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Revista de Educação PUC-Campinas

Print version ISSN 1519-3993On-line version ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4922 

Artigos

A leitura na Educação de Jovens e Adultos: uma experiência pedagógica para a formação de leitores mediada com revistas1

Reading at Education of Young and Adults: a pedagogical experience for the development of readers mediated through journals

Rosely de Oliveira Macário2 
http://orcid.org/0000-0002-3810-5241

Linduarte Pereira Rodrigues3 
http://orcid.org/0000-0002-9748-179X

2Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Educação, Departamento de Educação. Campina Grande, PB, Brasil.

3Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores. R. Baraúnas, 351, Bairro Universitário, 58429-500, Campina Grande, PB, Brasil.


Resumo

Este estudo busca evidenciar práticas de letramento escolar mediadas pela leitura de revistas de circulação nacional em uma instituição pública do interior do estado da Paraíba, tendo em vista a imersão dos alunos em uma cultura marcadamente letrada e a inclusão de práticas pedagógicas adequadas ao ensino da leitura para jovens, adultos e idosos (1º ao 5º ano) com histórico de reprovação e de abandono escolar. A pesquisa possui abordagem qualitativa e se caracteriza como uma pesquisa-ação, centrada na descrição e na análise das práticas de letramento em um espaço escolar que reúne discentes na faixa etária entre 15 e 65 anos, fundamentando-se nas teorias sociointeracionista e discursiva. Os resultados contribuem para as reflexões sobre os saberes necessários à formação docente, com vistas à organização de situação didática em torno de textos constituídos de uma representação de sentidos para a vida do alunado.

Palavras-chave Formação do professor; Práticas de letramento; Prática pedagógica

Abstract

This study seeks to highlight school literacy practices mediated by the reading of national journals in a public institution in the interior of the state of Paraíba, with a view to immersing students in a markedly literate culture, and considering the inclusion of appropriate pedagogical practices for teaching reading to young people, adults and the elderly (1st to 5th school year) who had a history of school failures and dropping out. The investigation has a qualitative approach and is characterized as an action research, centered on the description and review of literacy practices in a school space that brings together students in the age group between 15 and 65 years; and it is based on socio-interactionist and discursive theories. The results contribute to the reflections on the knowledge necessary for teachers’ education with a view to organizing the didactic situation around texts constituted by a representation of meanings for the student’s life.

Keywords Teacher training; Literacy practices; Pedagogical practice

Introdução

As discussões levantadas neste estudo são oriundas de uma pesquisa realizada na Educação Básica, mais especificamente, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), como fruto das reflexões fomentadas na Pós-Graduação (Macário, 2014; Macário; Rodrigues, 2018). O objetivo consiste em evidenciar práticas de letramento escolar registradas pela leitura cotidiana de revistas de circulação nacional em uma instituição pública do interior do estado da Paraíba, tendo em vista a imersão dos alunos em uma cultura marcadamente letrada. Para tanto, direciona-se às questões vinculadas ao ensino-aprendizagem de leitura dos participantes da pesquisa: pessoas jovens, adultas e idosas, com uma faixa etária de 15 a 65 anos, inclusas em uma turma de Ensino Fundamental das séries iniciais (1º ao 5º ano) dessa etapa educativa.

Desse modo, este trabalho apresenta relatos de uma experiência de ensino mediada pela leitura de revistas, como fruto do procedimento metodológico adotado pela escuta sensível (Barbier, 2002) em correlação ao princípio da dialogicidade (Freire, 1994). Trata-se do resultado das inquietações da professora pesquisadora em buscar a organização de uma ação de mediação pedagógica que se mostrasse relevante e significativa no cenário da escolarização inicial, composto por uma variação geracional de educandos jovens, adultos e idosos, considerando a complexidade dessa etapa educativa. A complexidade aumenta quando, no interior da escola, há o fechamento de turmas e o professor com atuação no ensino noturno tem que lidar, também, com a presença de estudantes matriculados em séries iniciais do turno diurno, restando-lhe a difícil tarefa de adequar as suas ações escolares às expectativas pessoais desses discentes em situação de diversidade.

Essa tensão deriva da existência de turmas compostas por casos particulares de estudantes que acorrem à escola para estudar e passam a frequentar uma turma de escolarização inicial, o que acaba envolvendo alunos com ritmos distintos de aprendizagem. Em outras palavras, alunos que já leem e alunos que ainda não são alfabetizados, não sabem ler. Outro agravante da tensão vivenciada na EJA tem relação com o livro didático, organizado na versão interdisciplinar e em volume único, com ênfase nos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, História, Ciências e Artes. O fato é que os alunos inclusos nessa modalidade enfrentam dificuldades no acompanhamento desse material, como é o caso dos estudantes envolvidos na pesquisa, os quais se encontravam em processo de alfabetização e ainda não apresentavam o aprendizado da leitura.

