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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020  Epub 17-Jun-2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4744 

Artigos

Filosofia, Sociologia e trabalho: concepção de professores de escolas públicas de Sorocaba

Philosophy, Sociology and work: Sorocaba region public schools’ teachers’ work concepts

Marcos Francisco Martins2 
http://orcid.org/0000-0002-8220-2030

Isabelle Karolline Chaves de Oliveira3 
http://orcid.org/0000-0002-7584-6938

Andre Canevalle Rezende3 
http://orcid.org/0000-0002-8018-0763

Naara Gonçalves Alencar4 
http://orcid.org/0000-0001-6778-2818

2Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Ciências Humanas e Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Rodovia João Leme dos Santos, SP-264, Km 110, 18052-780, Sorocaba, SP, Brasil. Correspondência para/: M.F. MARTINS. : <marcosfranciscomartins@gmail.com>.

3Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Humanas e Biológicas, Programa de Pós-Graduação em Educação. Sorocaba, SP, Brasil.

4Universidade Federal de São Carlos, Centro de Ciências Humanas e Biológicas, Curso de Licenciatura em Pedagogia. Sorocaba, SP, Brasil.


Resumo

Este artigo resulta de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, que contou com a aplicação de questionários a 69 professores da Região Metropolitana de Sorocaba. O problema que orientou a pesquisa consistiu em identificar qual é a concepção de trabalho de professores de Filosofia e Sociologia das escolas públicas da referida região. A partir do levantamento dos múltiplos sentidos que o termo trabalho adquire no campo educacional e dos limites apresentados pelas normas legais em vigência, as concepções de trabalho dos professores investigados são apresentadas e analisadas. Considerando a polissemia do conceito de trabalho e a falta de rigor na definição da legislação, as conclusões alcançadas foram três, quais sejam: (a) a indefinição da legislação nacional em relação ao conceito de trabalho abre brechas para que a concepção dos docentes se imponha como diretriz aos processos educativos; (b) entre as concepções mais difundidas de trabalho estão a formação de mão de obra ao mercado, princípio educativo e ação que dignifica o humano, e a primeira delas é majoritária entre os docentes de Filosofia e Sociologia na região de Sorocaba (São Paulo); (c) a efetivação da intenção de pedagogias críticas necessariamente passa por um processo de formação docente que esclareça a noção de trabalho como princípio educativo.

Palavras-chave:  Educação; Filosofia; Região Metropolitana de Sorocaba; Sociologia; Trabalho

Abstract

This article is the outcome of a bibliographic, documentary and field survey, based on a questionnaire answered by 69 teachers in the Sorocaba Metropolitan Region. The problem that was the object of the investigation is to identify what is the work conception of Public Schools Philosophy and Sociology teachers in that region. From the survey of the multiple meanings that the term work acquires in the educational field and the boundaries set forth by the legal rules in force, the work conceptions of the teachers surveyed are presented and reviewed. Considering the polysemy of the concept of work and the lack of rigor in the legislation definitions, three conclusions were obtained, namely: (a) the lack of definition of the national legislation in relation to the concept of work opens the door to the imposition of the teachers’ conception as guidelines for the educational processes; (b) The most widespread work conceptions include the development of workers for the market, educational principle and action that dignifies the human being, and the first one is the conception most reported by the Philosophy and Sociology teachers in the Sorocaba region (São Paulo, Brazil); (c) the implementation of the intention to apply critical pedagogies necessarily goes through a process of teacher’s education that clarifies the notion of work as an educational principle.

Keywords : Education; Philosophy; Sorocaba Metropolitan Region; Sociology; Work

Introdução

Este artigo é um “produto” da pesquisa financiada pela Chamada Universal MCTIC/CNPq (Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba – SP). Com os dados de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, o que se encontra neste texto é uma análise sobre trabalho e educação nas escolas públicas da Região Metropolitana de Sorocaba (RMS)5. E ele está dividido em três partes.

Na primeira delas é feita a exposição, baseada em pesquisa bibliográfica, sobre a polissemia do conceito de trabalho no campo educacional, o que exige dos sujeitos, quando lidam com o termo, rigorosa definição, porque não há um só sentido e significado unívocos.

Na sequência, a partir de pesquisa documental, são apresentados e analisados excertos da Constituição Federal (Brasil, 2019), da Constituição do Estado de São Paulo (São Paulo, 1989) e da Lei nº9394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996), que tratam do trabalho na educação.

Na terceira parte são expostas as concepções de trabalho de professores de Filosofia e Sociologia que atuam na RMS, colhidas em campo (aplicação de questionários).

A principal conclusão deste artigo é que, como o trabalho é termo polissêmico e como ele não está definido nos textos legais, a concepção dos principais protagonistas da educação escolar, os professores, é que definirá, no chão da sala de aula, como ele induzirá os processos de ensino-aprendizagem. Daí a relevância da pesquisa de campo realizada e aqui apresentada.

