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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020  Epub 17-Jun-2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4611 

Artigos

Sentido pessoal e atividade docente pela Psicologia Histórico-Cultural1

Personal sense and teaching activity of Historic-Cultural Psychology

Camila Turati Pessoa2 
http://orcid.org/0000-0003-0803-2472

Nilza Sanches Tessaro Leonardo3 
http://orcid.org/0000-0002-1692-9581

2Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação, Departamento de Psicologia. Av. Fernando Correa da Costa, 2367, Boa Esperança, 78060-900, Cuiabá, MT, Brasil. Correspondência para/: C.T. PESSOA. : <camilatpessoa@gmail.com>.

3Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Psicologia. Maringá, PR, Brasil.


Resumo

Nesta pesquisa objetivou-se compreender o processo de atribuição de sentido pessoal à atividade docente de professoras da Educação Básica. A Psicologia Histórico--Cultural figura como referência teórica dessa investigação, fornecendo subsídios para o estudo da constituição do humano por meio da cultura e das relações sociais. Como metodologia, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas realizadas individualmente com três docentes, juntamente com observação e acompanhamento de seus cotidianos de trabalho. O intuito foi compreender o sentido pessoal atribuído à atividade docente estudando o modo como o professor organiza seu trabalho, como compreende seu papel junto à educação, seus alunos e colegas de trabalho, dentre outros fatores relacionados com sua atividade. Diante desta investigação, obteve-se como resultado o sentido pessoal atribuído pelas professoras relacionando-se majoritariamente com a particularidade de suas atuações, ou seja, com o dia a dia escolar. Depreendeu-se que as ações de ensino elaboradas e desenvolvidas pelo docente devem se pautar no sentido pessoal que corresponda à humanização dos sujeitos e à apropriação de conhecimento, ampliando a finalidade da Educação Escolar. Por fim, investigar o sentido pessoal atribuído à atividade docente endossa os estudos para buscar a superação de uma educação construída baseada apenas nas demandas do cotidiano, imediatas, voltando-se para a transformação da realidade e das condições limitadoras do desenvolvimento docente.

Palavras-chave:  Educação; Ensino; Professor; Psicologia

Abstract

In the investigation reported in this paper we aimed to understand the process of assigning personal meaning to the teaching activity of Basic Education’s teachers. Historical-Cultural Psychology is a theoretical reference of this survey providing support for the study of the constitution of the human through culture and social relations. As a methodology, we used semi-structured interviews conducted individually with three teachers, along with the observation and follow-up of their daily work. The aim was to understand the personal sense attributed to the teaching activity by studying how the teacher organizes his work, how he/she understands his/her role in education, his/her students and co-workers, among other factors in connection with their activity. The outcome of our investigation showed the personal sense attributed by the teachers relating mainly to the particularity of their actions, that is, with their school day-to-day activities. We concluded that the teaching actions prepared and developed by the teacher should be oriented in a personal sense that corresponds to the humanization of the subjects and appropriation of knowledge, broadening the purpose of school education. Finally, investigating the personal meaning attributed to the teaching activity endorses the studies seeking the overcoming of an Education built only on the daily immediate demands, turning to the transformation of reality and the conditions that restrict the teacher’s development.

Keywords : Education; Teaching; Teacher; Psychology

Introdução

A preocupação com o modo como a Educação Escolar vem se configurando na atualidade e com seu papel formativo na vida dos sujeitos tem sido evidenciada por pesquisas, como os trabalhos de Asbahr (2005, 2011), Asbahr e Nascimento (2013), Longarezi e Franco (2013) e Mendonça (2018). Com o amparo dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, pode-se entender que, se esta é uma preocupação, significa que já foram encontrados os fatos presentes na realidade e que existe a busca por superar essas condições. Também é possível ver o anseio por uma Educação Escolar que atinja sua finalidade de apropriação de conhecimentos e que não seja apenas um processo de memorizar conceitos técnicos desvinculados da vida dos alunos que dela participam.

Assim, no presente artigo relata-se um recorte de uma pesquisa de doutorado em Desenvolvimento Humano e Processos Educativos na qual objetivou-se compreender o processo de atribuição de sentido pessoal à atividade docente de professoras da Educação Básica. O foco nessa investigação entende o sentido pessoal atribuído à atividade de ensino e permite conhecer elementos presentes na constituição dos processos de viabilização da Educação Escolar, oferecendo caminhos para pensar em aspectos que necessitam ser superados nesta seara.

Dessa forma, se os significados sociais são partilhados e trabalhados na escola, o modo como o professor vivencia seu papel e elabora suas ações de ensino incide diretamente na maneira como os alunos podem ou não se apropriar dos conhecimentos escolares. A atividade docente se constitui a partir desses significados sociais sobre sua profissão e ainda sobre o sentido pessoal que atribui a seu papel, direcionando como as ações de ensino serão desenvolvidas.

A justificativa para pesquisas com esse foco parte do referencial epistemológico aqui adotado, no qual se entende que a análise da relação entre significado e sentido das ações humanas tem decisivas implicações para a educação, pois é a partir das elaborações sociais e pessoais sobre a Educação Escolar que haverá ou não uma organização para que os conhecimentos sejam sistematicamente trabalhados em sala de aula.

No cenário brasileiro, destaca-se que Asbahr (2005, 2011), Asbahr e Souza (2014) e Calve, Rossler e Silva (2015) realizaram pesquisas em relação à produção de sentido pessoal quanto à Educação Escolar, pensando a atividade de estudo apoiados no referencial da Psicologia Histórico-Cultural. Em direção complementar, Basso (1998), Longarezi e Franco (2013) e Mendonça (2018) revelam preocupações referentes à atividade docente e ao modo como ela vem se constituindo, fazendo pensar sobre o sentido pessoal atribuído à atividade de ensino.

Nesse caminho, parte do estudo aqui relatado soma os esforços na busca por contribuir com o campo da Educação e da Psicologia, objetivando compreender a atribuição de sentido pessoal à atividade docente para que sejam superadas condições que ainda não permitem construir uma educação voltada à emancipação dos sujeitos e visando a constituição do psiquismo de cada um de forma ampla e crítica. Isso foi feito de forma a compreender a singularidade da atuação de três docentes, permitindo um olhar que incide sobre a universalidade do cenário educacional presente.

