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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a5287 

SEÇÃO TEMÁTICA: ENSINO, TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM LÍNGUAS DE SINAIS: INTERSECÇÕES ENTRE GÊNERO, RAÇA E ETNIA

Revisão de literatura: surdez e identidades interseccionais

Literature review: deafness and intersectional identities

Fátima Elisabeth Denari1 
http://orcid.org/0000-0001-9248-6359

Isabella Mota Colombo1 
http://orcid.org/0000-0002-6784-5898

1Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Rod. Washington Luiz, km 235, s/n., Monjolinho, 13565-905, São Carlos, SP, Brasil.


Resumo

A surdez é mais investigada do que outras marcas identitárias, como gênero e raça, gerando a simplificação das identidades surdas e diminuindo a visibilidade das especificidades das outras pessoas também inseridas nesse grupo. O objetivo desta pesquisa é comparar o que tem sido produzido academicamente quanto à intersecção entre surdez, gênero e raça, quando as publicações mencionam os três marcadores sociais conjuntamente e quando mencionam apenas os dois primeiros. As buscas foram feitas nas bases de dados Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e Biblioteca Digital de Teses e Dissertações. A busca com foco na surdez e gênero foi denominada de Eixo 1 e a busca com foco na surdez, gênero e raça foi denominada de Eixo 2. O Eixo 1 resultou em seis publicações selecionadas e o Eixo 2 em três publicações. Percebeu-se que os estudos do Eixo 1 não realizaram o entrelace entre gênero e outros marcadores sociais de opressão, compreendendo o gênero como uma categoria autônoma. Os estudos do Eixo 2 mostraram que, além da raça, outros marcadores sociais atrelados à surdez não se sobrepõem, mas se interseccionam uns com os outros, e que a cada combinação há uma forma diferente de opressão sofrida pela mulher surda. Concluiu-se o quão importante é utilizar instrumentos conceituais que buscam analisar como as estruturas de opressão e de privilégio se entrelaçam e como exercem influência na vida e na construção das identidades das mulheres surdas.

Palavras-chave Gênero; Identidades interseccionais; Raça; Surdez

Abstract

Deafness is more investigated than other identity marks, such as gender and race, generating the simplification of deaf identities and reducing the visibility of the specificities of other people also included in this group. The objective of this research is to compare what has been academically produced regarding the intersection between deafness, gender and race, when publications mention the three social markers together and when they only mention the first two. The searches were made in the databases Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior and Biblioteca Digital de Teses e Dissertações. The search focusing on deafness and gender was called Axis 1, and the search focusing on deafness, gender and race was called Axis 2. Axis 1 resulted in six selected publications and Axis 2 in three publications. It was noticed that the Axis 1 studies did not intertwine gender and other social markers of oppression, understanding gender as an autonomous category. The Axis 2 studies showed that, in addition to race, other social markers linked to deafness do not overlap, but intersect with each other, and that in each combination there is a different form of oppression suffered by deaf women. It was concluded how important it is to use conceptual instruments that seek to analyze how the structures of oppression and privilege intertwine and how they influence the lives and the construction of deaf women’s identities.

Keywords Genre; Intersection identities; Race; Deafness

Introdução

As pessoas com surdez vivem em uma sociedade predominantemente ouvinte e, por isso, se deparam diariamente com situações excludentes e estigmatizantes, principalmente devido às barreiras linguísticas e culturais, visto que possuem outro meio através do qual adquirem informações: o visual ao invés do oral. Nesse sentido, a grande maioria dos estudos envolvendo a área da surdez investiga, com maior frequência, o aspecto linguístico de ser uma pessoa com surdez, deixando em segundo plano outras dimensões referentes à identidade da pessoa surda, como gênero, raça, etnia e classe social, por exemplo.

Este artigo concentra-se na necessidade de se colocar em debate as perspectivas e lutas constantes da pessoa surda, entrelaçando o gênero e a raça na constituição de sua identidade. De acordo com Louro (1999), as pessoas possuem muitas identidades, que são transitórias e contingentes, possuindo caráter instável, fragmentado e plural; portanto, se determinam nas alçadas histórica e cultural, delineando os sujeitos tendo em vista que esses são colocados em distintas situações ou agrupamentos sociais.

No processo de reconhecimento das identidades são atribuídas diferenças, instituindo hierarquias e desigualdades que estão relacionadas com as redes de dominação que percorrem as sociedades, realizando demarcações entre aqueles que representam a norma padrão e aqueles que ficam à sua margem (Louro, 1999). O homem branco, heterossexual, de classe média e cristão foi estabelecido historicamente como a referência de norma social, tornando as outras pessoas marcadas e estigmatizadas, recaindo sobre elas graus de vulnerabilidades, através do que se estabelece uma rede de poder. Assim, as identidades sociais também são políticas.

Nesse sentido, a identidade surda é igualmente fragmentada. Segundo Miranda (2017), a surdez como uma marca identitária acaba sendo mais investigada, estudada, observada e explorada do que outras marcas identitárias como o gênero, raça e etnia, gerando como consequência a homogeneização e a simplificação das identidades surdas, diminuindo a visibilidade das necessidades específicas das outras pessoas também inseridas nesse grupo.

