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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4904 

Alfabetização e o processo de apropriação da língua materna: políticas, formação de professores e práticas pedagógicas

Atividades epilinguísticas e práticas pedagógicas

Epilinguistic activities and pedagogical practices

Mariana Guerato Garcia1 
http://orcid.org/0000-0003-3953-9997

Heloisa Chalmers Sisla2 
http://orcid.org/0000-0002-6589-4493

1Docente da Educação básica da rede privada. São Paulo, SP, Brasil.

2Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas. Rod. Washington Luís, km 235, SP 310, 13565-905, São Carlos, SP, Brasil.


Resumo

Este artigo tem como objetivo identificar as contribuições das pesquisas sobre atividades epilinguísticas e práticas pedagógicas, pressupondo que a ampliação da compreensão leitora e da produção textual é a principal meta do ensino e da aprendizagem de Língua Portuguesa. O foco se volta para os trabalhos sobre os anos iniciais do Ensino Fundamental. Trata--se de um estudo bibliográfico, com uma revisão da literatura realizada em um levantamento de trabalhos em diferentes bases de dados. Três temáticas foram identificadas: as práticas pedagógicas observadas ou recomendadas; o lugar das atividades epilinguísticas no ensino de Língua Portuguesa; e concepções sobre atividades epilinguísticas. Na análise dos estudos, sobressaíram-se práticas pedagógicas de produção textual e de análise linguística, por vezes articuladas, relatadas ou recomendadas, notando-se a ausência das atividades epilinguísticas nas práticas de leitura. Quanto ao lugar das atividades epilinguísticas, as pesquisas indicam que ainda são pouco trabalhadas nas aulas, em detrimento das metalinguísticas. As diferentes concepções e discursos sobre as atividades epilinguísticas detalham aspectos conceituais e podem marcar variações nas práticas pedagógicas.

Palavras-chave Ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa; Ensino Fundamental; Epilinguagem

Abstract

This investigation aims to identify contributions of research on epilinguistic activities and pedagogical practices, considering that the aim of teaching Portuguese language is to broaden reading comprehension and writing. The focus is directed to the early years of Elementary school. To fulfill this objective, we conducted a search of papers in different databases. Three subjects were identified: pedagogical practices observed or recommended; the position of epilinguistic activities in the teaching of Portuguese language; and different conceptions about epilinguistic activities. In the review of the study stood out pedagogical practices of writing and those of linguistic analysis, sometimes articulated, that were recommended or reported and the absence of reading epilinguistic activities was observed. Regarding the position of epilinguistic activities in pedagogical practices, the papers point out that they are still scarcely approached in the classroom and that metalinguistic activities prevail. Different conceptions and discourses about epilinguistic activities show conceptual aspects and may result in a variation in pedagogical practices.

Keywords Teaching and learning of Portuguese language; Elementary school; Epilinguism

Introdução

Este artigo tem como objetivo identificar as contribuições das pesquisas envolvendo atividades epilinguísticas que apresentam implicações para as práticas pedagógicas. Pressupõe-se que a ampliação da compreensão leitora e da produção textual é a principal meta do ensino e da aprendizagem de Língua Portuguesa e que as práticas de análise linguística se dariam em função dessa meta. O foco da investigação se volta para os trabalhos sobre o Ensino Fundamental, especialmente nos anos iniciais dessa etapa.

Desde os anos 1980 e 1990, autores como Franchi (2006) e Geraldi (2006a, 2006b) 3 vêm apontando que as atividades epilinguísticas merecem ocupar maior espaço no ensino de Língua Portuguesa, no qual as atividades metalinguísticas vêm prevalecendo nas mediações envolvendo as reflexões sobre a língua. A análise linguística compõe, na proposição de Geraldi, um dos três eixos do ensino de língua pautado em práticas de linguagem, juntamente com a produção textual de textos orais e escritos e a leitura, em direção à utopia de “um ensino que se assuma como aventura e produção de conhecimentos e não mera reprodução” (Geraldi, 2013, p.220).

As atividades epilinguísticas constituem, com as metalinguísticas, os dois tipos de atividades de análise linguística envolvendo a reflexão sobre a língua (Bagno, 2015). Meta é uma preposição grega que significa “para além de” e atividades metalinguísticas são aquelas que vão além da língua, permitem a descrição e a caracterização de elementos linguísticos e referem-se à língua usando nomenclaturas e terminologias a respeito dela. As atividades metalinguísticas predominam nas gramáticas normativas, aquelas que, segundo Possenti (1996), indicam um “conjunto de regras que devem ser seguidas” (p.64, grifos do autor), diferentemente das gramáticas descritivas, que orientam o trabalho dos linguistas e descrevem ou explicam como as regras são seguidas, e das internalizadas, as quais representam o “conjunto de regras que o falante da língua domina” (Possenti, 1996, p.64, grifos do autor). Segundo Geraldi (2013, p.25), as atividades metalinguísticas constituem “atividades de conhecimento que analisam a linguagem com a construção de conceitos, classificações”.

O conceito de atividade epilinguística foi proposto pelo linguista francês Antoine Culioli a partir da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas. No Brasil, Franchi (2006), nos anos 1980, foi o primeiro pesquisador a se debruçar sobre a temática e a utilizar esse termo. Segundo ele:

Chamamos de atividade epilinguística a essa prática que opera sobre a própria linguagem, compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção canônicos ou não, brinca com a linguagem, investe as formas linguísticas de novas significações

(Franchi, 2006, p.97).