Constituição humana, sentido pessoal e Educação Escolar

Elaborada por Lev S. Vigotski (1896-1934) juntamente com Alexis Leontiev (1903-1979) e Alexander Luria (1902-1977), pensadores russos, a Psicologia Histórico-Cultural oferece aporte para a compreensão do ser humano baseada em preceitos marxianos de concepção de mundo. Há a explicação acerca da constituição do psiquismo, com destaque à formação humana embasada no mundo material e concreto ao qual se pertence, delineando contornos próprios a cada sujeito a partir das relações sociais e culturais estabelecidas. Isso significa entender o ser humano superando suas condições biológicas, localizado em determinado tempo, espaço, contexto político, histórico e social. Assim, Leontiev (1983) conceitua que a formação da consciência deve ser entendida com seu cunho essencialmente ligado às relações sociais e culturais das quais participa, ou seja, não é um fator apenas individual, isolado.

Esclarecidos de que não há uma “natureza humana” e de que tampouco existem fases pré-estabelecidas pelas quais devem passar todos os sujeitos, o entendimento sobre o desenvolvimento e formação do psiquismo nesta perspectiva oferece amparo para considerar que o ser só se torna humano pela apropriação dos conhecimentos historicamente acumulados (Pino, 2005). A apropriação desses conhecimentos é possível pela mediação, pois a relação do homem com a natureza e a realidade não ocorre de maneira direta, mas por meio de instrumentos e signos, que não são aprendidos espontaneamente (Vigotski, 2001). Há diversos espaços nos quais a apropriação cultural ocorre. Destaca-se aqui a escola como sítio importante que reúne conteúdos sistematicamente organizados, devendo prezar por oferecer aos alunos a possibilidade de apropriação desses conhecimentos.

Leontiev (1978, p. 274) expõe que a “desigualdade entre os homens não provém das suas diferenças biológicas naturais. Ela é o produto da desigualdade econômica, da desigualdade de classes”, assim, o homem possui diferentes possibilidades de apropriação cultural, culminando em diversas formações de consciência e constituição humana, até mesmo de transformação da realidade. Os significados sociais serão apropriados de forma diferente dependendo do modo como se estrutura a atividade de ensino. Segundo Leontiev (1983), os significados são uma generalização cristalizada que se faz da realidade, reunindo-se em uma palavra ou conjunto de palavras. É uma cristalização da experiência social, ou seja, da práxis da humanidade, configurando-se como as representações de uma dada sociedade e carregam consigo as formas de ação dos homens sobre o mundo dos objetos, possibilitando a apropriação das riquezas produzidas pelo gênero humano e acumuladas historicamente. Desta forma, o sujeito não necessita vivenciar toda a história da humanidade de modo concreto, mas pode apropriar-se dela por meio das significações sociais compartilhadas.

No processo de apropriação desses significados, são atribuídos sentidos pessoais pelo sujeito, pois uma vez apropriados os significados sociais, é possível que o sujeito imprima suas marcas nestas significações, formando para si sentidos pessoais a partir de suas vivências. O sentido pessoal é aquilo que o sujeito tem como base para suas relações com o mundo, com seus pares e consigo mesmo. Nessa direção, Longarezi e Franco (2013, p.95) afirmam: “dado o seu caráter de pessoalidade e sua vinculação com as vivências particulares, o sentido está diretamente vinculado ao motivo que impulsiona o sujeito ao objeto para o qual suas ações estão direcionadas”.

Nesse caminho, é fundamental o papel da Educação Escolar e do professor ao mediar conhecimentos historicamente produzidos, por meio dos significados sociais. A forma como ocorre ou não essa apropriação incidirá na formação da consciência de cada aluno e na produção de sentido pessoal sobre os saberes que entra em contato. Entende-se que o professor deve ter claro o papel da educação como forma de acesso aos bens culturais, porém também se sabe das condições de trabalho alienado das quais participam os trabalhadores no sistema capitalista de produção.

O conceito de atividade a partir dessa concepção epistemológica só pode ser concebido como um sistema dentro das relações humanas, da sociedade em um contexto humano, social e cultural, personificando as relações da sociedade e da cultura por meio da relação do sujeito com o objeto.

Segundo Leontiev (1983), a atividade principal do sujeito é aquela que conduz seu desenvolvimento a mudanças mais efetivas e importantes para os processos psíquicos de constituição humana. Dessa forma, a atividade principal é aquela que possui maior destaque para o sujeito em determinado momento de sua vida, proporcionando maiores transformações na sua constituição.

De acordo com Asbahr (2011), é providencial ao professor construir sua atividade de modo que os objetos que serão ensinados tenham importância e estruturem a atividade dos estudantes, produzindo sentido para ambas as partes. Nesse caminho, o professor precisa organizar sua atividade com ações e operações intencionalmente preparadas para que atinja as finalidades do ensino. Para Calve, Rossler e Silva (2015), é apenas desse modo que a aprendizagem poderá ter sentido para os alunos, e os conteúdos científicos aprendidos no âmbito escolar serão conscientizados por eles.

O professor deve se atentar à intencionalidade de suas ações, guiado pelos motivos que o levam exercer a atividade docente, para que seus alunos possam se apropriar dos conhecimentos adquiridos historicamente de forma consciente e de maneira que faça sentido a eles. Cabe refletir que, se esses aspectos não estão claros para o professor, a emancipação dos sujeitos pela educação e a apropriação dos conhecimentos ficarão prejudicadas.

Caso a atividade de ensino esteja desvinculada da realidade do aluno, produzem-se questões escolares que se traduzem em olhares individualizantes do processo ensino-aprendizagem, como o estabelecimento de queixas escolares e a culpabilização do aluno pelo fracasso escolar. É necessário que o professor, além de preparar intencionalmente sua prática docente a partir de ações organizadas para a finalidade do ensinar, tenha claros os motivos que conduzem sua atividade docente.

Assim, para Vigotski (2001), a educação constitui-se de intervenções intencionalmente planejadas no intuito de orientar o desenvolvimento do sujeito no processo de humanização. O ser apenas torna-se humano por meio da relação com outro ser humano e pela apropriação da cultura da qual pertence, sendo pela educação que ocorre o processo de internalização dos signos construídos socialmente.