Assim, este artigo poderá interessar aos docentes e discentes de Filosofia e de Sociologia e aos gestores educacionais, pois lhes fornece subsídios à auto-avaliação do trabalho pedagógico, como também a pesquisadores do campo educacional, particularmente aos que investigam as relações entre trabalho e educação.

Múltiplos entendimentos do conceito de trabalho no campo da Educação

A questão do trabalho é tema muito presente na Educação. Recorrentemente, ela aparece nos debates e nas pesquisas sobre o processo educativo na dimensão teórica (Fundamentos da Educação) e prática (Trabalho Pedagógico) que o identifica. Além disso, apresenta-se ainda na concepção de mundo dos docentes e nas normas legais que regulamentam o ensino, que reverberam em políticas públicas, documentos e materiais didáticos empregados nas escolas.

Observadas as dimensões educativas nas quais o trabalho se manifesta, constata-se que o termo é polissêmico. Isso exige de qualquer pesquisador que tome o trabalho de realizar um exercício inicial de identificação do sentido em que está a empregar do termo, algo que as normas legais também deveriam fazer, mas não fazem.

Considerando as múltiplas noções que se tem de trabalho, observa-se que é um conceito em disputa na área da Educação. Entre as mais variadas noções sobre ele difundidas e que orientam a educação, duas se destacam: a que entende que a educação deve se voltar à formação de sujeitos para o mercado de trabalho e a que compreende que se deve tomar o trabalho como princípio educativo. Apesar de próximas na expressão textual, são concepções com sentidos e significados diferentes e, assim, orientam as práticas educativas.

Formar para o mercado de trabalho significa, sobretudo, submeter os processos de ensino-aprendizagem, dos mais diferentes níveis e modalidades, às demandas do capital, encerrando-os nos limites da “[...] produção de mercadorias [...] para produzir mais-valia” (Kuenzer, 1998, p.55), que assume formas variadas em cada contexto. De fato,

[...] a educação e a formação profissional aparecem hoje como questões centrais pois a elas são conferidas funções essencialmente instrumentais, ou seja, capazes de possibilitar a competitividade e intensificar a concorrência, adaptar trabalhadores às mudanças técnicas e minimizar os efeitos do desemprego (Segnini, 2000, p.73).

Se no final da década de 1960, o mercado de trabalho no Brasil era predominantemente de base fordista-taylorista, legisladores guiados por essa concepção procuraram reformar a Educação Básica com vistas a torná-la profissionalizante, isto é, um meio de habilitar jovens a ser mão de obra a um mercado que exigia um tipo de trabalhador apto a desenvolver funções específicas na produção, de maneira eficiente e eficaz, como era próprio de uma nação submissa aos países capitalistas centrais. Foi esse o papel que cumpriu a Lei n°5692/1971, da ditadura civil-militar, pois por ela “[...] a equivalência entre os ramos secundário e propedêutico é substituída pela obrigatoriedade da habilitação profissional para todos os que cursassem o que passou a ser chamado de ensino de 2º grau” (Kuenzer, 1997, p.16). Posteriormente, outras reformas ou tentativas de reforma na Educação Básica se seguiram, orientadas pela concepção de trabalho como formação para o mercado de trabalho, como foi o caso, por exemplo, do Decreto 2008/1997 (Martins, 2000), e mesmo a mais recente reforma do Ensino Médio, iniciada com Medida Provisória (MP) 746/2016 (Brasil, 2016), posteriormente transformada na Lei n°13.415/2017 (Brasil, 2017) pelo Congresso Nacional, que:

Também retrocede e torna, e de forma pior, a reforma do ensino médio da ditadura civil militar que postulava a profissionalização compulsória do ensino profissional neste nível de ensino. Piora porque aquela reforma visava a todos e esta só visa os filhos da classe trabalhadora que estudam na escola pública. Uma reforma que legaliza o apartheid social na educação no Brasil (Frigotto, 2016, online).

A atual reforma do Ensino Médio, advinda da MP 746 (Brasil, 2016), contudo, parece ser muito mais adaptada à ideologia (concepção de mundo) econômica e política neoliberal, ao ambiente cultural pós-moderno e às formas de gestão da produção advindas do toyotismo (multifuncionalidade flexível do trabalhador, formada de maneira “[...] volátil, superficial e adestrada” (Antunes; Pinto, 2017, p.104) do que a “anacrônica” (Martins, 2000) tentativa de reforma promovida pelo Decreto 2008/1997, porque este ainda se orientava pelo fordismo-taylorismo (formação especializada, fragmentária). A nova reforma do Ensino Médio é afinada ao “neotecnicismo”, “neoescolanovismo” e “neoconstrutivismo”, que guiam as políticas educativas no Brasil, particularmente, as do governo golpista (Saviani, 2017), baseando-se nas diferentes perspectivas pelas quais se interpreta a teoria do capital humano, compreendido como “[...] um conjunto de elementos adquiridos, produzidos e que, uma vez adquiridos, geram a ampliação da capacidade de trabalho e, portanto, de maior produtividade” (Frigotto, 1995, p.92, grifos do autor).