A palavra epilinguística tem origem grega. “Epí” significa “por cima de”, “sobre”, “a respeito de”, o que quer dizer que atividade epilinguística se realiza por cima da linguagem, operando sobre ela. Pode-se perceber que essa atividade está presente na reflexão sobre o significado de uma palavra em determinado contexto e na sua substituição por outra; nos trocadilhos; em achar algo bonito ou não; nos questionamentos sobre a pertinência de uma expressão; na oportunidade de reformular algo que não ficou claro, de dizer de outro modo, de mudar o sentido; nas escolhas dentre uma gama de recursos expressivos. A atividade epilinguística é, portanto, realizada constantemente pelas pessoas na oralidade. Perguntas do tipo: ”O que você quis dizer com isso?” ou então “Por que será que o autor usou essa palavra?” envolvem atividades epilinguísticas, que representam momentos de reflexão sobre a língua.

Quando há a prevalência das atividades metalinguísticas no ensino de língua, é alto o risco de que elas sejam apenas voltadas para um conteúdo de avaliação escolar não sendo efetivamente incorporado para ler e escrever melhor nas diferentes situações comunicativas, objetivos últimos do ensino de Português. Alcançar níveis mais amplos de compreensão leitora e produção textual requer “dominar as habilidades de uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados” (Geraldi, 2006a, p.46), demandando propor situações de fala, escuta, leitura e escrita em interações e a análise das relações que nelas se dão.

Algumas questões e preocupações guiaram a presente investigação. Sobre quais temas versam as pesquisas voltadas para as atividades epilinguísticas envolvendo as práticas pedagógicas? Há relatos de avanços em relação às constatações de Geraldi (2006a) e de Possenti (1996) quanto à prevalência das atividades metalinguísticas, em detrimento das epilinguísticas? Que contribuições os estudos oferecem para compreender essas práticas, em particular nos anos iniciais do Ensino Fundamental? Buscando responder a essas questões, este trabalho apresenta duas seções iniciais, voltadas para as atividades epilinguísticas na leitura e na produção textual, e prossegue com a indicação do percurso metodológico e com um panorama das pesquisas, para deter-se sobre as contribuições dos estudos analisados.

Atividades epilinguísticas e leitura

Qual é o papel das atividades epilinguísticas quanto à leitura? A prática de leitura aperfeiçoa a competência leitora, na qual quem lê consegue compreender aquilo que foi lido, atribuindo-lhe algum sentido. De acordo com Kleiman (2013), para chegar ao entendimento do texto, o aluno passa por um processo de utilização dos seus conhecimentos prévios e ativa vários tipos de conhecimentos que influenciam a compreensão do texto:

O leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto

(Kleiman, 2013, p.15).

Dessa forma, percebe-se que diferentes tipos de conhecimentos são acionados para a compreensão do texto. O diálogo após a leitura tem potencial para propiciar a ampliação do entendimento daquilo que foi lido, pois na interação com a professora4 e com os colegas de turma surgem novos olhares, conhecimentos e saberes. Estes podem ser sobre a língua empregada, sobre aspectos textuais ou conhecimentos de mundo, que são compartilhados na mediação, possibilitando uma ampliação tanto da compreensão textual quanto de posicionamentos críticos sobre o texto.

A conversa ao final da leitura, mediada pela professora, pode ser muito enriquecedora para os alunos, inclusive quanto às atividades epilinguísticas. De acordo com Bagno (2015), questionamentos do tipo “O que o autor quis dizer nesse trecho?”; “Por que essa história (não) é engraçada?”; “Por que o autor empregou determinada palavra e não outra?”; “Ao utilizar determinada palavra, ele conseguiu o efeito que queria?”; “Que expressão ele utilizou para deixar o texto mais bonito?” são essenciais para despertar a reflexão sobre aquilo que foi lido e estão no âmbito das atividades epilinguísticas. Sem necessariamente utilizar nomenclaturas e classificações, pode-se explorar com os estudantes os recursos linguísticos que a língua oferece e seus efeitos, ampliando, assim, sua capacidade de perceber os usos da língua. Desse modo, as atividades linguísticas podem se fazer presentes de forma mais intencional nas mediações de leituras desde o início da escolarização, incluindo os processos de ensino e de aprendizagem com crianças não alfabetizadas.

Atividades epilinguísticas e produção textual

As produções textuais se fazem presentes na escola por meio de práticas orais, como na contação de uma história e na apresentação de um seminário, ou de práticas escritas, como no caso de um bilhete, de uma fábula, de um poema, de uma parlenda e de vários outros gêneros textuais. Quanto à produção escrita, Geraldi (2006a) indica que há diferença entre produção textual e redação, porque esta última diz respeito a textos feitos para a escola, como: minhas férias, minha pátria, entre outros. São propostas que muitas vezes o livro didático traz e que não guardam relação com as práticas de escrita presentes na sociedade, caracterizando-se como textos unicamente escolares. Nesse sentido, segundo esse autor, é interessante que a proposta da produção textual responda às seguintes questões: por que escrever? Para quem escrever? Para que e como escrever? Criando-se uma situação comunicativa, a produção textual tende a ganhar sentido.

Uma produção textual envolve diferentes elementos: ortografia, coesão, coerência e conhecimento do gênero textual. Reyes e Picolli (2011) recomendam, para a mediação nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que esses aspectos sejam trabalhados seletivamente, por partes, ao invés de se corrigir todos em uma aula. Com a ortografia, por exemplo, ao invés de destacar todos os erros, a professora pode analisar aqueles mais recorrentes na turma e trabalhar uma dificuldade por vez. Para produzir algo de qualidade, é importante articular os aspectos mencionados e ter clareza ao escrever, transmitindo a mensagem, preocupando-se com o leitor, que usualmente está distante de quem enuncia.