Essa concepção vai ao encontro do que defende Saviani (2011, p.13), quando aponta que “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Desta maneira, a educação trabalha tanto no sentido de apresentar os bens culturais produzidos pela humanidade aos sujeitos quanto no sentido de avançar no processo de humanização, almejando formas cada vez mais superiores de elaborações humanas.

Vigotski (2001) indica que a aprendizagem no âmbito escolar oferece papel decisivo na formação do desenvolvimento intelectual da criança – e do estudante em qualquer etapa do processo escolar –, pois é possível a aquisição e desenvolvimento de conceitos e conhecimentos os quais serão imprescindíveis para que as funções psicológicas superiores se estabeleçam e que se possa operar sobre a realidade com mais propriedade.

A Educação Escolar, por meio da atividade, permite que se reproduzam as funções sociais dos instrumentos e conhecimentos humanos com a finalidade de transformação da realidade e de si mesmo. É preciso garantir que todos tenham acesso a esses bens, pois caso contrário, são reduzidas as possibilidades de desenvolvimento e de humanização. Leontiev (1978) ressalta que se deve conhecer o funcionamento do psiquismo humano, pois só assim entende-se a importância de se planejar o processo educativo de forma intencional, buscando a transformação da realidade pelos sujeitos. Assim, tem-se uma educação que permita, pela apropriação de novos conhecimentos, a construção de uma sociedade que possibilite aos sujeitos os mais elaborados graus de desenvolvimento humano.

Com isso, compreender a constituição humana por meio dos significados sociais apropriados, a fim de produzir sentidos pessoais que permitam a transformação de si mesmo e da sociedade, remete necessariamente ao estudo da Educação Escolar e ao modo como a atividade docente se estabelece nela. É por meio dos sentidos pessoais que o docente atribui à sua atuação que os alunos se apropriarão dos conhecimentos e, consequentemente, elaborarão sentidos pessoais sobre a Educação Escolar.

Procedimentos Metodológicos

O referencial epistemológico que embasa este texto, a Psicologia Histórico-Cultural, parte do pressuposto de que se deve ir além das investigações do que é percebido, buscando compreender, segundo Leontiev (1983, p.141), o “automovimento” presente no desenvolvimento do humano e em suas relações, ou seja, entender as contradições e as transformações presentes em cada momento.

Porém, quando se entra em contato com a realidade, não há acesso direto à essência dos fenômenos, mas sim à sua aparência. Para conhecer tais fenômenos, é preciso realizar uma investigação mais aprofundada para alcançar os reais determinantes que os compõem. Estar diante do fenômeno a ser estudado é entender que existe uma articulação entre o que se mostra de imediato – aparência –, para se buscar o que de fato o constitui – essência, e isso se dá de modo bastante específico em cada objeto de estudo.

Compreender o sentido pessoal sob a ótica docente oferece maiores subsídios para desvelar o modo como a educação brasileira vem sendo construída, além de fornecer elementos para pensar em condições que devem ser superadas na área educacional. Elenca-se a Educação Básica como segmento de estudo a ser pesquisada, pois abarca a escolarização inicial e a aprendizagem de conhecimentos científicos, construindo a base para outros anos de ensino.

Para atender ao objetivo proposto, preocupou-se em realizar entrevistas semiestruturadas, observações nos cotidianos de trabalho docente e acompanhamento das rotinas escolares. Esses procedimentos foram eleitos, pois contemplam conhecer como o significado sobre a atividade docente é elaborado, expressado e vivido por cada professora, para que assim se conheça o sentido pessoal atribuído por cada uma das participantes.

Colaboraram com esse estudo três professoras atuantes em escolas públicas do Ensino Básico de uma cidade de Minas Gerais que participaram de cursos de formação continuada dos quais as autoras deste texto fizeram parte como colaboradoras ou ministrantes de conteúdo. A escolha por convidar exatamente essas professoras ocorreu por perceber, durante o processo de formação em serviço, o interesse e engajamento destas nas atividades formativas, observados por meio da elaboração de questionamentos, assiduidade no curso, dos materiais produzidos e ainda pelo contato que houve com suas produções escritas realizadas nos momentos de formação. Assim, o critério de escolha para o convite às três professoras foi a participação assídua nessas formações continuadas com reflexões pertinentes à área educacional que dessem indicações de que elas pudessem elaborar atividades de ensino promotoras de sentido.

Entende-se que cada professor participa de formações com diferentes motivos para estar ali e pode vivenciar o processo de inúmeras formas. Um olhar atento ao menos durante a participação de propostas formativas já pode dar indícios ou pistas de motivos destas participações ligadas à atividade docente. Isso é dito, pois sabe-se que existem casos em que o professor participa dessas propostas na busca por melhoria de salário, cumprimento de horas, dentre outros, ficando em segundo plano o aspecto formativo.

Apreendeu-se que realizar o estudo com essa quantidade de docentes a partir da ótica do referencial teórico-metodológico adotado permite acessar determinantes particulares e universais por meio do conhecimento da singularidade presente em cada desenvolvimento da atividade de ensino. Pasqualini e Martins (2015, p.370) destacam: “é preciso enxergar para além da singularidade imediata, captando as determinações particulares e universais que condicionam a condição particular do indivíduo, analisando como sua singularidade se constrói na relação com sua genericidade”.

Para que fossem construídos dados4 que permitissem acessar os sentidos pessoais elaborados pelas docentes, escolheu-se a entrevista semiestruturada pois permite uma conversa entre as partes na qual é possível, segundo Minayo (2007, p.64), “construir informações pertinentes para um objeto de pesquisa, e abordagem pelo entrevistador, de temas igualmente pertinentes”, possibilitando ao entrevistado discorrer sobre determinado tema da forma como lhe parecer melhor na construção da conversa de acordo com as respostas elaboradas. Os pontos norteadores da entrevista se ampararam em quatro eixos principais, quais sejam (a) escolha profissional e formação inicial; (b) desenvolvimento da atividade docente; (c) papel do professor e (d) significados e sentidos produzidos sobre a atividade docente. Esses pontos foram elaborados almejando compreender a história pessoal de entrada na área da Educação e como ocorreu o processo de formação inicial, como preparam a presente atividade de ensino desenvolvida, quais significados sociais depreendem do papel do professor na sociedade e, em um aspecto mais singular, acessar os significados e sentidos sobre a atividade docente.

