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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4928 

Alfabetização e o processo de apropriação da língua materna: políticas, formação de professores e práticas pedagógicas

Desafios para a alfabetização no contexto das escolas indígenas

Literacy challenges in the context of indigenous schools

Kelly Russo1 
http://orcid.org/0000-0003-1756-1173

Leila de Carvalho Mendes1 
http://orcid.org/0000-0003-2511-1527

Gabriela Nunes Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0002-1676-3905

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Humanidades e Educação, Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. R. General Manoel Rabelo, s/n., Vila São Luis, 25065-050, Duque de Caxias, RJ, Brasil.


Resumo

Neste artigo, propomos algumas reflexões sobre diferentes modelos de pensamento, ideologias linguísticas e as tensões presentes na relação entre oralidade e escrita no contexto do ensino da língua portuguesa e do processo de alfabetização em comunidades indígenas no Brasil. A partir do levantamento bibliográfico realizado entre setembro e novembro de 2019, em duas das principais plataformas acadêmicas existentes no país (Scientific Electronic Library Online e Catálogo de Teses e Dissertações da Capes), apontamos alguns aspectos que consideramos fundamentais no desenvolvimento de propostas de alfabetização entre comunidades indígenas, entre eles, a singularidade da escola diferenciada, a heterogeneidade dos povos, a definição de escola e de currículo e o reconhecimento de que, como tantos outros, constitui-se em um campo de lutas em um contexto de minorias étnico-culturais em relação à sociedade envolvente. Consideramos que os modos de pensamento, tal qual proposto por Brunner, precisam ser trazidos para a discussão para dialogarmos com estudos recentes sobre a alfabetização de povos indígenas, uma vez que a língua, em uma perspectiva bakhtiniana, é constituinte da cultura, ao mesmo tempo em que o sujeito se constitui mergulhado nela. Também é possível considerar que os desafios epistemológicos em torno da alfabetização e da aquisição da escrita no contexto das escolas interculturais e indígenas possuem estreita relação com o debate sobre relações de desigualdade, das hierarquizações produzidas em torno do etnocentrismo linguístico e as necessárias reflexões voltadas para a reconstrução identitária nesse contexto.

Palavras-chave Alfabetização indígena; Educação escolar indígena; Educação Fundamental; Formação de professores

Abstract

In this article, we propose some reflections on the different models of thought, linguistic ideologies, and tensions present in the relationship between orality and writing in the context of indigenous communities in Brazil. The analyzes were carried out between September and November 2019 based on the bibliographic survey on two of the main academic platforms in Brazil (Scientific Electronic Library Online and Catálogo de Teses e Dissertações da Capes). We present some aspects that we consider fundamental in literacy development in indigenous communities: the specificity of intercultural education, the heterogeneity of the ethnicities, the definition of school and curriculum. We consider that the modes of thought, as proposed by Brunner, need to be brought up for discussion in order to dialogue with recent studies on the literacy of indigenous peoples. The language, in a Bakhtinian perspective, is a constituent of culture, while the subject is immersed in it. It is also important to consider that the epistemological challenges surrounding literacy and the acquisition of writing in the context of intercultural and indigenous schools are closely related to the debate on relations of inequality, the hierarchies produced around linguistic ethnocentrism, and the necessary reflections aimed at identity reconstruction in this context.

Keywords Indigenous literacy; Indigenous school education; Elementary Education; Teacher training

Introdução

[...] o desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada.

O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade

(Couto, 2011, p.103).

No Brasil, a relação entre oralidade, escrita e alfabetização se faz presente em diferentes contextos comunitários, sobretudo no campo da educação escolar indígena. São cerca de 255 mil estudantes indígenas matriculados(as) em três mil escolas, envolvendo mais de 22 mil professores (Censo da Educação Básica 2018 – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Para propor reflexões nessa direção, apresentamos algumas considerações iniciais.

O primeiro aspecto diz respeito a reafirmar que a educação escolar indígena, diferenciada, intercultural, bilíngue e comunitária, é fruto da luta histórica dessas populações; e que o direito a uma política linguística específica está ancorado em um consistente conjunto de estudos, produzido por pesquisadores(as) indígenas e não indígenas, ao longo dos últimos 30 anos. Desde a Constituição de 1988, mais especificamente com o Art. 210, o Estado brasileiro assumiu a proteção e a manutenção das especificidades étnico-culturais dos povos indígenas do território nacional. Esse instrumento legal regula o uso das línguas maternas e os processos próprios de aprendizagem, assim como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (Lei nº 9.394/1996) e documentos produzidos nos anos posteriores, os quais garantiram a autonomia das comunidades indígenas na definição do projeto político-pedagógico, a da forma de funcionamento e dos objetivos de suas escolas. Entretanto, definir o que é uma escola intercultural, multi/bilíngue e diferenciada não é uma questão meramente técnica: a própria instituição educativa e os sistemas de gestão já são em si responsáveis por relações de assimetria entre os sujeitos. Consequentemente, nossa primeira observação é a perspectiva da escola indígena como um lugar de fronteiras, uma construção permanente, atravessada por conflitos e embate de forças entre comunidades indígenas e sociedade nacional (Tassinari, 2001; Lima; Cesar, 2018).

