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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4880 

Alfabetização e o processo de apropriação da língua materna: políticas, formação de professores e práticas pedagógicas

“Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro!” – Currículo e alfabetização para além das evidências1

“Either this or that: this or that... and I keep choosing all day! ” – Curriculum and literacy beyond evidence

Rita de Cássia Prazeres Frangella2 
http://orcid.org/0000-0001-6392-4591

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Educação e Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Educação. R. São Francisco Xavier, 524, 12o andar, Maracanã, 20550-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo

O artigo objetiva discutir políticas educacionais contemporâneas para alfabetização e os sentidos de currículo e alfabetização que estas mobilizam. A análise põe em destaque as proposições da Política Nacional de Alfabetização interrogando uma das premissas indicadas no programa: a alfabetização baseadaem evidências científicas. Ao arguir tal questão, discute-se a partir de uma perspectiva discursiva pós-estrutural que questiona a lógica binária entre verdade/não verdade calcada numa dada concepção de “evidência científica” e que, por conseguinte, invalida outras perspectivas que não se erijam à sua semelhança. Argumenta-se que a tomada da Ciência como preditividade, ordem fixada e sentidos unívocos expulsa a diferença e incide sobre uma ideia da alfabetização e currículo com feições instrumentais e processos homogeneizantes. Nessa linha de problematização, defende-se uma perspectiva discursiva para currículo e alfabetização, em que os significados não são dados aprioristicamente, dão-se nos termos derridianos da imprevisibilidade, contingência, alteridade, o que exige decisão responsável, mas que, como decisão, só se dá no terreno do indecidível. Assim, alfabetização e currículo são significados como enunciações culturais, produzidos em relações alteritárias que, sempre plurais, borram e transbordam as fronteiras em que tentam contê-los.

Palavras-chave Alfabetização; Alteridade; Currículo; Discurso; Políticas curriculares

Abstract

The article aims to discuss contemporary educational policies for literacy and the meanings of curriculum and literacy that they mobilize. The analysis highlights the proposals of the National Literacy Policy, questioning one of the premises indicated in the program: literacy based on scientific evidence. We debate this question from a post-structural discursive perspective that questions the binary logic between truth / non-truth based on a given conception of “scientific evidence” that invalidates perspectives that are not similar to one’s own. It is argued that taking Science as predictiveness, fixed order, and univocal meanings expels difference and reflects on ideas of literacy and curriculum that carry instrumental features and bring about homogenizing processes. In this line, a discursive perspective for curriculum and literacy is advocated, where meanings are not given a priori, but put in Derridean terms of unpredictability, contingency, alterity, which requires responsible decision, but, as a decision, only takes place in the field of the undecidable. Thus, literacy and curriculum are signified as cultural enunciations produced in alteritarian relationships that, always plural, blur and overflow the borders in which one attempts to have them contained.

Keywords Literacy; Alterity; Curriculum; Discourse; Curriculum policies

Introdução

Mais que isto ou aquilo

Todo texto começa com uma escolha. Às vezes algumas até parecem uma não escolha. Então, entre isto ou aquilo, vivo escolhendo como Meireles (2002) diz e, também como ela, ainda não sei qual é o melhor. Mas precisaria? Se soubesse, minha escolha não seria óbvia? Seria ainda uma escolha?

Então, mais que escolha, essa é minha decisão: trato de decisão, de contingência, do para além do “ou isto ou aquilo”; decido apagar as bem traçadas linhas que demarcariam terrenos seguros e me permitiriam “fazer escolhas mediante garantias” que, de forma tranquila, assegurariam o lugar a chegar. Percorro caminhos outros, e não se trata de uma escolha simples entre isto ou aquilo; diferente de Chapeuzinho, não se trata de escolher o caminho seguro ou aquele que reserva o infortúnio do encontro com o Lobo, mas é o caminho da imprevisibilidade. Mesmo o caminho que leva ao Lobo não é desconhecido, também ele é previsível. Não ir por aquele caminho diz das garantias e são essas que ponho em questão. Então sigo eu – e por essa estrada afora não vou sozinha –, por outros caminhos.

Aqueles que me leem devem estar imaginando: aonde esse texto chegará? A decisão de assim começar o texto não é meramente um recurso estilístico para chamar atenção ou aguçar a curiosidade/simpatia sobre o que discutirei, já é a reflexão tomando forma porque tratarei de currículo e alfabetização a partir da ideia de decisão e imprevisibilidade, pondo em jogo sentidos que divergem de políticas para a alfabetização que demarcam rotas seguras, garantidas e previsíveis, e – se não for isso –, cuidado, há um lobo que pode te devorar. Seja qual o caminho for, não há decisão: basta seguir o que já está traçado. Nisso, algo se perde […] é nessa busca que me lanço e, implicitamente, desafio: continuar lendo é também uma decisão.

Procedimentos Metodológicos

Imprevisibilidade e decisão: para além de determinismos

O desenho teórico-metodológico deste estudo se desdobra de uma perspectiva discursiva pós-estrutural. Toma-se o discursivo como foco, objetivando investigar os significados articulados que permitem a produção de políticas de currículo: não se trata de buscar um significado em si – o que é, nem de valoração/hierarquização que aponte que significado deveria ser. Trata-se de pensar a produção de formações discursivas como movimento resultante de articulações, deslocamentos, disputas no social. A reflexão aqui apresentada focaliza a Política Nacional de Alfabetização (PNA), instituída pelo decreto nº 9.765 de 2019, observando, nessas significações de alfabetização e currículo, seus deslizamentos e articulações que discursivamente espraiam sentidos para a política curricular de alfabetização.

