte que a participação do jovem pode produzir uma experiência escolar mais significativa. Desse modo, se pode verificar que a timidez de Ronaldo se demonstra como um importante impeditivo de uma experiência escolar satisfatória.

Embora tímido, chama a atenção na história de Ronaldo o fato de tocar instrumentos musicais e fazer apresentações na igreja. Além de se apresentar, o jovem auxilia a mãe, funcionária da igreja, na parte de limpeza e conservação da instituição. Ronaldo inclusive diz que uma das razões para a desistência foi a impossibilidade de pagar as “DPs” e auxiliar a mãe nas tarefas da igreja:

Não estava dando certo no IF, eu não ia nem para frente e nem para trás, então pensei: tenho que tomar uma atitude, vou sair do IF, para terminar o Ensino Médio mais rápido possível, porque trabalho na igreja, e não tinha como auxiliar minha mãe e tentar pagar as DPs ao mesmo tempo.

Não se pode deixar de destacar que as reprovações de Ronaldo o levaram a desistir do IF e entrar em um curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA), no período noturno. Esta opção remete às diversas formas de Ensino Médio estabelecidas pela LDB vigente, cuja maleabilidade proporciona diferentes modalidades de oferta de cursos. Desse modo, sua narrativa evidenciou uma busca pela conclusão do curso de Ensino Médio, que leva em conta não necessariamente a qualidade de ensino, mas a viabilidade de conclusão do curso.

Quanto à escolha do Ensino Superior, Ronaldo quer fazer faculdade de educação física. Se entende que Ronaldo, por ser um estudante que gosta de academia e enfrenta dificuldade com sua timidez, busque um curso que aparentemente exige menos comunicação, pelo menos para ele.

Com relação ao Ensino Médio Integrado enquanto modalidade educacional, Ronaldo só faz referência às dificuldades que tinha com relação às disciplinas específicas de Informática:

Eu não gostava do curso de informática, por causa das disciplinas específicas. Eu me sentia um peixe fora da água, sentia que não era coisa para mim.

No IFMS/Coxim existem apenas duas possibilidades de curso: o Ensino Médio Integrado em Alimentos ou em Informática. Parece que em alguns casos, como o de Ronaldo, o curso profissional agregado torna-se apenas um apêndice necessário, uma vez que, conforme ele aponta, as disciplinas específicas não tinham um sentido positivo.

Estudante em Curso Roberta

“O IF suga muito a gente”.

Diário de Campo

Roberta foi convidada para a entrevista por ter demonstrado à equipe de assessoria pedagógica da instituição um descontentamento com o excesso de trabalhos, deveres de casa e avaliações. Em contrapartida, a estudante destaca-se pelo bom desempenho escolar e pela capacidade comunicativa.

É interessante notar inclusive que a estudante entrou na sala de entrevista comentando sobre o cansaço que se sente devido a diversos trabalhos e provas. Da mesma forma, durante toda a entrevista, sua narrativa indicou um sentimento de gostar da instituição enquanto espaço de aprendizagem e de sociabilidade, porém manifestou o desejo de ter mais tempo para outras atividades.

Em sua fala, Roberta demonstrou um tom de responsabilidade e preocupação, o que ficou evidente quando relatou a sensação de ansiedade que sente. Nesse sentido, quando perguntada sobre o que é ser jovem, Roberta contestou a visão do jovem como irresponsável, uma vez que ela mesma não se identifica assim. Esse seu apontamento quanto à identificação do jovem como irresponsável corrobora com a visão tradicional sobre a juventude, já apontada por Groppo (2004).

A Entrevista

Grande parte da entrevista de Roberta remete ao assunto do cansaço proveniente das atividades escolares. Assim como havia reclamado à equipe de assessoria pedagógica, aparentemente utilizou a entrevista para mostrar sua insatisfação. Seguem alguns trechos em que ela expõe seu cansaço:

Faz uma semana mesmo, eu estou tentando tomar um tereré com os amigos, e não tem como, porque à noite sempre tem um trabalho, alguma prova para estudar. Tem dia que tem duas provas extensas no mesmo dia, é meio difícil virar a noite estudando.

