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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4932 

Alfabetização e o processo de apropriação da língua materna: políticas, formação de professores e práticas pedagógicas

O ensino da língua materna na École Maternelle pública francesa1

The teaching of the mother tongue at public french Maternelle School

Fabiana Aparecida dos Reis2 
http://orcid.org/0000-0001-8238-1393

Milena Moretto2 
http://orcid.org/0000-0002-1924-1678

2Universidade São Francisco, Programa de Pós-Graduação Educação. Av. Senador Lacerda Franco, 360, Centro, 13250-400, Itatiba, SP, Brasil.


Resumo

As experiências como professora da Educação Infantil foram as razões que motivaram a investigação do trabalho com a língua materna nesse nível escolar. Todavia, a oportunidade de vivenciar algumas práticas de ensino em uma escola de Coësmes (França) proporcionou o interesse de realizar pesquisa no território francês de forma a compreender como a alfabetização tem ocorrido nesse país. Diante disso, o presente trabalho objetiva analisar o que as docentes francesas priorizam em relação ao ensino da língua materna com crianças de quatro anos. Foram realizadas entrevistas narrativas com duas professoras que lecionam em uma escola pública localizada no centro de Paris. As análises mostram que elas priorizam a alfabetização ao invés do letramento e o ensino da língua pátria, ou seja, objetivam a alfabetização das crianças francesas e daquelas que vieram de outros países.

Palavras-chave Alfabetização e ensino de língua materna; Concepção de linguagem; Educação Infantil

Abstract

A set of experiences as a pre-school teacher was the reason that motivated us to investigate work with the mother tongue at this school level. However, the opportunity to experience teaching practices in a school in Coësmes (France) provided the interest to conduct research in French territory in order to understand how literacy occurs in this country. This article aims to analyze what French teachers prioritize in relation to the teaching of the mother tongue with four-year-old children. We conducted narrative interviews with two teachers who work at a public school located in the center of Paris. The analyzes show that the teachers prioritize the appropriation of the alphabetization and the standard French language, that is, the teaching aims at the alphabetization of French children and those who came from other countries. Therefore, this research aims to analyze what the French teachers prioritize in relation to the teaching of the mother tongue with such children. We conducted narrative interviews with two teachers who teach in a public school located in the center of Paris. The analyzes show that the teachers prioritize alphabetization over literacy and the teaching of the mother tongue, that is, their work aims at the literacy of French children and those who came from other countries.

Keywords Alphabetization and teaching of mother tongue; Conception of language; Pre-school

Introdução

O presente artigo apresenta um recorte de uma pesquisa realizada durante o curso de Pós-Graduação Stricto Sensu, em nível de Mestrado em Educação, e foi motivado pelas indagações emergidas de experiências pessoais com o ensino de língua materna na Educação Infantil.

Enquanto professora desse segmento, tendo como base as leituras sobre letramento e alfabetização e como prática o ensino de língua pautado nos gêneros textuais, sempre me questionei3 se o ensino da língua, na Educação Infantil, deveria se pautar na alfabetização4 ou se as crianças entre quatro e cinco anos conseguiriam já reconhecer características particulares de alguns textos. Questionava-me se a função da Educação Infantil seria apenas alfabetizar ou se poderíamos pensar em questões de letramento5 nessa etapa.

Diante desses questionamentos, tive a oportunidade de visitar uma escola em Coësmes (França), que proporcionou o contato com uma configuração de ensino até então desconhecida por mim, pois, na época da pesquisa, tratava-se de um segmento escolar estruturado com documentos e currículo próprios, mas com matrícula facultativa. Esses aspectos despertaram o interesse em investigar como seria o ensino de língua materna nas escolas francesas, na intenção de entender o que as professoras priorizavam em relação ao ensino da língua na École Maternelle, que seria a Educação Infantil no Brasil.

Um aspecto que justifica a escolha de um contexto diferente do nosso é que algumas teorias adotadas no Brasil procedem de estudos europeus, a saber as pesquisas sobre gêneros textuais, do grupo de Genebra, e a perspectiva de letramento, do britânico Street (2014). Então, estando há 10.000 quilômetros de distância do Brasil e em território europeu, talvez eu pudesse observar um diferente contexto de produção de conhecimento, para buscar compreender melhor nosso trabalho com a alfabetização e com o letramento nesse país.

Esperávamos que a interação com as professoras francesas, estabelecida por meio de entrevistas narrativas, pudesse trazer contribuições no sentido de fazer-nos compreender melhor, re(significar) o trabalho e as práticas de ensino da língua na Educação Infantil, algo que sempre aguçou minha curiosidade. Não pretendíamos, pois, comparar as práticas europeias com as brasileiras, mas pensar sobre como os relatos das professoras entrevistadas poderiam trazer contribuições ou se eles se assemelhariam aos de outros professores brasileiros no que concerne ao ensino da língua.

Para isso, pautamo-nos nos construtos teóricos de Benjamin (1994) e Larrosa (2011) para discutir sobre a experiência, nos pressupostos da teoria enunciativo-discursiva de Mikhail Bakhtin, por enfatizar a natureza social e dialógica da língua, e nas questões sobre alfabetização e letramento discutidas por Kleiman (1995, 2005), Mortatti (2006) e Street (2014). Temos também, como subsídio teórico para as entrevistas narrativas, as considerações do método (auto)biográfico a partir das orientações de Jovchelovitch e Bauer (2005).

O artigo está estruturado da seguinte forma: em um primeiro momento, discorremos sobre os pressupostos teóricos que fundamentaram nossa pesquisa. Na sequência, comentamos os procedimentos metodológicos utilizados; em seguida, fazemos a análise realizada a partir das entrevistas com professoras da escola pública francesa. Para finalizar, a última parte do trabalho contempla a conclusão.