Dessa forma, a leitura discursiva pós-estrutural assumida neste estudo requer discutir questões que tomo como orientadoras nesse percurso. Trato decisão e imprevisibilidade pondo em jogo determinismos que advêm da possibilidade de, a partir de modelos mecânicos que permitiriam cálculo e repetição, prever, programar e controlar os diferentes processos sociais. Assim, a partir da definição da norma, trata-se apenas de aplicabilidade, daquela como rota segura e garantida de se atingir um determinado horizonte/objetivo.

Faço tal caminho entrando, e derridianamente requerendo hospitalidade, no diálogo travado entre Derrida e Roudinesco (2004) em que tematizam sobre imprevisibilidade ao tratarem de liberdade. Esse diálogo começa com o questionamento ao cientificismo, ao que Derrida apressa-se em esclarecer que cientificismo não é Ciência: “é, portanto, em nome da ciência que é preciso ser vigilante contra o cientificismo e contra o positivismo cientificista” (Derrida; Roudinesco, 2004, p.64).

Diante do questionamento acerca da liberdade, Derrida argumenta não ser essa uma palavra que usa, a indica como o que excede à ordem do cálculo e daí trata de acontecimentos. O autor tergiversa diante da questão da liberdade e traz à cena a ideia do acontecimento como imprevisível, da ordem do não programável e isso é associado à figura do outro. Afirma que o outro corresponde ao incalculável, ao que chega e interrompe a previsibilidade, outro que chega inesperadamente, como alteridade irredutível e que se esquiva de fechamento.

O autor discute essa chegada como imprevisibilidade/acontecimento que requer então decisão responsável. Daí o caráter aporético do acontecimento, sua condição de possibilidade é a im-possibilidade, o desvio da antecipação e preditividade, porque, se assim o fosse, não seria nem acontecimento nem implicaria decisão. Assim, o acontecimento imprevisível é o outro, como alteridade radical.

Im-previsível, im-possível, o acontecimento se demarca por sua alteridade: abissalmente e infinitamente desalojado de todos os seus lugares próprios, da verdade do próprio lugar, do ter-lugar de sua verdade. A eticidade designaria, pois, essa abertura para o risco, para a ameaça do outro. Uma responsabilidade absoluta do outro como resposta à questão que domina a ética derridiana – o que fazer com o que advém/acontece? – Importa, antes de tudo, em um desarmamento, em uma vulnerabilidade, em se deixar expor ao que não se deixa apropriar, ao que nunca advém como oportunidade de uma fiabilidade, de uma fiducialidade – de um programa e de uma prova, da predictividade ou da providência anuladoras do futuro

(Fontes Filho, 2012, p.144).

Cabe trazer à discussão que tratar do im-possível não implica imobilismo e paralização. Ao contrário, o autor formula o im-possível como condição de possibilidade, a experiência do impossível é a radicalização da possibilidade para além do que é programável previamente, possibilidade sempre em aberto e que não se esgota ou concretiza plenamente. Uma experiência da aporia.

Essa perspectiva aporética do acontecimento incide sobre o que é caro na obra de Derrida: o que chama de indecidíveis. A ideia de indecidível problematiza uma metafísica opositiva e afirma a irredutibilidade do outro ao mesmo. Nesse desajuste de polaridades, suspende a lógica da existência de um fundamento, que não se erige como ente em si em oposição a algo. A ausência de fundamento não impede a decisão, ao contrário, para Derrida, aí está a possibilidade mesmo da decisão na impossibilidade de se ater entre verdade ou não verdade; só há decisão como acontecimento. “Ali de onde o outro pode chegar, existe ‘por vir’” (Derrida e Roudinesco, 2004, p.69).

Sobre desenhos curriculares e a imprecisão do traço

A concepção de currículo que venho defendendo em minha trajetória de pesquisa se alinha ao que venho chamando de enunciação cultural a partir do diálogo com a obra de Bhabha (2001) e com os trabalhos desenvolvidos com Macedo e Frangella (Macedo; Frangella, 2007; Frangella, 2015, 2016).

A ideia de enunciação cultural remete à defesa do entendimento do currículo não como manifestação da cultura, mas ele próprio como cultura e aí entende-se, à luz do que Bhabha vem defendendo como cultura, um rompimento com um continuum de passado e presente e que, como ato tradutório insurgente, desestabiliza uma perspectiva continuísta e de objetificação da cultura. Dessa forma, contesta a cultura reificada em objetos de referência, rechaça a ideia de representação e de objeto cognoscível passível de ser localizado ou posto em relação construída com base em oposições. Ao contrário, refutando essencialismos, Bhabha ao tratar a cultura como híbrida, destrói polaridades negativas, mas sem com isso remeter a uma “unidade do antagonismo ou da contradição social”, ou seja, um projeto unitário homogêneo, ainda que constituído de diversidades (Bhabha, 2001, p.51).

O autor incita a pensar uma outra temporalidade e outros movimentos para significar a cultura e o faz nos termos da negociação. Ela emerge – porque se trata de emergência, e não origem – na ambivalência discursiva que desloca fronteiras, traz à tona o entre-lugar de articulação de diferenças e traduções. Uma produção que se dá não de forma linear, mas que o autor destaca como problema da enunciação da diferença. Assim, a cultura se apresenta como produção contingente, irregular, incerta, deslocada do lugar seguro de um passado autêntico ou presente vivo; não é referente de identificação nem objeto contemplativo ou passível de ordenamento, mas se faz como tecido contaminado, indeterminado, uma complexa significação, num processo de alteridade.

Mais explicitamente, Bhabha (2011, p.83) apresenta seu pensar a cultura:

Aqui a nossa compreensão teórica – em seu sentido mais geral – da “cultura como diferença” nos habilitará a perceber a articulação da fronteira, do espaço sem raízes e do tempo das culturas. Onde essa compreensão pode ser encontrada?