As atividades epilinguísticas podem contribuir para produções textuais mais elaboradas, ou seja, mais coesas, coerentes e em acordo com a situação comunicativa. Escrever novamente um trecho que não ficou tão claro, utilizar outras palavras, substituir expressões, rasurar, retirar termos que não combinam e escrever de outro jeito são alguns exemplos de como a atividade epilinguística se manifesta na produção textual.

Procedimentos Metodológicos

Esta investigação foi realizada por meio de uma pesquisa bibliográfica, consistindo no levantamento de informações e de análise sobre o tema a partir de estudos já realizados. Foram buscados trabalhos a partir do uso de descritores com os termos “atividade epilinguística”, “epilinguismo”, “análise epilinguística”, “linguagem e epilin”. Como o número de trabalhos envolvendo as atividades epilinguísticas nos anos inicias do Ensino Fundamental foram muito reduzidos, optou-se por incluir os que abrangiam os anos finais dessa etapa da escolarização, uma vez que eles apresentavam contribuições para a discussão aqui pretendida.

Recorrendo às bases de dados Scientific Electronic Library Online e ao Portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, foram encontrados apenas quatro trabalhos, número muito reduzido. Por isso, optou-se por estender o levantamento na ferramenta de busca Google Acadêmico, nos anais do Congresso de Leitura do Brasil e no motor de buscas do Google. Recorreu-se ao primeiro por ser uma base de dados de trabalhos científicos, ao segundo por se tratar de um evento consagrado e específico da área de leitura e de escrita, e ao terceiro para verificar se haveria algum outro trabalho que pudesse ser incluído e que tivesse passado por crivo mais rigoroso. Nesta última base de pesquisa, foi selecionado um único estudo, apresentado em uma reunião anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação, que é o principal evento brasileiro da área de pesquisa em educação.

O total resultou em 16 estudos, produzidos entre 2000 e 2019. Os critérios de inclusão no corpus foram: artigos publicados em periódicos e trabalhos publicados em anais de eventos; trabalhos que versavam sobre o ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa como língua materna; estudos voltados para os anos iniciais ou finais do Ensino Fundamental; práticas pedagógicas ou ensaios que apontassem contribuições para fundamentar e delinear práticas pedagógicas envolvendo as atividades epilinguísticas na escola.

Panorama geral dos trabalhos

Quanto à faixa etária, as pesquisas de Goulart (2000), Miller (2003), Santos (2005), Bezerra e Semeghini-Siqueira (2007),Nogueira e Fontoura (2007) e Souza (2009) são direcionadas aos anos iniciais do Ensino Fundamental, ao passo que os trabalhos de Abud, Santos e Britto (2005), Salviato-Silva (2008), Pietri (2018), Silva (2010) e Arndt-Wamser e Rezende (2014, 2019) se voltam para os anos finais do Ensino Fundamental, sendo, assim, seis trabalhos dedicados aos anos iniciais e seis aos anos finais. Já o artigo de Valentim e Onofre (2018) inclui ambos os níveis de ensino, e não há ou não foi possível depreender a indicação de faixa etária nos artigos de Kohle (2016), Rezende (2008) e Romero (2011).

Dos 16 trabalhos, 10 deles são da região Sudeste, sendo 8 do estado de São Paulo e 2 do Rio de Janeiro; 2 são do Nordeste, mais especificamente do estado do Pernambuco; 1 é da região Sul; e em 3 deles não constam informações sobre a localidade, ou tratam-se de ensaio, sem pesquisa de campo. Assim, identificou-se que a maior parte das pesquisas se concentra na região Sudeste, sendo poucas as do Nordeste e Sul. Não foram identificados trabalhos de outras regiões. Pode-se inferir, dessa forma, que a temática ainda não é tão difundida no país e que a produção de pesquisas sobre o tema está localizada na região Sudeste. Apesar de haver centros de pesquisa sobre os estudos da linguagem em instituições das diferentes regiões do país, a prevalência em investigações na temática em questão no Estado de São Paulo possivelmente ocorre por ser onde se localiza a instituição à qual estiveram vinculados Carlos Franchi e João Wanderlei Geraldi. Foi possível perceber que a centralidade da atividade epilinguística está presente na maioria dos trabalhos, com exceção da investigação de Souza (2009), na qual o tema central é a análise linguística, apesar de fazer referência ao epilinguismo.

Quanto ao foco dos trabalhos, tomando os três eixos do ensino de Língua Portuguesa sugeridos por Geraldi (2006b) – leitura, produção textual e análise linguística –, observou-se que sete dos trabalhos são direcionados à produção textual, sendo eles Goulart (2000), Miller (2003), Abud, Santos e Britto (2005), Santos (2005), Nogueira e Fontoura (2007), Rezende (2008) e Kohle (2016). Deste grupo, as pesquisas de Abud, Santos e Britto (2005) e de Nogueira e Fontoura (2007) apresentam as atividades epilinguísticas também nas práticas de oralidade, marcada pelo diálogo nas interações entre estudantes e docentes, e na produção textual. Já outro grupo, com cinco trabalhos, sendo eles Salviato-Silva (2008), Silva (2010), Valentim e Onofre (2018) e Arndt-Wamser e Rezende (2014, 2019) focam na análise linguística, em sua maioria sobre algum aspecto gramatical para ser desenvolvido. Nos trabalhos de Bezerra e Semeghini-Siqueira (2007), Souza (2009), Romero (2011) e Pietri (2018), não há foco em um destes aspectos específicos da linguagem. Não foram encontrados artigos que enfocassem especialmente as atividades epilinguísticas associadas à leitura, apesar de esse tipo de prática estar presente em uma parcela dos trabalhos, em situações nas quais as atividades epilinguísticas de leitura ocorrem anteriormente às práticas epilinguísticas com foco principal na produção textual.