Essa construção teórica contemporânea não nasceu sem mediações históricas. A tradição da educação orientada pelo capital tem raízes que se alinham ao solo originário do clássico liberalismo econômico e político, cujas figuras de relevo são, entre outras, Smith (1723-1790) e Locke (1632-1704). Esses autores proporcionaram as bases não apenas para que se edificassem relações sociais de tipo capitalista, mas também as chaves de ignição a processos sociais que as reproduzissem, como é o caso da educação. No âmbito do liberalismo clássico, base teórica fundante das pedagogias que advogam pela educação voltada ao mercado, o trabalho é concebido como produtor da riqueza das nações, mas trabalho entendido na dimensão individual da apropriação privada emprego (Martins, 2017), e não como produção social necessária à existência. Se Smith defendeu o trabalho como fator decisivo na riqueza das nações, dando sequência aos teóricos da Escola Fisiocrata de economia (França, séculos XVII e XVII), para os quais seria apenas o trabalho agrícola a fonte de valor, ambos entendendo a economia com sendo regida por leis naturais, devendo o Estado deixar o mercado agir livremente, em Locke se encontra a noção de que o ser humano nasce com direitos que lhe são naturais, direito ao próprio corpo e a todos os bens que com ele conseguir se apropriar, conquistar com o trabalho (Locke, 1991). Locke legitima a apropriação privada como direito natural do indivíduo. Se por livre iniciativa e em busca dos próprios interesses os indivíduos trabalharem em ambiente de liberdade econômica (leia-se: com a mínima regulação estatal), eles produzirão, “naturalmente”, o bem-estar social, pressuposto ético-político de Smith. Sendo assim, a condição e a situação social de cada um é responsabilidade pessoal, ligada à competência do indivíduo, bem como ao nível de liberdade que dispõem para agir, que não deve ser cerceado pelo Estado, pois caberá ao mercado a regulação “natural”, sobretudo, pela “mão invisível” que se expressa na “lei” da oferta e da procura.

Essa base clássica se atualizou no atual cenário econômico e político mundial e nacional com o advento, entre o final do século XX e início do XXI, do neoliberalismo como ideologia da nova fase de desenvolvimento do metabolismo social do capital, no qual os processos produtivos passaram da especialização taylorista à flexibilização toyotista (Antunes; Pinto, 2017). Nesse novo cenário, sob a forma toyotista, o trabalho objetivado na forma de emprego próprio da economia capitalista ganhou novo formato: flexibilizado, volta-se completamente ao atendimento das demandas do capital, mas em sistemas coletivos e com trabalhadores executando várias tarefas. De fato, “[...] o capital iniciou um processo de reorganização das suas formas de dominação societal, não só procurando reorganizar [...] o processo produtivo, mas procurando gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade” (Antunes, 2002, p.1).

Como não poderia deixar de ser, a educação foi uma das esferas atingidas por esse processo. Observe-se que as proposições da chamada “Nova Direita” toma “[...] o conjunto de discursos, propostas e práticas [...] da política neoliberal [como] princípio educativo” (Suárez, 1995, p.257, grifos do autor). Isso se revela no Brasil em várias políticas educativas, que estão sendo formuladas e executadas nos mais diversos âmbitos, contexto identificado por Apple como sendo uma guinada para a direita, uma “restauração conservadora” (Apple, 2002, p.57, grifos do autor). Entre as iniciativas que corroboram essa constatação, encontram-se políticas sociais educativas, que visam a mercantilizar a educação (Freitas, 2014), a passar a gestão de escolas públicas para a Política Militar (Brito, 2017) e, com destaque no Brasil contemporâneo, a proposta reacionária e equivocadamente auto-denominada de “Escola sem Partido” (Penna, 2017).

Nessa viragem à direita da educação, o conceito de trabalho é claramente assumido como norteador de processos educativos que objetivam formar indivíduos para o mercado de trabalho. Assim concebido, incorpora-se não apenas nas narrativas de sujeitos individuais e coletivos conservadores, afinados aos interesses do capital em se reproduzir, mas também em teorias educacionais identificadas como tecnicistas ou neotecnicistas.

Entrementes, o conceito de trabalho tem sido entendido de outra maneira, reverberando em teorias educacionais que o tomam como princípio educativo, definindo também os rumos dos processos escolares de ensino-aprendizagem, mas em outra direção. Nessa perspectiva, o trabalho passa a se vincular a pedagogias cuja tradição não se relaciona à conformação dos indivíduos e das sociedades ao capital, mas à formação humana com vistas à emancipação dos sujeitos e à superação do metabolismo social produtor de mercadorias.

De fato, quem adota o trabalho como princípio educativo são correntes de pensamento críticas ao capitalismo como modo de produção e reprodução da vida social, adotando também o liberalismo e neoliberalismo como ideologias a orientar a dinâmica societária, como é o marxismo (Martins, 2017), cuja “[...] concepção de trabalho em geral [é entendida] enquanto práxis humana, material e não material, que objetiva a criação das condições de existência” (Kuenzer, 1998, p.55).