Um segundo aspecto que acreditamos merecer atenção diz respeito ao fato de não existir um conjunto homogêneo de povos indígenas ou de modelo de educação escolar indígena. São mais de 200 etnias existentes em território nacional, portanto, centenas de diferentes configurações do contato das sociedades indígenas com a escola, criando uma significativa heterogeneidade no campo. Há crianças, como os Maxacali, que só falam a língua materna e chegam na escola para aprender a escrever apenas a sua língua. Os Xacriabá e os Pataxó, por já terem passado por um longo processo de contato, falam apenas o português, e as crianças vão à escola aprender a ler e a escrever essa língua. Os Krenak falam o português no cotidiano, mas têm conhecimento de sua língua materna. Há crianças que são bilíngues e vão para a escola para aprender a ler e a escrever na sua língua de origem e a ler e a escrever a língua portuguesa (Romanelli, 2001).

Um terceiro fator, diretamente implicado no segundo, diz respeito à definição da escola, do currículo ou do processo de aprendizagem da língua materna, que no contexto indígena não se dá de forma linear, nem livre de contradições. Há vozes dissonantes mesmo entre os indígenas de uma mesma etnia, que reivindicam os saberes da escola tradicional, entendendo que o domínio desses saberes pode contribuir para que sejam ouvidos, como podemos verificar no depoimento de Alves (2016):

Como outras populações isoladas e minoritárias que tomam contato com a cultura ocidentalizada, os Terena também querem estar inseridos nesta dinâmica de sociedade global. Não há como ser inserido em um contexto sem conhecê-lo, assim como não há como participar de uma dinâmica social sem conhecer os códigos que a regem. Participar e estar incluído em uma dada realidade significa utilizar-se de toda a instrumentação necessária para negociar esta inserção

(Alves, 2016, p.51).

Porém, como recorda D’Angelis (2000), essas definições linguísticas sobre ser ou não bilingue, por exemplo, impactam a própria continuidade ou não da língua materna. Nesse sentido,

Um grave problema acontece quando as comunidades indígenas são pressionadas ou enganadas para tomar certas decisões e adotar uma certa política linguística, sem saber exatamente onde isso vai dar. Por exemplo, a comunidade pode aceitar e, até apoiar certos programas de ensino que se dizem “bilíngues” que, na verdade, são programas de ensino que usam a língua indígena na escola, mas que funcionam como desvalorizadores e enfraquecedores da língua

(D’Angelis, 2000, p.1).

Esses modelos de “bilinguismo de transição” concebem a língua indígena como um recurso intermediário no processo para a alfabetização em língua portuguesa. Há 30 anos, o Estado brasileiro desenvolveu uma política que deixava de ver a diversidade como um problema, para considerá-la “um instrumento de valorização dos saberes e processos próprios de produção e recriação de cultura” (Brasil, 2002, p.32). Hoje, infelizmente, vemos o fortalecimento de debates que pareciam já superados: imposição de modelos de bilinguismo de transição versus modelos de manutenção ou vitalização linguística; o entendimento da aprendizagem da escrita como algo meramente técnico versus seu potencial para formação crítica e decolonial2, entre outros que ameaçam a própria existência dessas populações.

Por último, destacamos que a discussão sobre o processo de alfabetização no contexto escolar indígena não aponta apenas para a necessidade de diálogo entre conhecimentos e culturas distintas, mas requer a discussão da produção e hierarquização das diferenças3. Sabemos que o currículo escolar é sempre parte de uma tradição seletiva (Silva, 1999a; Silva, 1999b; Apple, 2009).

Este artigo é parte de uma Dissertação de Mestrado em Educação e propõe uma reflexão a partir do levantamento bibliográfico realizado entre setembro e novembro de 2019, em duas das principais plataformas acadêmicas existentes no país – Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Catálogo de Teses e Dissertações da Capes (Fernandes; Russo, 2018). Neste texto, apresentamos algumas reflexões sobre diferentes modelos de pensamento, ideologias linguísticas e as tensões presentes na relação entre oralidade e escrita no contexto das comunidades indígenas. Também propomos indícios sobre os limites epistemológicos da escola diferenciada, considerando os desafios inerentes ao processo de alfabetização que reconheça as línguas de origem e o contexto específico de cada comunidade indígena e sua relação com a educação escolar.

Procedimentos Metodológicos

Com o objetivo de conhecer o que as pesquisas acadêmicas apontam sobre o tema da alfabetização em contexto das escolas indígenas no Brasil, realizamos um levantamento bibliográfico, entre setembro e novembro de 2019, nas principais plataformas acadêmicas do país (SciELO e Catálogo de Teses e Dissertações da Capes), além dos arquivos eletrônicos da Revista Tellus4 especializada em povos indígenas.

No Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, com a categoria “letramento guarani”, foram encontrados 10 resultados. Destes, seis fazem referência diretamente ao tema, mas apenas quatro estão disponíveis na Internet. Com o termo de pesquisa “letramento indígena”, foram encontrados 49 resultados. Nesse conjunto, 17 fazem referência ao tema, mas apenas 11 estão disponíveis online. Já com a palavra-chave “alfabetização indígena”, foram encontrados 58 resultados. No entanto, apenas 11 fazem referência ao tema, e seis estão disponíveis na versão online.