As pesquisas sobre atividades epilinguísticas

A análise dos estudos nos permitiu classificar três aspectos: as “práticas pedagógicas observadas ou recomendadas”; o “lugar das atividades epilinguísticas no ensino de Língua Portuguesa”; e “concepções de atividades epilinguísticas”.

No primeiro grupo, foram incluídos os trabalhos que envolveram propostas ou análises de aulas de produções textuais, seja a partir de textos de autoras e autores consagrados, ou de pesquisas voltadas para o ensino de conjunções. Foi incluído também um trabalho que envolveu exclusivamente a discussão oral.

Miller (2003) aponta a contribuição das atividades epilinguísticas para as práticas pedagógicas envolvendo a produção de texto. Para a autora “tanto no plano oral como no escrito, as atividades epilinguísticas têm por objetivo proporcionar ao usuário da língua oportunidade para refletir sobre os recursos expressivos de que faz uso ao falar ou escrever” (Miller, 2003, p.3, grifos do autor).

Nesse sentido, em relação ao plano escrito, a atividade epilinguística auxilia na produção de bons textos, pois permite que o aluno reflita sobre o que escreveu. Em sua pesquisa, os sujeitos envolvidos são os professores e estudantes da 3ª e 4ª séries. Miller (2003) pontua que o trabalho realizado com as professoras possuía caráter formativo, orientando maneiras de exercer a atividade epilinguística, oferecendo-lhes a oportunidade de experimentar essa atividade e incentivando a criação de um ambiente significativo de aprendizagem. Em relação aos estudantes, o objetivo era, quanto às atividades epilinguísticas, proporcionar “situação significativa para o aprendizado desses aspectos por meio de atividades de reflexão e de operação sobre textos tanto de sua autoria quanto de terceiros, a fim de atingirem a melhoria da qualidade de seus escritos” (Miller, 2003, p.7).

Dessa forma, Miller (2003) relata que foi proposto a cada aluno a escrita de um conto em duas versões. A primeira foi feita com base nos conhecimentos que já possuíam acerca desse gênero textual, e a segunda realizada após o trabalho com as atividades epilinguísticas. Com as produções dessa primeira versão finalizada, foi conduzida uma revisão, trabalhando os elementos próprios do gênero textual conto, como personagens, tempo, diálogos, entre outros, assim como concordância nominal e verbal. Para a produção da segunda versão, trabalhou-se com coesão e coerência, considerando as formas de substituição e os tempos verbais adequados às situações comunicativas. Os docentes responsáveis pela turma estiveram presentes nesse processo, auxiliando-os com as dúvidas, oferecendo-lhes um ambiente de aprendizagem adequado e promovendo interações. Nos momentos de reflexão e de operações sobre a língua, a autora notou avanço entre uma versão e outra, identificando a inclusão de elementos linguísticos na nova produção que tornaram os textos mais ricos e completos.

Comparando-se os dados relativos às primeiras versões das duas produções, verificou-se que o trabalho de reflexão e operação sobre textos narrativos, realizado entre a primeira e a segunda produções, permitiu que o aluno, ao fazer o seu novo texto, incorporasse nele os conhecimentos linguísticos incluídos naquelas atividades (Miller, 2003, p.9).

A prática indicada pela autora foi bastante produtiva, porque os estudantes tiveram a oportunidade de melhorar suas produções a partir de uma reflexão sobre a língua, debruçando-se sobre os elementos linguísticos e características do gênero textual. Essa reflexão, com mediação docente, possibilitou que os alunos aprimorassem seus textos.

Nogueira e Fontoura (2007) também apresentaram práticas pedagógicas envolvendo atividades epilinguísticas na produção textual, desenvolvidas com crianças de um 5º ano. A proposta analisada tinha como tema “Seu dia como professor”, solicitando que o aluno imaginasse e descrevesse como seria se fosse professor por um dia. As atividades foram ministradas pelas próprias pesquisadoras.

A primeira etapa da pesquisa consistiu no uso da linguagem nas modalidades oral e escrita. Oral, porque, inicialmente, as autoras relataram que os alunos foram convidados a conversar com colegas, interagindo e dialogando, a fim de saber como foi seu dia como professor. Já no plano escrito, foi solicitado que registrassem seu dia, em textos a serem publicados no jornal da escola, fator incentivador para as produções, porque quando a produção tem um propósito maior do que simplesmente escrever para depois corrigir pela professora, aproxima-se das práticas de letramento exercidas na vida social fora da escola, tornando mais autênticas as práticas de letramento escolar (Kleiman, 2005). Foi feita uma primeira versão e as próprias pesquisadoras fizeram as modificações necessárias e incluíram os elementos linguísticos. Elas levaram o texto impresso do jornal em produção e solicitaram que os alunos elaborassem, individualmente, um quadro indicando quais foram as alterações realizadas. Em seguida, foi proposto que pensassem nos motivos das modificações. A primeira versão de um texto produzido por uma aluna, antes da modificação indicada pelas autoras, foi: “O meu dia foi bom. Eu comecei o meu dia brincando com os alunos, mas sempre tem um aluno chato que fica implicando com os alunos, por exemplo, Michael. Além disso, foi muito bom. Fim” (Nogueira; Fontoura, 2007, p.5, grifo nosso). O aspecto trabalhado foi a substituição da expressão “além disso”, como exposto por Nogueira e Fontoura (2007, p.5) “Alteramos no jornal a expressão ‘além disso’ para ‘apesar disso’ e pedimos para ela pensar no motivo da mudança. Em seguida, pedimos para que substituísse ‘apesar disso’ por outras expressões”. Ao solicitarem para a garota a substituição da expressão, Nogueira e Fontoura (2007) indicam que foi desencadeado um processo reflexivo, pois ela recorreu às expressões já conhecidas para escolher qual ficaria mais adequada, realizando, neste processo, a atividade epilinguística.