Marx não escreveu um tratado sistemático sobre educação, mas no que produziu sobre o tema (Marx; Engels, 1978) é possível saber que ela decorre de uma concepção ontológica e antropológica do ser social, materialista e histórico-dialeticamente forjado, e visa à formação omnilateral. Seja a educação, seja a totalidade da vida social, ou melhor, “[...] toda a assim chamada história mundial nada mais é do que a produção do homem pelo trabalho humano” (Marx, 1991, p.175, grifos do autor). O trabalho é entendido:

[...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo [...] a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a própria natureza. [...]. Pressupomos o trabalho sob a forma essencialmente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir a colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira (Marx, 1999, p.211).

Concebendo, portanto, que “[...] as relações sociais da produção material dos homens [...] é o fundamento de toda a vida social” (Marx, 1999, p.214), para o marxismo originário, diferentemente dos demais animais (Engels, 1977), o ser humano produz o mundo ao longo da história e se autoproduz também; a essa atividade produtiva dá-se o nome de trabalho.

Ao produzir o mundo em todas as dimensões que o identificam, o ser humano produz a si mesmo, forma a própria natureza humana. Por isso, para o marxismo originário, o humano é “ser de práxis” (Martins, 2017, p.252).

Os seres humanos, desta forma, não nascem prontos e assim se reconhecem, ou seja, sabem que são inacabados, inconclusos, incompletos (Freire, 2005) e, portanto, precisam se formar, necessitam se desenvolver por meio de um processo denominado de educação. Desse modo, são entendidos “[...] como seres que, transformando o mundo com seu trabalho, criam o seu mundo. Este mundo, criado pela transformação do mundo que não criaram e que constitui seu domínio, é o mundo da cultura que se alonga no mundo da história” (Freire, 1982, p.17). Ao observar o desenvolvimento da humanidade no tempo de longa duração, percebe-se que “[...] transformar o mundo através de seu trabalho, ‘dizer’ o mundo, expressá-lo e expressar-se são o próprio dos seres humanos. A educação [...] se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos” (Freire, 1982, p.24).

O “acabamento” desse ser inacabado que é o humano ocorre, então, pelo trabalho, e particularmente por um específico processo trabalho denominado de educação, “[...] entendida como mediação no seio da prática social global” (Saviani, 2008, p.185).

Se a existência humana não é garantida pela natureza [...] mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um produto do trabalho, isso significa que o homem não nasce homem. Ele forma-se homem. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo (Saviani, 2007, p.154).

Essas noções ontológicas e antropológicas marxistas sobre trabalho e educação se incorporaram em teorias pedagógicas brasileiras críticas ao capitalismo, como a Pedagogia Histórico-Crítica de Saviani, a Pedagogia Libertadora de Freire e outras. Para elas, o trabalho deve ser princípio educativo e, assim, rechaçam as pedagogias voltadas à formação de sujeitos para o mercado de trabalho, pois se constituem, efetivamente, em pedagogias da exclusão. Isso ocorre no duplo sentido do termo, quais sejam: “exclusão includente e inclusão excludente” (Kuenzer, 2004, p.77). A primeira expressão refere-se ao terreno produtivo e entende que essas pedagogias promovem as condições para que o trabalhador aceite a desnormatização das relações de trabalho e/ou a própria eliminação do trabalho formal, encorajando-o à livre iniciativa (veja-se o empreendedorismo, que tem tomado vários níveis de ensino e modalidade educativas), já que o desemprego é estrutural na atual fase de desenvolvimento do metabolismo social do capital. A “inclusão excludente” refere-se ao terreno propriamente educativo e dela resultam processos que visam a formar jovens para o mercado de trabalho em redes de ensino sem a qualidade para produzir a integração deles na vida social, com padrão mínimo de dignidade humana, mas alimentando estatísticas de ampliação de acesso ao ensino.

Entre os marxistas, um dos que mais se destacou ao explicitar o trabalho como princípio educativo foi Gramsci. Ele fez do trabalho fundamento para a proposta de escola que formulou, a escola unitária. O comunista italiano a articulou a partir dos pressupostos do marxismo originário, mas os atualizou em face da nova realidade das “sociedades ocidentais”. A proposta de instrução de Marx e Engels é do século XIX, contexto do “Estado restrito” (sociedade política; coerção), e advogava a formação “tecnológica”, articulada à educação “mental” e “corporal” (Marx; Engels, 1978, p.222).

A escola unitária nasceu no século XX, na dinâmica da ampliação do Estado (maior peso da sociedade civil na determinação da história: “Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção” (Gramsci, 2000, p.244), e se comprometeu com a produção de uma nova cultura para as classes subalternas, que exigia um reordenamento do “eu” interior, orientado pela concepção de mundo socialista, a partir da noção ontológica de que “[...] cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central” (Gramsci, 1999, p.413). Destaque-se que o termo unitário indica não apenas uma única escola para todos, independentemente da condição econômica e social, mas também que no processo de ensino-aprendizagem se articule “saber” e “fazer”.