Linguagem e educação: perspectiva de trabalho com a língua

Para Benjamin (1994), as experiências estão deixando de ser comunicáveis. “Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, 1994, p.198).

É justamente isso o que busquei no país francês: intercambiar experiências, adentrar em espaços desconhecidos para ouvir o outro, uma vez que toda experiência traz descoberta. Assim, conhecer o contexto desta pesquisa, vivenciar alguns dias na École des Épinettes, situada na região central de Paris, e dialogar com duas docentes foram momentos que atravessaram e transformaram meu olhar de professora-pesquisadora no que diz respeito às questões de alfabetização. Antes, porém, de apresentarmos os apontamentos dessa interação, cabe-nos discorrer sobre os aportes teóricos que ancoram o estudo.

Assumimos, neste trabalho, a perspectiva de língua(gem) adotada pelo Círculo de Bakhtin, por acreditar que ela se faz na e através das relações sociais. No livro “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, Bakhtin e Volóchinov dialogam com duas concepções de língua assumidas por correntes linguísticas distintas vigentes no início do século e que, de certa forma, muitas vezes estão ainda muito presentes em nossas escolas: o Objetivismo Abstrato e o Subjetivismo Individualista. O primeiro está relacionado com a Gramática Gerativa, de Ferdinand Saussure, enquanto o segundo concebe a língua como expressão do pensamento. A respeito da Gramática Gerativa, os autores dizem que a língua, para Saussure (2012), é um objeto abstrato ideal, que se consagra a partir de um sistema sincrônico homogêneo e rejeita as manifestações individuais. Os estudos bakhtinianos, por sua vez, valorizam justamente a fala, a enunciação, e afirmam que qualquer enunciação é de natureza social, não individual: “a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais” (Bakhtin; Volochinov, 2006, p.7).

Para os representantes do Objetivismo Abstrato, a língua é vista como um sistema de regras estáveis e imutáveis já pronto e passado de geração para geração.

Já os adeptos da segunda corrente filosófica – os subjetivistas – caminham em direção diferente dos estruturalistas, pois propõem estudar a fala e não a língua. Todavia, defendem que a fala é de criação individual, ou seja, para eles, a língua é um processo criativo e ininterrupto, que se materializa sob a forma de atos individuais de fala.

Considerando essas duas concepções, se no Objetivismo Abstrato a língua opõe-se ao indivíduo, que só pode aceitá-la dessa forma, devido ao seu caráter normativo, no Subjetivismo Individualista, o psiquismo individual constitui a fonte da língua. O Círculo de Bakhtin contrapõe-se a essas correntes e defende que a língua é essencialmente social e dialógica. Para eles,

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua

(Bakhtin; Volochinov, 2006, p.125).

Em outras palavras, a língua é de natureza social, pois ela existe dentro de um contexto social. Considerando-se esse aspecto, “há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido” (Bakhtin; Volochinov, 2006, p.9). Há sempre o outro e a(s) voz(es) do(s) outro(s) que está(ão) ao nosso redor e que nos constituem. Assim, pode-se pensar a língua se manifestando através das interações sociais, pois há sempre um locutor e um interlocutor operando sobre ela. Levando as ideias bakhtinianas em consideração, dizemos que somos afetados e afetamos os enunciados uns dos outros.

Para Bakhtin e Volochinov (2006), a língua compreende os enunciados e esses apenas funcionam a partir das relações. Dessa forma, é impossível concebê-la como um sistema linguístico abstrato, imutável e normativo – como defendem os objetivistas –, ou de caráter estritamente psicológico, como argumentam os subjetivistas.

Além disso, para os autores russos, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (Bakhtin; Volochinov, 2006, p.96). Nesse caso, o sentido da palavra é determinado pelo seu contexto, uma vez que, se a sociedade evolui, com a linguagem ocorre o mesmo processo.

Se considerarmos a língua e seu caráter ideológico, estamos destacando valores e posição social, bem como os papéis assumidos pelos falantes. Assim, ela se relaciona diretamente com o poder. Para Gnerre (1991, p.5), ela não é usada apenas em sua função referencial e denotativa, pois “as pessoas falam para serem ouvidas, às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos linguísticos”.

É assumindo o conceito de língua e sua natureza social e dialógica que pretendemos discutir a seguir sobre as implicações do termo alfabetização e letramento no contexto escolar.

O ensino da língua pautado nas práticas de alfabetização e de letramento

Infelizmente, ainda nos dias atuais, nas práticas sociais escolares, há o predomínio apenas da alfabetização ou somente do letramento, o que segundo Soares (2004) tem comprometido significativamente o ensino. Soares (2004) defende que não haja a dissociação entre alfabetização e letramento, já que, segundo a autora, esses

[...] não são processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização

(Soares, 2004, p.14).

Nessa linha de raciocínio, Mortatti (2006) discorre sobre o ensino da leitura e da escrita na fase inicial de escolarização de crianças e argumenta que existem muitas tensões no “complexo movimento histórico de constituição da alfabetização como prática escolar e como objeto de estudo/pesquisa” (Mortatti, 2006, p.1).

Das urgências específicas de cada momento, sempre emerge uma nova proposta de trabalho de alfabetização (ou método), descaracterizando a anterior, que passa a ser vista como decadente e como obstáculo ao progresso das crianças para “realizarem plenamente seu direito de aprender a ler e escrever” (Mortatti, 2006, p.2). Assim sendo, de modo a organizar o ensino nos anos iniciais, surgiram, ao longo do tempo, diversos métodos de alfabetização.