O sexismo e o racismo são fontes diretas de hierarquização, subordinação e desigualdade social e, consequentemente, produzem diferenças relevantes na maneira de ser uma pessoa surda, acarretando experiências de vida distintas em cada um. Outros marcadores de diferenciação, como a homofobia, etarismo e xenofobia, por exemplo, também são fatores relevantes na reprodução de desigualdades sociais, influenciando o modo de ser de cada pessoa com surdez – daí a necessidade do aprofundamento a respeito da dinâmica das relações sociais nas sociedades (Sardenberg, 2015).

É de grande importância a compreensão de que todos os marcadores sociais de opressão, neste estudo, principalmente o capacitismo, sexismo e racismo, não agem de forma independente; eles estão conectados e constituem-se como fatores de repressão interseccionados e modificam uns aos outros mutuamente (Sardenberg, 2015).

Dessa forma, além do entendimento do termo identidade, também é de suma importância a compreensão do termo interseccionalidade. Lélia Gonzalez (1935-1994) foi a precursora dos estudos sobre o assunto no Brasil. Assídua militante dos movimentos negro e feminista no país, Lélia fez duras críticas a ambos, visto que até aquele momento os marcadores sociais gênero e raça eram pensados de forma dissociada. Fez, então, uma análise relacionando gênero, raça e classe social; associando o sexismo ao racismo e à exploração capitalista (Gonzalez, 1984). Essa articulação ficou posteriormente conhecida como o campo de estudo da interseccionalidade.

A norte-americana feminista, negra e advogada Kimberlé Crenshaw foi quem nomeou o termo interseccionalidade e desenvolveu as mais importantes estruturas desse conceito. Metaforizando, Crenshaw (2002, p. 177) elucida a interseccionalidade como:

Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, freqüentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam.

Atrelado à interseccionalidade, o conceito de posicionalidade do mesmo modo tem relevância para o entendimento deste estudo. De acordo com Sardenberg (2015), esse termo relaciona-se ao resultado das interações dos marcadores sociais de diferenciação quanto a privilégios e desvantagens do cotidiano de cada um; isto é, refere-se ao grau de vulnerabilidade de identidades específicas em um determinado contexto com base no gênero, raça, etnicidade, idade, sexualidade, classe social, entre outros. Desse modo, cada pessoa desfruta de privilégios e/ou de opressões de acordo com a posicionalidade relativa aos marcadores sociais que estão entrelaçados; portanto, a posicionalidade (centro ou margem) é determinada pelas identidades de cada um. É válido ressaltar, como já visto, que as identidades não são fixas e, dessa mesma maneira, a posicionalidade também não é, variando com base no contexto em que se está inserida.

Retornando a atenção ao cenário da surdez, ao ocuparem o mesmo espaço, mulheres ouvintes e aquelas com surdez acabam ficando em posições diferentes, visto que o espaço é pensado para o grupo privilegiado (ouvintes). Assim, o outro grupo (surdas) fica à margem, já que esse espaço não está preparado para recebê-lo (Silva et al., 2017). Um ponto importante de ressaltar é que a mulher surda frequentemente é comparada à mulher com deficiência; ou seja, não se tem o entendimento de sua diferença, pois quando são igualadas às mulheres com deficiência, consequentemente são niveladas às mulheres ouvintes, e essa é uma forma de discriminação contra a língua e a cultura surda (Perlin; Vilhalva, 2016). Para Perlin e Vilhalva (2016), militantes do movimento feminino surdo, essa noção de diferença é nova e pouco conhecida pela sociedade, pois a mulher com surdez não é uma mulher com deficiência, mas sim uma mulher que se comunica através de outra língua: a de sinais.

Nesse contexto, é interessante destacar que mulheres ouvintes vivenciam situações de vida diferentes das que as mulheres surdas experimentam e, sabendo que as vulnerabilidades vão se somando, mulheres surdas brancas experienciam situações distintas daquelas vividas por mulheres surdas negras, pardas ou indígenas, o que coloca o último grupo em uma situação de tripla vulnerabilidade devido à somatória do gênero, da diferença e da raça/etnia.

Assim, é sabido que todas as mulheres estão sujeitas à discriminação de gênero e outros fatores conectados às suas identidades; são diferenças que alteram a maneira como os vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação (Crenshaw, 2002). Dessa forma, tendo em vista o ideário de homem branco e heterossexual e focalizando na surdez, as identidades surdas que ficam à margem, como um todo, são as mulheres surdas brancas, negras, pardas, homossexuais, heterossexuais, de classe social alta ou baixa, oralizadas ou não, que utilizam a língua de sinais ou não a utilizam, entre outros aspectos. É imprescindível compreender que a soma de um ou mais desses marcadores torna a vivência da exclusão mais constante.

Os confrontos enfrentados por mulheres surdas são de toda ordem e perpassam inúmeros momentos de suas vidas. Por pertencerem a um grupo que utiliza uma língua diferente, tem uma cultura e necessidades distintas e que é marcado pela expressão da língua de sinais, a principal barreira encontrada se constitui na falta de acessibilidade por viverem em um mundo predominantemente ouvinte (Silva et al., 2017). Recai muitas vezes sobre essas mulheres a visão de incapacidade; elas são tidas como inaptas a dirigirem suas próprias vidas e decidirem sobre seus destinos; são vistas como inábeis em cuidar de si ou de seus filhos. Muitas mulheres surdas acabam sendo levadas à esterilização sem seu consentimento. Enfim, são inúmeras as situações discriminatórias, de exclusão e abusos às quais essas mulheres estão sujeitas (Silva et al., 2017).