Ainda no portal da Capes, com o termo “alfabetização guarani”, foram encontrados 10 resultados. Destes todos fazem referência ao objeto de interesse, mas apenas um está disponível na Internet. Com a categoria “alfabetização bilíngue”, foram encontrados 53 resultados. Nesse conjunto, apenas um faz referência ao contexto indígena e está disponível na versão digital. Com a palavra-chave “alfabetização bilíngue indígena”, foram encontrados 15 resultados. No entanto, apenas um faz referência ao tema. Desse modo, encontramos um total de 50 trabalhos no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, mas apenas 23 destes estão disponíveis na Internet.

Na plataforma SciELO, utilizamos todos os termos anteriores, e apenas um trabalho foi encontrado. Por último, consultamos a página digital da Revista Tellus, a partir das palavras-chave relativas à nossa pesquisa e encontramos apenas dois resultados, mas apenas um faz referência ao tema de interesse. Desse modo, farão parte do corpus total de nosso estudo, 26 trabalhos, sendo sete teses, 16 dissertações e três artigos. Entre os critérios para saber se cada texto acadêmico encontrado fazia, ou não, referência direta ao tema de interesse de nosso estudo, verificamos o título, os resumos e as palavras-chaves. Sendo identificada a relação com o nosso objeto de estudo, os artigos, as dissertações e as teses foram lidas na íntegra para a realização das reflexões apresentadas neste artigo. Passamos então para a discussão dos dados encontrados.

O processo de alfabetização como tensão entre modos de pensamento

A teoria de Vygotsky (2007, 2010) agrega grande contribuição para os estudos em contextos interculturais na medida em que defende um constructo teórico em que a cultura é a grande promotora da transformação do comportamento humano. Os sujeitos ao usarem instrumentos e técnicas culturais promovem atividades para além das funções psicológicas inferiores, inatas. Daí se depreende que diferentes contextos históricos produzem diferentes formas de pensamento, sendo a dimensão cultural o elemento fundamental para se compreender a mente humana (Vóvio, 1999).

Para Vygotsky (2007, 2010), o domínio da língua escrita instaura novas possibilidades de atividade cognitiva, na medida em que a linguagem escrita se constitui em um sistema simbólico complexo, de segunda ordem, pois representa os sons e as palavras da língua falada. Além disso, os pesquisadores são unânimes em afirmar que a escolarização promove transformações no modo de pensar, mesmo que ela não se ocupe do ensino da lógica e de problemas de silogística (Vóvio, 1999).

Brunner acredita, como Vygotsky, que a cultura exerce um papel fundamental no pensamento e afirma que é a cultura que constitui a mente (Vóvio, 1999; Senna, 2019). Recentemente (1988 e 1996) esse pesquisador reconheceu a existência de dois modos de pensamento. O pensamento lógico-científico e o pensamento narrativo, este desprestigiado nas sociedades modernas. O primeiro tem por objetivo descrever, explicar e justificar, e o seu produto é a argumentação. O pensamento lógico-científico se preocupa com causas gerais e:

[...] de sua determinação, usando a categorização, os conceitos e as relações entre as categorias para construir sistemas e modelos explicativos. Sua produção se pauta pela possibilidade de verificação dos argumentos, por sua verdade e, portanto, pelas generalizações que podem ser estabelecidas a partir deles

(Vóvio, 1999, p.139).

Já o modelo de pensamento narrativo é marcado pelas intenções e pelas ações humanas:

[...] das vicissitudes e consequências que marcam o transcurso de uma vida. Concretiza-se no relato, caracterizando-se pela criação de mundos especulares. Nos relatos, a verdade encontra-se na possibilidade de estabelecer aproximações com o mundo conhecido do destinatário e não na possibilidade de sua verificação

(Vóvio, 1999, p.139).

Para Brunner esses modos de pensamento estão diretamente relacionados ao modo como as sociedades se estruturam e se organizam; é importante destacar que ele reconhece o modo de pensamento narrativo como o princípio organizador de toda experiência humana, por ser um fato cultural comum a todas as sociedades e por constituir a maior parte dos atos comunicativos (Vóvio, 1999; Senna, 2019).

No entanto, nas escolas brasileiras, tem predominado o pensamento lógico-científico desde a construção do Estado Nacional, impondo um processo de homogeneização cultural em que a educação escolar exerceu um papel fundamental, tendo por função difundir e consolidar uma cultura comum de base ocidental e eurocêntrica, silenciando e/ou invisibilizando vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades e, consequentemente, excluindo uma parcela da população da escola.

Em termos políticos, a questão se agrava quando a escola coloca a ênfase em aspectos de apenas uma cultura: a cultura hegemônica, branca, europeia, cartesiana, daí decorrendo que determinados grupos venham sendo alvo de discriminações. Apesar disso, vimos, nas últimas décadas, uma atuação cada vez maior de diferentes grupos que procuram afirmar direitos específicos, contribuindo sobremaneira para que se perceba que as diferenças que os separam dos “superiores”, “normais”, “inteligentes” não são diferenças que dizem respeito ao mérito, mas construções sociais e culturais que objetivam legitimar e preservar privilégios.