Diferentemente da proposta de Miller (2003), na qual os próprios alunos realizaram as alterações, as autoras produziram as modificações nas produções textuais dos alunos, destacando-se que os estudantes fizeram o exercício de atividade epilinguística no momento em que precisaram identificar as alterações feitas e, principalmente, refletiram e pensaram quais foram os motivos dessas trocas, tendo as intervenções docentes ampliado e potencializado o raciocínio.

Esse mesmo caminho didático é trilhado no relato de Santos (2005), cujo objetivo foi permitir que crianças da turma de reforço dos anos iniciais conseguissem refletir sobre suas produções escritas, ou seja, elas escreviam um texto e tinham a oportunidade de retomar os principais aspectos para que ele ficasse claro. Segundo a autora, o uso das atividades epilinguísticas, tanto no plano oral quanto no escrito, gerou oportunidades para que os estudantes refletissem sobre os recursos expressivos que são utilizados, contribuindo, assim, para uma melhor identificação e apropriação de elementos linguísticos, para o reconhecimento de textos bem escritos, para um maior domínio das características pertencentes ao gênero textual trabalhado e para o aperfeiçoamento da produção textual.

Assim como os três estudos anteriores, a pesquisa de Goulart (2000) direcionou o foco para as atividades epilinguísticas na produção textual nos anos iniciais. A investigação teve como sujeitos dez crianças em fase de alfabetização, sendo que nove delas ainda não dominavam o princípio alfabético de escrita. A pesquisadora buscou o percurso traçado pela turma a fim de se aproximar da escrita alfabética, bem como para realizar a segmentação entre as palavras (no caso da criança alfabética). Além disso, estudou as atividades epilinguísticas presentes nesse processo, foco da presente análise. A autora acompanhou, por um período de cinco meses, produções textuais de crianças que estavam se apropriando da escrita alfabética. Ela enfatiza a escolha da professora quanto às bases de seu ensino “os usos e as funções sociais da linguagem escrita orientam as atividades cotidianas da turma. Isso quer dizer que as crianças desde o início do ano escolar são convidadas a escrever, do jeito que podem e sabem, textos socialmente significativos” (Goulart, 2000, p.162).

As crianças dessa turma tinham liberdade para exercitar a escrita inventada, sem que os erros ortográficos fossem o foco do processo. A professora realizava diversas atividades de leitura, envolvendo uma variedade de gêneros textuais, com mediações que possibilitavam aos alunos a apropriação de convenções da escrita. A produção textual que vinha após as atividades de leitura tinha um propósito e era contextualizada. As crianças escreviam a partir de um tema previamente conversado, registravam o trecho de que mais gostavam ao ouvir a leitura de uma história ou ao assistir a um vídeo, e, depois, produziam pequenos textos escritos, realizando o trabalho com as atividades epilinguísticas durante as produções. Assim, constituiu-se uma prática diferente dos estudos de Miller (2003) e Nogueira e Fontoura (2007), na qual se trabalhou com uma primeira versão de produção textual e posteriormente uma segunda. Uma possível explicação para esse dado é que as crianças estão em processo de alfabetização, portanto o objetivo não seria o aprimoramento da escrita e sim a aquisição do sistema alfabético. Nesse sentido, sabendo que as atividades epilinguísticas aconteceram durante o processo, Goulart (2000, p.163) explana:

São consideradas como indícios as marcas que revelem apagamentos (supressão de elementos do texto), oscilações (na forma de grafar uma mesma palavra repetida no texto, por exemplo), reelaborações, inserções e outras marcas que deem visibilidade à presença do sujeito no processo de apropriação da linguagem escrita.

Nas produções examinadas, a autora destaca ainda que as atividades epilinguísticas se mostraram em rasuras e em repetições. As ações da professora envolveram apresentar textos que circulam na sociedade, oferecendo situações de leitura, criando espaço para diálogo e para interações. Os resultados foram produções textuais nas quais os estudantes se apropriaram dos elementos conversados e os manifestaram nas reelaborações de trechos, através de modificações e de rasuras, por exemplo. Assim, mesmo que as crianças não estejam alfabetizadas, é importante que escrevam, ainda que do seu jeito particular, e principalmente que tenham contato com os textos, manuseiem livros, escutem histórias, conversem sobre elas e reflitam sobre a linguagem empregada a fim de verificar se aquela foi a estratégia mais adequada.

Outro trabalho com foco na produção textual é o de Rezende (2008), que faz uma sugestão de produção de textos a partir dos conceitos de autoria, de paráfrase e de ambiguidade, buscando superar uma perspectiva instrumental do ensino de língua, voltada para sua função social e rumo a uma perspectiva interdisciplinar, na qual o exercício da e com a linguagem engajaria o sujeito no conhecimento de si e do outro, produzindo textos ao se perceber criador e autor. Com essas preocupações e orientações, a autora propõe um exercício de atividade epilinguística com o “Retrato”, de Cecília Meireles, que envolve análise e transformação do poema em outro. Não há indicação quanto a qual faixa etária o exercício se destinaria. Parece mais dirigido a estudantes mais velhos, dos anos finais do Ensino Fundamental, podendo ser adaptado para os anos iniciais.