Como o objetivo principal foi compreender o sentido pessoal docente e este não se acessa de forma imediata, foram realizadas cerca de duas a quatro entrevistas com cada uma delas para construir material suficiente que auxiliasse a proceder às análises, sem estabelecer de antemão quantas entrevistas seriam. Tendo em vista que o grupo compreendia três docentes que atuavam em anos de ensino e em escolas diferentes dentro da Rede Municipal, realizou-se o convite a cada uma delas e às suas respectivas escolas e, decorrente a isso, apresentou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Assim, foram agendadas as entrevistas que foram realizadas individualmente, em dias e horários diferentes, de acordo com a disponibilidade de cada professora. Junto a isso, também já foram organizados os dias de acompanhamento das rotinas de trabalho delas. O tempo médio de duração de cada entrevista foi de duas horas cada, sendo realizadas em locais escolhidos por elas: escolas nas quais trabalhavam, o espaço da Universidade e suas próprias casas.

Já nos acompanhamentos das rotinas escolares buscou-se conhecer o cotidiano em sala de aula e as relações estabelecidas com os colegas de trabalho, com os alunos, pais e comunidade escolar, em diferentes momentos e espaços. Também foram realizadas análises dos materiais produzidos pela professora para atuação em seu cotidiano de trabalho, como atividades preparadas para sala de aula, recursos materiais empregados para o desenvolvimento da atividade docente, e a forma como o espaço escolar era utilizado para a atividade de ensino.

Realizou-se, inicialmente, ao menos uma entrevista individual com cada docente no local escolhido por elas para depois focalizar as escolas e observar alguns turnos de suas atividades. Com o decorrer de cada entrevista e observação, foram agendados outros momentos de encontro nos quais era possível continuar com a entrevista e observar outros momentos da prática docente. Realizou-se esse procedimento até que os pontos norteadores da entrevista semiestruturada fossem alcançados e fosse possível construir dados para a investigação aqui pretendida. De forma geral, foram acompanhados pelo menos dois dias com cada docente, almejando diálogos entre o que fora construído na entrevista e observado na prática profissional.

Estar presente junto ao cotidiano de trabalho das docentes permitiu às autoras deste texto participar de um campo que é produzido e envolvido em uma teia de campos, para além daquele que emergiu por meio das falas nas entrevistas. Assim, as referidas pesquisadoras foram com o olhar curioso, disposto e interessado, almejando estarem presentes e conhecer a atividade docente dessas professoras a partir de seus olhares e vivências, pelas entrevistas e por suas atuações, por meio das observações realizadas. Com isso, foi investigado o sentido pessoal à atividade docente, considerando os determinantes concretos ali presentes: condições de trabalho, infraestrutura, políticas públicas presentes ou ausentes, dentre outros aspectos que fogem apenas ao âmbito pessoal da atuação profissional.

Inicialmente o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos para assim ser realizado em campo. Em todos os momentos em que se referiu às entrevistadas na escrita deste trabalho, utilizaram-se nomes são fictícios, buscando preservar a identidade de cada uma.

Os dados construídos foram analisados por meio de leitura exaustiva do material proveniente das entrevistas realizadas individualmente, para depois ser possível uma análise conjunta de todo esse material. Ainda, de posse de tal material, recuperaram-se anotações realizadas pela pesquisadora durante o acompanhamento das rotinas escolares, na busca por compreender a singularidade na atividade docente de cada participante. Assim, os dados analisados foram estruturados a partir dos quatro pontos norteadores das entrevistas, guardadas as particularidades de construção do fluxo de fala em cada entrevista.

O projeto foi submetido na Plataforma Brasil sob número CAAE 55926816.5.0000.0104, com parecer de aprovação 1613629, analisado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Resultados e Discussão

Nesse momento apresentar-se-á cada uma das participantes, alguns trechos das entrevistas e as análises depreendidas a partir do material teórico-metodológico aqui adotado, organizando as informações de forma a oferecer uma representação da totalidade da pesquisa realizada.

Entende-se a educação em caráter público como foco dos estudos. Nesta pesquisa, foram envolvidas três escolas públicas diferentes, mas todas com características similares em sua estrutura e organização, pois pertenciam ao âmbito municipal. Guardadas as particularidades de cada escola, possuem o formato de sala de aula bastante similar no que se refere à quantidade e disposição de carteiras, lousa, distribuição de salas e espaço comum. As escolas municipais contam com professores concursados e eventuais, delineando cargos que são perenes e outros intermitentes. As três participantes atuavam com o cargo de professoras concursadas.

Alice tinha 31 anos, formou-se no ano de 2008 em Pedagogia em uma Universidade pública. Estava na área de Educação há oito anos e mesmo trabalhando no Ensino Fundamental, sempre atuou pelo menos um turno na Educação Infantil.

A segunda docente convidada a colaborar com a pesquisa foi Clara, que tinha 47 anos. Fez Magistério juntamente com o Ensino Médio, formou-se em Biologia em 1988 em uma Universidade pública. Em 2010 entrou no curso de Pedagogia a distância, formando-se em 2013. Estava na área da Educação desde 1992. Atuou principalmente como professora de Ciências no Ensino Fundamental e, na ocasião das entrevistas, ministrava aulas para os nonos anos. Já trabalhou em escola privada, e atualmente é concursada no cargo de professora do Ensino Fundamental para escolas públicas.

Maria, com 45 anos, formação inicial em Pedagogia cursada em uma Universidade pública, graduou-se em 1991. Atuava na área da Educação há 25 anos com cargo concursado. Já trabalhou como docente no Ensino Fundamental, Educação Infantil, e, na ocasião das entrevistas, ocupava o cargo de Coordenação Pedagógica da Educação Infantil em uma Escola Municipal de Educação Infantil, atendendo professores de alunos entre quatro e seis anos.