No método sintético, por exemplo, há dois caminhos: o fônico e o silábico. No primeiro, trabalha--se com a menor unidade da palavra, o som e o seu contraponto, para a escrita, que é a letra. Nele, a ideia que se tem é que a criança deve aprender as letras (maiúsculas e minúsculas) e depois suas combinações, formando as estruturas silábicas, que são decoradas. Em outras palavras, primeiro aprende--se a reconhecer o nome de cada letra, bem como o nome das sílabas que são possíveis e se formam com essa unidade menor. Já no segundo método, explora-se a articulação dos sons, apresentando às crianças uma determinada palavra e sua respectiva família silábica. Nos dois casos, há o mesmo percurso: parte-se de uma unidade menor para se chegar à maior, que é o texto, e explorar a decifração dos sons.

A partir da década de 1980, com a introdução do pensamento construtivista no Brasil e dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita de Ferreiro e Teberosky (1985), houve um deslocamento das discussões sobre os métodos de ensino para o processo de aprendizagem das crianças. Novamente, surgiu uma outra perspectiva de trabalho para a alfabetização.

A concepção de Ferreiro e Teberosky (1985) traz uma teoria que avalia as fases de escrita pelas quais os seus adeptos acreditam que as crianças passem. Na primeira etapa, elas começam a fazer distinção entre o material gráfico icônico e o não icônico. Na segunda, as crianças percebem que coisas diferentes devem ser lidas e escritas de formas diferentes. No último estágio, tentam dar valor sonoro para as letras que formam as palavras, formulando hipóteses sobre a escrita. Melhor dizendo, surge a noção de fonetização da escrita. Nesse sentido, acreditam que a criança vai construindo suposições sobre o ato de escrever, sobre a escolha e sobre a quantidade de letras.

Para além dessas concepções de alfabetização, mais recentemente, surge uma proposta de trabalho partindo dos textos socialmente usados ou produzidos pelos sujeitos em momentos de comunicação e não mais o estudo das letras, sílabas, palavras e frases. São os estudos sobre letramento.

Assumimos neste trabalho a concepção norteada pelos Novos Estudos do Letramento que levam em consideração as práticas sociais de uso da língua. Kleiman (2005) chama-nos atenção para o fato de que quando a criança está aprendendo a ler e a escrever, ela já lê o mundo. Isso significa dizer que ela está em processo de letramento.

Assim, a autora nos convida a discutir as questões de letramento escolar de um ponto de vista sociológico e antropológico, ou seja, a refletir sobre os modos de circulação de textos na escola. Baseando-se em Street (2014), a linguista explora dois tipos de letramento, o autônomo e o ideológico: no primeiro, é o funcionamento lógico interno do texto que determina o processo de interpretação. Logo, o segundo não tem relação com o contexto de produção para ser entendido e interpretado.

De acordo com Street (2014), no modelo autônomo de letramento, como se tem uma língua desvinculada de seu contexto, há o distanciamento entre a língua e os sujeitos, sendo que esses são receptores passivos das regras e das exigências externas da língua. Esta, por sua vez, aparece como “neutra, disfarçando-se desse modo a fonte ideológica daquilo que de fato são construções sociais” (Street, 2014, p.129).

Para Street (2014), o modelo ideológico contempla a interação social entre os indivíduos e leva em consideração a participação ativa dos falantes em uma sociedade com culturas variadas. Isso nos permite afirmar “que todas as práticas de letramento são aspectos não apenas da cultura, mas também das estruturas de poder numa sociedade” (Kleiman, 1995, p.38).

Levando em consideração os aportes aqui apresentados, a seguir discorreremos sobre os procedimentos metodológicos que possibilitaram a investigação.

Procedimentos Metodológicos

O caminho investigativo percorrido: ação-análise-reflexão

Para a realização da pesquisa e, consequentemente, da produção de dados, optou-se por trabalhar a perspectiva do método (auto)biográfico. Nesse método de investigação qualitativa, há diferentes mecanismos de produção e de análise de dados. Nós assumimos as entrevistas narrativas como instrumento de trabalho, apoiando-nos nas considerações de Jovchelovitch e Bauer (2005).

Esse tipo de entrevista rompe com a forma clássica baseada em perguntas e respostas ao promover questionamentos que levem o sujeito a narrar. Trata-se de um instrumento capaz de produzir conhecimento e leva-nos a compreender as ações e as singularidades dos sujeitos depoentes que foram sócio e historicamente construídas. Melhor dizendo, possibilita entender como diferentes pessoas dão sentido às suas histórias de vida (pessoal e profissional).

Apresentamos uma análise das entrevistas narrativas realizadas com duas professoras da escola pública francesa. Durante as narrativas, uma das educadoras evidenciou suas escolhas metodológicas e concepções teóricas. Assim, optamos por chamá-la pelo pronome de tratamento feminino, utilizado na França, seguido do sobrenome da estudiosa da Educação que identificamos com o perfil profissional dela, Maria Montessori. Quando a entrevistada não se posicionou quanto às suas preferências teórico--metodológicas, adotou-se um nome de estudioso da área da Educação que a entrevistada dizia que gostava. No caso da segunda entrevistada, a escolha foi em homenagem à Emilia Reggio.

Para a realização das entrevistas, tomamos como base, como já citado, as considerações de Jovchelovitch e Bauer (2005) e elaboramos um roteiro de questões exmanentes, perguntas que norteiam a pesquisa e são de interesse do pesquisador, considerando-se o tema em estudo. Com essa metodologia, pudemos, no decorrer da entrevista, realizar questões denominadas imanentes, que emergem dos acontecimentos mencionados pelo depoente ou de tópicos lacunados da fala dos depoentes. O roteiro elaborado, portanto, serviu apenas como um organizador do que se pretendia observar e investigar. No Quadro 1 trazemos as questões eminentes que guiaram as entrevistas realizadas.

Quadro 1 Roteiro de questões a nortearem a investigação. 