Tensões, conflitos, tentativas de diálogo e de negociações passaram a estar em evidência no campo educacional, seja no âmbito das políticas educativas, seja no âmbito do cotidiano escolar. São identidades culturais que são rediscutidas e visibilizadas, denunciando injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. Cedendo a esses embates, o mundo acadêmico abre as portas para outras possibilidades de representar o homem (Senna, 2019). Assim, o reconhecimento do modo narrativo de pensamento contribuiu para a superação do preconceito existente contra os coletivos marginalizados e também para que se constatasse que “a maioria dos casos classificados como dificuldades de aprendizagem, na verdade, diziam respeito ao desconhecimento de modos e processos de operação cognitiva” (Senna, 2019, p.184.).

Para parte significativa das comunidades indígenas no Brasil, a língua portuguesa é a língua estrangeira. Nesse sentido, é preciso lembrar que a aprendizagem de uma segunda língua diz respeito, entre outros aspectos, a um desafio cultural (Santos; Mello, 2008). Não recorta o real porque o real é sempre uma interpretação feita por um determinado grupo cultural.

Nesse sentido, o signo é fundamental para a realização das interações. Sem ele, estas não existiriam, e são eles que constituem a vida psíquica. Sem material semiótico, não existe psiquismo (Smolka, 2017). Na gênese do desenvolvimento humano o pensamento é estritamente dependente da fala, portanto não pensamos para falar. Pensamos por que agimos, porque atribuímos sentido à fala do outro. Essa perspectiva põe em relevo as interações sociais, locus do material semiótico e das relações linguagem/cultura.

Nessa dinâmica em que os sujeitos vão se constituindo, estão implicados os diferentes modos de pensar (Senna, 2019), por meio de um processo de internalização, mediado principalmente pelos signos, pela linguagem, que pressupõe produção de signos e sentidos que, ao mesmo tempo em que vão sendo produzidos pelo sujeito, vão inserindo-o numa ordem simbólica. Por isso, a diferença do recorte do real entre a língua materna e a língua estrangeira. Dessa forma, compreendemos que a linguagem é constituinte e constituída por um certo modo de funcionamento dos grupos e estes originam modos de pensamento, como dissemos, que se expressam na/pela linguagem.

Para Santos e Mello (2008), não é raro a aprendizagem de uma língua estrangeira provocar sensação de estranhamento e limitação. É como se o aprendiz atribuísse sentidos diferentes às palavras, como se algumas palavras ficassem apenas na superfície. O aprendiz não consegue entrar no fluxo da língua, da cultura, por isso os autores defendem o desenvolvimento de uma competência intercultural que possibilite “uma compreensão crítica das culturas-identidades” (Santos; Mello, 2008, p.48).

A aprendizagem da língua escrita, mesmo em sujeitos não indígenas, mas oriundos de grupos com forte tradição oral em seus cotidianos, constitui-se em um verdadeiro rito de passagem, pois a escola parte da premissa de que esses sujeitos pensam e agem como se já escrevessem. Portanto, não perceber a existência de modos de pensamento distintos, implica provocar, em contextos multiculturais, além dos conflitos políticos, sociais e étnicos, conflito cognitivo, que, além de reforçar o preconceito contra os grupos de culturas orais, não promove a Interculturalidade crítica.

Outro aspecto a ser considerado na relação entre línguas maternas e o processo de alfabetização é o etnocentrismo linguístico. Esse fenômeno está implicado a todo um modo de pensamento específico – que se pretende universal –, e que gera um julgamento depreciativo e de rejeição a outras línguas. Esses julgamentos estão relacionados com a existência, explícita ou implícita, de hierarquizações na relação entre povos minoritários e sociedades nacionais, como ocorre no contexto das línguas indígenas ou africanas em diferentes países no mundo. Como afirma Armand (2016, p.174) “as línguas não são instrumentos ‘neutros’ de comunicação, são também objetos sobre os quais se elaboram representações e se formulam julgamentos de valor que determinam as diferentes ideologias linguísticas, ou seja, modos de pensar”.

Nessa desigualdade de relação entre povos indígenas e sociedades nacionais, as línguas indígenas são comumente consideradas como “primitivas”, pouco preparadas para o pensamento abstrato e incapazes de favorizar a entrada na “modernidade” (a ciência contemporânea, por exemplo), em oposição com as línguas europeias, percebidas como mais evoluídas, mais claras, mais ricas, ou até mais bonitas! Como aponta Skutnabb-Kangas e Cummins (1988), essa é uma demonstração de linguicismo, termo definido como as ideologias, estruturas e práticas que são utilizadas para legitimar, operacionalizar, regular e reproduzir uma divisão desigual do poder e de recursos (materiais e imateriais) entre os grupos definidos em torno do marcador “língua” e que trazem, forjados na língua, a imposição de outro modo de pensar.