Durante todo o percurso de entrevistas e observações junto às três docentes, manteve-se um caderno de anotações da pesquisadora com o intuito de registrar impressões, sentimentos e informações sobre a imersão no campo. Essas anotações foram recuperadas na reunião dos dados e colaboraram para as análises realizadas.

O início da conversa com cada professora buscou compreender como iniciaram e permaneceram na área da Educação: como foi a escolha profissional, como foi vivenciada e ainda de que modo ocorreu a formação inicial de cada uma e os motivos que as levaram à área, contemplando o primeiro eixo de investigação e análise: “escolha profissional e formação inicial”.

Evidenciar esses fatores fornece recursos para entender como chegaram até as presentes atuações e ainda qual repertório teórico-metodológico e vivencial as acompanha tanto nos aspectos pessoais quanto formativos para construírem suas atividades. Fontana (1997) escreve sobre o tornar-se professora e da formação singular na trajetória percorrida por cada uma. Destaca a formação histórica e culturalmente determinada quando se pensa a constituição dessa profissão. As professoras entrevistadas relatam um pouco dessas nuances ao contarem sobre como “escolheram” a profissão docente. Enquanto Alice e Clara expõem que almejavam outras opções de curso antes de quererem ser professoras, Maria relata que desde a infância se imaginava dando aulas: “Estou lembrando lá do alpendre na minha casa que eu brincava ensinando, nem sei como que começou lá [...] Na brincadeira [...] começou lá né, naquele pequeno espaço [...]” (Trecho entrevista Maria).

Alice e Clara revelam trajetórias nas quais a educação não era o principal foco, mas que, pelas condições presentes no momento de cursar o Ensino Superior, o curso de Pedagogia era relativamente mais “fácil” de acessar e de se cursar: “Sempre sonhei em entrar no ensino superior, sempre sonhei em fazer uma faculdade. E quando eu fui escolher, eu escolhi Pedagogia pela facilidade de entrar no curso e pelas minhas condições, porque eu era uma adolescente de uma classe média baixa, de renda baixa” (Trecho entrevista Alice).

Entende-se que a forma de ingresso na área de Educação de cada entrevistada apresenta singularidades e revela determinantes que inicialmente parecem escolhas subjetivas e/ou individuais, mas se for compreendida a particularidade que está presente nas condições de que participam, percebe-se como a profissão “professor” tem sido construída no cenário brasileiro. Há tanto professores que possuem motivos que se aproximam com a finalidade da atividade de ensino ao escolherem ser professores quanto os que ingressam no cenário da educação por facilidade de acesso ao curso ou ainda por oportunidades presentes no momento da escolha do Ensino Superior − ou ainda por tantas outras razões não citadas aqui.

Quando se perguntou como a formação acadêmica contribuiu para o olhar e postura que têm para o cenário educacional, as professoras recuperam alguns saberes que foram trabalhados. Percebeu-se que Maria atribui à sua formação inicial a forma como compreende a sua presente atividade docente, buscando com que o aluno construa sentido a respeito dos conhecimentos que estão sendo apropriados, relacionando-se com a vida de cada um. Já Alice, que inicialmente não pensava em ser pedagoga, conta que sua formação inicial quando vivenciada não lhe oferecia a dimensão dos conteúdos que estavam sendo trabalhados, como, por exemplo, os aspectos referentes ao embasamento teórico oferecido nas disciplinas: “Eu me lembro que no primeiro ano nós tivemos disciplinas muito teóricas, muito maçantes, mas que hoje eu considero importantíssimas [...]. O que me tocou muito foram os professores que eram humanos com a gente” (Trecho entrevista Alice).

Os conhecimentos científicos, segundo Vigotski (2001), são sistematicamente organizados e trabalhados na instituição escolar, e, nesse caso, durante o curso de Pedagogia, conteúdos relatados como “muito teóricos” ou “maçantes” fazem parte de um arcabouço a que não se tem acesso somente pela vivência, pois é preciso conhecer e apropriar-se do que já foi produzido para constituir-se em uma profissão. Não é possível formar-se professor apenas com a experiência prática, cotidiana, fato já destacado por Facci (2004) em seus estudos sobre a formação e atuação docente.

Assim, entende-se que Alice, ao cursar disciplinas que tratavam de aspectos teóricos e aprofundamento de conceitos, como se pode inferir por sua definição de “disciplinas muito teóricas”, relata que, no momento em que as cursou, não percebeu o diálogo possível entre a fundamentação teórica e epistemológica com a realidade de desafios e atravessamentos que vivenciaria no futuro em sua atividade docente. Revela ainda que foi durante a atuação e desenvolvimento da atividade docente que ocorreu a percepção da importância desses conteúdos e a busca por relacioná-los com sua atividade de ensino.

Desta forma, pode-se pensar que são justamente os conhecimentos da fundamentação teórica que permitem a relação com a realidade concreta de outra forma, avançando no que se refere à educação oferecida em qualquer nível de ensino. No caso da formação em Pedagogia, vê-se historicamente a atuação do docente atrelada aos cuidados e ao “afeto” com o público infantil, levando à construção de um imaginário no qual o “como cuidar” é o primordial ao se trabalhar com esse segmento da Educação.

Porém, não basta o “como” cuidar, mas sim o “porquê” e com qual finalidade, pois é justamente a partir desses aspectos que o embasamento teórico proporcionará ao professor o esclarecimento necessário ao exercer sua atividade de ensino. Pode-se pensar: de que modo a formação inicial tem sido trabalhada e vivenciada pelos professores? Há relatos de que teoria e prática não dialogam, sendo o conhecimento proveniente de autores da área distantes da “realidade da sala de aula”. Diz-se isso, pois quando se perguntou sobre a formação inicial de Clara, esta relata os conhecimentos advindos da época de sua graduação como algo distante da sua atuação e que não supera o aprendizado da prática cotidiana: “[Recupero] pouquíssima coisa, porque a prática é completamente diferente da teoria. Porque lá é, na teoria é tudo muito bonito, dá tudo muito certo [...] E na prática não” (Trecho entrevista Clara).