Pensando no cenário educacional, Perlin e Vilhalva (2016, p. 152) declararam que:

Na educação, o espaço da inclusão, como afirmou Capovilla, está em clima de abandono da escola pelos estudantes surdos, visto que estamos em um mundo que vê educação inclusiva como educação igual para todos. A mulher surda esteve e está correndo o risco de ser cada vez mais afetada pela não alfabetização e consequentemente estão engrossando os cursos de EJA que atendem pessoas que se escolarizam mais tarde.

Atualmente o modelo educacional mais adequado para atingir a comunidade surda é de educação bilíngue, no qual a Língua de Sinais Brasileira (Libras) é utilizada como primeira língua e a língua portuguesa como segunda língua. Pensando na interseccionalidade entre gênero e raça, será que os currículos tanto da educação comum quanto da bilíngue são capazes de atender a essa questão nas identidades surdas?

No ano de 2016, Perlin e Vilhalva participaram da Consulta Nacional para as Mulheres Deficientes e Mulheres Ciganas em Brasília, tendo sido designadas pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos para participarem do evento como direcionadoras da temática da mulher surda. Durante a Consulta, as participantes foram instigadas a refletir, enquanto mulheres surdas, a respeito da situação desse público no Brasil e a ponderarem sobre seus principais desafios, bem como a respeito dos componentes importantes para a promoção de poder, autoridade, autonomia, emancipação e participação delas. O evento deu origem ao documento “Mulher surda: política linguística nas políticas sociais”, que organiza aspectos necessários ao empoderamento de uma política afirmativa que reconheça as especificidades da mulher surda. Perlin e Vilhalva (2016) convidaram outras mulheres surdas para discutirem sobre políticas para elas e por meio da internet e, de forma conjunta, foi construída uma carta direcionada à Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência buscando que seus anseios fossem atendidos.

O documento versa sobre elementos para políticas referentes ao gênero e à educação da mulher surda; dados para construção de políticas necessárias à saúde da mulher surda; informações sobre políticas contra a violência a esse público; elementos referentes à participação política; subsídios para políticas referentes à construção de direitos e cidadania e elementos para políticas: ciência, cultura e comunicação (Perlin; Vilhalva, 2016). As reivindicações não fazem menção à condição particular que uma mulher surda pode enfrentar devido à sua raça/etnia ou a qualquer outro marcador social; apenas relacionam a surdez ao gênero. Porém, como ficou claro a partir do que foi abordado até aqui, é de extrema importância ter um olhar mais cauteloso direcionado a esse grupo devido ao entrecruzamento da surdez, gênero e raça.

É necessário compreender que as formas de discriminação, opressão, que os graus de vulnerabilidade e que a posicionalidade das pessoas surdas é diferentes e varia de acordo com as suas identidades. Assim sendo, o entrelace entre o preconceito contra surdos, sexismo e racismo gera uma forma específica de marginalização social que é diferente daquela produzida pela convergência entre o preconceito contra surdos e sexismo, e essas divergem de outras intersecções. Quando essas questões não são levadas em consideração, ocorre o silenciamento das desigualdades e as múltiplas formas da identidade surda são desconsideradas. Isso posto, o objetivo do presente artigo é comparar o que tem sido produzido academicamente quanto à intersecção entre surdez, gênero e raça quando as publicações mencionam os três marcadores sociais conjuntamente e quando mencionam apenas os dois primeiros. Os estudos que tratam de mulheres com surdez no geral fazem um recorte envolvendo a questão racial? Esses estudos compreendem a singularidade de ser uma mulher surda não branca? Ocorre a intersecção entre surdez, gênero e raça nesses estudos? Há menção sobre outros marcadores sociais como sexualidade, idade e religião, por exemplo?

Procedimentos Metodológicos

Como o objetivo proposto é comparar estudos envolvendo surdez e gênero com estudos que abordam surdez, gênero e raça, foram feitas duas revisões da literatura a fim de buscar as publicações que envolvessem as temáticas. Portanto, os procedimentos metodológicos foram desenvolvidos em dois eixos: o primeiro é uma revisão da literatura sobre surdez e gênero e o segundo eixo é uma revisão da literatura envolvendo surdez, gênero e raça. Para ambos os eixos foram realizados levantamentos bibliográficos nas bases de dados do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). As buscas ocorreram no mês de janeiro de 2021. Para a utilização dos descritores foi empregado o operador booleano AND entre os termos, os quais estavam em português.

A busca inicial se deu através da leitura do título, das palavras-chave e do resumo das publicações. Após a seleção daqueles que cumpriam os critérios de inclusão, foi feita a exclusão das duplicações e, por fim, realizou-se uma leitura na íntegra para a análise desses estudos. A seguir, serão apresentadas, separadamente, a metodologia utilizada para cada eixo e na seção de resultados os estudos serão abordados de forma mais detalhada quanto aos seus componentes e características.