Gramsci entendia o contexto do trabalho moderno, que reordenou o comportamento individual e social, e formou o ser humano de acordo com a produção (Gramsci, 2001), ao mesmo tempo como algo negativo (separação entre “saber” e “fazer” de acordo com a luta de classes) e positivo (racionalização e disciplina). Assumiu, assim, o trabalho como princípio educativo, com vistas a promover nas classes subalternas a educação necessária para que saíssem do reino da necessidade para alcançar o da liberdade, isto é, superar o capitalismo como modo de produção e reprodução da vida social. Isso ocorreu considerando o desenvolvimento psicofísico dos educandos, os quais deveriam ser estimulados à atividade e à criatividade, mas sem abrir mão da disciplina e da intervenção, terem acesso à formação técnica e profissional, articulada à formação humanística, vinculadas ao desenvolvimento histórico da realidade concreta, à prática social.

Se as pesquisas sobre a concepção de trabalho constatam que há múltiplos entendimentos deste termo, deve-se mencionar ainda que a incidência da “Nova Direita” no cenário nacional tem implicado na presença da concepção de trabalho de perspectiva religiosa cristã, que o concebe como atividade que dignifica o humano como criação divina.

A dignidade e a honra do trabalho humano são claramente reveladas na humanidade sagrada de Jesus Cristo quando entrou em nosso mundo criado. Sua santidade e dignidade é então revelada. O trabalho humano é visto como uma participação na obra de Deus. O trabalho, pois, é um elemento fundamental para a dignidade da pessoa. E não só isso, dá-nos a capacidade de nos mantermos, a nós e à nossa família, mas também de contribuir para o crescimento da própria Nação (Souza Filho, 2015, p.155).

Cabe observar, contudo, que no interior da concepção cristã também não há conceito unívoco de trabalho, até porque o cristianismo não é um movimento homogêneo. Assim, em linhas gerais, pode-se dizer que há concepções distintas de trabalho entre os católicos e os cristãos reformados.

A concepção católica cristã de trabalho, hodiernamente, orienta-se ainda, em larga medida, nas formulações do Papa Leão XIII, expressas principalmente na Encíclica Rerum Novarum (Leão XIII, 2012). Na polêmica entre socialismo e liberalismo, Leão XIII posicionou-se em relação à condição dos operários. Frente ao conflito, ele reivindicou a harmonia entre trabalho e capital “[...] pois mutuamente necessitam um do outro [...]. A solução verdadeira encontra-se na [...] doutrina da Igreja e suas orientações sobre a vida e os bons costumes (Rerum Novarum 14-19) e na defesa dos proletários (Rerum Novarum 20-22)” (Souza Filho, 2015, p.147).

Por sua vez, na perspectiva calvinista, para ficar com um exemplo:

[...] o sucesso econômico era visto como bênção divina, para a qual o homem estaria destinado antes mesmo de nascer. Também seria obrigação do homem ter uma vida ativa e lucrativa, pautada pelo trabalho, não se circunscrevendo apenas ao físico, mas também as atividades científicas, criativas e de ensino (Hoffner, 1986, p.144).

As três noções básicas de trabalho presentes no campo educacional (formação para o mercado de trabalho, princípio educativo e atividade que dignifica o humano) não encerram todos os sentidos e significados deste termo, embora se destaquem entre as demais, presentes na legislação educacional e orientando políticas educativas e práticas em sala de aula. Na legislação que rege a educação nacional, o trabalho também se faz presente.

O trabalho na Constituição Federal, Constituição do Estado de São Paulo e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Entre as legislações que orientam a prática educativa nas escolas públicas da RMS, destacam-se, como não poderia deixar de ser, a Constituição Federal, a Estadual e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Na Constituição Federal de 1988, o trabalho aparece citado 220 vezes. Nelas, o trabalho é tomado com diversos vieses, mas, sobretudo, como princípio fundamental da vida social, como se pode observar em seu Art. 1°, do título I (Dos Princípios Fundamentais): “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (Brasil, 2019, p.15).

Assim concebido, o trabalho avança na Carta Magna como direito e garantia social, e aparece no Art. 6° (Título II - Dos Direitos e Garantias; Cap. II - Dos Direitos Sociais): “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho [...]” (Brasil, 2019, p.23).

Como princípio fundamental, direito e garantia social, decorre do trabalho que a ordem econômica vigente no território nacional deve também se fundamentar na sua valorização. A propósito, é por isso que há na regulamentação das relações trabalhistas a explicitação dos direitos básicos e de proteção aos trabalhadores, para que as relações de trabalho aconteçam de acordo com esse princípio estruturante da Constituição.