O que esses trechos revelam acerca de como o conhecimento teórico tem sido trabalhado nos cursos de graduação na área da Educação? Tem ficado clara a indissociabilidade entre teoria e prática? Sabe-se que são determinantes presentes na elaboração e na construção de sentido da atividade docente e que, mesmo os motivos coincidindo com a finalidade da educação, sem a formação apropriada cria-se um hiato na efetivação da finalidade da educação.

Cecchia (2015) analisa em sua pesquisa a disciplina Psicologia da Educação oferecida em cursos de licenciatura almejando estudar as contribuições da Psicologia Escolar na formação inicial de professores. A autora defende que é necessário ultrapassar o estudo das questões escolares a partir do “psicologismo” e do olhar individualizante para o desenvolvimento do sujeito. Destaca ainda que a Psicologia pode contribuir com reflexões sobre o cenário da Educação Escolar como forma de humanização das relações e com o rompimento de ideias patologizantes nesse campo. Entende-se que a forma como os pressupostos teóricos são abordados e trabalhados na formação inicial do professor pode colaborar ou não para que os conceitos possam tornar-se presentes e subsidiar a elaboração e desenvolvimento da atividade docente.

O sentido que o professor constrói sobre sua atividade será permeado por sua formação e diversos determinantes presentes em sua trajetória. Percebe-se que a formação inicial por vezes possui brechas que ocasionam um distanciamento entre a teoria e a elaboração de práticas. Assim, foi visto que a formação inicial juntamente com a forma como ocorreu a escolha profissional e o ingresso na área da Educação permeiam as trajetórias docentes e permitem ter elementos para pensar quais os determinantes presentes na constituição do sentido da atividade docente.

Ao constituir-se em atividade, ou seja, quando a finalidade da atuação docente coincide com os objetivos da Educação de humanização dos sujeitos, ela é permeada por determinantes que envolvem desde aspectos formativos do profissional até mesmo fatores infraestruturais para que ocorra sua execução. O modo como houve a escolha e a formação inicial de cada uma já oferece indícios para compreender como essa atividade se constitui, mas não se resume apenas nesses indicativos. Também se atentou ao estabelecimento do cotidiano de trabalho por cada professora, quais recursos são utilizados e as relações com seus pares dentro das escolas. Ainda buscou-se entender as maneiras como a formação – inicial ou continuada –, é recuperada como embasamento para o desenvolvimento da atividade de ensino.

Sabe-se que a formação inicial não revela todas as dimensões que compõem o arcabouço de conhecimentos que amparam a atuação das docentes. Com isso, almeja-se conhecer as formações que continuam realizando em serviço no intuito de compreender o diálogo entre formação teórica e a construção da atividade de ensino. Quando indagadas, as três professoras contam que realizam formações constantes relacionadas à área de suas atuações, participando daquelas continuamente oferecidas pela rede de ensino e de outras que elegem de acordo com seus interesses profissionais: “Fiz. Constantemente eu faço, estou estudando. Aí a continuada na própria rede municipal quando eles oferecem, sempre tem oferecido. Desde que eu entrei tem essa opção, de formação. Não chamava dessa forma, mas sempre tem oferecido” (Trecho entrevista Maria).

As docentes contam sobre a importância de momentos formativos para se ter espaços de diálogo com colegas de trabalho, compartilhamento de dificuldades sobre o cotidiano escolar e outras questões pertinentes ao trabalho do professor. Além dos cursos ofertados, as três também falam sobre como a participação em cursos de pós-graduação lato sensu auxiliam na elaboração do trabalho que desenvolvem.

As professoras participaram e continuam participando de momentos formativos que, supostamente, seguem o trabalho do oferecimento e discussão acerca de aspectos teóricos e práticos que permeiam a atividade docente, visando construir uma Educação que permita o acesso e a apropriação de conhecimentos científicos pelos alunos. Porém, as docentes relatam que as formações de que participam estão no campo do “ideal”; no dia a dia em suas escolas não é possível traduzir para suas atuações grande parte desses conhecimentos advindos dos espaços formativos.

Ao se continuar a investigação a partir do segundo eixo norteador, abordou-se “como ocorre o desenvolvimento da atividade docente, tendo sido foi relatado por Clara e Alice que a prática é o principal embasamento na construção de suas ações de ensino em diferentes instituições que atuam. Acerca de o cotidiano da escola ser o condutor da elaboração do trabalho docente, Maria revela outros aspectos complementares ao relatar suas concepções no papel de coordenadora pedagógica de sua escola. Ela conta que vê o processo educativo fragmentado, pois supervisores, coordenadores e professores atuam de forma a atender as suas próprias demandas, e parece que “nunca há tempo suficiente” para discutir o que deve ser realmente discutido. Preocupada em oferecer material para discussão aos professores dos anos de ensino que atendia, Maria percebia que os encontros coletivos planejados na escola não eram suficientes, e buscava preparar mais momentos de partilha entre os professores, mas que considerava ainda insuficientes.

Nesse caminho, ao se analisar qual seria “o papel do professor frente ao aluno” de acordo com suas concepções, contemplando o terceiro eixo norteador das entrevistas, tem-se que, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, a construção do entendimento das professoras sobre o papel docente extrapola uma dimensão apenas individual e subjetiva. A partir de Pasqualini e Martins (2015), a dimensão singular é constituída pela dimensão universal e as concepções da sociedade estarão presentes em suas falas, pois os significados sociais com os quais se trabalha são elaborados em sociedade. Cada docente se relaciona de uma forma singular com esses significados, mas não perdem seu cunho social. Nesse caminho, Clara ressalta que o professor, para além do trabalho com conteúdos, deve considerar a dimensão humana na relação com o aluno, e destaca: “Mediador. A gente tem que ter essa amizade com ele, tem que ser amigo. Não é que eu vou passar a mão na cabeça, mas tem que ter um diálogo. Tem que ter uma abertura, porque eu chegar lá autoritária, eu professor e você aluno, não flui” (Trecho entrevista Clara).

A Psicologia Histórico-Cultural defende o professor como mediador importante na Educação Escolar no que se refere à formação dos conceitos científicos e à apropriação das objetivações já realizadas. Para além dessa importância, destaca-se o docente na constituição do psiquismo dos alunos, participando da formação das funções psicológicas superiores, como defendem Vigotski (2001) e Leontiev (1978).