Eixo 1: Estudos abrangendo surdez e gênero

Os descritores utilizados para essa busca foram: mulheres com surdez; mulheres surdas; surdez AND gênero; surdez AND feminismo e surdez AND desigualdade de gênero. Os critérios de inclusão utilizados foram: (a) versar sobre a surdez com foco principal nas desigualdades de gênero; (b) ter mulheres surdas na amostra; (c) estar em português e (d) ser artigo, dissertação ou tese. As duplicações foram descartadas.

É importante esclarecer que os critérios foram elaborados e utilizados com o intuito de atender ao objetivo proposto neste artigo, buscando identificar se as publicações que abordam apenas surdez e gênero fazem recortes envolvendo outros marcadores sociais que, apesar de não serem o foco principal desses estudos, são relevantes e exercem influências na vida de mulheres surdas.

Eixo 2: Estudos abrangendo surdez, gênero e raça

Os descritores utilizados para essa busca foram: mulher surda negra; mulher surda parda; mulher surda indígena; interseccionalidade AND surdez; mulher surda AND raça; mulher surda AND etnia e feminismo surdo AND raça. Os critérios de inclusão utilizados foram: (a) versar sobre a surdez com foco na interseccionalidade entre gênero e raça; (b) ter mulheres surdas negras ou não brancas na amostra; (c) estar em português e (d) ser artigo, dissertação ou tese. As duplicações foram descartadas.

Os critérios foram selecionados por convergirem com o objetivo deste artigo, procurando identificar quais as diferenças de informações quanto à intersecção de marcadores sociais de diferenciação encontradas nos estudos envolvendo surdez, gênero e raça conjuntamente e nos que envolvem somente surdez e gênero.

Todas as publicações selecionadas de ambos os eixos, após a leitura na íntegra, foram submetidas à folha de codificação composta por: (1) Título; (2) Banco de dados; (3) Endereço na internet; (4) Autores; (5) Ano da publicação; (6) Periódico; (7) Tipo de publicação; (8) Objetivo do trabalho; (9) Participantes; (10) Procedimento; (11) Resultados e (12) Limitações encontradas.

Resultados e Discussão

Os resultados das buscas feitas em cada eixo também serão apresentados separadamente.

Eixo 1: Resultados

A busca feita no portal de periódicos da Capes resultou em 315 publicações, sendo que 216 foram excluídas após a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave, pois não atendiam aos critérios de inclusão. Após a primeira exclusão, restaram 99 obras, das quais foram excluídas 95 por serem duplicações. Assim, no portal Capes foram selecionadas quatro publicações para a leitura na íntegra e análise. Já a busca realizada na BDTD resultou em 96 trabalhos, sendo que 78 foram excluídos após a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave por não se enquadrarem nos critérios de inclusão. Após a primeira exclusão, restaram 18 trabalhos, dos quais 16 foram excluídos por se repetirem. Portanto, dois trabalhos foram selecionados para a realização da leitura na íntegra e análise. Dessa forma, a busca nesse eixo resultou em seis publicações no total. A Figura 1 apresenta esses resultados com base na somatória das buscas em ambos os portais para se chegar ao resultado final.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).

Notas: BDTD: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações; CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Figura 1 Fluxograma do processo de seleção das publicações do Eixo 1. 

No Quadro 1 são apresentadas as categorias, os autores, título, ano de publicação, instituição e objetivos de cada estudo analisado.

Quadro 1 Caracterização dos estudos selecionados para o Eixo 1 da pesquisa. 

Categoria Autores Título Ano de publicação Instituição Objetivos
Artigo Madalena Klein
Daniele de Paula Formozo
Gênero e surdez. 2007 Universidade Federal de Pelotas Discutir a temática da surdez, articulando-a com discussões referentes a gênero e sexualidade.
Dissertação Sara Filipa Loureiro Silva Moreira de Sousa Narrativas bibliográficas de mulheres surdas e educação: reconhecer experiências, culturas, identidades e percursos. 2011 Universidade do Porto Discutir diferentes percursos biográficos de mulheres surdas, conhecendo suas experiências, marcadas em parte por desigualdades vividas num mundo maoritariamente ouvinte.
Tese Karen Ribeiro Sexualidade e gênero: estudo das relações afetivas de jovens surdas de uma escola municipal de educação especial de São Paulo 2011 Universidade de São Paulo Investigar práticas e vivências da sexualidade de jovens surdas, usuárias da língua brasileira de sinais, a Libras.
Artigo Ana Luisa Gediel,
Mylene Mayara Santos Dias
Thayane Fraga de Paula
A internet como ferramenta de aprendizagem e difusão cultural e linguística das mulheres surdas. 2017 Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Viçosa Discutir o uso da internet como ferramenta de acesso aos conhecimentos sobre a saúde da mulher.
Artigo Amanda de Andrade Costa et al. Acolher e escutar o silêncio: o cuidado de enfermagem sob a ótica da mulher surda durante a gestação, parto e puerpério 2018 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Identificar a percepção da mulher surda quanto aos cuidados de enfermagem durante a gestação, o parto e o puerpério.
Dissertação Stela Perne Santos Um estudo sistêmico do vocabulário das leis que versam sobre violência contra a mulher 2019 Universidade de Brasília Criar um vocabulário sistêmico de sinais-termo dos conceitos das Leis sobre a violência contra a mulher.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).