No contexto escolar, muitas vezes os processos de alfabetização tendem a ignorar o debate sobre o etnocentrismo linguístico e modos de pensamento; e o ensino da língua de um Estado-Nação se dá tradicionalmente sobre o princípio da imposição: os programas de ensino da língua dominante costumam ignorar que ela possa se constituir como a segunda língua dos estudantes. No Brasil, são escassos os documentos oficiais e os programas voltados para a formação inicial de professores(as) de língua portuguesa baseados em uma perspectiva de pluralidade linguística5. Ainda mais raras as oportunidades de estudantes vivenciarem experiências de ensino de língua portuguesa que tenham como base a relação com as línguas de origem dos estudantes indígenas ou de imigração6. De um modo geral, as línguas maternas são apresentadas como obstáculos à aprendizagem da língua da escola e como consequência desse processo:

No meio escolar, para certas crianças, o não reconhecimento de existência da língua da família (seja uma língua de imigração, de uma língua regional, de uma língua comunitária autóctone ou outra), diferente da língua falada na escola, pode se traduzir por uma “insegurança linguística”, um sentimento de discriminação, uma baixa de estima em si mesmo, assim como em dificuldades de transferir as aquisições cognitivas e linguísticas de uma língua para a outra

(Armand; Dagenais; Nicollin, 2008, p.22, tradução nossa)7.

Desse modo, ignora-se que as línguas trazem, em seu bojo, modos diferentes de pensar. Cabe, então, questionarmos sobre as possibilidades de formarmos professores(as) alfabetizadores(as) a partir de uma perspectiva plurilíngue, ou seja, estimular o acesso a numerosos programas de aprendizagem dentro de uma perspectiva de diversidade de línguas e modos de pensar. Esse entendimento possibilitaria a ênfase sobre as práticas pedagógicas que favorizem uma perspectiva plural das línguas, uma abertura a à diversidade linguística e o desenvolvimento de recursos de aproximação entre essas diferentes línguas em um contexto em que crianças têm possibilidade de manterem e desenvolverem suas línguas de origem (programas de educação bilíngue, curso de ensino de línguas de origem ou escolarização pela língua materna), e a língua de sua comunidade é valorizada ao longo de todo o seu percurso escolar.

Entretanto, é importante fazer uma ressalva sobre a perspectiva plurilíngue que propomos. Não é reconhecer simplesmente a existência de diversidade linguística, também é preciso discutir sobre as articulações entre línguas, poder e desigualdades nesse contexto de plurilinguismo (Maher, 2005). Se continuarmos concebendo a língua do colonizador de modo a consolidar hierarquizações na relação com todas as demais línguas, estaremos privilegiando um determinado modo de pensar. É pela linguagem, pela produção de signos e sentidos que o sujeito vai sendo inserido em uma ordem simbólica, por meio das interações sociais. Dessa forma, a linguagem constitui-se e vai constituindo um determinado modo de funcionamento dos grupos. Esses modos de funcionamento se expressam na/pela linguagem, e são muitos os desafios impostos na relação de crianças e professores(as) com a escrita ou com o processo de alfabetização desenvolvido na escola.

Como inserir a criança indígena na língua escrita, na medida em que o código escrito traz consigo todo um modo de pensar, fundado no método (Senna, 2019)? Como ensinar a ler e a escrever, respeitando a lógica da oralidade, a lógica narrativa? É possível alfabetizar não perdendo a lógica da oralidade? Como alfabetizar sem impor a lógica de uma determinada cultura, da cultura hegemônica? Como alfabetizar a partir de uma perspectiva da Interculturalidade crítica, considerando os diferentes modos de pensamento? Essas questões se dão em um espaço de fronteiras e de fricção interétnica (Cardoso, 1960), que precisam ser consideradas em processos educativos escolares marcados pelo desequilíbrio de poder entre culturas, como discutiremos a seguir.

Oralidade, escrita e os diferentes espaços da alfabetização

Apesar de reconhecer as interfaces existentes na relação entre oralidade e escrita, não concordamos com a oposição quase mecânica usualmente feita na diferenciação entre sociedades do tipo oral e letrada, e nesse sentido, sociedades indígenas colocadas em contraposição com as sociedades nacionais. Street (1988) lembra que, nos últimos duzentos anos, a maioria dos povos do mundo não vivem em nenhuma das duas situações exclusivamente, mas, sim, participam ativamente de outras culturas, influenciadas pela circulação da palavra escrita e/ou pela presença de indivíduos letrados; e mesmo entre as sociedades reconhecidas como “letradas” esse processo da quase hegemonia da escrita ocorreu de modo processual.

Nesse sentido, achamos importante recuperar, neste artigo, reflexões que desenvolvemos em outros artigos, sobre o conceito de oralidade (Fernandes; Russo, 2018). Galvão (2006), com base nos estudos de Walter Ong, identifica uma distinção entre “oralidade primária” e “oralidade secundária”:

[...] a primeira refere-se à oralidade das culturas intocadas pelo letramento ou por qualquer conhecimento da escrita ou da imprensa ou, ainda, a das pessoas totalmente não familiarizadas com a escrita. A segunda, por sua vez, refere-se à atual cultura de alta tecnologia, em que uma nova oralidade é sustentada pelo telefone, rádio, televisão e outros meios eletrônicos que, para existirem e funcionarem, dependem da escrita e da imprensa

(Galvão, 2006, p.407).