Os significados sociais sobre o papel do professor podem ser modificados e aprofundados a partir de estudos que possibilitem a construção de sentidos pessoais ao docente, modificando a forma como ele se relaciona com o conhecimento apropriado e com a sua própria prática. Dessa forma, pensar a formação docente implica em trabalhar subsídios teórico-práticos que referenciem sua atuação profissional. Vigotski (2001, p.289) já destacou: “perceber as coisas de modo diferente significa ao mesmo tempo ganhar outras possibilidades de agir em relação a elas”.

Analisa-se que a Educação, inserida na sociedade de classes, possui um sentido diferente do significado social de formação do sujeito como humano. Configura-se como um tipo de Educação fragmentada e que reproduz a lógica alienante de vida, sendo coerente com uma sociedade capitalista que não busca proporcionar aos sujeitos uma transformação social, mas uma manutenção das condições de segregação. O trabalho do professor aproximando-se desse significado social distancia-se de proporcionar ações que de fato permitam a superação das condições de alienação por meio do conhecimento escolar: “Mas depois que eu trabalhei com projetos eu vejo, eu tenho um outro olhar, que a Educação está além do conteúdo. Está na formação do indivíduo como um todo [...] o menino sente que ele é importante” (Trecho entrevista Clara).

Pela fala acima, vê-se que novas relações junto aos alunos são possíveis e pode-se inferir que perceber a organização do ensino e participar de forma diferente das relações escolares possibilitaram à Clara uma mudança no desenvolvimento de suas ações, pois ela relata que anteriormente era muito “rígida”, e que cobrava dos alunos o desempenho como forma de visualização de uma aula bem executada. Inclusive, observar Clara na escola permitiu a percepção de que durante as aulas, sobretudo no momento do intervalo, os alunos a procuravam para tratar de assuntos escolares extraclasse para conversarem sobre projeto de vida e continuidade dos estudos no futuro. Ela ainda conta que esses alunos estiveram com ela participando de projetos e que a relação entre eles é bastante próxima.

Percebe-se o caminho que o sentido pessoal atribuído às suas ações de ensino passou por um processo de transformação e conduziu à elaboração da atividade docente para além do conhecimento como algo obrigatório, sem conexão com a vida dos alunos, mas preocupada com a formação do sujeito, sendo possíveis outros sentidos à docente e consequentemente à forma como desenvolve sua atividade de ensino. Maria também relata a preocupação de estabelecer as ações na área da Educação que se aproximem da formação do sujeito como um todo, para além da fragmentação do ensino que se estabelece em transmitir e visualizar a aquisição de conteúdo por meio de avaliações quantitativas, como se vê na fala da professora: “É preciso ver esse menino como um todo. Ver ele [sic] nas várias situações da escola né, não é só um diagnóstico, ver como ele pensa [...]. Não pode ficar só nisso, é raso, muito simplório pra mostrar tudo o que faz” (Trecho entrevista Maria).

Compreender que a apropriação do conhecimento é um processo e não ocorre de forma estática, a partir do entendimento de aprendizagem e desenvolvimento humano pela Psicologia Histórico-Cultural, é considerar a Educação Escolar como participante da constituição do psiquismo humano. Ponderar apenas os conteúdos já apropriados como avaliação do aprendizado do aluno é resumir o olhar ao processo pelo qual está vivenciando o aluno na relação com o conhecimento.

Como o estudo sobre os significados sociais e o processo de atribuição de sentido pessoal exige que se olhe o sujeito como um todo, a partir dos três primeiros eixos norteadores foi possível lançar análises sobre o objeto principal de investigação, mas ainda no decorrer das entrevistas perguntou-se especificamente sobre esses dois conceitos às professoras, no quarto eixo de investigação. Buscou-se compreender os “significados sociais acerca do papel do professor e ainda os sentidos pessoais que atribuíam às suas atividades”. Assim, elas compartilharam que na presente formatação da Educação Escolar, é preciso buscar sentidos para o trabalho desenvolvido, afirmando que é preciso “querer muito” e “gostar de estar na área”, pois “não é fácil”. Essas concepções remetem a sentidos construídos pela vivência na área da Educação, elaborados na relação entre o significado social de ser professor e o que é possível desenvolver na escola. Entende-se que nesse cenário estão presentes determinantes que dificultam e até mesmo impedem o desenvolvimento da atividade docente, sendo necessário recorrer aos sentidos pessoais construídos quando pensam na atuação na Educação, pois se dependessem de corresponder à forma como se espera que o professor trabalhe e apresente os “resultados” de sua atuação, compartilham que não encontrariam motivos para continuar na área. ”Que apesar de ter o aluno que é custoso, eu ainda quero vir pra escola. Eu quero estar com eles. Eu quero fazer alguma coisa diferente. Eu quero. Por eles. Não pra mim, não para os pais, pra direção, mas por ele” (Trecho entrevista Clara).

Caso o docente preocupe-se apenas com o cumprir metas e transmitir conteúdos, perde-se de vista o caráter de humanização dos sujeitos pela Educação. Pode-se afirmar que o professor está inserido em um sistema de venda de sua força de trabalho e, no caso da atividade de ensino, reflete em muitos casos a elaboração de ações sem fornecer sentido ao aluno e à sua realidade, tampouco a si mesmo.

Assim, entender, a partir da participação na Educação Escolar, que suas ações podem superar a mera transmissão de conteúdos e olhar o aluno como um sujeito em desenvolvimento pode convidar o docente a atribuir sentidos ao que faz, com suas ações constituindo-se em atividade, guiando seu desenvolvimento e o dos seus alunos. Com o aluno e sua formação sendo a finalidade de sua atividade de ensino, outras possibilidades de trabalho com os conteúdos escolares podem ser delineadas, não só a transmissão e avaliação desses.

O sentido pessoal será construído a partir do entremeio de como as significações sociais foram apropriadas e do motivo que leva à execução das ações para cada sujeito que desenvolve a atividade. Assim, estudar a atividade docente é compreender como estas elaborações se relacionam e permitem desenvolver a atividade de ensino coerente com a humanização dos sujeitos, e buscar caminhos para construir, junto aos docentes, formas de superar a alienação presente na constituição de seus trabalhos. As ações de ensino, quando se constituem em atividade, permitem outras formas de elaboração da Educação Escolar e fortalecem o caráter da busca por uma infraestrutura (econômica, social e política) que de fato permita a emancipação dos sujeitos pela Educação.