Questões
1- Conte-me como foi sua trajetória escolar, suas memórias, o que marcou nessa trajetória, como aprendeu a ler e a escrever etc. Conte-me um pouco de sua experiência como estudante durante a Educação Infantil e o Ensino Fundamental.
2- Conte-me um pouco sobre sua experiência profissional. Poderia me relatar um pouco das atividades exercidas por você ao longo da vida?
3- Conte um pouco de como você decidiu ser professora de Educação Infantil.
4- Conte-me um pouco como acontece o seu trabalho na educação infantil.
5- Conte-me um pouco como você desenvolve o trabalho de linguagem com as crianças de quatro anos. Comente sobre a metodologia que utiliza e os recursos utilizados por você ao explorar a linguagem na Educação Infantil.

Fonte: Reis (2020, p.59).

A partir dessas perguntas, percebe-se que a técnica da entrevista narrativa nos dá liberdade para abordar questões em que os indivíduos pesquisados destacam suas singularidades. Para Bolívar (2002, p.6, tradução nossa) 6 “uma narrativa hermenêutica, pelo contrário, permite compreender a complexidade psicológica das narrativas que os indivíduos fazem dos conflitos e dilemas de suas vidas”.

Em outras palavras, conforme o autor, nosso papel enquanto pesquisadores não é apenas tomar nota de aspectos que julgamos relevantes da fala do depoente, mas tentar decifrar aspectos relevantes da vida dos sujeitos e situar, explicar o contexto de produção em que eles estão inseridos.

Jovchelovitch e Bauer (2005, p.93) argumentam que “a entrevista narrativa tem em vista uma situação que encoraje e estimule um entrevistado a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social”. Nesse sentido, eles apresentam um procedimento de como realizá-las. Segundo os autores, esse instrumento de pesquisa deve se basear em quatro etapas, a saber: (1) Iniciação; (2) Narração central; (3) Fase de questionamento; e (4) Fala conclusiva.

Na fase de iniciação – que é de interesse do entrevistador –, é preciso explicar de forma geral ao informante as etapas de investigação, a “narração sem interrupções”, a “fase de questionamento” e a “fase de conclusão”, ou seja, apresentar a estrutura, o começo e o fim da entrevista.

Na etapa da “narração central”, não deve haver interrupção por parte do entrevistador, até que se tenha alguma indicação do informante. Por isso, a parte das perguntas é o momento da escuta atenta do entrevistador – as questões exmanentes são transformadas em imanentes (quando necessário), fazendo uso das palavras do informante/depoente.

A última fase – a conclusiva –, é o momento das discussões em forma de comentários. Isso acontece com o gravador desligado e pode fornecer caminhos para a interpretação dos dados da narrativa, através de comentários dos depoentes. Esse pode ser o momento do “por quê?” até então não questionado durante a entrevista. É nessa etapa que temos também acesso a outras informações não comentadas na entrevista e que compõem o contexto da pesquisa: os materiais utilizados pelos depoentes, fotos e vídeos – quando há autorização deles para fazê-los.

Após a realização das entrevistas, foi preciso transcrevê-las e traduzi-las no caso deste trabalho. A tradução não foi tarefa simples, uma vez que muitas palavras faziam ou tinham sentido apenas naquele contexto, no momento da entrevista. Assim, a tradução parece não traduzir plenamente a riqueza dos momentos vividos. O conceito de língua defendido por Bakhtin e Volóchinov (2006) e por nós assumido ajuda-nos a entender esse fenômeno, afinal, a palavra é carregada de um sentido ideológico e vivencial. Além disso, como reforçam os autores, cada enunciado é único e irrepetível.

Após a transcrição e a tradução, constituída de convergências e divergências das falas das entrevistadas, elencamos dois eixos temáticos para a realização de nossas análises, sendo eles: (1) o trabalho com a língua oral e escrita e (2) o trabalho das professoras e os documentos oficiais franceses. Neste artigo, porém, discutiremos o primeiro, que trata do trabalho com a língua na École Maternelle.

Por isso, na sequência, apresentamos nossas análises sobre esse eixo temático, que não foi construído a priori, mas a partir de uma análise minuciosa das histórias apresentadas nas entrevistas das depoentes e (re)significada pela professora-pesquisadora durante o processo de narração e o de análise.

Colocando-me à escuta das professoras

Por meio da organização da análise das entrevistas em eixos temáticos pudemos refletir sobre aspectos que julgamos importantes, na tentativa de entender o trabalho pedagógico das professoras francesas sobre o ensino da língua materna. Assim sendo, considerando-se o primeiro eixo de análise, que evidencia o trabalho com a língua realizado pelas depoentes, destacamos trechos das narrativas em que elas comentam as seguintes questões: oralidade, trabalho do professor como escriba, ensino da língua focado meramente na alfabetização e dificuldade de se ensinar a língua pátria para alunos que não falam francês.

Nesse sentido, Madame Reggio afirma o seguinte sobre o ensino da língua em sua modalidade oral:

[...] com as crianças que não sabem ler nem escrever, para a escrita fazemos (o ditado para o adulto), são as crianças que nos dizem o que escrever, é chamado de “ditado ao adulto”, nós escrevemos o que eles nos dizem, nós escrevemos suas frases para eles, e então nós corrigimos, nós vemos com as crianças, “você entende?”, “é isso?”[...] vemos que existem erros, então [...] então necessariamente é muito oral”

(Madame Reggio, tradução nossa)7.

Percebe-se, nessa fala, que o adulto tem papel importante no processo de aquisição da língua escrita pela criança. Segundo a professora, quando estão na École Maternelle e ainda não sabem ler, o professor é o escriba, ou seja, é ele quem escreve para a criança. O que nos chama a atenção é que, desde pequenos, ao tentarem escrever, já existe a interferência do adulto, que questiona o que a criança ditou (pedindo que diga o nome das letras e o que escreveu, ou seja, que oralize a escrita), na intenção da escrita correta e convencional.