Em outro texto, há possibilidade de resposta à indagação:

Minha passagem do cultural como objeto epistemológico à cultura como lugar enunciativo, promulgado, abre a possibilidade de outros tempos de significado cultural (retroativo, prefigurativo) e outros espaços narrativos (fantasmático, metafórico). Minha intenção ao especificar o presente enunciativo na articulação da cultura é estabelecer um processo pelo qual outros objetificados possam ser transformados em sujeitos de sua história e de sua experiência

(Bhabha, 2001, p.248).

Assim, a cultura como enunciação se dá no encontro com a diferença e alteridade, desse outro que não é inquirido como negativo a ser transformado no mesmo, mas, para além da oposição binária, exige articulação, negociação, não em uma lógica de totalização cultural, mas sob o signo de ser uma produção híbrida.

A noção de enunciação que Bhabha trabalha, articulada a referenciais pós-estruturais e pós-fundacionais, bebe na teoria da enunciação bakthiniana dando ênfase ao dialógico e seu potencial hibridizador que desestabiliza a lógica de totalização. O híbrido bakthiniano não remete a superposição, dualidade ou binarismo, mas duplicidade discursiva que evoca negociação, que, para além do ou isto ou aquilo, faz eclodir uma zona intersticial, uma relação tempo-espaço outra, marcada pela contingência.

Assim, ao invés de totalização cultural, trataríamos de culturas parciais, contaminadas, com limites borrados; da impossibilidade de fechamentos que, com fronteiras porosas, evidenciam esse entre-lugar, desconcertante em sua semelhança e diferença. Os atores sociais se constituem na articulação, nas hibridizações que problematizam a ideia de reconhecimento pleno a uma cultura. Bhabha (2011, p.91) explica:

No meu próprio trabalho, desenvolvi o conceito de hibridismo para descrever a construção da autoridade cultural em condições de antagonismo ou desigualdade política. As estratégias de hibridização revelam um movimento de estranhamento na inscrição “autoritária” e até mesmo autoritarista do signo cultural. No momento em que o preceito tenta se objetivar como conhecimento generalizado ou uma prática normalizante e hegemônica, a estratégia ou o discurso híbrido inaugura um espaço de negociação, onde o poder é desigual, mas sua articulação pode ser questionável. Tal negociação não é nem assimilação, nem colaboração. Ela possibilita o surgimento de um agenciamento intersticial, que recusa a apresentação binária do antagonismo social. Os agenciamentos híbridos encontram sua voz em uma dialética que não busca a supremacia ou a soberania cultural.

Essas questões, incitadas pela leitura de Bhabha (2001) e também em articulação com outros autores como Derrida (2011) e Laclau (2011), permitem o desenvolvimento de uma compreensão da produção curricular como enunciação, num quadro teórico referenciado numa perspectiva discursiva pós-estrutural, pós-fundacional. Sendo assim, tomo currículo como produção discursiva, contingencial e provisória; como decisão sem garantias e que se constitui nos interstícios; como produção híbrida, que não busca totalização, mas negociação; que se erige não como plenitude, mas em meio a ambivalências que não eclipsam as lutas sempre inconclusas, mesmo quando “algo é decidido”, desvenda-se (no sentido derridiano – dévoilement) que a decisão poderia (e pode) ser outra. Isso não se dá a partir de verdades que se estabelecem como referentes absolutos e que daí podem estabelecer pares binários – o ser e não ser –; significa que qualquer filiação é situacional, estratégica e contingencial, dá-se como decisão no terreno do indecidível.

Nesse sentido, para discutir currículo nessa perspectiva há que se discutir enunciação, cultura, diferença, alteridade e indeterminação. Tal compreensão se espraia também para a noção de política. A política como produção discursiva se move nos jogos de linguagem dando aos processos de significação o caráter de provisório, dependendo da negociação de significados. As articulações discursivas atuam de maneira importante para construir os sentidos que vão se hegemonizando na tentativa de conter os jogos de linguagem – a estabilização de uma dada significação é fruto de uma luta incessante.

Daí o entendimento de política de currículo rompendo com uma lógica linear e problematizando a tomada da política da educação como acontecimento calculado, previsto, definido. É com essas questões que indago: que currículo para alfabetização?

Discussão

Currículo e Alfabetização: políticas e sentidos em disputas

A relevância da temática, de como a questão da alfabetização vem sendo tratada e da necessária análise do processo complexo de produção de políticas educacionais, permite-nos compreender os sentidos postos em disputa tanto para currículo como para alfabetização, atentando que estas não se dão de forma isolada, constituem-se nas articulações que fomentam a emergência de determinadas perspectivas, o esmaecimento de outras e os deslocamentos e significações que amalgamam tais proposições.

Há que se observar a complexidade da temática no contexto em que se dá tal proposição: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) foi responsável nos últimos sete anos pela formação de professores alfabetizadores3 no país (Brasil, 2012). Contudo, apesar da expressividade de números e entes envolvidos no programa – dado que se trata de um pacto firmado entre municípios, estados e universidades (com participação de 100% de estados da União) – o PNAIC, de forma abrupta, parece ter sido desconsiderado nas iniciativas recentes do Ministério da Educação no que tange à alfabetização. A página <http://pacto.mec.gov.br/>, hospedada no portal do Ministério da Educação (MEC), quando visitada, aparece sem conteúdo (consultas feitas entre abril-julho de 2019; também em fevereiro e março de 2020). A busca por PNAIC 2019 na internet não evidencia, por parte do MEC, disposições específicas sobre continuidade, interrupção, reconfiguração, ainda que seja possível mapear ações desenvolvidas em diferentes estados no âmbito de ações de universidades parceiras e municípios, assinaladas como vinculadas ao programa ou indicadas como PNAIC 2019.