Essa fundamentação, que induz normas infraconstitucionais instituiu o estado democrático de direito, presente no Art. 1° da Constituição Federal: “III – a dignidade da pessoa humana” (Brasil, 2019, p.15). Segundo Schmitz (2012, p.130), essa priorização dos valores do trabalho humano “[...] se dá no sentido de servir de norte à intervenção Estatal na economia, que não poderá priorizar o capital em detrimento do humano”.

Dessa forma, uma das principais menções ao trabalho no que concerne à educação, feita na Constituição Federal de 1988, está presente no Art. 214, que diz:

A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino [...] por meio de ações integradas dos poderes públicos [...] que conduzam a: (Redação dada pela EC n. 59/2009) [...] IV – formação para o trabalho (Brasil, 2019, p.160, grifos nossos).

A Constituição Federal indica os limites legais a partir dos quais os legisladores paulistas produziram a Constituição Estadual, promulgada em 5/10/1989, e por muitas vezes emendada ao longo desse período de trinta anos de existência.

Nesta Carta Magna paulista, o trabalho aparece citado 28 vezes. A menção feita a ele, relacionando-o à educação, é a de que compete ao Estado adequar e ofertar modalidades de ensino para estudantes trabalhadores, oferecendo cursos diurnos e noturnos, podendo isso ser observado no Art. 249:

O ensino fundamental, com oito anos de duração, é obrigatório para todas as crianças, a partir dos sete anos de idade, visando a propiciar formação básica e comum indispensável a todos [...].

§ 4º - Caberá ao Poder Público prover o ensino fundamental diurno e noturno, regular e supletivo, adequado às condições de vida do educando que já tenha ingressado no mercado de trabalho (São Paulo, 1989, online).

Além das Constituições mencionadas, o trabalho educativo é também regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), principal norma infraconstitucional no âmbito nacional. Nela, o trabalho é citado 42 vezes.

Contudo, a principal referência que a LDB apresenta ao trabalho pedagógico está no Art. 2º, do título II (“Dos Princípios e Fins da Educação Nacional”), pois nele o trabalho é assumido como um dos princípios e fins da educação:

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1996, online, grifos nossos).

Essa diretriz legal tem orientado processos educativos desenvolvidos nas escolas brasileiras. No Estado de São Paulo, guia o ensino de disciplinas que compõem o campo das Ciências Humanas e Sociais, como a Filosofia e a Sociologia.

Mas o conceito de trabalho não foi definido claramente pelos legisladores na LDB nem em outros diplomas legais complementares, de modo que, por ser um termo polissêmico, ele passa a ser empregado diferentemente nos processos de ensino-aprendizagem das redes educativas, bem como em cada sala de aula, cada qual o adaptando à própria concepção de trabalho que guardam seus sujeitos, particularmente os professores, protagonistas do trabalho pedagógico.

Assim sendo, o trabalho pedagógico fica submetido à concepção que os docentes têm do termo trabalho e de como ele deve se manifestar na prática educativa, por vezes como formação ao mercado de trabalho, como princípio educativo ou como atividade que dignifica o ser humano, para citar as três mais recorrentes no campo da Educação no Brasil. Logo, é imperativo conhecer as concepções de trabalho dos professores de escolas públicas da RMS.

A concepção de trabalho de professores de Filosofia e de Sociologia de escolas públicas da região de Sorocaba

Para conhecer os diversos conceitos presentes no fazer docente nas escolas públicas da RMS, foi aplicado um questionário contendo, dentre outras, a pergunta: “O que significa ‘trabalho’ para você? Dito de outro modo, qual é a sua concepção de ‘trabalho’?”. O questionário obteve 69 respostas, sendo 33 de professores da disciplina de Filosofia, 31 de Sociologia e 5 que ministram ambas. Os respondentes eram de oito cidades da RMS e duas de fora dessa região, São Paulo e Piracicaba, que enviaram dois questionários. O questionário foi composto de questões abertas e, com isso, as respostas obtidas foram diversas; na tabulação foram utilizados descritores para articulá-las em grupos, que guardavam similaridades entre si, obtendo-se 14 deles, abaixo descritos.

Com 11 respostas (16%), o conceito de “trabalho” foi entendido como “profissão/emprego”. Esse dado permite enquadrar os respondentes à corrente que tende a formar estudantes para o mercado de trabalho, com processos de ensino-aprendizagem voltados às demandas do capital, orientados por teorias educacionais tecnicistas ou neotecnicistas, afeitas ao capitalismo como modelo de produção e reprodução da vida social, e do liberalismo e neoliberalismo como ideologias que orientam a dinâmica da sociedade.

O entendimento do “trabalho” como “profissão/emprego” pode ser alinhado ao que a Constituição Federal identifica por educação como formação para o trabalho, assim como na LDB a educação como qualificação para o trabalho. Como a Constituição do Estado de São Paulo determina que o Estado garanta a oferta de ensino também aos que estejam no mercado de trabalho, pode-se depreender que o entendimento do conceito de Educação como formação para o mercado de trabalho também se enquadre como objetivo deste texto legal.