Já Madame Montessori, ao falar sobre o trabalho com a língua oral, comenta que:

[...] no nível da linguagem oral, é tanto a construção de frases quanto o vocabulário, de fato. Em qualquer caso, um não vai sem o outro, você deve ter vocabulário para ser capaz de fazer frases complexas, por isso são as duas partes importantes. [...] muito disso é individual. Depois, é coletivo também quando estamos em um grupo e vamos ditar para o adulto, é quando precisamos escrever algo para o livro (fazendo referência ao projeto que estão terminando), por exemplo, quando lemos, quando eu leio um livro, mas há uma grande parte individual também

(Madame Montessori, tradução nossa, grifo nosso)8.

Quando nos diz “você deve ter vocabulário para ser capaz de fazer frases complexas”9, Madame Montessori parece ver no trabalho com a oralidade uma possiblidade de explorar o vocabulário das crianças para que aos poucos elas se apropriem de formas mais complexas da língua. Ela também cita o ditado para o adulto, como fez a professora Madame Reggio. Além disso, comenta a parte individual dessa tarefa, a qual é feita nos ateliês de leitura.

Os ateliês (aqui no Brasil chamado de cantinhos) de aprendizagem evidenciam a metodologia montessoriana, explorada por Madame Montessori com seus alunos. É uma estratégia bastante usada nas escolas de Educação Infantil, pois trabalha a autonomia das crianças, que, após ter a tarefa explicada pelo professor, podem realizá-la no momento que quiserem, considerando o prazo combinado em sala de aula. Assim, notamos que há espaços para que os alunos manuseiem e tenham contato com diferentes gêneros por meio de suportes diversos (livros, revistas, jornais, etc.). O que não foi evidenciado na fala da professora é a existência ou não de um trabalho sistemático de leitura nesse ateliê.

Ainda sobre a questão de exploração do vocabulário, Madame Montessori comenta sobre um material (envelope com cartas) que utiliza em sala de aula:

[...] São pequenos envelopes de vocabulário, para aprender [...] as palavras e é isso [...] a primeira vez, eu faço com elas, e então elas podem fazer tudo sozinhas ou com um amigo ou com Aurore (seria a nossa auxiliar de classe aqui), se quiserem. Assim, podemos apenas aprender o vocabulário, e então também podemos aprender a [...] podemos associar a imagem à palavra sozinha, então temos que encontrar a palavra que corresponde

(Madame Montessori, tradução nossa, grifo nosso)10.

Ela comenta que utiliza a estratégia que melhor atende à criança que está trabalhando com esse material. Madame Montessori novamente evidencia o trabalho com a pedagogia montessoriana, a qual defende a ideia de que cada criança tem seu ritmo e tempo de aprendizado. Uma frase da professora nos chama atenção: “a primeira vez, eu faço com elas, e então elas podem fazer tudo sozinhas ou com um amigo ou com Aurore (seria a nossa auxiliar de classe aqui)”11. Nesse trecho, não fica evidente uma interação entre professor e aluno ou entre os alunos para que juntos reflitam e construam hipóteses sobre a leitura, uma vez que a professora diz que as crianças podem trabalhar sozinhas nesse ateliê.

Porém, como estamos em um contexto de ensino-aprendizagem diferente do nosso, é preciso considerar o contexto da aprendizagem, que tem suas especificidades. Daí a necessidade de nos distanciarmos de nossa concepção e de pensarmos na realidade que está à nossa frente.

Retomando trechos das narrativas, Madame Reggio comenta sobre outra estratégia utilizada por ela:

[...] na École Maternelle, nós começamos a partir de imagens e as colocamos em ordem para entenderem, para que isso faça sentido, e depois explicamos o que acontece, e fazemos frases [...] nós damos significado ... isso é muito com álbuns, com leitura é assim também, nós trabalhamos muito com álbuns porque tem imagens, que é tranquilo para eles

(Madame Reggio, tradução nossa, grifo nosso)12.

A depoente comenta sobre a importância do trabalho com álbuns, que, por conterem imagens, auxiliam o trabalho de aquisição do vocabulário. Além disso, há o trabalho de ordenação de imagens, para que os alunos entendam a sequenciação de uma história e a narrem para a professora. Madame Reggio nos diz que “nós começamos a partir de imagens e as colocamos em ordem para entenderem, para que isso faça sentido, e depois explicamos o que acontece [...] e fazemos frases”13. Parece que a intenção do trabalho com imagens é explorar unidades da língua, as frases. Se retomarmos os métodos de alfabetização, podemos dizer que se trata de um exemplo de uso do método analítico, pois parte de uma unidade que tem significado (o álbum), para fazer uma análise de unidades menores (Mendonça; Mendonça, 2008).

O ensino de língua parece se restringir às habilidades individuais do aluno, que Street (2014) chama de letramento autônomo, e também às atividades de apropriação do vocabulário e, consequentemente, ao ensino da língua oral, objetivando apenas o processo de alfabetização.

Cabe-nos, agora, outras reflexões diante desse trecho: é possível formar cidadãos que apenas dominem o código escrito? Segundo Kleiman (1995), a alfabetização deve ir além da aquisição da escrita. Assim, acreditamos que isso não basta e que a aquisição do sistema alfabético diz respeito a tão somente uma habilidade da língua.