Às vezes quero fazer uma academia, mas tenho que fazer as coisas da igreja, é muito cansativo para a gente. Tenho uma amiga que faz Zumba, Cross Fit e eu às vezes não posso. Durante a semana tem dia que vou fazer trabalho às nove horas, dez horas da noite, e então chega sábado e domingo e a gente quer sentar e descansar, já que passou a semana inteira ‘ralado’ estudando.

Nós costumamos dizer que o IF suga muito a gente, todo dia tem uma tarefa, todo dia tem alguma coisa para você entregar, todo dia tem alguma coisa para você fazer, é meio ‘sugante’. Já houve dias que meus pais foram para a chácara nos finais de semanas, e eu tive que ficar em casa sozinha no domingo porque tinha prova, e na chácara não tem internet, então acabo tirando o tempo de ficar com a minha família. É bem corrido para mim, em vários dias eu acordo de manhã, bem antes da minha mãe, para fazer tarefa, então é meio cansativo essa parte.

A narrativa de insatisfação de Roberta quanto ao excesso de afazeres escolares e à impossibilidade de se dedicar a outras atividades remete a Delgado (2007), o qual aponta que a memória não é apenas uma forma de lembrança, mas ela se constitui como uma ação. Sentimos na sua narrativa que ela não falava apenas para um pesquisador; ela falava como se esperasse que sua narrativa surtisse efeito e viesse a modificar essa situação.

Pelo menos dentro de sua visão, Roberta aponta o excesso de atividades escolares como uma das principais causas de desistência entre os estudantes. Também pontua que outros jovens, quando observam os estudantes em curso, às vezes nem animam a se matricular. Nesse excerto ela explica essa conjuntura:

Eu falo para você que uma das razões de desistência maior é essa questão de sugar muito o aluno, essa coisa de você ter todo o dia coisa para fazer. Eu, por exemplo, tenho um monte de coisa para fazer: estágio, TCC. Tem muita gente que fala: meu Deus, fazer estágio, TCC, Deus me livre não vou entrar não! Tem muitos amigos meus que eu incentivo para entrar, eles falam ‘eu não, Deus me livre, não vou entrar não’.

Levando-se em consideração que a instituição tem uma procura 1 por 1, em termos de vaga, essa visão agregada à instituição demonstra a necessidade de avaliar tal produção de sentido por parte dos jovens.

Embora as falas de cansaço sejam preponderantes nas falas de Roberta, em outros momentos ela demonstra paralelamente sentimentos de satisfação com relação à instituição e descreve vários aspectos positivos:

Eu gosto daqui, apesar de ser cansativa a rotina de vida como eu disse é um pouco cansativo, mas eu gosto porque o conhecimento que eu tenho aqui tem pessoas que não têm, eu me apaixonei por Alimentos.

A escola é um pouco cansativa, mas é divertido. Por exemplo, ontem estava eu e minha amiga daqui do instituto, a gente estava na casa dela fazendo trabalho e a gente ri muito, porque quando a gente está com sono a gente fica mais elétrica para manter acordada, a gente ria muito, para fazer um café comprou amendoim e comprou monte de coisa para comer. Tem outro amigo aqui do IF também que a gente vive almoçando na casa dele, só para rir também, por mais que as coisas são cansativas a gente tem muito histórias boas para contar. Às vezes o trabalho é chato é, mas muitas vezes, se torna legal pelos amigos, seja em uma instituição, seja onde você for, os amigos são muito bem-vindos.

Esse último trecho da entrevista de Roberta demonstra como a escola é um espaço de sociabilidade, muitas vezes o principal local para os jovens fazerem e cultivarem amizades. A importância da dimensão da sociabilidade juvenil remete a pesquisadores como Dayrell e Carrano (2014, p.117), os quais apontam a “centralidade dessa dimensão que se desenvolve no grupo de pares, preferencialmente nos espaços e tempos de lazer e diversão, mas também presente nos espaços institucionais como na escola”.