Dos estudos analisados, cinco tratavam da realidade de mulheres surdas brasileiras e um tratava da realidade das mulheres surdas em Portugal. Como visto no Quadro 1, os trabalhos analisados foram publicados a partir de 2007, sendo essa pesquisa a mais antiga, seguida por dois estudos publicados no ano de 2011, depois 2017 e 2018 e o estudo mais recente foi publicado em 2019.

Quanto à abordagem, verificou-se que a pesquisa qualitativa foi a mais utilizada, estando presente em todos os trabalhos analisados. Também se observou a utilização de diferentes instrumentos e/ou técnicas para a coleta de dados e constatou-se que a entrevista foi a mais utilizada (Ribeiro 2011; Sousa 2011; Gediel; Dias; Paula, 2017, Costa et al., 2018); que uma pesquisa realizou análise documental de leis (Santos, 2019) e outra foi feita com base na análise de textos ou cenas que envolviam mulheres surdas (Klein; Formozo, 2007).

O estudo de Klein e Formozo (2007) trata da surdez envolvendo discussões relacionadas ao gênero e à sexualidade. O artigo aborda a discriminação de mulheres surdas no mercado de trabalho, diz que a maioria delas ocupam cargos de docência e que são discriminadas em inúmeros espaços, como o educacional e o de saúde. Para chegarem a essas conclusões, as autoras analisaram textos e cenas que envolvem mulheres surdas em diferentes espaços, além de conversarem com mulheres surdas envolvidas nos movimentos surdos da cidade de Pelotas/RS. O trabalho apresenta uma breve menção sobre o lugar das diferenças dentro do grupo de surdos quando relata que no XII Congresso Mundial da Federação Mundial dos Surdos, ocorrido em 1995, alguns trabalhos apresentados falavam das condições de surdos negros, surdas africanas e surdas lésbicas. Também menciona um estudo que relata que as mulheres surdas negras sofrem maior discriminação no mercado de trabalho do que as mulheres surdas brancas ou mesmo do que os homens surdos negros. Porém, ao longo do artigo não são apresentadas reflexões mais profundas sobre essa temática.

Já a pesquisa de Sousa (2011) retrata a realidade de Portugal por meio dos discursos de três mulheres surdas a respeito de seus percursos de vida, articulando-os com as questões de gênero, surdez, identidades, culturas e educação. Na dissertação não há uma seção específica que caracteriza as participantes; as informações a respeito delas são compartilhadas ao longo do trabalho, mas não de forma específica e detalhada, o que facilitaria o entendimento do leitor. Uma das três participantes é angolana e mudou-se para Portugal quando criança. A dissertação apresenta as desigualdades experienciadas por essas mulheres na escolarização, na profissionalização e socialização. São feitas menções sobre o silenciamento das identidades surdas não hegemônicas, como, por exemplo, da mulher surda negra, porém não de forma aprofundada. Apesar de abordar a escolarização colocando em debate a ausência das questões de gênero e da própria surdez no currículo de estudantes com surdez, não há menção de outras questões que também poderiam ser abordadas já que estão presentes nas identidades surdas, como raça, imigração e etnia, tendo em vista que uma das participantes do estudo era imigrante. A hierarquização das identidades surdas é apresentada no texto, mas há pouco aprofundamento nessa temática. Além disso, o estudo mostra que as condições de vida das mulheres surdas não são todas iguais, mas não há uma contextualização dessa parte teórica com a vida das participantes – o que seria muito enriquecedor para o trabalho, visto que as três possuem histórias de vida e características diferentes.

A tese de Ribeiro (2011) focaliza o gênero nas questões envolvendo a sexualidade. Foram realizadas observações, entrevistas e discussões com dez alunas surdas de 12 a 17 anos, estudantes de uma escola municipal de educação especial de São Paulo. Também foram entrevistadas seis professoras, três agentes escolares e uma inspetora de alunos. O aprofundamento teórico versou sobre a cultura, a comunidade e a identidade surda e foi realizada a intersecção entre gênero, sexualidade e juventude. Tendo em vista que todos esses temas perpassam a temática raça e marcadores sociais de opressão como homofobia, por exemplo, e que a maioria das participantes surdas eram não brancas, no estudo esses assuntos deveriam ser mais abordados durante as discussões, mas isso pouco ocorreu, aparecendo apenas como uma breve menção ao discorrer que a identidade surda não é polarizada, mas sim múltipla.

O trabalho de Gediel, Dias e Paula (2017) consiste em um estudo etnográfico sobre a saúde de um grupo de mulheres com surdez e leva em consideração o uso de Tecnologias de Informação e Comunicação, sendo esse um instrumento de busca para a compreensão da saúde da mulher com surdez. Assim, foi demonstrado como o uso dessas tecnologias é um bom meio de acesso para esse conhecimento, visto que nem sempre chegam às mulheres com surdez essas informações. Participou do estudo um grupo de mulheres surdas que não estavam cadastradas em qualquer programa do sistema local de saúde de uma cidade da Zona da Mata Mineira e todas as participantes utilizavam a língua de sinais para a comunicação. Apesar de o estudo envolver questões relacionadas ao gênero, pouco falou-se sobre as situações de discriminação vivenciadas por mulheres surdas devido à somatória de surdez e gênero e outros recortes dentro desse contexto não foram tratados, como as questões envolvendo a raça, tendo em vista que esse fator pode influenciar na obtenção de informações. É válido ressaltar que todas as participantes do estudo se autodeclararam brancas.