Na reconfiguração do MEC a partir da nova gestão do Ministério, foi criada em 2019 a Secretaria de Alfabetização (SEALF), num destaque dado à temática. O PNAIC figurava como um programa vinculado à Secretaria de Educação Básica e na nova proposição ganha um outro “status”. Ao acessar a SEALF no portal do MEC é apresentado um descritivo da Secretaria, seu foco de ação e estruturação:

A Secretaria de Alfabetização (Sealf) é responsável por planejar, orientar e coordenar a implementação de políticas para a alfabetização de crianças, jovens e adultos. Atua para viabilizar ações de cooperação técnica e financeira entre a União, os estados, municípios e o Distrito Federal com organismos nacionais e internacionais, que estejam voltadas para a alfabetização. Coordena também a elaboração de currículos e de materiais para a implementação de métodos de alfabetização de comprovada eficácia, bem como apoia a criação de programas de formação de professores alfabetizadores e programas e ações que incentivam a leitura e a escrita. Cabe à Sealf ainda a aplicação de mecanismos que permitam avaliar, com base em evidências científicas, as competências e habilidades adquiridas pelos estudantes no processo de alfabetização

(Brasil, 2020online).

É essa instância que assume a função de proposição e fomento tanto de políticas curriculares para alfabetização quanto de programas de formação de alfabetizadores. Sendo assim: e o PNAIC? Ainda que se efetive a dissolução da rede de formação constituída pelo programa, o PNAIC permanece como rastro, no sentido derridiano, na significação de formação, alfabetização, infância, currículo que se depreendem de seus movimentos; espectralmente se faz presente nas práticas de alfabetizadores que, formados com/no programa, traduzem-no em suas ações cotidianas – e isso implica, na perspectiva discursiva com que opero, que essa tradução exclui a ideia de reprodutibilidade e reificação do currículo, mas implica a afirmação de que “os professores significam o PNAIC; em processos de iteração, eles o reinventam, mobilizando o fluxo de significação que rompe com a pretensa fixação de sentidos propostos” (Frangella; Axer; Rosário, 2017, p.1191).

A Política Nacional de Alfabetização (PNA) traz uma configuração que adensa as preocupações indicadas anteriormente e justifica a investigação acerca das proposições que faz, nas antíteses e paradoxos que se estabelecem, a partir de alguns indicativos:

No Capítulo II – Dos princípios e objetivos, assevera:

Art. 3º São princípios da Política Nacional de Alfabetização:

III- fundamentação de programas e ações em evidências provenientes das ciências cognitivas;

IV- ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica sistemática; c) fluência em leitura oral; d) desenvolvimento de vocabulário; e) compreensão de textos; e f) produção de escrita

(Brasil, 2019a, online).

No Capítulo III – Das diretrizes:

Art. 5º Constituem diretrizes para a implementação da Política Nacional de Alfabetização:

  1. priorização da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental;

  2. incentivo a práticas de ensino para o desenvolvimento da linguagem oral e da literacia emergente na educação infantil;

  3. integração de práticas motoras, musicalização, expressão dramática e outras formas artísticas ao desenvolvimento de habilidades fundamentais para a alfabetização;

  4. incentivo à identificação precoce de dificuldades de aprendizagem de leitura, de escrita e de matemática, inclusive dos transtornos específicos de aprendizagem; e

  5. valorização do professor da educação infantil e do professor alfabetizador (Brasil, 2019a, online).

No Capítulo IV – Do Público-Alvo:

Art. 6º A Política Nacional de Alfabetização tem por público-alvo:

  1. crianças na primeira infância;

  2. alunos dos anos iniciais do ensino fundamental;

  3. alunos da educação básica regular que apresentam níveis insatisfatórios de alfabetização; [...] Parágrafo único. São beneficiários prioritários da Política Nacional de Alfabetização os grupos a que se referem os incisos I e II do caput.

Art. 7º São agentes envolvidos na Política Nacional de Alfabetização:

  1. professores da educação infantil;

  2. professores alfabetizadores [...] (Brasil, 2019a, online).

Primeiramente chama atenção o parâmetro posto para o desdobramento da discussão acerca da alfabetização, o que se observa tanto no texto da política como na própria organização da SEALF, que se desdobra em três diretorias, sendo uma delas a Diretoria de Alfabetização Baseada em Evidências – a fundamentação em evidências científicas provenientes das ciências cognitivas. Essa marcação já instaura um movimento de absolutização de uma dada perspectiva, de um determinismo mecanicista que estabelece como ciência válida apenas uma dada perspectiva.

Sobre o que é considerado pesquisa que produz evidência científica, o Caderno da PNA, um guia explicativo que detalha a política e é destinado a estados e municípios, professores e alunos do ensino fundamental, pais e responsáveis, bem como estudantes da educação de jovens e adultos (Brasil, 2019b, p.20) descreve:

Como saber se uma pesquisa apresenta uma evidência científica válida?

Para que uma evidência seja considerada válida e, por conseguinte, possa fundamentar políticas públicas educacionais, devem-se observar alguns parâmetros mínimos, a saber:

  1. a análise da metodologia dos estudos: se a pesquisa se valeu de um desenho experimental ou de outras metodologias igualmente rigorosas; se os resultados dos alunos submetidos à intervenção foram comparados com os de estudantes semelhantes não submetidos a ela;

  2. a análise da qualidade dos dados: se os pesquisadores se certificaram de coletar, armazenar e examinar cuidadosamente os dados e se relataram metodicamente os procedimentos seguidos em cada etapa e as limitações do estudo;

  3. o respaldo da comunidade científica: se o estudo foi publicado em periódico científico para que outros pesquisadores avaliassem os resultados, revisassem os métodos utilizados na pesquisa e pudessem repeti-la em outros contextos;

  4. o uso de metanálises: se a decisão é tomada com base em metanálises, ou seja, em estudos (revisões sistemáticas) que compilam um conjunto de evidências e determinam o estado da arte ou o conhecimento mais atual acerca de um objeto.