Solicitar a estudantes alterações em um texto de autor consagrado também foi o exercício proposto a estudantes do 5º e do 9º ano, analisado por Valentim e Onofre (2018) a partir da preocupação com os equívocos e com os limites, em livros didáticos e em gramáticas, do ensino da enunciação reportada. Essa enunciação é denominada nos manuais didáticos como discurso direto, indireto e indireto livre e se refere “às formas linguísticas que permitem reportar ou representar, de modo direto ou indireto, o discurso do outro ou o seu próprio discurso” (Valentim; Onofre, 2018, p.61). O exercício partiu desta pequena fábula de Millôr Fernandes, citada pelas autoras: “A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação” (Valentim; Onofre, 2018, p.67). Aos estudantes foi solicitado que reescrevessem, de forma que a mãe ganhasse voz, que indicassem as diferenças entre a reescrita e o texto original, e que opinassem sobre duas formas alternativas a “lhe prometeu uma surra: Eu vou lhe bater” e “ Você vai apanhar”. Sem recorrer à metalinguagem, portanto acionando a atividade epilinguística, o exercício realizado exemplificou como foi possível desencadear a reflexão sobre a enunciação reportada, indicando escolhas e requerendo justificativa sobre elas.

Partir da leitura de um texto de autor consagrado foi igualmente objeto do trabalho de Abud, Santos e Britto (2005), no qual indicam que uma turma do 7º ano teve contato com a letra da música “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime. Após a leitura, houve uma conversa sobre o texto, mediada pela professora e, em seguida, os estudantes criaram um poema com base no que foi lido. Um dos poemas produzidos foi selecionado pela professora para que a turma realizasse a atividade epilinguística. O texto foi projetado para que todos os alunos tivessem acesso e, depois da leitura, a reflexão foi desencadeada. O grupo sugeriu acrescentar a palavra “exótico”, porque concordou que deixaria o poema mais completo. Em outro momento, os estudantes queriam substituir a conjunção “e” por “ou”, porém a autora do texto explicou o motivo de ter empregado a segunda opção, então concordaram e acharam melhor deixar como estava.

O papel da professora nessa tarefa mostrou-se fundamental, pois ela foi a mediadora, indicando elementos despercebidos pelos estudantes. Além disso, colaborou de modo efetivo, apresentando textos bem escritos, que serviram de modelos para os alunos, com o emprego de um texto de Chico Buarque. A prática de leitura de textos bem escritos permite que os alunos percebam qual é o estilo da escrita do autor, como ele torna o texto mais bonito, quais expressões são utilizadas com o objetivo de obter determinado resultado – delicadeza, humor, ironia, coloquialidade. No processo de leitura, esses elementos são identificados e podem ser incorporados nas futuras produções textuais, contribuindo para melhor aprendizagem da língua portuguesa.

Já os trabalhos de Salviato-Silva (2008) e de Arndt-Wamser e Rezende (2014) se dedicaram ao ensino de conjunções para estudantes dos anos finais do ensino fundamental, por meio de exercícios e de diálogos, em vez de exercícios com nomenclaturas e classificações. Salviato-Silva tomou como ponto de partida algumas frases com construções semelhantes às que os estudantes produziam em seus textos, nas quais as conjunções utilizadas não condiziam com o que queriam expressar e explorou alternativas possíveis, seja das construções, ou das conjunções empregadas. Caminho similar percorreram Arndt-Wamser e Rezende (2014), explorando possibilidades de usos em enunciados que incluíam a conjunção “mas”. Nas duas pesquisas, as autoras ilustraram alternativas aos exercícios de classificação no ensino de análise linguística por meio da reflexão epilinguística.

A condução de uma discussão oral voltada para o enunciado: “Como que não pode ir para a cadeia?” foi o caminho percorrido por Arndt-Wamser e Rezende (2019), ao apresentarem o referido enunciado para estudantes de um 9º ano. A partir das reflexões orais desencadeadas por eles e mediadas pelas pesquisadoras, concluíram que a marca ‘como’ poderia representar uma quebra de expectativa, extrapolando a classificação usualmente proposta pela gramática, no sentido causal, comparativo ou conformativo. A noção de criminoso, presente no enunciado que disparou a discussão, também foi objeto de reflexão. Com isso, notou-se que os estudantes buscaram suas referências e as reelaboraram, tendo como resultado um novo sentido semântico. As provocações propostas pelas pesquisadoras aconteceram no plano oral, e a escolha se justificou pelo fato de essa linguagem ser mais espontânea e natural. A presença das atividades epilinguísticas manifestou-se em questionamentos como “Quais outros termos poderiam ser utilizados?” ou “Poderíamos substituir os termos sem alterar o sentido?”. Os estudantes recorreram às suas construções já estabelecidas, desestabilizaram-nas, modificaram-nas e incorporaram em seus conhecimentos os novos significados.

Em um segundo grupo de trabalhos, identificou-se a discussão sobre o “lugar das atividades epilinguísticas no ensino de Língua Portuguesa”. Kohle (2016) fez uma reflexão sobre a atuação docente, principalmente em relação ao ensino da escrita, enquanto Bezerra e Semeghini-Siqueira (2007), Souza (2009) e Silva (2010) recorreram a pesquisas empíricas, incluindo entrevistas e observações de aulas de docentes de língua portuguesa com o intuito de analisar os diferentes elementos do ensino, buscando ênfases, lacunas e discutindo as práticas. As três pesquisas empíricas constataram que na maioria das vezes a gramática ainda é predominante, tanto nos anos iniciais quanto nos finais do Ensino Fundamental.

Em pesquisa realizada junto a professoras das quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, Bezerra e Semeghini-Siqueira (2007) identificaram o apego à gramática, e apontaram como uma justificativa o fato de muitos professores não terem o hábito de ler, escrever e revisar seus textos “o professor que não tem o hábito de ler, escrever e operar sobre seus próprios textos, transformando-os, ampliando-os, sintetizando-os, não terá constituído um repertório mínimo de habilidades que lhe permita ensinar aos alunos como operar de tal forma” (Bezerra; Semeghini-Siqueira, 2007, p.8).