Na questão das sociabilidades, as relações com os professores são primordiais, uma vez que a sala de aula é o local onde os estudantes passam a maior parte do tempo. Em determinado momento da entrevista, Roberta demonstra a importância desse aspecto:

Brincamos muito com os professores aqui, damos muitas risadas, quando nós estamos em uma aula difícil, conversamos, e eles dão um direcionamento, lógico que tem aquele professor mais rígido, cara fechada, mas existem uns mais legais que a gente tem intimidade muito boa, são professores que viraram nossos amigos na verdade, a gente senta, conversa, dialoga, e se a gente precisa de alguma coisa eles estão prontos para ajudar, é bem legal.

Embora essa constatação não seja restrita à entrevista de Roberta, sua narrativa foi carregada de crenças e sentimentos de excesso de responsabilidade sobre si. Essa responsabilização aproxima-se de um sentimento de necessidade de perfeição, conforme se depreende nos excertos abaixo:

Na escola eu tenho muita dedicação, sempre gostei das minhas coisas certas. Minha mãe queria me bater porque eu tirava oito, então teve um dia que eu tirei oito eu não aceitei ter tirado oito, eu queria ter tirado dez, minha mãe ficou muito brava comigo por uma nota oito ser uma nota boa. Sou muito esforçada, eu gosto de correr atrás, se eu faltei um dia eu vou atrás do professor, se ele passou alguma coisa, o que senhor passou, eu preciso fazer alguma coisa, então eu sempre fui muito esforçada nessa questão de nota.

Às vezes a gente sabe que muitas pessoas não vão ter responsabilidade de fazer os trabalhos como a gente, então eu e minha amiga acabamos pegando as coisas para fazer nos trabalhos em grupo. Querendo ou não, quanto mais você vai lendo e escrevendo, você vai evoluindo essa questão de usar: porém, entretanto. Isso deixa o trabalho mais enriquecido e aí tem alguns que não têm ainda essa coisa, e acaba ficando para a gente que deixa o trabalho mais enriquecido, mais bonito, aí a gente faz e divide para eles estudarem. Na tarefa individual, tem muitas que são individuais, a gente também rala bastante para fazer.

Assim como na narrativa de Roberta, pode-se observar que a experiência escolar, composta de relações sociais e atividades escolares, é constituidora da identidade (Abrantes, 2003). Quanto à jovem, pode-se destacar que a experiência escolar no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim gera, além de emoções positivas, sentimentos de insatisfação pelo excesso de afazeres escolares e, de certa forma, alimenta a constituição de uma identidade ligada à autorresponsabilização e ao perfeccionismo.

Estudante em Curso Paulo

“Uma reviravolta”.

Diário de Campo

O interesse em entrevistar o estudante Paulo se deu porque sua trajetória escolar sempre chamou a atenção. De início, chamaram atenção sua capacidade comunicativa e seu bom desempenho escolar, apesar de seus embates com professores de viés filosófico religioso, uma vez que ele é evangélico e não concordava com algumas opiniões contrárias às suas visões.

No decorrer de sua passagem na instituição, Paulo foi parecendo mais amigável, interagindo mais com outros estudantes, professores e funcionários. Os pesquisadores levantaram a hipótese de que algo havia acontecido para essa transformação.

Logo no início da entrevista, quando perguntado a Paulo como resumiria sua passagem no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim, ele respondeu que seria algo relacionado a uma “reviravolta”, o que era mesmo o que os pesquisadores queriam conhecer. Durante a entrevista, Paulo demonstrou toda a sua capacidade comunicativa, respondendo às questões e dialogando de uma forma interessante e proveitosa.

A Entrevista

Para compreender sua trajetória escolar, veja-se como ele aponta seus dois primeiros anos na instituição, ou seja, seu primeiro contato com o Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim:

Acho que, se minha passagem aqui fosse um livro, seria alguma coisa relacionada à reviravolta. Eu entrei no IF com a mente muito fechada, porque sempre fui criado na igreja, desde que nasci, em um berço evangélico. Então entrei no IF, nunca tinha estudado em uma instituição federal, sempre foi em escola particular, no 9° ano que fui para escola pública, e tudo era dentro da minha realidade do meu contexto, religiosamente somente falando, e quando entrei no IF vi pessoas com opções diferentes da minha, com pensamentos diferentes do meu, eu tive meio que um receio de aceitar isso. Quando eu entrei no IF eu era um pouco meio que preconceituoso, e isso me prejudicou muito no IF nos dois primeiros anos: 2014 e 2015. Foram dois anos muito difíceis para mim, 2015 principalmente quando cheguei a brigar com vários professores, e ser taxado como uma pessoa muito odiada aqui no IF.