Contudo, ainda que isoladamente essas indicações permitissem a compreensão de que há diferentes perspectivas e pesquisas que tematizam a alfabetização e produzem também evidências científicas, percebe-se um deslocamento discursivo que, em resposta ao fracasso da alfabetização, demonstrado a partir da apresentação de dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), buscam-se referenciais que possam garantir o sucesso na alfabetização, e isso se dá com ciência, numa polarização entre o que é considerado ciência robusta, para usar os termos da PNA, e outras ciências. Instaura-se aí uma clássica oposição binária que permite delimitar as margens do dentro e fora, no caso, o que é ciência ou não, estabelecendo um centro/fundamento a partir do qual o que não é imagem e semelhança deste é repelido. A ciência como fundamento estabelece aqui o inimigo a ser combatido.

Laclau (2011), como na perspectiva derridiana, recorre à noção de antagonismo na discussão acerca da política como discurso que se move como jogos de linguagens instáveis, contingentes; articulações discursivas na tensão entre equivalências e diferenças encadeadas. A partir de uma ameaça antagônica se movimentam contingencialmente processos articulatórios em torno de dados discursos; mobilizam-se e se alinham diferentes discursos a partir de um inimigo comum negado e a ser combatido. Há um projeto de universalização de um discurso particular que, em meio às articulações, cumpre função universalizante; essa busca por universalização é a luta por hegemonia, uma luta pela significação.

Assim, é possível perceber que são deflagrados movimentos em busca de hegemonização de um dado sentido para a alfabetização: o inimigo, a ameaça não é nominada diretamente, mas é possível perceber ao que se refere na polarização binária constituída sob a ideia de Ciência. Assim, uma alfabetização baseada em evidências científicas se dá a partir da ideia de Ciência/verdade, passível de subsumir variáveis e a partir de regularidades, ordens fixadas, ou retomando Derrida, como cálculo e repetição, que são capazes de reduzir processos complexos em roteiros simplificados e verificáveis.

[...] uma alfabetização baseada em evidências traz para o debate sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita a visão da ciência, dados da realidade que já não podem ser ignorados nem omitidos. Entre os ramos das ciências que mais contribuíram nas últimas décadas para a compreensão dos processos de leitura e de escrita, está aquele que se convencionou chamar ciência cognitiva da leitura (Snowling; Hulme, 2013; Adams, 1990; Dehaene, 2011). Por ciências cognitivas se designa o campo interdisciplinar que abrange as diferentes disciplinas que estudam a mente e sua relação com o cérebro, como a psicologia cognitiva e a neurociência cognitiva

(Brasil, 2019b, p.20).

Interessante observar também os recursos utilizados na disputa pela significação da alfabetização. O caderno da PNA tem uma concepção visual com gráficos, ilustrações e, ao modo de hiperlink, suas margens são preenchidas com fragmentos intitulados “O que dizem os especialistas?”. São caixas de texto que trazem os argumentos defendidos pelos especialistas e a indicação de sua titulação e filiação institucional, que dão peso e destaque à fala:

Como as crianças aprendem a ler e quais as melhores maneiras de ensiná-las não é simples questão de opinião. Os cientistas que estudam a instrução e aquisição da literacia realizaram pesquisas que dão respostas definitivas a essas perguntas e descartam opiniões incorretas. Suas descobertas revelam que os leitores iniciantes, para serem bem-sucedidos, devem aprender de início como funciona o sistema alfabético de escrita. Eles precisam aprender as formas, os sons e o nome das letras, como as letras representam sons separados nas palavras e como dividir as palavras faladas nos menores sons representados pelas letras (Linnea Ehri Professora Emérita de Psicologia Educacional da Universidade da Cidade de Nova Iorque Participou do National Reading Panel, encomendado pelo Congresso dos EUA para revisar pesquisas e identificar métodos eficazes de ensino de leitura)

(Brasil, 2019b, p.26).

Ainda que por vezes o destaque feito possa chamar atenção para a não polarização, a ênfase, em sua relação com o texto principal, está na evidência científica sublinhada como garantia.

As pesquisas em psicologia cognitiva e em neurociências nos permitem compreender os mecanismos cognitivos e neurobiológicos que entram em ação na aprendizagem. Esses conhecimentos são importantes, porque nos permitem distinguir o que é simples crença daquilo que são fatos cientificamente estabelecidos. Assim, hoje é possível afirmar que a leitura deve ser objeto de um ensino explícito em suas diferentes dimensões e que, para alcançar as habilidades de bom leitor, é necessário que a atividade seja repetida de modo regular e frequente, a fim de se tornar automática. A automatização só acontecerá para os alunos que tiverem uma prática suficiente de leitura e de escrita. Para que essa prática seja importante, na sala de aula e em casa, é necessário que as atividades propostas suscitem e desenvolvam nos alunos a vontade de ler, a vontade de escrever. Não há, portanto, nenhum sentido em opor aprendizagem sistemática e prazer de ler. Não se trata de dois métodos opostos entre os quais se deve escolher um, mas de duas condições que o pedagogo deve levar em conta para um ensino bem-sucedido (Jean-Émile Gombert Doutor em Psicologia Genética pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris Professor de Psicologia do Desenvolvimento Cognitivo da Universidade de Rennes II Presidente Honorário da Universidade de Rennes II)

(Brasil, 2019b, p.28).