Por terem dificuldade para refletir e operar sobre seus próprios textos, muitas vezes as professoras recorrem aos manuais de gramática, encontrando neles respostas prontas, padronizadas, e, assim, permanecendo em um campo de maior segurança para ensinar.

É importante que a professora invista tempo para ampliar seus hábitos de leitura e de escrita e que o trabalho com as atividades epilinguísticas seja parte de sua formação, com o intuito de expandir as práticas pedagógicas (Souza, 2009). Percebe-se tal ausência na entrevista realizada com uma professora do 2º ano do 2º ciclo (equivalente ao 5º ano) de uma escola pública de Recife:

A docente nos pareceu viver um dilema entre aquilo que ela acredita que deve ser o ensino de língua materna e aquilo que ela pensa que os alunos precisam aprender para ler e escrever bem. Em relação aos conteúdos que ela acredita ser mais importante trabalhar na sala de aula, a docente elencou os aspectos ortográficos, a pontuação, o parágrafo, os tempos verbais e número dos substantivos, e pontuou que esse ensino deveria acontecer de forma contextualizada, ou seja, a partir do texto

(Souza, 2009, p.7).

Nesse excerto, a professora parece indicar apenas a análise metalinguística dentre os tópicos a serem trabalhados, não mencionando atividades linguísticas e epilinguísticas, embora os conteúdos indicados possam ser objeto de análise epilinguística, dependendo da condução realizada, o que não foi apontado por ela.

Silva (2010) buscou investigar como duas professoras de 8ª série conduziam o ensino de análise linguística. Por meio de entrevistas e de observações, verificou que ora recorrem ao ensino da tradição gramatical, ora instigam questões que remetem à reflexão, inclusive de ordem epilinguística.

Partindo da preocupação sobre o papel docente para um ensino de produção e de compreensão textual movida pela atribuição de sentido, Kohle (2016) pontua alguns elementos desse ensino. A escolha das práticas pedagógicas deve ter como objetivo ampliar o repertório dos estudantes, buscando selecionar materiais e textos ricos e contextualizados e oferecendo diversos gêneros textuais, visando à autonomia e à consciência dos alunos em suas decisões para que possam se expressar da melhor maneira em cada situação comunicativa. Outro elemento diz respeito à inclusão das atividades epilinguísticas nas práticas pedagógicas voltadas para o ensino da escrita, pois, para a autora, as reflexões sobre a língua, manifestadas nas “negociações de sentido, autocorreções, reelaborações, antecipações” (Kohle, 2016, p.572), proporcionam novos saberes, construídos a partir das mediações e operações sobre a língua.

Um terceiro e um último tipo de contribuição dos estudos analisados se refere àqueles voltados para aspectos teóricos e conceituais. Denominanos este grupo de “concepções de atividades epilinguísticas”, e identificamos este foco nos trabalhos de Romero (2011) e de Pietri (2018).

Romero discute alguns aspectos das formulações de Franchi (2006), entendendo, por exemplo, que não haveria contradição entre a definição de Culioli de atividade epilinguística, que considera essa atividade como sendo a reflexão inconsciente sobre a língua, e a concepção de Franchi, que a define como “atividade seletiva do sujeito” (Franchi, 2006, p.66).

Pietri (2018), com o intuito de discutir e problematizar a relação entre ensino de língua e condições de produção da linguagem na escola, realiza a análise de três documentos que vêm subsidiando o trabalho com Língua Portuguesa: o artigo “Criatividade e Gramática”, de Carlos Franchi, publicado em 2006, com primeira versão em 1987; a “Proposta Curricular para o Ensino de Língua Portuguesa” (doravante Proposta), publicada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em 1988; e os “Parâmetros Curriculares Nacionais” (Língua Portuguesa, terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental), publicação do Ministério da Educação de 1998 (doravante Parâmetros). Sua análise, empreendida com base na Análise do Discurso na linha francesa de Maingueneau, foca nos conceitos de atividade linguística e epilinguística. Além disso, identifica o artigo de Franchi como tendo base construtivista, por se amparar nas formulações de Culioli e por sua centralidade no indivíduo, em que as atividades epilinguísticas possibilitariam “tornar consciente, para o sujeito, os efeitos que sua atividade produz para o desenvolvimento de seu conhecimento linguístico” (Pietri, 2018, p.546), num discurso marcadamente acadêmico, que circula entre pesquisadores.

Diferentemente, a Proposta assumiria um discurso pedagógico, de circulação entre profissionais da escola, e com fundamentação sociointeracionista para a compreensão da linguagem. Nela, o ensino de Língua Portuguesa estaria fortemente associado à transformação (tanto da linguagem quanto social), e os usos da linguagem se constituiriam na interação entre os sujeitos, o que inclui a sala de aula, tomada como lócus socialmente condicionado do trabalho com o texto, unidade da atividade linguística. Nessa perspectiva, a atividade epilinguística é associada ao conceito de trabalho, tornando possível aos sujeitos a tomada de consciência dos usos e das condições de produção da linguagem, com destaque para o papel da escrita. Pietri associa o referido documento a um discurso pedagógico, pela centralidade do contexto de ensino e das relações entre língua e ensino.

Outro discurso, o oficial, marcaria o terceiro documento, dos Parâmetros, ao qual o autor associa as ideias de adequação, de simulação, de regulação e de controle: adequação dos recursos expressivos aos usos e não mais transformação; simulação pois a referência para as interações não é mais a sala de aula, e sim os contextos extraescolares; regulação pela ênfase às convenções; e controle, posto que se trata de um documento para atender demandas da sociedade, ditadas pelo governo central. O autor critica, nos Parâmetros, o que considera a centralidade das atividades epilinguísticas no texto literário, e não mais nas produções textuais dos alunos, embora essa possibilidade tenha sido indicada em trecho do documento analisado no artigo em questão. Em sua análise, as atividades epilinguísticas nos Parâmetros “não são apresentadas como operações que o sujeito poderia realizar com e sobre a linguagem, de modo a construir novas possibilidades linguísticas ou produzir transformações sociais” (Pietri, 2018, p.544).