A reviravolta apontada pelo estudante ocorre quando ele começou a fazer parte de um projeto de teatro oferecido na instituição. Segundo Paulo, dois fatores contribuíram para essa brusca mudança: mudanças de ponto de vista e a constituição de amizades com pessoas com as quais inicialmente ele não tinha relação afetiva:

Em 2016, quando o professor de matemática fez um projeto de um grupo de teatro, eu entrei e comecei a ver as coisas sob um ângulo diferente, comecei a mudar muito meu ponto de vista, e hoje, graças a Deus, estou encerrando no IF, como uma pessoa totalmente transformada da que entrei.

O projeto de teatro foi causador dessa reviravolta porque através dele eu pude fazer algumas novas amizades, dentre elas algumas pessoas que eu não gostava, pessoas que antigamente eu discriminava, essas amizades levaram a outras amizades, e depois de um tempo eu me vi incluído em um grupo de amigos que, se em 2014, me falassem que eu estaria daqui a dois anos incluído, eu teria negado. Acho que o teatro foi um grande divisor de águas.

Atualmente Paulo é um dos principais integrantes desse grupo de teatro, que já disputou prêmios estaduais e é reconhecido internamente na instituição. Essa realidade se aproxima da discussão sobre o protagonismo juvenil no Ensino Médio, ou seja, sobre a criação de oportunidades aos jovens, vistos como atores principais, capazes de promover mudanças comunitárias e papéis de liderança em espaços coletivos (Castro, 2008). Desse modo, é visível que a iniciativa dos professores do grupo de teatro foi fundamental para que Paulo desenvolvesse maior protagonismo juvenil.

Além do grupo de teatro, Paulo também participa da prática esportiva na instituição. Sua relação com a escola foi fortalecida por esses dois contextos, pois ficou na instituição um ano a mais para poder participar de um concurso do grupo de teatro e dos jogos internos do IFMS:

Depois de 2016 aproveitei cada minuto, tanto é que fiquei um ano a mais para aproveitar mais duas viagens: para os jogos internos e para o concurso de teatro, justamente porque eu acho a fase do Ensino Médio muito mágica, pois te proporciona possibilidades que você não teria se tivesse parado de estudar no ensino fundamental, ou tivesse ido direto para um ambiente de trabalho.

Sposito e Galvão (2004) falam de uma relação estratégica com a escola, porém parece que Paulo estabelece uma relação às avessas. Para as autoras, os estudantes tendem a fazer o mínimo para se manter na escola. Paulo, por sua vez, estabeleceu uma relação estratégica na qual quis continuar na escola, ou seja, fez mais do que lhe foi solicitado, isso porque aparentemente tem prazer nessas atividades.

Ao que tudo indica, devido a suas experiências com o teatro e os esportes, Paulo, quando perguntado sobre possíveis mudanças no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim, afirma que seriam necessárias, principalmente, iniciativas de ensino mais diversificadas:

Eu colocaria no Ensino Médio aqui do IF mais oficinas, música, teatro, dança e mais alguns esportes, eu acredito que temos poucas horas aulas de educação física para tantos esportes. Aqui no IF não tem muito isso, só tem se algum professor encaminhar algum projeto, então se for aprovado temos alguma coisa, mas se não, ficamos só com o curso integrado mesmo.

Conforme Paulo mesmo aponta, sua narrativa reconhece que sua passagem no Ensino Médio Integrado da instituição foi marcada por uma mudança. Há que se considerar que reviravoltas, como a ocorrida com o estudante, só são possíveis quando os jovens são vistos como protagonistas no espaço escolar; quando suas habilidades e conhecimentos são reconhecidos e fortalecidos.

Considerações Finais

O objetivo deste estudo se circunscreve em analisar os sentidos atribuídos pelos estudantes a suas experiências escolares no Ensino Médio Integrado do IFMS/Coxim. Por sua característica, nesta pesquisa se tece uma análise descritiva, e isso parece ser importante: no Ensino Médio atual, talvez uma das melhores formas de visualização/pesquisa/estudo seja aquela que olha para as diferenças e para os detalhes dessas experiências dos estudantes.