Em linhas gerais, observa-se que o centramento numa perspectiva com base em uma ciência cognitiva colide com premissas que vêm orientando a proposição de políticas voltadas à alfabetização. De certa forma, também se afasta das premissas dispostas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, ainda que dando destaque à consciência fonêmica e à ortografização, faz isso chamando atenção para a articulação de diferentes eixos de trabalho e mantendo a ideia de letramento como concepção que se articula à ação alfabetizadora,

Assim, no Ensino Fundamental – Anos Iniciais, no eixo Oralidade, aprofundam-se o conhecimento e o uso da língua oral, as características de interações discursivas e as estratégias de fala e escuta em intercâmbios orais; no eixo Análise Linguística/Semiótica, sistematiza-se a alfabetização, particularmente nos dois primeiros anos, e desenvolvem-se, ao longo dos três anos seguintes, a observação das regularidades e a análise do funcionamento da língua e de outras linguagens e seus efeitos nos discursos; no eixo Leitura/Escuta, amplia-se o letramento, por meio da progressiva incorporação de estratégias de leitura em textos de nível de complexidade crescente, assim como no eixo Produção de Textos, pela progressiva incorporação de estratégias de produção de textos de diferentes gêneros textuais

(Brasil, 2018, p.87).

A ênfase dada à questão das evidências científicas é potente na construção discursiva das propostas delineadas, pois as dotam de uma qualificação que asseguraria sua eficácia atrelada a prova científica, uma superioridade diante de outras possibilidades de pensar a alfabetização, uma vez que esta se assenta numa perspectiva técnico-científica.

A PNA pretende inserir o Brasil em um rol de países que escolheram a ciência como fundamento na elaboração de suas políticas públicas de alfabetização, trazendo os avanços das ciências cognitivas para as salas de aula

(Sargiani, 2019, p.4).

Há uma narrativa-mestre que se desenrola e justifica a PNA: as evidências científicas; mais ainda, há uma clara delimitação que faz com que essas evidências sejam postas em seu caráter de incontestáveis, uma vez que, sendo verdade científica, não é possível pensar em verdades – há apenas uma, o que desconsidera a trajetória de tantas outras pesquisas que também produzem evidências sobre a alfabetização. A ênfase na Neurociência e nas ciências cognitivas afasta a proposta da escola; põem-se em destaque aspectos comportamentais, biológicos e fisiológicos que isolam os aspectos sociais e a educação como, o que venho defendendo, produção cultural. Onde estão os pesquisadores da alfabetização, da Educação e suas produções na PNA? Não há diálogo com trabalhos desenvolvidos por pesquisadores e núcleos de pesquisa reconhecidos na área da educação como o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Universidade Federal de Minas (UFMG), Centro de Estudos de Educação e Linguagem da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)4, dentre tantos outros núcleos/grupos de pesquisa, numa invisibilização dos estudos desenvolvidos na área de educação sobre a alfabetização.

Essa crítica à perspectiva científica reducionista é feita pela Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf), que, em carta pública à União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação e ao Conselho Nacional de Secretários de Educação acerca do programa Tempo de Aprender, apresentado como programa de alfabetização abrangente visando à melhora da qualidade da alfabetização a partir das diretrizes da PNA, assim se expressa:

Sobre a PNA do atual governo, a ABAlf tece algumas ponderações e solicita apoio para evitar retrocessos e mais rupturas que, historicamente, têm ocorrido com as políticas públicas de alfabetização no Brasil.

1- O que está sendo considerado pela PNA como “estado da arte em alfabetização” exclui tanto o histórico de pesquisas nacionais e internacionais desenvolvidas na área, quanto sua abrangência. Ao focalizar prioritariamente pesquisas do campo das ciências da cognição, a proposta explicita o seu reducionismo, revelando uma visão estreita e sectária do campo educacional, que é, ao revés, multi e interdisciplinar. Mais que desconsideração, há uma desqualificação das pesquisas desenvolvidas no Brasil com a pluralidade de enfoques científicos, que lhe é Tema que já foi amplamente debatido por diferentes pesquisadores associados à ABAlf

(Associação Brasileira de Alfabetização, 2020, p.1).

A “Revista Brasileira de Alfabetização”, em edição especial de 2019, publicou o dossiê “Política Nacional de Alfabetização em foco: olhares de professores e pesquisadores”. Esse número traz a análise de vários pesquisadores que se dedicam à discussão da alfabetização, e sobre a leitura crítica da PNA destacam, entre outros pontos, a questão das evidências científicas como discussão. A luta pela hegemonização de um discurso que alinha ciência-resultado se dá na invisibilização e na desacreditação de outras propostas que não estariam então balizadas pela ciência e, assim, sem garantias. Premissas que se desenham e são problematizadas:

O método fônico/instrução fônica é a solução nova e científica para os problemas da alfabetização no Brasil, porque é único fundamentado em evidências científicas: essa falsa premissa e os argumentos decorrentes são invalidados por resultados de pesquisas científicas a comprovarem que esse método não é novo na história da alfabetização no Brasil (MAGNANI, 1997; MORTATTI, 2000; 2008), nem solução para os problemas da alfabetização, e sua pretendida “eficácia universal” foi e vem sendo questionada, no Brasil e no exterior, com base em resultados de outras pesquisas científicas

(Mortatti, 2019, p.28).

No documento lançado pelo Governo, justifica-se a adoção do Método Fônico com o argumento de que seria o único a gozar de evidências científicas. Ao dizer que está fazendo uma opção em função do que é cientificamente comprovado, o MEC está demonstrando profundo desconhecimento da Ciência. Tem na base dessa afirmação uma concepção homogeneizante de ciência, que nega qualquer tipo de fundamento teórico metodológico diferente do positivismo clássico. Essa é uma forma autoritária de negar a produção de conhecimentos oriundos de diferentes abordagens e que tanto têm contribuído para entender a escola e os processos de ensino e de aprendizagem

(Leal, 2019, p.77).

O que as diferentes análises destacam é a necessidade de pensar de forma articulada a alfabetização, considerando a complexidade de um processo multifacetado, o não apagamento de pesquisas, histórias, práticas que como rastros “não se deixa resumir na simplicidade de um presente” (Derrida, 2011, p.80) objetificado como homogeneidade e linearidade.