Em que pese a perspectiva de que a educação escolar deva se voltar para a transformação social, não parece possível negar que as possibilidades da proposta com atividades epilinguísticas nos Parâmetros oferecem novas construções linguísticas, assim como carecem de argumentação mais convincente com exemplificação sobre quais seriam as potencialidades de transformação social das atividades epilinguísticas em práticas de fundamentação sociointeracionista. Toda prática pedagógica fundamenta-se em determinada concepção de conhecimento, educação e processo de ensino e aprendizagem, que podem ser profícuos objetos de análise, embora não se possa concordar com a postulação do autor de que “A escola é considerada a instituição principal para a realização das transformações sociais [...]” (Pietri, 2018, p.546). Essa ideia é considerada ilusão ou mito, porquanto a literatura educacional de matriz crítica dimensiona os limites da instituição escolar, uma das agências que poderia, com outras, contribuir para a transformação social, tal como apontado por Saviani (1986), não se podendo contudo atribuir-lhe a principal responsabilidade por mudanças na ordem social.

Um aspecto problematizado pelo autor se refere às práticas realizadas na escola consideradas não autênticas nos Parâmetros, o que impacta muitas formulações do conceito de letramento vigentes, seja nos discursos acadêmicos ou em materiais curriculares dirigidos a professoras, e que mereceria uma discussão mais aprofundada, mas ainda não foi objeto de discussão no campo do ensino de Língua Portuguesa.

Alguns dos estudos analisados indicaram possibilidades da inclusão das atividades epilinguísticas em práticas pedagógicas e tiveram como foco processos de ensino e aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental (Goulart, 2000; Miller, 2003; Santos, 2005; Bezerra; Semeghini-Siqueira, 2007; Nogueira; Fontoura; 2007; Souza, 2009; Valentim; Onofre, 2018), tendo sido possível perceber que, quando realizada, a análise epilinguística pôde possibilitar o processo reflexivo sobre a língua de uma forma significativa e produtiva desde o início do processo de escolarização.

Considerações Finais

As pesquisas indicaram algumas possibilidades de mediações focadas em atividades epilinguísticas, com destaque para aquelas dirigidas à produção textual escrita, tomando como ponto de partida textos de autores e autoras consagrados, ou com outras propostas de escrita. A discussão oral sem a finalidade de produzir um texto escrito também se fez presente. A apreciação dos recursos linguísticos em textos consagrados não apareceu de forma central, embora tenha sido incluída em alguns desses estudos. Explorar esse tipo de texto desde o início da escolarização potencializa o reconhecimento de escritas originais em textos mais autorais e de boa qualidade, contribuindo para a apreciação de textos bem escritos, literários ou não, além das possiblidades verificadas nas pesquisas, de desencadear produções textuais mais coesas, coerentes e significativas. Considerando o início da etapa de alfabetização, na qual o principal desafio é a aquisição da escrita, a reflexão sobre os recursos linguísticos empregados em textos de boa qualidade é uma prática possível, posto que a consideração das atividades epilinguísticas nas produções textuais próprias só se realizará posteriormente.

As pesquisas analisadas indicaram que ainda representa um desafio para as professoras o trabalho de análise linguística envolvendo as atividades epilinguísticas, pois prevalece a análise linguística com foco na metalinguagem, como já vem sendo indicado há 30 anos. A metalinguagem tem o seu lugar no ensino, porém não há sentido em aprender Língua Portuguesa por meio das nomenclaturas e classificações, sem espaço para as reflexões acerca do uso dos diferentes recursos expressivos e seus possíveis efeitos. O problema se agrava quando se considera a faixa etária dos anos iniciais, que deve ter o processo de ensino e aprendizagem mais voltado para a leitura, para a escrita e para a análise da língua em uso do que para atividades metalinguísticas. Um dos trabalhos recomenda que esse dilema seja um aspecto a ser melhor contemplado na formação de professoras.

A reflexão sobre os diferentes interesses que marcam os discursos pode delinear de forma mais consistente a fundamentação e as práticas pedagógicas envolvendo as atividades epilinguísticas. Pesquisas que se detiveram sobre os anos iniciais do Ensino Fundamental apontam para as possibilidades da análise epilinguística contribuindo para um processo reflexivo sobre a língua desde o início da escolarização nesse nível de ensino, e até mesmo antes de as crianças estarem alfabetizadas.

3O texto Concepções de linguagem e ensino de português, de J.W. Geraldi foi publicado pela primeira vez em 1982 na Revista Ande e Criatividade e Gramática, de C. Franchi, teve sua primeira versão mais difundida em 1987, no periódico Trabalhos em Linguística Aplicada, embora tenha circulado antes disto mimeografado.

4Será empregado o termo no feminino, considerando que o contingente docente no Ensino Fundamental é formado majoritariamente por professoras.

Como citar este artigo/How to cite this article

Garcia, M.G.; Sisla, H.C. Atividades epilinguísticas e práticas pedagógicas. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 25, e204904, 2020. https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4904

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Recebido: 24 de Abril de 2020; Revisado: 11 de Setembro de 2020; Aceito: 19 de Fevereiro de 2020

Correspondência para/Correspondence to: H.C. SISLA. E-mail: heloisasisla@gmail.com.

Colaboradores

Ambas as autoras participaram desde a concepção do projeto, organização e análise dos dados, assim como da redação do artigo.

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