Nessa perspectiva, buscou-se entender o fenômeno analisado em estudos de pesquisadores da Linguística Aplicada que valorizam práticas de letramento no contexto escolar, como Orlandi (1988), Bronckart (1999, 2008), Kleiman (2001), Rojo (2009, 2010), Geraldi (2011, 2013), entre outros, os quais auxiliaram nessa ação dialógica, pontuando aspectos significativos para o estudo da leitura.

Em linhas gerais, esse panorama motivou a análise da tensão existente em uma demanda escolar que abrange distintas faixas etárias no processo de formação de leitores. Assim, para compreender as discussões acerca da temática da leitura, buscou-se nortear as reflexões em torno da seguinte indagação: Como conduzir as ações escolares na EJA na perspectiva do letramento? Para tanto, adotou-se como campo de pesquisa uma sala de aula das séries iniciais da EJA, pertencente a uma escola pública municipal do Estado da Paraíba.

Durante a pesquisa, através de ações desenvolvidas na sala de aula, os estudantes iam relatando, gradativamente, suas experiências de leitura fora do ambiente escolar. Muitos desses relatos foram marcados por uma narrativa de histórias de insucesso escolar, construída por passagens breves ou não pela escola básica. Os entrevistados já foram inclusos em turmas de 1º ao 5º ano, procurando a escola com o intuito de aprender a utilizar a leitura e a escrita na sua vida cotidiana. Neste artigo, foram priorizadas as discussões centradas no ensino da língua materna com ênfase no aprendizado da leitura na perspectiva da formação leitora.

O ensino de leitura no contexto escolar da EJA: desafios e possibilidades

A questão colocada neste estudo está relacionada à necessidade de se pensar a prática pedagógica a partir de textos que permitam a aproximação dos alunos ao mundo da leitura e que circulem tanto no interior como no exterior dos espaços escolares, buscando a valorização da leitura pelos sujeitos leitores, na perspectiva do letramento e em uma concepção ideológica.

Parte-se do pressuposto de que as ações escolares para o desenvolvimento da leitura na EJA são, muitas vezes, prejudicadas pelo fato de que o acervo literário disponível na escola se volta para as séries iniciais (1º ao 5º ano), centrando-se no público infantojuvenil. Obviamente, essa situação impõe ao professor com atuação na EJA a necessidade de fazer uso de outras ferramentas para trabalhar a língua materna, sem necessariamente excluir o aluno do sistema de ensino. Sendo assim, atribui-se ao professor a função de resolver os problemas dos múltiplos estudantes em situação de diversidade, que revelam ritmos diferenciados na aprendizagem da leitura/escrita de gêneros textuais.

Com o objetivo de caracterizar essa demanda escolar, por meio de relatos de alunos considerados como atores sociais nesta pesquisa, com marcas da exclusão social, constata-se que os sujeitos sociais são homens, mulheres, jovens, adultos, idosos e, atualmente, adolescentes que não conseguem aprender no Ensino Fundamental regular diurno e que, inseridos no mercado de trabalho, buscam essa modalidade de ensino sob os moldes de supletivo.

Considerando o aspecto da diversidade em turmas de EJA e os diversos momentos vivenciados no ambiente escolar, os quais ocuparam a atividade docente da pesquisadora ao longo de cada ano letivo estabelecido pelo calendário oficial da rede pública municipal de Campina Grande (PB), convém ressaltar as dificuldades encontradas na organização das atividades destinadas ao ensino da leitura, ao lidar com a questão direcionada ao planejamento de atividades aplicadas ao ensino nessa prática educativa. No momento reservado para a execução do planejamento pedagógico, e por ocasião da seleção dos textos para a aprendizagem da leitura, a professora pesquisadora sempre apresentava dificuldades, pois partia do princípio de que não se poderia tratar de qualquer tipo de texto, mas sim de uma produção que estabelecesse sentidos para os sujeitos sociais heterogêneos inclusos no contexto escolar.

Dentre os pontos observados na docência em EJA, constatou-se a presença de alunos com casos de frequência irregular, de evasão, de desistência e, ainda, de histórias de discentes impossibilitados do acesso à educação formal, tanto nos espaços urbanos como rurais. Alfabetizá-los e, concomitantemente, ajudá-los a fazer uso da leitura em uma dimensão social, nas práticas de culturas letradas, é complexo. Entender os educandos, compreendendo, em suas singularidades, a apropriação da leitura aliada aos princípios da formação de leitores, tornou-se um desafio para a formação docente nessa modalidade. Esse desafio pode se expressar nos seguintes questionamentos: Quais estratégias poderiam ser usadas para atender em um mesmo espaço e ao mesmo tempo diferentes níveis de conhecimento e ritmos de aprendizagem? Como lidar com os aspectos da diversidade na sala de aula de língua materna? Por onde começar? Que conhecimento acadêmico-científico se torna necessário para a formação acadêmica com atuação docente voltada a uma demanda de pessoas jovens, adultas e idosas na escola pública?