A ênfase nas evidências científicas, tais como indicam as inferências feitas na Política Nacional de Alfabetização de 2019, afastam-se de premissas que vinham orientando as propostas para alfabetização, parecendo construir uma polarização entre o ensino explícito e sistemático em par binário e em oposição à alfabetização na perspectiva do letramento defendida pelo PNAIC, citado também na BNCC.

A PNA, à luz da ciência cognitiva da leitura, define alfabetização como o ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético, a fim de que o alfabetizando se torne capaz de ler e escrever palavras e textos com autonomia e compreensão

(Sargiani, 2019, p.7).

O que dizem os especialistas:

Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro ano do ensino fundamental, ensinar explicitamente o princípio alfabético e as regras de decodificação e de codificação que concretizam o princípio alfabético na variante escrita da língua para habilitar crianças à leitura e soletração de palavras escritas à razão de 60 a 80 palavras por minuto com tolerância de no máximo 5% de erro na leitura (Luiz Carlos Faria da Silva Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá)

(Brasil, 2019b, p.18).

Ao problematizar a ênfase nas evidências científicas tal como apresentadas, argumenta-se que uma polarização pode implicar a atrofia do debate em torno da alfabetização, reduzindo a problemática a uma questão metodológica e também a atrofia da própria tarefa política de recuperar outros possíveis significados para o currículo, o que se defende a partir da concepção deste como enunciação cultural. O binarismo excludente – ou isto ou aquilo –, ao invés de expandir a discussão sobre a alfabetização e incitar o desenvolvimento das práticas pedagógicas, as contrai, na advertência já feita há tempos por Soares (2004, p.14):

O que é preciso reconhecer é que o antagonismo, que gera radicalismos, é mais político que propriamente conceitual, pois é óbvio que tanto a whole language nos, nos Estados Unidos, quanto o chamado construtivismo, no Brasil, consideram a aprendizagem das relações grafofônicas como parte integrante da aprendizagem da língua escrita — ocorreria a alguém a possibilidade de se ter acesso à cultura escrita sem a aprendizagem das relações entre o sistema fonológico e o sistema alfabético? A diferença entre propostas como a do Apprendre à lire ou do National Reading Panel, e propostas como a whole language e o construtivismo está em que, enquanto nas primeiras considera-se que as relações entre o sistema fonológico e os sistemas alfabético e ortográfico devem ser objeto de instrução direta, explícita e sistemática, com certa autonomia em relação ao desenvolvimento de práticas de leitura e escrita, nas segundas considera-se que essas relações não constituem propriamente objeto de ensino, pois sua aprendizagem deve ser incidental, implícita, assistemática, no pressuposto de que a criança é capaz de descobrir por si mesma as relações fonema–grafema, em sua interação com material escrito e por meio de experiências com práticas de leitura e de escrita. Pode-se talvez dizer que, no primeiro caso, privilegia-se a alfabetização, no segundo caso, o letramento. O problema é que, num e noutro caso, dissocia-se equivocadamente alfabetização de letramento, e, no segundo caso, atua-se como se realmente pudesse ocorrer de forma incidental e natural a aprendizagem de objetos de conhecimento que são convencionais e, em parte significativa, arbitrários – o sistema alfabético e o sistema ortográfico. Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento.

Considerações Finais

Alteridade, significação, alfabetização e currículo ou sobre o “Castelo dos destinos cruzados”

Ao caminhar entre tantas questões que permeiam essa reflexão, busco aqui retomar a perspectiva discursiva que sustenta minha compreensão/defesa de concepção de currículo e articulá-la à concepção de alfabetização que também se alinha a uma perspectiva discursiva, pondo em destaque aspectos que se entrelaçam em uma e outra, com ênfase para a questão da alteridade.

Nessa busca de articulação, lembrei-me do romance “O castelo dos destinos cruzados” de Calvino (1991) 5 – tal como o viajante que encontra o castelo/taverna, lugar indeterminado, mas que ao chegar a esse lugar e observar tantos que como ele ali estão, senta-se à mesa com outros viajantes na ânsia de compartilhar a experiência da viagem. Diante do inexplicável mutismo que se abate sobre todos que ali se reúnem, mas ainda assim em busca do encontro com o outro, as histórias começam a fluir à medida que dispõem das cartas do baralho de tarô e com elas contam suas histórias.

Com a surpreendente história de Calvino, passo a pensar: ainda que a voz falte, isso não encerra as possibilidades enunciativas. Assim, tratar de discurso não remete somente à fala, são práticas diferentes prenhes de processos de significação, que se dão em diferimento e não cessam a significação com uma dada história. Há apenas um baralho de tarô, mas as histórias se multiplicam; diferentes histórias com as mesmas cartas e cada história contada, nas composições feitas com as cartas, não tem a garantia de verdade nem consegue garantir um sentido unívoco. Ainda assim é preciso contar, esse outro que não sou eu, me mobiliza a entrar nesse jogo.

Jogo constitutivo. O jogo remete ao descentramento – que é a ideia de que não há um centro/origem fixada de sentido. Diferente da ideia de negação – ausência absoluta de centro –, implica, ao afirmar a ausência de origem, manter em aberto a significação, impossível de totalização e que se constitui no jogo entre ausência, presença, no jogo de diferenças.

Em Bakthin (2004) observamos que sua teoria da enunciação se assenta no dialogismo, mais que troca entre eu e outro, trata-se de um outro constitutivo que não remete apenas a indivíduos pareados; a enunciação como interação social quebra com a própria ideia de transparência do sentido e destaca a plurivalência social do signo linguístico (Pires, 2002), a polifonia desse processo. O princípio dialógico funda/funda-se na alteridade, na diferença. O sujeito não é a origem nem o destino final do enunciado, processo sempre em aberto, em jogo, mas mobilizado/atravessado por um terceiro que faz com que o jogo não cesse porque o significado é sempre outro, tem ressonâncias que o articula.