Madame Montessori, ao comentar sobre o trabalho com os álbuns, afirma:

[...] no método Montessori, há todo um trabalho em torno de nomenclaturas, por isso são pequenas imagens com as palavras abaixo para aprender o vocabulário, porque é algo que falta muito para crianças, não francófonas, em particular, para crianças cujos pais estão em situações difíceis, então é muito vocabulário [...] pelo menos para a linguagem oral, minha prioridade é mais falar com eles e prestar atenção ao seu vocabulário e ensinar vocabulário, é isso, é mais minhas prioridades

(Madame Montessori, tradução nossa, grifo nosso)14.

O que se pode notar nessa fala é que o trabalho com os álbuns para explorar questões da língua oral tem também um outro objetivo: ensinar a língua francesa na modalidade oral e escrita para as crianças que vieram ou que têm pais vindos de outros países.

Ambas as depoentes narram a dificuldade de ensinar a língua pátria, pois muitas crianças não têm o francês como língua materna. Nota-se que há a preocupação das professoras em ensinar as crianças imigrantes a falarem o francês culto. Isso é ilustrado pela fala da depoente Madame Reggio, ao nos relatar que corrige insistentemente uma garotinha que não faz uso adequado de preposições:

[...] em casa, eles falam um francês ruim, então eles aprendem estruturas gramaticais que são falsas, ou não falam sempre francês, falam apenas a língua materna deles, e isso é complicado, porque quando chegam CP ou CE1 é onde colocamos estruturas das frases e regras de gramática, conjugação, ortografia, então aí, elas ficam perdidas, porque não falam assim [...] mas eu tenho uma garotinha que vai para a CM1, ela ainda me diz a toda hora: “Posso colocar meu casaco ‘no’ (DANS) cabide? Meu casaco, está ‘no’ cabide”, e eu falo o tempo todo: “Não, ele não está, ele está ‘sobre’ o (SUR) cabide “, e ela comete o mesmo erro com sua mesa: “Eu posso usar a cola ‘na’ minha mesa?”, “Não, você não pode usar ‘na’ mesa, você pode usar ‘sobre’ a mesa ou ‘sobre’ o caderno, mas não ‘na’”, e ela fez isso o ano todo, mesmo se eu a corrijo, ela comete o mesmo erro, é em casa eles cometem o erro [...] então ela me diz “sim”, ela sabe, ela sabe... muito bem, mas isso não acontece todos eles dizem DANS ao invés de dizer SUR e é assim que nós lutamos, é difícil

(Madame Reggio, tradução nossa, grifo nosso)15.

Essa questão é motivo de angústia para a professora, que parece culpabilizar a família pelo francês “ruim” falado pela garotinha. Ela, então, continua falando dessa questão:

No nível da linguagem, de fato, para essas crianças que não têm uma língua, porque não falam em casa, devemos primeiro dar a elas a língua, dar-lhes sinônimos, então isso que é complicado, é que raramente vem deles, porque os pais não são referência em casa para seus filhos, especialmente aqueles que não falam francês em casa

(Madame Reggio, tradução nossa, grifo nosso)16.

Por estarem em uma escola francesa e não falarem o francês legitimado socialmente, isso significa, para as professoras, que essas crianças “não têm uma língua”. Essa questão parece desconsiderar o conhecimento, a vivência e a cultura que elas trazem de casa, sugerindo que precisam ser substituídas pelos valores do país em que moram. Se pensarmos na inclusão social que esses alunos, ainda pequenos, já enfrentam, é necessário se apropriarem da língua francesa. Então, se isso não acontece em casa, a docente sente-se responsável por fazê-lo na escola, objetivando a interação deles no meio social do qual pertencem agora.

Talvez, enquanto estudiosos da língua e adeptos de uma perspectiva dialógica, possamos pensar que há uma problemática nessa situação vivida pelas professoras em sala de aula: ao desconsiderarem os diferentes idiomas que se misturam na escola devido à imigração (fenômeno visto em várias partes do mundo), diminuem-se as possibilidades das trocas dialógicas – perspectiva de Bakthin e Volóchinov (2006) sobre a “realidade fundamental da língua” enquanto “fenômeno social de interação verbal”.

Nesse contexto, parece haver uma questão cultural bastante significativa a respeito do uso correto da língua na sua variedade padrão, ao enfatizarem o trabalho de oralidade e o letramento autônomo. Isso se reflete nos discursos das professoras, como se pode ver explicitado no trecho abaixo:

[...] temos muitas origens diferentes e elas não falam francês em casa, então é difícil tirar o vocabulário delas, então você tem que lhes dar o vocabulário brincando com elas, jogos de sinônimos, como poderíamos dizer para isso, trabalhamos no retrato (imagem), por exemplo, vamos descrever uma bruxa, vamos descrever uma palavra, vamos descrever um animal, assim eles amam. Documentários, cartazes, vamos ao zoológico, faremos um cartaz de lobo, faremos um cartaz sobre [...] aqui, e esse é o primeiro trabalho de um montante, é isso, é dar-lhes vocabulário

(Madame Reggio, tradução nossa, grifo nosso)17.

Nesse trecho, Reggio comenta sobre a dificuldade de “tirar o vocabulário delas”, ou seja, as variedades linguísticas ou os diferentes idiomas têm um impacto na sala de aula. Ela então relata que utiliza cartazes e documentários durante as aulas, o que nos mostra que os gêneros textuais são utilizados. No entanto, apesar de serem contemplados em suas aulas, eles não são tratados com sua função social, mas como pretextos para o ensino do vocabulário francês, que é a sua prioridade.

Acreditamos que exercer a profissão nesse contexto é desafiador, pois as professoras precisam ensinar o francês – língua materna para alguns alunos, mas não para outros. Assim, além do aspecto pedagógico, há o político, ou seja, não há uma política pública voltada para os docentes, com formação específica para os que trabalham com alunos que falam outro idioma ou voltada para essas crianças e sua inclusão no ambiente escolar. Isso impacta diretamente as relações dialógicas e o aprendizado em sala de aula. Também é importante considerar o quanto o francês formal é trabalhado de forma rigorosa nas escolas, pois trata-se de um idioma rígido quanto à gramática e à pronúncia das palavras.