Zumthor (1993) distingue três tipos de oralidade. A primeira, que denomina “primária e imediata”, não estabelece contato algum com a escrita. Em segundo lugar, haveria uma “oralidade mista”, em que o oral e o escrito coexistem; e, por fim, a “oralidade segunda”, aquela que deriva de uma “cultura letrada”. Contudo, é preciso considerar que as definições aqui apresentadas não pretendem estabelecer dicotomias entre sociedades orais e letradas, pelo contrário. Ong (1998), assim como Street (1988), vai afirmar que, na atualidade, não existe cultura de oralidade primária no sentido estrito, visto que a escrita está presente e provoca efeitos em todas as culturas.

Entre o passado e o presente dos povos indígenas, é possível identificar uma crescente convivência entre oralidade e escrita, em diferentes contextos comunitários, muito além do espaço escolar. Se, inicialmente, o desejo pelo domínio da escrita se deu a partir da produção econômica e trocas comerciais injustas, num contexto em que muitas vezes os povos indígenas vivenciaram experiências de subordinação por patrões e seringueiros, por não dominarem o mundo letrado (Monte, 1996); o cotidiano da aquisição da escrita tem se expandido de forma cada vez mais significativa nas comunidades indígenas e, muitas vezes, de modo independente da escolarização.

Castro (2013), por exemplo, analisou os diferentes processos de introdução da escrita entre distintas comunidades do povo Yanomami. Verificou como a aquisição da escrita independe da escolarização: acontece nas diferentes relações que o grupo estabelece com diferentes atores de vários setores da sociedade envolvente, como as organizações religiosas (missionários evangélicos e católicos), governamentais e representantes da sociedade civil organizada. Cada ator traz uma visão sobre a escrita e a escolarização e isso influencia as perspectivas sobre a escrita e a escola entre os Yanomami.

Processos similares podem ser identificados em outras comunidades indígenas, gerando a necessidade de maiores reflexões e aprofundamento sobre o processo de alfabetização. Nessa direção, Ladeira (2002, p.3) aponta as diferenças entre as competências orais e escritas e afirma que “é ilusão pensar que a oralidade e a escrita sejam dois caminhos possíveis para se transmitir as mesmas mensagens”. A escrita, ou o registro, não deve se dar a partir da tradução, mas considerar as diferentes finalidades sociais e culturais da linguagem escrita e oral, de modo que seu ponto de partida seja a língua reconstruída e praticada cotidianamente, em um contexto bi/multilíngue de minoria étnica e linguística, que tende a valorizar como rasgo identitário, sua tradição de oralidade.

Os estudos revelam que a relação com a língua escrita se dá, por um lado, pelo interesse das comunidades indígenas, por outro, pela iniciativa de diferentes atores externos a essas comunidades. Também é possível perceber como essa relação é marcada por distintas perspectivas ideológicas e provoca alterações na vida cotidiana dessas populações. Importante ainda salientar que a entrada do sujeito em uma nova língua, ou mesmo o processo de aquisição da língua escrita para registro de sua própria língua materna indígena, vai promover modificações. Isso porque na língua está implicado todo um modo de pensar. Ao ensinarmos o registro escrito às crianças indígenas, estamos ensinando a elas um outro modo de pensamento, de organização e, talvez, de hierarquização de mundo.

Práticas pedagógicas e a construção de um currículo alfabetizador

O Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (Brasil, 1998) propõe, como alternativa para as escolas indígenas, a priorização da articulação entre oralidade e escrita por meio do uso de diferentes recursos e estratégias pedagógicas: priorizar o uso de diálogos curtos relacionados ao contexto cotidiano da comunidade; o uso de desenhos; a criação de materiais audiovisuais para ampliar e fortalecer o uso das línguas indígenas; incluir as pinturas corporais como formas de escrita – não alfabética, mas como um recurso eficiente no registro histórico de cada comunidade e também de cada sujeito e seu lugar social nessas sociedades. Nesse sentido, nota-se uma relação estreita entre oralidade e diferentes formas de registros, e assim o registro da língua oral se dá a partir de diferentes linguagens, contribuindo para escaparmos da centralidade da escrita e de um determinado modo de organização do pensamento.

No entanto, essas práticas precisam ser discutidas a partir das especificidades de cada comunidade. O desafio estaria em transformar o cotidiano escolar para que ele seja capaz de criar espaços de fortalecimento da língua materna, de forma a considerar a complexidade do universo étnico cultural, e ao mesmo tempo imprimir interpretações do cotidiano da comunidade, seja a partir do desenho, da contação de histórias, ou até mesmo da construção de texto. Em outras palavras, essas estratégias e práticas pedagógicas precisam ser consideradas dentro de uma proposta político-pedagógica mais ampla, de acordo com o contexto da comunidade onde está inserida e a relação desta com a sociedade nacional, e não simplesmente baseada na ideia de tradução da cultura oral para a escrita. Até porque, como lembra Barros (1994, p.31) “a escrita científica só tem o poder de guardar resíduos da oralidade e não de reproduzi-la” e as histórias e os mitos narrados oralmente, ao serem transcritos para o papel, podem produzir uma ruptura em termos de domínio de saberes e de autoria dentro do contexto comunitário, pois “a publicação das narrativas tradicionais em forma de livro de leitura para a escola, acabam sendo de certas pessoas no grupo e não de todos: a sua difusão escrita na escola altera a forma de seu domínio ao separar o conhecimento do conhecedor” (Barros, 1994, p.32).