O conceito de “trabalho” como “atividades produtivas ou criativas” apareceu em 11 respostas (16%). O conceito de atividade produtiva é mais amplo do que apenas “profissão/ emprego”. Quando o sujeito está em ação, demanda, naturalmente, uma atividade produtiva, que pode ser mais ou menos criativa (tanto no sentido de criatividade como no de criação). Mas a atividade produtiva não se limita a ser profissão ou emprego, ou seja, é possível que o trabalhador desempenhe uma atividade produtiva dentro ou fora do emprego (exercer atividade profissional nas horas vagas).

Se o entendimento de “produtivo” limitar-se à concepção capitalista, produção de mais-valia, o trabalho “produtivo” se circunscreveria nos limites deste tipo de vida social, e no liberalismo e no neoliberalismo como ideologias que a orientam. Nesse caso, tratar-se-ia do conceito de trabalho alienado, que culmina na formação para a desumanização.

Entretanto, se o entendimento de trabalho “produtivo” for mais amplo, ele também pode se enquadrar na perspectiva da noção princípio educativo, de viés marxiano, por exemplo: o ser humano se forma pela sua atividade produtiva e criativa, articulando necessidade humana, fruição, trabalho e produto do trabalho, transformando a natureza por meio da própria ação, conforme salienta Antunes (2016). Em ambos os casos, ele também se enquadra na legislação (Constituição Federal, do Estado de São Paulo e LDB) como princípio fundamental, direito e garantia social.

Para 9 (13%) dos docentes que responderam à pesquisa, “trabalho” é “ação do homem sobre a natureza”. Como dito, referida concepção é afeita à ideia marxiana do conceito, já que, para Marx (1999), o ser humano, mediado pelo trabalho, age sobre a natureza e produz suas condições de vida material, na mesma medida em que forma a si mesmo; humanizando a natureza, humaniza-se. Logo, esse conceito é próximo ao trabalho como princípio educativo.

Contudo, o trabalho como “ação do homem sobre a natureza” também pode ser coerente com o viés capitalista, especialmente se traduzido como emprego, produzindo mais-valia e acumulação. Nessa perspectiva, o conceito de “trabalho” estaria enquadrado no fazer docente com base em pedagogias tecnicistas ou neotecnicistas. Em ambos os casos, o entendimento do termo “trabalho” pode se inscrever como uma das possibilidades de interpretação dos textos legais, uma vez que eles possibilitam enorme gama de leituras.

O termo “trabalho” é “realização pessoal” para 8 respondentes (11%). É problemática essa resposta, pois, o que vem a ser isso? Qualquer resposta é muito subjetiva e pode direcionar tanto para a ideia de realização pessoal no trabalho/emprego quanto à de realização existencial, do ser humano como cidadão; ainda pelo viés religioso, a realização pessoal pode se relacionar a propósitos “divinos”. Aceita a primeira concepção de “trabalho”, ela se aproxima da formação de mão de obra para o mercado; se acatada a segunda, pode-se entender o termo como mais próximo de princípio educativo; e se validada a terceira, ele estaria filiado à dignidade do ser humano. Enfim, não é possível dizer que o “trabalho” entendido como “realização pessoal” se enquadre nos textos legais aqui discutidos.

Para 8 docentes (11%), “trabalho” é “atividade humana (individual ou coletiva)”. Para entender o trabalho como atividade no mercado ou como formação humana, ou ainda como ação que dignifica o ser humano, é necessário primeiro entendê-lo como uma atividade humana. Nesse sentido, há aproximações possíveis entre o entendimento dos docentes e as múltiplas concepções antes relatadas, embora também seja possível traçar distanciamentos, a depender de quais propósitos atendem tais “atividades”, no entender dos respondentes.

O “trabalho” significa “a ação do homem de criar ou transformar algo” para outras 8 docentes (11%). Assim, o termo pode se aproximar da noção de atuação no mercado de trabalho, se o objetivo for produzir mais-valia ou promover condições de subsistência. Mas o entendimento também é suficientemente amplo para aproximá-lo, para além da interpretação marxiana, aproximando-o de “princípio educativo”. Em ambos os sentidos, ele pode ser abarcado pelos diplomas legais como “princípio fundamental”, “direito” e “garantia social”.

“Pesquisar” é o significado de “trabalho” para 5 docentes (6%). Essa concepção distancia o conceito de mera atuação no mercado, aproximando-o de princípio educativo. Não parece razoável dizer que esse entendimento esteja contemplado nos diplomas legais.

Para 2 professores (3%), “trabalho” é concebido como “aprendizagem do aluno”. Ao que tudo indica, tanto no caso anterior como neste os docentes entenderam a palavra como limitada à atividade dos estudantes e talvez de si próprios, pois, para ensinar, é preciso pesquisar também. Esse entendimento é distante de “trabalho” como atividade no mercado e mais próximo de “trabalho” como princípio educativo. Assim como no caso anterior, não é possível dizer que mencionado entendimento enquadra o termo nos sentidos dados pelos diplomas legais referidos, embora a LDB entenda que a educação deva qualificar para o “trabalho”.