Conforme observam Macário e Senna (2018), essa complexidade em lidar com os diferentes sujeitos sociais na escola pública é observada a partir do momento em que os alunos pobres, oriundos das classes populares do país, passam a ter acesso à educação escolar. Nessa conjuntura, constata-se uma longa trajetória em torno de políticas públicas e de programas, nas esferas nacional e regional, que tentam erradicar a exclusão escolar e assegurar o direito universal de acesso à escola e à cultura letrada.

Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, atestam que, no Brasil, ainda se observa um quadro de desigualdade social e de exclusão (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Em 2018, a taxa de analfabetismo atingia 6,8%, o que significa dizer que 11,3 milhões de pessoas, com 15 anos ou mais de idade, eram analfabetas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Na prática escolar da EJA, vê-se um exemplo concreto de sujeitos sociais em situação de exclusão do direito de frequentar a escola. Tudo isso se reflete no papel da escola, do professor e da sociedade como um todo, que devem viabilizar a alfabetização de jovens, adultos e idosos.

Ao discutir o desafio posto ao professor para incluir o aluno da EJA, sem necessariamente excluí-lo do sistema escolar, é preciso também atentar para a qualidade da formação do professor dessa etapa de ensino, considerando, inclusive, a realidade atual das salas de aula, que apresentam variações etária, geracional e cultural, de grupos sociais entre os 15 e 65 anos. Desse modo, a formação do professor deve se dar à luz de um embasamento teórico que possa contribuir para o desenvolvimento do sujeito leitor no espaço da escola.

Assim sendo, ao trilhar os caminhos da formação docente no campo da Linguística Aplicada, sinaliza-se o que assevera Moita Lopes (2013) quanto à importância da pesquisa no processo de formação de professores, sobretudo, de língua materna. Para o autor, a atividade de pesquisa é tida como uma oportunidade de se averiguar as condições em que o conhecimento vem sendo estabelecido nas atividades laborais, bem como os efeitos impactantes dessas condições em relação ao processo de ensino-aprendizagem daqueles alunos inclusos na escola. Busca-se, portanto, responder a questão formulada para essa investigação a partir das contribuições da Linguística Aplicada Indisciplinar (Moita Lopes, 2013, p. 96). Nas palavras do autor:

Se quisermos saber sobre linguagem e vida social nos dias de hoje, é preciso sair do campo da linguagem propriamente dito: ler sociologia, geografia, história, antropologia, psicologia cultural e social etc. A chamada ‘virada discursiva’ tem possibilitado a pesquisadores de vários outros campos estudar a linguagem com intravisões muito reveladoras para nós. Parece essencial que a LA se aproxime de áreas que focalizam o social, o político e a história. Essa é, aliás, uma condição para que a LA possa falar à vida contemporânea.

Ao se investigar a realidade da prática educativa de leitura na EJA, como já destacado em Macário (2014), além de contribuições da própria área da educação, procuram-se respaldos em estudos ligados às Ciências Sociais e Humanas, a fim de entender a relação da leitura na vida dos sujeitos investigados (Rodrigues, 2016, 2017). Assim, faz-se necessário compreender como a negação de um direito à educação reflete na vida cotidiana dos sujeitos sociais da EJA. A escola, especificamente o professor, necessita ter clareza sobre essa realidade, de modo a procurar ações escolares destinadas à inserção social do aluno. Em conformidade com Kleiman (2001), percebe-se uma cultura escolar instaurada na escola, em relação à leitura, a partir das memórias de sala de aula, fomentadas com o instrumento de ensino da leitura em um tempo cujo ato de ler restringia-se unicamente ao conteúdo do livro didático. Nesse contexto, é comum ouvir do professor a expressão “dar a lição”, numa perspectiva de mera decodificação do signo linguístico.

Partindo, então, do pressuposto acima citado, considera-se que a prática de leitura nos anos iniciais do Ensino Fundamental constitui umas das atribuições fundamentais da Educação Básica, configurando-se como indispensável para que o aluno, enquanto cidadão, possa usufruir do aprendizado linguístico nas diferentes situações de culturas letradas. A prática escolar destinada ao estudo da leitura compõe um aspecto a ser levado em consideração durante a alfabetização dos estudantes jovens, adultos e idosos. Assim, a aprendizagem da leitura/escrita por parte dos alunos oriundos das classes populares pode ser entendida como forma de inclusão social na sociedade de cultura letrada, conforme advoga Mortatti (2004).