Desse modo, diferentes recursos e estratégias pedagógicas podem aportar elementos culturais e característicos de cada comunidade no processo de construção de um processo de alfabetização, mas, como questiona a professora indígena Benites (Fernandes;Russo, 2018, p.18):

A escrita pro Guarani, pra mim, seria aquela vivência, o jeito de ser Guarani que tem que ser uma reflexão do jeito de ser daquela comunidade. Só que muitas vezes a escola ela é confundida um pouco, porque muitas vezes a gente faz uma tradução pro Português do Guarani. Isso dificulta a gente também. Eu passei por isso, eu não entendia o que era. Hoje eu vejo muitos professores com dificuldade de fazer essa continuidade de oralidade pra escrita, o que seria escrever sobre reflexão da oralidade, da tradição Guarani.

Nesse sentido, oralidade e escrita podem ser articuladas à medida que a identidade étnica e linguística de um povo estiver fortalecida, não para traduzir elementos culturais para um modelo de língua e escrita dominante, mas para ressignificar o que as comunidades indígenas querem, qual a demanda de comunidades específicas, para utilizar a educação intercultural e o processo de alfabetização dentro de uma proposta mais ampla e desafiadora, na qual se discutem os modos de pensar implicados nas línguas de tradição oral e escrita.

Barros (2002), ao estudar os Guarani Mbyá de Sapukai, no Rio de Janeiro, propõe algumas reflexões que consideramos fundamentais para pensarmos sobre os limites e desafios epistemológicos da escola diferenciada, considerando as passagens gnoseológicas dos sujeitos guarani e as práticas cognitivas que se apresentam a partir da elaboração pelos professores indígenas de levantamentos orais e escritos fundados na temporalidade Guarani Mbyá, enquanto multiplicidade dos tempos cotidianos (o tempo da caça, da pesca, da criação, do casamento, da gestação, da escola, da reza), utilizando-se de diferentes linguagens: desenho, fotografia, pintura, escrita guarani, oralidade, dança, música.

Segundo o autor, é necessário entender a importância de considerarmos as propostas curriculares orgânicas à esfera do cotidiano, do simbólico e do sagrado do povo em questão; e elaborar projetos político-pedagógicos que considerem a singularidade de sua episteme, materializada entre outros campos, em linguagens verbais e não verbais. A partir disso, é possível considerar que os dois pressupostos colocados por Barros (2002), o campo semântico guarani e a gnose guarani, podem ser incorporados à discussão sobre alfabetização bilíngue indígena, sobretudo, porque no movimento de reinvenção do Brasil e da escola, os professores Mbyá demandam que tanto a produção do conhecimento quanto a concepção de “professor(a) pesquisador(a)” e currículo inacabado devam ser preponderantes na construção do projeto político-pedagógico de uma escola diferenciada (Barros; Castro, 2005). Em um processo crítico, professores(as) guarani dessa comunidade defendem que os aspectos mais atuais do debate pedagógico sejam incorporados à sua formação, em uma proposta curricular “aberta a contatos interculturais”.

Assim, podemos vislumbrar elementos que envolvem essa complexa etapa da educação bilíngue indígena: a episteme, a oralidade e o discurso, sobretudo, porque pensar o ensino diferenciado é necessariamente propor a desconstrução da instituição escolar, visto que:

[...] o modo de educação da sociedade envolvente, não-índia, fundada na escrita e no texto, estranho à tradição oralizada indígena, marcada por uma ênfase mnemônica e pela confluência dos eixos tempo/espaço e sagrado na experiência individual e coletiva

(Barros, 2002, p.114, grifos do autor).

Sob a perspectiva de Bakhtin e Vygotsky, Barros e Castro (2005) consideram a palavra como fato social e a oralidade enquanto discurso, sendo esse princípio educativo necessário à escola diferenciada. Nesse sentido, o autor faz pontuações sobre a construção de um projeto político-pedagógico diferenciado e afirma:

Exemplo dos desafios é o impacto sobre as estruturas cognitivas dos guarani da inserção da escrita, resultante da codificação da língua, potencializando-se via escola, práticas até então desconhecidas ao universo cultural guarani: a alfabetização na língua materna, o surgimento do suporte livro, a constituição de um tempo novo marcado pela leitura e o surgimento de uma desconhecida figura social: o autor-narrador-escritor

(Barros; Castro, 2005, p.95).

Nesse contexto, Barros (2002, p.115) afirma que:

A apropriação da escrita pode ser uma das garantias de permanência da cultura ancestral guarani mbyá. O desafio que se coloca é como incorporar essa mediação intercultural, como patrimônio às relações tradicionais, fundadas na oralidade.

A escrita não é um mecanismo neutro, mas uma elaboração política e cultural, com possibilidades ou não de empoderamento das sociedades indígenas. Assim, o processo de alfabetização, aquisição e apropriação da cultura escrita precisa ser compreendido nessa tensão entre o valor simbólico da prática dominante, vinculada ao progresso e com valor mítico no Ocidente moderno; e o “oral’, comumente visto como aquilo que não contribui para o progresso. O discurso apresenta, portanto, um papel fundamental na afirmação da(s) identidade(s) indígena(s), e o domínio da língua indígena, em sua modalidade oral e escrita, mostra-se como um fator determinante para (re)construção dessa(s) identidade(s) (Neves, 2009; Mendes, 2001).