“Trabalho” significa “promover autonomia e independência” para 2 pessoas (3%). Essa concepção parece se aproximar da noção de trabalho como “princípio educativo”, uma vez que a autonomia e a independência são resultadas de aprendizagens. Contudo, também pode haver aproximação com a ideia de atuação no mercado de trabalho, caso essa autonomia e independência sejam concebidas no sentido de produção e reprodução da vida material do sujeito na sociedade capitalista. Esses entendimentos podem ser enquadrados nos sentidos dados pelas legislações: “princípio fundamental”, “direito” e “garantia social”.

Para uma pessoa (2%), o termo “trabalho” refere-se à “humanização”. Isso indica o entendimento próximo ao princípio educativo e não próximo à atuação no mercado de trabalho. Aproximando-o do conceito marxiano, vê-se que pelo trabalho ocorre o processo de transformação da natureza, permitindo ao ser humano se humanizar e humanizar a natureza. Ele também se aproxima do conceito de trabalho como “atividade que dignifica o ser humano”. Contudo, não parece possível aproximar o termo do que rezam os diplomas legais.

O conceito de “trabalho” é “relação, diálogo e envolvimento com outras pessoas” para uma pessoa (2%). Isso se aproxima mais da ideia de ação socializadora do que de princípio educativo ou atuação no mercado de trabalho, ou como de atividade dignificadora do humano. Também não parece razoável aproximar o termo dos conceitos presentes nas legislações.

“Trabalho” significa “responsabilidade” para um docente (2%). Como no caso anterior, parece que há um distanciamento do entendimento do termo em relação a ser ele um princípio educativo ou atuação no mercado de trabalho, bem como uma atividade que dignifica o ser humano. Também não parece razoável aproximar o termo dos conceitos presentes nos diplomas legais, como “princípio fundamental”, “direito” ou “garantia social”.

Para uma pessoa (2%), “trabalho” significa “colaborar”, o que não possibilita aproximar o entendimento da concepção de trabalho como “princípio educativo”, “atuação no mercado”, ou “dignificação do ser humano”, nem mesmo do que está previsto nas leis em análise.

Por fim, um professor (2%) entende “trabalho” como um termo polissêmico. Nesse caso, é impossível saber o que o docente entende exatamente pela palavra.

Considerações Finais

À guisa de conclusão, neste final cabe destacar inferências a partir do exposto. A primeira e mais significativa delas diz respeito ao fato de que a falta de definição na legislação nacional do conceito de trabalho abre brechas para que, na sala de aula, a concepção dos docentes se imponha como diretriz aos processos educativos. A segunda inferência é que, entre as concepções mais difundidas de trabalho, quais sejam: formação de mão de obra ao mercado, princípio educativo e ação que dignifica o humano, a primeira delas é majoritária entre os docentes de Filosofia e Sociologia na RMS. Assim sendo, a efetivação da intenção de pedagogias que se querem críticas, transformadoras das relações sociais, necessariamente passa por um processo de formação docente que esclareça a relevância de se conceber o trabalho como princípio educativo, o que se torna um desafio de monta no contexto atual de crise política na educação nacional.

5 Instituída pela Lei Complementar Estadual nº1.241, de 8/05/2017, é composta por vinte e sete municípios conurbados no interior do Estado de São Paulo, se localiza há cerca de 100km da capital, conta com mais de 2 milhões de habitantes, tem 4,06% da população paulista, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2017, e em 2015 gerou 4,03% do Produto Interno Bruto (PIB) paulista (Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, 2019).

1 Artigo elaborado a partir da pesquisa intitulada “Trabalho e educação na Região Metropolitana de Sorocaba/SP (RMS): a incidência da noção de trabalho na concepção e na prática de docentes da rede pública estadual”. Universidade Federal de São Carlos, 2019-2020.

Apoio: Agradecemos ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo financiamento (Chamada Universal MCTIC/CNPq 2018, Processo n°428972/2018-7).

Como citar este artigo/How to cite this article: Martins, M.F. et al. Filosofia, Sociologia e trabalho: concepção de professores de escolas públicas de Sorocaba. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204744, 2020. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4744

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Recebido: 01 de Outubro de 2019; Aceito: 19 de Dezembro de 2019

Colaboradores: M.F. MARTINS foi o coordenador-formulador do projeto de pesquisa, que teve a equipe integrada por I.K.C. OLIVEIRA, A.C. REZENDE e N.G. ALENCAR. Coletivamente, esses pesquisadores e pesquisadoras produziram a revisão bibliográfica, a revisão da metodologia da pesquisa de campo e elaboração do instrumento de coleta de dados, bem como a tabulação e análise dos dados colhidos em campo, à luz do referencial bibliográfico, cujos resultados são apresentados neste artigo.

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