Em Derrida (2011), a alteridade é radical, aquela que nunca pode ser reduzida a diferença opositiva, desarticulada a partir do rompimento da ideia de origem – não é um porto seguro de onde se parte e para onde se volta. Assim, a alteridade desestabiliza e é radical porque não tem polo de oposição. Daí o desenvolvimento de noções que Derrida trata como indecidíveis e que apontam para as aporias. Para além de observar como condições de possibilidade, o são também condições de impossibilidade, ou seja, de fechamento absoluto e afastam-se de uma procura por fundamentos ou de um simplório relativismo (Continentino, 2007). Sua radicalidade é o traço da diferença.

Assim, a alteridade tratada como outridade, e não apenas o outro passível de tornar-se mesmo, põe-se em destaque a alteridade que interpela porque o outro extrapola as bordas postas para o seu reconhecimento – e ao fazê-lo desvenda um processo ambivalente e contingente, uma incompletude constitutiva. Ameaça a autoridade normalizante e permite pensar o eu e outro constituído de modo contingente e indeterminado, e que podem ser sempre reinscritos e relocados (Bhabha, 2001, p.322), o que se daria nas articulações da diferença que encena o direito de significar.

E a alfabetização? Aqui penso a articulação possível, assentada numa perspectiva discursiva, no que compreenderia como alfabetização e currículo da alfabetização: direito à significação, à enunciação, que, com Bakthin (2004) entendemos que não se dá de forma linear entre um eu-emissor e outro-receptor, mas que é atravessado por entre um terceiro-espaço que desloca a enunciação da projeção de um eu individual, mas como interação social, remete a uma polifonia social. Leitura e escrita como discurso, valendo-me das formulações de Smolka (2001).

O denso trabalho de Smolka (2001), ao defender a alfabetização como processo discursivo, sem jogar fora o bebê com a água do banho (Nunes; Kramer, 1995, 2019), revisita diferentes perspectivas de alfabetização, argumenta acerca de uma compreensão de alfabetização como processo de interação social, de interlocução, como momento discursivo. Assim, na defesa de seu argumento, ao examinar diferentes concepções que, a partir de outros referenciais, também analisaram o processo de escrita, a autora tece análises que endossam a defesa do movimento discursivo que é a leitura e escrita, dando especial atenção às relações que se estabelecem na escola, no que diferencia a tarefa de ensinar e as relações de ensino, relações esvaziadas na mesma medida em que a leitura e escrita se destituem do seu traço dialógico e se apresentam apenas como objeto do conhecimento.

Alfabetização numa perspectiva discursiva também é defendida por outros pesquisadores (Goulart, 2019). Em suas argumentações, ressaltam a defesa de uma alfabetização assentada na dialogicidade. Parafraseando Thomé (2017), pensar uma perspectiva discursiva implica alteridades, alfabetizações – plurais, e o sendo, são também singulares. Importante dizer que a singularidade não remete a modelo único a ser replicado, mas ao acontecimento derridiano.

Leitura e escrita como enunciação cultural, leitura e escrita-discurso que se constituem em relações alteritárias, que não sufoca as diferenças, que se dá como chegada/encontro com o outro imprevisível em sua outridade.

A autora ainda diz: esse é o risco que se tem que correr. Assim, volto para a decisão – sem garantias ou evidências que assegurem isso ou aquilo, porque enquanto processo discursivo, enunciações moventes, não há garantia possível, só um terreno indecidível no qual, como acontecimento, exige de nós decisão, ante as contingências na constituição do social e na dimensão de alteridade, a decisão, e ainda que sem garantias, nos impõe responsabilidade.

É isso, precisamos deixar a palavra...

Agradecimentos

Aos professores da rede municipal de Educação de Niterói (RJ) pela interlocução que temos produzido sobre currículo e alfabetização.

1Artigo elaborado a partir da palestra proferida na IV Jornada de Alfabetização do Município de Niterói intitulada “Alfabetização e currículo: a perspectiva discursiva em debate”, promovida pela Superintendência de Desenvolvimento de Ensino/Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia. Niterói, RJ, Brasil, 2019.

3O PNAIC foi instituído em 2012, reafirmando o compromisso assumido no decreto no 6.094 de 2007 (Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação) e visando atender à Meta 5 do PNE, que estabelece a alfabetização de todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do Ensino Fundamental. Prioritariamente volta-se para a formação continuada de professores alfabetizadores, coordenadores pedagógicos e articuladores das escolas. Em 2017 o PNAIC passa a incluir em suas ações formativas os professores da Educação Infantil.

4Cito os dois núcleos de pesquisa de alfabetização, dentre tantos outros possíveis, também dando destaque a pesquisadores que vinham participando da formulação de políticas de formação de alfabetizadores em momentos anteriores, o que também incide sobre a inferência de ruptura epistemológica que as análises apontam. Sobre a temática da produção de conhecimento em alfabetização e grupos de pesquisa no campo, ver Schwartz, Frade e Macedo (2019).

5A narrativa trata da experiência de um viajante que, ao achar abrigo num Castelo – que na verdade não é possível precisar se é um castelo ou taberna –, senta-se à mesa com outros comensais que, impossibilitados de falar, usam as cartas de um baralho de tarô para narrar aventuras. As mesmas cartas são usadas/cruzadas nas várias narrativas apresentadas. Cabe ao narrador interpretar essas diferentes histórias.

Apoio/Support: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo no 2018-435942/2018-2; Bolsa Produtividade em Pesquisa 303562/2019-6). Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Processo nº E-26/203.296/2016 e E-26/202.692/2019).

Como citar este artigo/How to cite this article

Frangella, R.C.P. “Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro!” – Currículo e alfabetização para além das evidências. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204880, 2020. https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4880

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Recebido: 31 de Março de 2020; Revisado: 28 de Agosto de 2020; Aceito: 14 de Setembro de 2020

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