Costa et al. (2018) identificaram que mulheres surdas estão em condição desigual em relação às mulheres ouvintes no âmbito da saúde envolvendo a gestação, o parto e o puerpério, pois há despreparo dos profissionais quanto ao uso da língua de sinais; ausência de intérpretes nesses serviços e uso de máscaras pelos profissionais, o que dificulta a leitura labial por parte de quem a faz. Foram participantes nove mulheres com surdez, com idades entre 27 e 43 anos, cadastradas na Associação de Deficientes de Montes Claros, residentes na mesma cidade, que apresentaram histórico de gestação e que sabiam se comunicar através da língua de sinais. As participantes foram caracterizadas no estudo, porém não houve menção quanto à raça/etnia delas, assim como não foi realizada a conexão entre gênero e outros fatores. É válido ressaltar que o estudo apresentou algumas expressões equivocadas, como “linguagem de sinais” ao se referir à Libras e “deficiente mental” ao se referir às pessoas com deficiência intelectual.

Santos (2019) criou um vocabulário sistêmico de sinais-termo dos conceitos das leis que tratam da violência contra a mulher. Foram estudados os termos em língua portuguesa e em Libras tendo como público-alvo meninas e mulheres surdas brasileiras vítimas de violência. As leis que versam sobre a violência contra a mulher utilizadas foram a Lei Maria da Penha, nº 11.340/2006; a Lei do Feminicídio, nº 13.104/2015 e a Lei da Violência Obstétrica, nº 6.144/2018. A dissertação apresentou seções sobre violência contra mulheres ouvintes e surdas; no entanto, não forneceu informações a respeito das múltiplas identidades que essas mulheres podem ter e dos diferentes tipos de violência que podem sofrer por causa dessas múltiplas identidades.

Eixo 2: Resultados

A busca feita no portal de periódicos da Capes resultou em 74 publicações, sendo que 55 foram excluídas após a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave, pois não atendiam aos critérios de inclusão. Após a primeira exclusão, restaram 19 obras, e dessas foram excluídas 18 por se repetirem. Assim, nessa busca, apenas uma publicação foi selecionada para a leitura na íntegra e análise. Já a busca realizada na BDTD resultou em oito trabalhos, sendo que três foram excluídos após a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave por não se enquadrarem nos critérios de inclusão. Após a primeira exclusão, restaram cinco trabalhos, dos quais três foram descartados por serem duplicações. Portanto, restaram apenas dois trabalhos para serem lidos na íntegra e selecionados para análise. Dessa forma, as buscas feitas para a composição do segundo eixo resultaram em três publicações. A Figura 2 apresenta esses resultados com base na somatória das buscas em ambos os portais. O Quadro 2 apresenta as categorias às quais pertencem as publicações, os autores, título, ano de publicação, instituição e objetivos de cada estudo analisado.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).

Notas: BDTD: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações; CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Figura 2 Fluxograma do processo de seleção das publicações do Eixo 2. 

Quadro 2 Caracterização dos estudos selecionados para o Eixo 2 da pesquisa. 

Categoria Autores Título Ano de publicação Instituição Objetivos
Dissertação Francisco José Roma Buzar Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos (as) negros (as) em São Luíz/MA 2012 Universidade de Brasília Compreender as circunstâncias concretas da experiência de intersecção vivenciada por surdos(as) negros(as) em São Luís/MA
Dissertação Sandra Cristina Malzinoti Vedoato Relações entre surdez, raça e gênero no processo de escolarização de alunos surdos do Paraná 2015 Universidade Estadual de Londrina Analisar as relações entre surdez e as condições de raça e gênero no processo de escolarização de alunos surdos no Estado do Paraná.
Artigo Viviane Marques de Miranda Surdez e racialidade: identidades em diálogo no espaço escolar? 2017 Universidade Nove de Julho Relacionar surdez e racialidade na perspectiva dos Estudos Culturais a partir da categoria interseccionalidade e do aporte legal da Lei nº 10.436/02, do Decreto nº 5.626/05 e da Lei nº 10.639/03 e questionar uma possível hierarquização de opressão e uma suposta homogeneização das identidades no interior da surdez

Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).

Das pesquisas analisadas, a mais antiga foi publicada em 2012, seguida por uma publicada em 2015 e o estudo mais recente é datado de 2017. Todos apresentam como enfoque educacional surdez, gênero e raça.

Quanto às abordagens, a mais utilizada foi a qualitativa, porém um estudo não especificou qual abordagem empregada. Também foi observada a utilização de diferentes instrumentos e/ou técnicas de pesquisa para a coleta de dados; um estudo fez uso de entrevista semiestruturada (Buzar, 2012), outro fez a análise de dados estatísticos (Vedoato, 2015) e outro trabalho realizou uma análise bibliográfica para a obtenção de seus dados (Miranda, 2017).