Considerações Finais

Neste artigo, propomos algumas discussões e questionamentos acerca do processo de alfabetização, as relações entre oralidade, escrita, modos de pensamento e as tensões existentes no contexto do desenvolvimento de propostas de alfabetização construídas para o fortalecimento da educação intercultural indígena. Apontamos alguns aspectos que consideramos fundamentais no desenvolvimento de propostas de alfabetização entre comunidades indígenas, entre eles, a singularidade da escola diferenciada, a heterogeneidade dos povos, a definição de escola e de currículo e o reconhecimento de que, como tantos outros, constitui-se em um campo de lutas em um contexto de minorias étnico-culturais em relação à sociedade envolvente. Consideramos que os modos de pensamento, tal qual proposto por Brunner, precisam ser trazidos para a discussão para dialogarmos com estudos recentes sobre a alfabetização de povos indígenas, uma vez que a língua, em uma perspectiva bakhtiniana, é constituinte da cultura, ao mesmo tempo em que o sujeito se constitui mergulhado nela.

Também é possível considerar que os desafios em torno da alfabetização e da aquisição da escrita no contexto das escolas interculturais e indígenas possuem estreita relação com o debate sobre relações de desigualdade, das hierarquizações produzidas em torno do etnocentrismo linguístico, que traz em seu bojo, os modos de pensamento, e as necessárias reflexões voltadas para a reconstrução identitária nesse contexto. Sendo assim, o processo de alfabetização está incluído na preocupação da interculturalidade e no reconhecimento da identidade étnica dentro e fora da comunidade.

Por último, importante considerar que os modos de pensamento atravessam alguns estudos trazidos para este ensaio. Nesse sentido, é fundamental pensar que o que esses autores nos mostram é que há um processo de hibridização entre a oralidade e a escrita e, na medida em que ocorre uma aproximação entre essas culturas, esse processo de hibridização nos permite conjecturar, levando em consideração as teorias histórico-cultural e bakhtiniana, que a oralidade e a escrita não são processos independentes da cultura de um povo. Antes, refletem elementos a partir dos quais uma cultura se organiza. Dessa forma, esse convívio termina por promover mudanças na forma de pensar e de se organizar. Esses processos de ressignificação são especialmente importantes de serem considerados no curso da escolarização. A partir daí, pode-se pensar em uma alfabetização que, parafraseando Mia Couto, alfabetize em conversa com a oralidade.

2Fazemos referência aos estudos desenvolvidos por Walsh (2007) entre outros pesquisadores(as) relacionados ao grupo Modernidade-Decolonialidade.

3O conceito de diferença, aqui considerado, com base em Bhabha (1998), não se confunde com o de diversidade, termo comumente utilizado para se referir à pluralidade de identidades como uma condição da existência humana. Ao contrário, ser negro, branco, homo ou heterossexual, não são condições naturais ou essencializadas, mas construções históricas e culturais produzidas em meio às relações sociais e de poder.

4A Revista Tellus (avaliada como B1 pela Capes) é exclusivamente voltada para a publicação de resultados de pesquisa e documentação sobre as populações indígenas, especialmente sul-americanas, e é vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mais informações disponíveis em: <https://www.tellus.ucdb.br/tellus/issue/archive/2>.

5Sobre o ensino da língua portuguesa e a diversidade linguística e cultural indígena, ver Russo e Paladino (2018).

6Desde 2016 acompanhamos o desenvolvimento de pesquisas e de projetos de extensão voltados também para o debate sobre o processo de integração de crianças em situação de imigração (Russo; Mendes; Borri-Anadon, 2020).

7No original: En milieu scolaire, chez certains enfants, la non-reconnaissance de l’existence de la langue de la famille (qu’il s’agisse d’une langue de l’immigration, d’une langue régionale, d’une langue des communautés autochtones ou autre), différente de celle de l’école, peut se traduire par une « insécurité linguistique, un sentiment de discrimination, une baisse de l’estime de soi, ainsi que par des difficultés à transférer des acquis cognitifs et langagiers d’une langue à l’autre (Armand; Dagenais; Nicollin, 2008, p.22).

Como citar este artigo/How to cite this article

Russo, K.; Mendes, L.C.; Fernandes, G.N. Desafios para a alfabetização no contexto das escolas indígenas. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204928, 2020. https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4928

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Recebido: 30 de Abril de 2020; Revisado: 24 de Agosto de 2020; Aceito: 19 de Outubro de 2020

Colaboradores

K. RUSSO foi responsável pela redação inicial do artigo (rascunho), revisão e edição da versão final e pela orientação do trabalho. G.N. FERNANDES contribuiu com a inclusão, análise e revisão de literatura do campo da alfabetização indígena nos principais portais acadêmicos do país, além de discutir a relação entre oralidade e escrita no contexto das sociedades indígenas em sua dissertação de mestrado em educação. L.C. MENDES foi responsável pela conceptualização e reflexões mais específicas sobre as interrelações entre infâncias, escola e linguagem no processo de alfabetização.

Correspondência para/Correspondence to: K. RUSSO. E-mail: kellyrussobr@gmail.com.

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