As narrativas apontam para uma realidade em que as experiências escolares e a atribuição de sentido às trajetórias se manifestam de formas complexas e diferentes. Isso pode ser observado pela quantidade de temas extraídos das narrativas dos estudantes, a saber: as dificuldades em conciliar trabalho e estudo; a autoculpabilização e autorresponsabilização juvenil; o desejo juvenil da independência financeira; a angústia relativa ao excesso de reprovações; o paradoxo entre o cansaço com as atividades e a satisfação com as relações estabelecidas na escola; os embates entre os jovens e a escola; e, também, as possibilidades de desenvolvimento e protagonismo juvenil, mediante iniciativas de ensino diversificadas.

Especificamente, a observância dessas diferentes trajetórias e os sentidos atribuídos a elas podem levar a alguns aprendizados. Pode-se aprender, com Roberta, a relação entre uma escola que exige e uma jovem que também se autoexige em demasia. Com Anderson, aprende-se como o trabalho pode afetar a experiência escolar no Ensino Médio Integrado. Com Paulo, se observam as mudanças que podem ser produzidas pela experiência escolar proveitosa no Ensino Médio. Por fim, com Ronaldo, podemos aprender quais são as dificuldades de um estudante tímido e sem grandes afinidades com a área específica de um curso integrado.

Pensamos que essas histórias, embora não construam uma “teoria geral”, têm valor em si próprias, assim como defende a história oral temática. Esta análise descritiva demonstra que uma escola, apesar da boa infraestrutura e professores capacitados, pode ter altos índices de desistência. O estudo indica que os altos índices de desistência podem estar, dentre outros fatores, imbricados também na variedade de trajetórias e perfis dos estudantes, o que faz gerar diferentes atribuições de sentido à escola de Ensino Médio.

Acreditamos que este estudo possa contribuir para uma melhor compreensão e enfrentamento dos desafios atuais do Ensino Médio, no que concerne à relação dos jovens com a escola. Sinaliza, portanto, a necessidade de que as instituições criem, cada vez mais, canais de comunicação para ouvir os estudantes e suas particularidades.

1Artigo elaborado a partir da dissertação de A.S. SOCORRO, intitulada “Sentidos da Experiência Escolar no Ensino Médio Integrado: uma análise de narrativas de jovens do IFMS/Coxim”. Universidade Estadual de Mato Grosso.

4Neste texto utilizamos tanto o termo “jovens” quanto o termo “estudantes” para referir aos sujeitos da pesquisa. Ressalta-se que o uso de um termo não significa a negação do outro, pois os sujeitos da pesquisa são ao mesmo tempo jovens e estudantes.

Como citar este artigo/How to cite this articleZimmermann, T.R.; Socorro, A.S. Trajetórias escolares no Ensino Médio Integrado: uma análise da atribuição de sentidos de jovens estudantes por meio da história oral temática. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204581, 2020. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4581

Referências

Abrantes, P. Identidades juvenis e dinâmicas de escolaridade. Sociologia: Problemas e Práticas, n.42, p.93-115, 2003. [ Links ]

Azevedo, M.A.; Silva, C.D.; Medeiros, D.L.M. Educação Profissional e Currículo Integrado para o Ensino Médio: elementos necessários ao protagonismo juvenil. Holos, v.4, n.31, p.77-82, 2015. [ Links ]

Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Congresso Nacional, 1996. [ Links ]

Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 466, de 12 de Dezembro de 2012. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, 2012. [ Links ]

Brenner, A.K.; Carrano, P.R. Os sentidos da presença dos jovens no Ensino Médio: representações da escola em três filmes. Educacão e Sociedade, v.35, n.129, p.1223-1240, 2014. [ Links ]

Castro, J.P.M. Protagonismo juvenil e os novos modelos de políticas públicas. In: Reunião Brasileira de Antropologia: Desigualdade na diversidade, 26., 2008, Porto Seguro. Anais [...]. Brasília: ABANT, 2008. Disponível em: http://www.portal.abant.org.br/2013/07/06/anais-26-rba/. Acesso em: 10 maio 2018. [ Links ]