Considerações Finais

Estudar o sentido pessoal construído sobre a atividade docente convida a dissolver o que aparece de imediato, entendendo os elementos que configuram a aparência revelada a quem observa a referida atividade. São nas condições concretas de vida das professoras que os significados sociais vão ganhando as marcas pessoais ao relacionarem-se com eles, formando sentidos pessoais a partir de suas experiências, vivências. É por meio dessa relação entre sujeito e mundo que cada uma irá relacionar-se com o outro, sendo o sentido pessoal o aspecto constituidor da consciência humana (Leontiev, 1983), e logo, guiará o modo como cada docente conduz sua atividade de ensino.

Na investigação sobre o sentido pessoal atribuído à atividade docente, buscou-se conhecer como se desenvolvem as ações docentes, sempre entendidas dentro de um contexto mais complexo, dinâmico e com as contradições presentes na realidade de cada uma. Assim, ao se perguntar às docentes “qual o sentido pessoal de ser professor, de desenvolver a atividade de ensino”, são revelados alguns elementos complementares às análises que já vinham sendo realizadas a partir de outros subsídios com que as autoras deste texto entraram em contato.

Foi visto que o “ser professor” inserido em uma sociedade capitalista envolve aspectos que descaracterizam o processo presente na configuração da atividade docente, assumindo no trabalho na Educação um caráter de produto a ser alcançado ou visualizado. Assim, mesmo com as contradições presentes no que se referem ao desenvolvimento do ensino, – que é entendido como necessário, mas ao mesmo tempo se revela uma mercadoria engendrada nas redes de relação na sociedade de classes –, quando o significado social da atividade docente é pensado no âmbito da vida de cada professora, a Educação Escolar assume particularidades na trajetória de cada uma, produzindo sentidos que contribuem para se estar e continuar na área, mesmo diante dessas contradições. Esse sentido é o que as guiará ao elaborarem suas atividades de ensino, e ainda fornecerá a formação de motivos que conduzem o cotidiano de elaboração de ações docentes. Revelam ainda que os sentidos atribuídos às suas atuações fortalecem a continuidade na área, a buscarem formação profissional continuada e ainda fortalecem os vínculos constituídos com seus alunos.

Sabe-se que a relação entre sentido pessoal e o desenvolvimento da atividade de ensino estão relacionadas de modo constante, pois o docente assume para si o que considera importante ao ser professor, e é com esse sentido que serão conduzidas as ações de ensino. Leontiev (1983) esclarece que os sentidos são produzidos a partir das relações que o sujeito estabelece com a atividade realizada, e o sentido pessoal revelará o motivo que leva, neste caso, o professor à ação. Ele ainda escreve que esse motivo não deve ser confundido com a necessidade de vida concreta, mas sim ser entendido como uma relação pessoal do sujeito com a atividade, para além de ações isoladas em um trabalho, sendo uma finalidade para além do imediato.

A partir desse entendimento, buscou-se apoio nas elaborações da Psicologia Histórico-Cultural de que o professor, ao elaborar a atividade docente, deve esclarecer-se acerca destas questões, pois seu motivo deve corresponder à finalidade da Educação, de apropriação de conhecimentos e humanização dos sujeitos. Defende-se a necessidade do fortalecimento de uma atividade docente que possa ser realizada no coletivo da escola, visando à constituição de um projeto pedagógico que corresponda não apenas às particularidades das atuações, mas que cada docente se veja como parte do processo – não apenas executor de ações de ensino isoladas.

Com isso, para as ações se constituírem em atividade é preciso que o sentido pessoal de cada professora extrapole a dimensão presente na singularidade de suas rotinas de trabalho, e para isso é preciso que sejam garantidas as condições de trabalho para que, de fato, possa se construir uma Educação emancipatória. Somente dessa forma serão possíveis trocas, partilhas e apropriação dos saberes que promovam atribuição de sentido aos alunos e aos professores, incidindo no desenvolvimento humano daqueles que participam da Educação Escolar.

Assim, foi visto na pesquisa realizada sentidos docentes que se aproximam de uma constituição do sujeito por vias da educação, guardadas as particularidades de cada vivência e compreensão do papel do professor, mas ainda evidenciam-se aspectos da realidade concreta na trajetória de formação profissional e de condições de trabalho que oferecem impasses à construção de uma educação verdadeiramente emancipatória.

Foram somados os esforços nos estudos entre as áreas da Educação e Psicologia no intuito de se fortalecer elementos que permitam romper com a lógica capitalista operando em relações de classes e, desvelando as contradições presentes na educação, pode ser possível superar esse modo de organização da sociedade garantindo que os conhecimentos historicamente acumulados produzam sentido aos que aprendem e também aos que ensinam. Desse modo, reitera-se a necessidade de estudos nessa direção.

1Artigo elaborado a partir da tese de C.T. PESSOA, intitulada “‘Ser professora’: um estudo do sentido pessoal sobre a atividade docente a partir da Psicologia Histórico-Cultural”. Universidade Estadual de Maringá, 2018.

4De acordo com Silva (2005), entende-se que os dados são construídos, e não “coletados”, uma vez que não estão prontos, mas construídos na relação do pesquisador com o sujeito pesquisado.

Como citar este artigo/How to cite this article: Pessoa, C.T.; Leonardo, N.S.T. Sentido pessoal e atividade docente pela Psicologia Histórico-Cultural. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204611, 2020. http://dx.doi.org/10.24220/2318- 0870v25e2020a4611

Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 23038.000813/2019-96) e Bolsa Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (Processo nº 88881.132962/2016-01).

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Recebido: 09 de Maio de 2019; Aceito: 20 de Setembro de 2019

Colaboradores: C.T. PESSOA elaborou temática, objetivos, metodologia e interpretação dos dados. N.S.T. LEONARDO realizou revisão do texto e das análises e contribuiu com a aprovação da versão final do artigo.

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