O estudo de Buzar (2012) que avaliou a interseccionalidade entre surdez e raça identificou que as pessoas surdas negras estão em situação de vulnerabilidades específicas, como inacessibilidade linguística, trabalhista e socioemocional, devido à sua invisibilidade nas comunidades surdas e negras e nas políticas públicas, sofrendo discriminação interseccional tanto na escola quanto no contexto social. Participaram da pesquisa 30 pessoas com surdez e autodeclaradas negras, morenas e brancas, dentre as quais 12 eram mulheres. Apesar de tratar da interseccionalidade, o trabalho deixa para segundo plano as questões envolvendo o gênero dentro do campo da surdez e da raça, falando brevemente a esse respeito. Também não traz reflexões mais profundas a respeito das mulheres negras com surdez, tendo em vista que elas vivenciam a surdez de maneira diferente dos homens negros surdos, e tampouco aborda todas as falas dos participantes, identificando-os como homens ou mulheres, negros ou não. Portanto, dentro das questões focalizadas no estudo, a acessibilidade linguística e social e o campo educacional e trabalhista, não há a identificação das situações vivenciadas por mulheres surdas negras.

Vedoato (2015) analisou as relações entre surdez e as condições de raça e gênero no processo de escolarização de alunos surdos no Estado do Paraná. Essas marcas sociais foram analisadas no que se refere ao acesso à educação básica, ao tipo de escolarização, às etapas de ensino e ao acesso ao atendimento educacional especializado. Foi identificado que as condições de acesso e de permanência do aluno surdo na educação básica paranaense sofrem influências da condição da surdez, da raça e do gênero. A autora apresenta uma contextualização sobre as desigualdades vivenciadas pelas identidades surdas, de gênero e de raça separadamente e, ao final, relaciona-as, demonstrando que dentro desses fatores a aluna surda e negra está em condição mais vulnerável.

O estudo de Miranda (2017) revelou que a sobreposição da surdez a outras marcas sociais produz diferentes desigualdades, afetando de forma desproporcional as pessoas surdas. Ressalta-se na pesquisa que a educação bilíngue deve superar a tradução do currículo regular ouvinte, possibilitando os recortes interseccionais. A autora fornece informações significativas e consideráveis sobre as condições vividas pelas inúmeras identidades surdas, focalizando a identidade surda, feminina e negra e demonstrando que as propostas de ensino para a educação de surdos não se devem limitar à aceitação da língua de sinais, mas também dimensionar a promoção da igualdade racial e de gênero, o que pouco ocorre.

Comparação entre os resultados obtidos nos dois eixos

Percebeu-se que os estudos que focalizaram surdez e gênero (Eixo 1) abordaram de forma bastante superficial outros marcadores sociais, como a raça, em destaque neste artigo. As conexões entre surdez, gênero e raça são breves nesses estudos, mas essa intersecção ainda foi mais mencionada do que outras, como surdez, gênero e homossexualidade; surdez, gênero e classe social ou surdez, gênero e idade, a título de exemplo. Isto é, nesses estudos não houve o aprofundamento das temáticas envolvendo as inúmeras identidades surdas, não houve alusão a mulheres surdas lésbicas, a mulheres surdas analfabetas, a mulheres surdas transexuais ou a mulheres surdas de inúmeras etnias e, quando ocorreu menção às mulheres surdas negras, a conexão entre raça e outros marcadores sociais de desigualdade foi inexistente.

Mesmo nos estudos com abertura para tratar dessas outras identidades, isso não aconteceu – como o de Sousa (2011), que poderia ter abordado a etnia de uma das participantes, que era imigrante angolana, o que poderia ser um fator para que ela sofresse opressão por viver em um país de cultura predominantemente branca e europeia, ou também o estudo de Ribeiro (2011), no qual a maioria das participantes eram negras ou pardas e as informações que englobavam surdez, gênero e raça foram escassas. Na maioria das pesquisas encontradas (em quatro de seis), ocorreram comentários e citações sobre a hierarquização das identidades surdas; no entanto, todos os trabalhos desse eixo acabaram por fazer essa sobreposição.

Nos estudos encontrados no Eixo 1, a intersecção do gênero com outros marcadores sociais é mínima. Ainda que o objetivo desses estudos não fosse fazê-la, a intersecção deveria ser citada, pois é necessário dar-lhe sua devida importância. O entrelaçamento desses marcadores define as experiências de gênero de cada mulher, em relação à mulher surda. É preciso compreender que o gênero é uma categoria específica de identidade política; não se deve compreendê-lo como um determinante que age de forma independente, mas sim como sendo construído por marcadores sociais e também contribuindo simultânea e mutuamente com eles (Sardenberg, 2015).

Em relação aos estudos encontrados no Eixo 2, há informações mais profundas e mais completas, seja em relação ao gênero e à surdez somente ou em relação ao gênero e à raça na surdez. Também são apresentados mais elementos sobre as demais identidades surdas femininas. Ainda que o foco central dos estudos tenha sido mulheres surdas negras, não deixaram de mencionar de maneira expressiva as demais identidades, como as mulheres surdas pardas, as homossexuais, as pertencentes a uma classe econômica mais baixa e as não sinalizantes, por exemplo, demonstrando que ocorre o silenciamento dessas identidades em detrimento da identidade surda feminina branca, heterossexual e de classe social elevada.

Foi identificado que os estudos do Eixo 2, diferentemente dos do Eixo 1, demonstraram de forma mais clara e com mais empenho que os marcadores sociais de opressão não se sobrepõem ou se somam, mas se conectam, se entrelaçam e se imbricam; ou seja, que se interseccionam uns com os outros; que não há como dissociá-los e que a cada combinação, há uma forma diferente de opressão sofrida pela mulher surda.