Charlot, B. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2014. [ Links ]

Corti, A.P. Uma diversidade de sujeitos: juventude e diversidade no Ensino Médio. Salto Para o Futuro: Juventude e Escolarização: Os Sentidos do Ensino Médio, ano 19, n.18, p.12-15, 2009. [ Links ]

Dayrell, J. O aluno do Ensino Médio: o jovem desconhecido. Salto Para o Futuro: Juventude e Escolarização: Os Sentidos do Ensino Médio, ano 19, n.18, p.16-23, 2009. [ Links ]

Dayrell, J.; Carrano, P. Juventude e Ensino Médio: quem é este aluno que chega à escola. In: Dayrell, J.; Carrano, P.; Maia, C.L. (Org.). Juventude e Ensino Médio. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p.101-133. [ Links ]

Delgado, L.A.N. História oral: memória, tempo, identidades. São Paulo: Autêntica, 2007. [ Links ]

Freire, P. Pedagogia da autonomia. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Guerra, 1987. [ Links ]

Gonzalez Rey, F.L. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thomson Learning, 2003. [ Links ]

Groppo, L.A. Dialética das juventudes modernas e contemporâneas. Revista de Educação do Cogeime, v.13, n.25, p.9-22, 2004. [ Links ]

Krawczyk, N. (org.). Sociologia do Ensino Médio: crítica ao economicismo na política educacional. São Paulo: Cortez, 2014. [ Links ]

Meihy, J.C.S.B.; Holanda, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2017. [ Links ]

Penatieri, G.R.; Falcão, C.R.; Martinez, S.A. Ao final da Educação Básica: o que pensam os alunos sobre suas escolarizações, suas juventudes e seus projetos. Educacão em Foco, v.16, n.2, p.117-139, 2012. [ Links ]

Penatieri, G.R.; Rodrigues, C.M. Vivências e perspectivas de jovens alunos de Escolas Públicas de Ensino Médio. In: Simpósio Internacional sobre Juventude Brasileira, 5., 2012, Recife. Anais Eletrônicos [...]. [S.l.]: Unicap, 2012. Disponível em: http://www.unicap.br/jubra/wp-content/uploads/2012/10/TRABALHO-154.pdf. Acesso em: 1 jun. 2018. [ Links ]

Pereira, S.; Reis, R. Olhares cruzados sobre ser jovem e estudante do Ensino Médio: contextos, experiências e reflexões. Eccos, n.35, p.157-172, 2014. [ Links ]

Reis, R. Experiência escolar de jovens/alunos do Ensino Médio: os sentidos atribuídos à escola e aos estudos. Educação e Pesquisa, v.38, n.3, p.637-652, 2012. [ Links ]

Schlickmann, V. Sentidos da experiência escolar de jovens estudantes de Ensino Médio da cidade de Caxias do Sul: um olhar crítico em relação à escola. In: Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul – Anped/Sul, 9., 2012, Caxias do Sul. Anais [...]. Caxias do Sul: Anped, 2012. p.2-17. [ Links ]

Souza, E.O.; Reis, R.; Santos, J.M.C.T. Identidades juvenis e experiência escolar no Ensino Médio. Holos, v.4, n.31, p.3-17, 2015. [ Links ]

Sposito, M.P.; Galvão, I. A experiência e as percepções de jovens na vida escolar na encruzilhada das aprendizagens: o conhecimento, a indisciplina, a violência. Perspectiva: Revista do Centro de Ciências da Educação da UFSC, v.22, n.2, p.345-380, 2004. [ Links ]

Teixeira, C.; Flores, M.A. Experiências escolares de alunos do Ensino Secundário: resultados de um estudo em curso. Educação e Sociedade, v.31, n.110, p.113-133, 2010. [ Links ]

Recebido: 30 de Abril de 2019; Revisado: 10 de Setembro de 2019; Aceito: 20 de Setembro de 2019

Correspondência para/Correspondence to: T.R. ZIMMERMANN. E-mail: <>.

Colaboradores A.S. SOCORRO e T.R. ZIMMERMANN contribuíram na concepção, análise, interpretação e realização do artigo.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.