Gnerre (1991) defende a ideia de que a língua é um instrumento de poder. Por isso, as professoras francesas precisam ensinar a seus alunos o vocabulário e o francês formal para que essas crianças não sejam excluídas socialmente. Isso é uma questão de sobrevivência para elas. Ou seja, em sala de aula, não há espaço para trabalhar as funções sociais de um texto ou o letramento ideológico, uma vez que as docentes vão se adaptando à realidade que vivem no ambiente escolar. Parece que, pelas narrativas das professoras, as urgências são outras.

Considerações Finais

Considerando-se que somos constituídos pelas vozes dos outros, a oportunidade de estar em contato com um contexto de produção diferente proporcionou-me essa sensação e certeza. A princípio, acreditávamos que o ensino da língua materna na École Maternelle francesa, pautava-se em uma perspectiva dialógica, partindo do uso da leitura e escrita nas práticas sociais

Assim sendo, após uma breve análise das narrativas das professoras, ficou clara a concepção de língua que norteia a Educação Francesa: a estruturalista, defendida pelos seguidores do objetivismo abstrato e o trabalho de alfabetização. É evidente que nós, enquanto professores, preocupamo-nos com o domínio do código escrito, porque queremos alfabetizar os alunos, mas acreditamos que isso somente não basta. É preciso, através de uma relação dialógica, auxiliar as crianças a darem sentido aos textos a que têm acesso e possibilitar-lhes a inserção nas práticas sociais que envolvam a escrita e a leitura.

Era o ensino da língua pautado na alfabetização e no letramento que supostamente pensávamos encontrar. Como no contexto europeu há pesquisas sobre letramento e gêneros textuais e tendo em vista a influência que esses estudos exercem no contexto brasileiro, acreditávamos que o ensino da língua na França refletia as questões do alfabetizar letrando. Porém, a cultura francesa que tanto inspira e, de certa forma, formata nosso trabalho em sala de aula tem outra orientação para o ensino da língua em suas escolas.

Conforme fomos compreendendo como é o contexto francês, pelo viés social e educacional, fomos percebendo que nossa expectativa de trabalho pedagógico com a língua não se confirmava e isso impactou nosso olhar de professora-pesquisadora. Se não encontramos um trabalho dialógico com a língua materna, as relações de dialogicidade que procuramos fazer com os relatos das entrevistadas nos deslocaram de lugar para entender as concepções de língua do outro por meio do contexto e da singularidade de cada um, que é o objetivo da entrevista narrativa.

As professoras francesas nos mostraram que, mesmo estando em um continente diferente do nosso, elas têm grandes desafios em sala de aula. Elas são enfáticas ao dizer sobre o seu papel: desejam oferecer um ensino que possibilite a apropriação do francês formal a crianças de diferentes classes sociais e nacionalidades.

Considerando-se que a língua é o maior bem simbólico de uma nação, a apropriação dela não é apenas questão de viver em uma determinada posição geográfica, mas de pertencer a esse espaço. Para que a variedade culta não se torne oculta e segregue os alunos, as professoras tentam democratizar o ensino da leitura e da escrita e, para isso, utilizam diferentes estratégias a fim de que ninguém fique ou viva à margem da sociedade e possa romper com esse arame farpado que é a língua.

O estudo proporcionou algumas reflexões sobre a possibilidade e a viabilidade de, em território francês, alfabetizar letrando e de pensar em letramento autônomo e ideológico com tantas premências, vindas da cultura e da formação das professoras. Talvez essas questões possam ser pesquisadas em outro momento.

Para finalizar, ressaltamos que o trabalho com as entrevistas narrativas permite um (re)pensar sobre a prática docente e a (re)significação do vivido. Além disso, a pesquisa reafirma nossa certeza de que é responsabilidade da escola e do professor fomentar e estimular os alunos, de diferentes formas e dentro das possibilidades, para que se apropriem da língua em prol de minimizar as diferenças sociais. Como vimos, essa questão é perseguida pelas depoentes no decorrer de toda a entrevista. Talvez elas, assim como nós, defendam a ideia de que a palavra não pode ser privilégio de alguns, mas é um bem social de direito de todos os cidadãos.

1Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de F.A. REIS, intitulada “Concepções de ensino de língua materna a partir de narrativas de professoras de educação infantil na escola pública francesa”. Universidade São Francisco, 2020.

3Utilizaremos a primeira pessoa do singular em determinados momentos do texto, para indicar as ações da professora-pesquisadora, que é autora deste texto e ficou responsável pela realização da pesquisa, na França. O uso da primeira pessoa do plural indica as ações realizadas pela professora-pesquisadora e pela professora-orientadora: estruturação e organização do texto.

4Consideramos o termo alfabetização neste trabalho como o ato de ensinar o código da língua escrita, ensinar as habilidades de ler e escrever (Soares, 2011, 2004).

5Assumimos a concepção adotada por Kleiman (1995) de que o letramento refere-se ao uso da leitura e escrita nas práticas sociais.

6No original: “Uma hermenêutica-narrativa, por el contrário, permite la comprensión de la complejidad psicológica de las narraciones que los indivíduos hacen de los conflitos y los dilemas em sus vidas” (Bolívar, 2002, p.6).

7No original: [...] avec des enfants qui ne savent lire et écrire, pour écrire on fait (le dicton pour l’adulte), ce sont les enfants qui nous disent quoi écrire, ça s’appelle “dictée à l’adulte”, on écrit ce que ils nous disent, nous écrivons leurs phrases à leur place, puis nous les corrigeons, nous voyons avec les enfants, “comprenez-vous?”, “c’est ça?” [...] nous voyons qu’il y a des erreurs, alors [...] alors c’est forcément très oral” (Madame Montessori).