Outra discrepância encontrada entre os estudos de ambos os eixos é que os do Eixo 1 abordam as desigualdades sociais vivenciadas pelas mulheres surdas em mais instâncias, tratando do mercado de trabalho, transporte, lazer e principalmente da saúde; já os estudos do Eixo 2 apresentam com mais frequência e aprofundamento a educação. É necessário e de grande importância integrar as perspectivas de gênero e de raça, mas não somente esses marcadores, em todos os âmbitos sociais e em todas as discussões envolvendo a surdez, para intensificar a inclusão de todas as pessoas surdas, principalmente as mulheres. De acordo com Crenshaw (2002), os caminhos percorridos nas lutas contra as desigualdades de gênero e raça têm se juntado às ações no campo dos direitos humanos para a conquista de igualdade racial e de gênero, e uma estratégia extremamente importante para essa conquista é a abordagem interseccional desses marcadores sociais.

Esses resultados demonstram que a interseccionalidade ainda é pouco abordada nos estudos envolvendo a comunidade surda e essa lacuna precisa ser preenchida, tendo em vista que seu conceito contribui para integrar as inúmeras identidades surdas no sentido de reduzir e anular as desigualdades e a hierarquização dos grupos. Demonstram também que a abordagem interseccional evidencia que as mulheres surdas não são todas iguais e que elas possuem experiências de vida diferentes, mostrando que é necessário que o feminismo reconheça as especificidades das mulheres surdas, que a comunidade surda também reconheça a especificidade de ser uma mulher com surdez, que os movimentos negros identifiquem as necessidades da mulher surda e negra e que os movimentos LGBTQIA+ também reconheçam as precisões das mulheres surdas lésbicas. Enfim, é necessário que todas essas identidades e as demais que não foram citadas, mas não esquecidas, sejam reconhecidas.

Essa comparação entre os estudos de ambos os eixos permitiu identificar como a interseccionalidade, enquanto conceito analítico, contribui com a interrupção de uma interpretação política e social unilateral, visto que os estudos interseccionais analisam, exploram e observam teorias a partir de um enfoque que engloba outras categorias para além da categoria isolada gênero.

Considerações Finais

Com relação ao objetivo desta revisão, foi possível comparar o que tem sido produzido academicamente quanto à intersecção entre surdez, gênero e raça, quando as publicações analisadas mencionam os três marcadores sociais conjuntamente e quando mencionam apenas os dois primeiros. O tema mais frequente tratado no Eixo 1 foi a discriminação da mulher surda em geral, sem relacionar o gênero a outro marcador social, e o do Eixo 2 foi a discriminação envolvendo a surdez, gênero e raça, principalmente no ambiente educacional.

Com o objetivo estabelecido, foi possível identificar que os marcadores sociais, sejam eles quais forem, mas em especial para este artigo a surdez, gênero e raça, não são de ordem autônoma e não agem por si só, demonstrando a importância de se pensar, estruturar e utilizar instrumentos conceituais que buscam analisar como as estruturas de opressão e também de privilégio se entrelaçam e como exercem influências na vida e na construção das identidades das mulheres, em especial da mulher surda.

Ficou notório o quanto os estudos do Eixo 2 discorrem mais sobre as inúmeras identidades surdas e como demonstram o quão importante é tratar das discriminações envolvendo a surdez, o gênero e a raça na área da educação, tanto em relação ao acesso ao currículo, em atender as especificidades desses alunos, quanto à formação profissional, seja de professores ou de intérpretes de Libras, para responder as questões abarcando o gênero e a raça, sendo necessário que a escola realize os devidos recortes interseccionais.

A utilização da interseccionalidade no presente artigo foi imprescindível para solidificar como a categoria gênero intersecciona com outros marcadores sociais e como age em determinados contextos, contribuindo com a produção de privilégios e opressões na vivência de cada mulher quanto à identidade através da qual ela se reconhece.

Portanto, sugere-se que os estudos envolvendo surdez e gênero abordem mais e de maneira mais significativa as diferentes identidades surdas, mesmo que não tenham a intersecção como seu objetivo principal; que a abordem devido à sua grande importância quanto elemento analítico e que exerce interferência nas experiências de vida de cada mulher surda, pensando que as identidades coletivas não podem ser reduzidas a experiências individuais. Recomenda-se também que os estudos abordem o papel das inúmeras identidades surdas dentro da sociedade, onde elas estão ausentes, e por que ainda são esquecidas dentro de alguns movimentos sociais.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Apoio/Support: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Processo nº 88887.495953/2020-00).

Como citar este artigo/How to cite this article

Custódio, G. C. C.; Nunes, C. M. F.; Paixão, J. A. Atuação de professores de Educação Física em escolas prisionais: problematizando a formação inicial e continuada. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e215287, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a5287

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Recebido: 30 de Janeiro de 2021; Revisado: 26 de Julho de 2021; Aceito: 12 de Agosto de 2021

Correspondência para/Correspondence to: F.E. DENARI. E-mail: fadenari@terra.com.br

Colaboradores

Ambas as autoras contribuíram na concepção e desenho, análise e interpretação dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo.

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