8No original: [...] au niveau de la langue orale, c’est à la fois la construction des phrases et le vocabulaire, en fait. Dans tous les cas, l’un ne va pas sans l’autre, il faut avoir du vocabulaire pour pouvoir faire des phrases complexes, ce sont donc les deux parties importantes. [...] une grande partie de cela est individuelle. Ensuite, c’est collectif aussi quand on est en groupe et qu’on va dicter à l’adulte, c’est quand on a besoin d’écrire quelque chose pour le livre (en se référant au projet qu’ils terminent), par exemple, quand on lit, quand je lis un livre, mais il y a un grande pièce individuelle aussi (Madame Montessori).

9No original: “il faut avoir du vocabulaire pour pouvoir faire des phrases complexes”.

10No original: [...] Ce sont de petites enveloppes de vocabulaire, pour apprendre [...] les mots et c’est tout [...] la première fois, je le fais avec eux, et ensuite ils peuvent tout faire seuls ou avec un ami ou avec Aurore (ce serait le notre assistant de classe ici), si vous le souhaitez. Ainsi, nous pouvons apprendre que le vocabulaire, puis nous pouvons également apprendre à [...] associer l’image avec le mot seul, nous devons donc trouver le mot qui correspond (Madame Montessori).

11No original: la première fois, je le fais avec eux, et ensuite ils peuvent tout faire seuls ou avec un ami ou avec Aurore (ce serait le notre assistant de classe ici)”.

12No original: [...] à la maternelle, on part des images et comment on les met pour comprendre, pour que ça ait du sens, puis on explique ce qui se passe, et on fait des phrases [...] on donne du sens. c’est beaucoup avec les albums, la lecture c’est comme ça aussi, on travaille beaucoup avec les albums car il y a des images, ce qui est calme pour eux (Madame Reggio).

13No original: “on part des images et comment on les met pour comprendre, pour que ça ait du sens, puis on explique ce qui se passe, et on fait des phrases [...] on donne du sens”.

14No original: [...] dans la méthode Montessori, le beaucoup de travail autour des nomenclatures, don c ce sont de petites images avec les mots ci-dessous pour apprendre le vocabulaire, car c’est quelque chose qui manque beaucoup aux enfants, non francophones, en particulier, aux enfants dont les parents sont en difficile situation, don’t beaucoup de vocabulaire [...] au moins pour le langage oral, ma priorité est plus de leur parler et de faire attention à leur vocabulaire et d’enseigner le vocabulaire, c ‘est ça, c’est plus mes priorités (Madame Montessori).

15No original: [...] à la maison, ils parlent mal le français, donc ils apprennent des structures grammaticales qui sont fausses, ou ils ne parlent pas toujours, ils ne parlent que leur langue maternelle, et c’est compliqué, car quand ils arrivent au CP ou au CE1 c’est là que l’on met structures de phrases et règles de grammaire, de conjugaison, d’orthographe, donc elles sont perdues, car elles ne parlent pas comme ça [...] mais j’ai une fille qui va en quatrième, il me disait tout le temps: Je peux mettre mon manteau «sur» le cintre? Mon [...] c’est ‘dans’ le cintre ‘, et je dis tout le temps: “Non, ce n’est pas dessus, c’est ‘sur’ le cintre”, et fait la même erreur avec votre table: Je peux utiliser la colle ‘dans’ ma table? Non, comment utiliser “sur” la table, “sur” le cahier ... vous utilisez “sur” le cahier, mais pas “dans”. Et elle a fait ça toute l’année, bien qu’il y ait une correction, elle fait la même erreur, c’est à la maison qu’ils font des erreurs ... puis elle dit “oui”, il sait, il sait ... très bien mais tout le monde n’en parle pas au lieu de dire et dès qu’on se bat, on construit (Madame Reggio).

16No original: Au niveau de la langue, en effet, pour ces enfants qui n’ont pas de langue, parce qu’ils ne parlent pas à la maison, il faut d’abord leur donner la langue, leur donner des synonymes, donc ce qui est compliqué c’est que ça vient rarement d’eux, car le les parents ne sont pas une référence à la maison pour leurs enfants, surtout ceux qui ne parlent pas français à la maison (Madame Reggio).

17No original: [...] nous avons beaucoup d’origines différentes et ils ne parlent pas français à la maison, donc c’est difficile de prendre leur vocabulaire, il faut donc leur donner le vocabulaire en jouant avec eux, des jeux de synonymes, comme on pourrait dire pour ça, on travaille sur le portrait (image), par exemple, décrivons une sorcière, décrivons un mot, décrivons un animal, alors ils adorent ça. Des documentaires, des affiches, on va au zoo, on va faire une affiche de loup, on va faire une affiche sur [...] ici, et c’est le premier travail d’un montant, c’est tout, ça leur donne du vocabulaire (Madame Reggio).

Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Financiamento 001).

Como citar este artigo/How to cite this article

Reis, F.A.; Moretto, M. O ensino da língua materna na École Maternelle pública francesa. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204932, 2020. https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4932

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Recebido: 30 de Abril de 2020; Revisado: 25 de Outubro de 2020; Aceito: 05 de Novembro de 2020

Correspondência para/Correspondence to: M. MORETTO. E-mail: <milena.moretto@usf.edu.br>.

Colaboradores

F.A. REIS foi responsável pela coleta dos dados. Ambas as autoras contribuíram para a concepção, para a análise e para a interpretação dos dados da pesquisa, bem como para a escrita e a revisão final do artigo.

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