Em meio às discussões relativas ao domínio do código linguístico, e pensando nos inúmeros desafios da atualidade em termos de acesso, de permanência e de continuidade do aluno da EJA na escola, Rodrigues e Macário (2014) assinalam que cabe ao docente repensar o processo de mediação pedagógica quanto à sistematização de atividades desafiadoras e significativas que incentivem a permanência dos educandos na escola. Outro desafio colocado para a atividade laboral do professor é relacionado às ações educativas direcionadas às necessidades reais dos sujeitos da EJA, marcados pela desigualdade social e excluídos do direito constitucional à educação no cenário histórico brasileiro.

Diante do exposto, ao refletir acerca do ensino de leitura na Educação Básica no segmento de ensino supracitado, não se pode desconsiderar as ideias basilares que permeiam o ensino da Língua Portuguesa. Destaca-se a linguagem como forma de interação, a qual é equiparada por Geraldi (2013, p. 91) a “um jogo que se joga na sociedade, na interlocução [...]”. Outro aspecto que também merece destaque diz respeito ao uso de diferentes gêneros textuais no ensino da leitura e da escrita, o que é defendido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa ao considerarem que é papel da “escola viabilizar o acesso do aluno ao universo de textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los” (Brasil, 1997, p. 30). Sendo assim, de acordo com o que afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (Brasil, 1997), e a partir de Macário e Rodrigues (2018), pode-se dizer que a leitura é uma das competências/habilidades mais valiosas para se trabalhar com os alunos.

A discussão em torno das práticas de leitura remete às contribuições de Bakhtin (1992), as quais apontam para uma concepção de leitura mais ampla. Nesta, texto e discurso dialogam na produção de sentidos, considerando os aspectos linguísticos e extralinguísticos do texto enquanto evento discursivo, o qual se apresenta em meio às múltiplas atividades do uso da linguagem, fomentadas em diferentes lugares como fruto das relações interpessoais, dotadas de distintas intencionalidades e materializadas mediante gêneros textuais/discursivos (Bakhtin, 1992).

Nessa direção, no que se refere aos discursos primários e secundários, Bronckart (2008, p. 78) elucida que:

Parece-nos legítimo distinguir os discursos que são manifestação de um agir linguageiro cuja estrutura é (relativamente) autônoma e aqueles cuja estrutura indica uma dependência, ou em relação à complexidade da situação de interação verbal ou em relação às situações do agir geral, e, principalmente, às situações de trabalho (discursos situados).

Acerca do agir linguageiro, considerando a leitura da diversidade de textos na vida cotidiana, Orlandi (1988), em suas investigações enveredadas pelas teorias linguísticas, particularmente pela linha da Análise do Discurso, chama a atenção para o modo como a leitura se apresenta no cotidiano das pessoas e sob quais condições isso ocorre. Segundo a autora, a leitura abarca as múltiplas possibilidades e atribuições sociais, assumindo seu papel de informar e, também, de entreter (Orlandi, 1988). Isso reforça o fato de que a leitura não deve ser pensada restritamente na esfera escolar, uma vez que o aluno é um leitor de múltiplos tipos de textos, orais e escritos, ainda que possa apresentar severas dificuldades de aprendizagem.

Diante desse contexto, cabe ressaltar que, embora o alunado apresente dificuldades nas aulas de língua materna, compreende-se que a linguagem se constitui como instrumento das múltiplas ações da natureza humana e que, segundo Bronckart (1999), existem duas modalidades de abordagem e de funcionamento da linguagem. A primeira aponta para as abordagens centradas na unicidade da língua, considerada como sistema que possibilita a intercompreensão. A segunda, por sua vez, refere-se a outras abordagens focalizadas na diversidade dos textos e nas relações que estes mantêm com seu contexto de produção. Bronckart (1999, p. 84) reforça que “[...] a história das idéias linguísticas, está marcada pelo postulado da primazia de uma dimensão sobre a outra: o sistema da língua seria primeiro e os textos constituiriam apenas uma forma, secundária, de colocar em funcionamento esse mesmo sistema”.

Daí a necessidade de se pensar sobre práticas de linguagens, considerando que o ato da leitura só surge como atividade interessante/relevante para os alunos a partir do momento em que a experiência leitora passa a dialogar com os conhecimentos já existentes, ou seja, a partir da leitura de textos em que o sujeito leitor atribua sentidos para a sua vida.

Procedimentos Metodológicos4

Para situar a ação metodológica, apoia-se em André (2008), para quem o pesquisador necessita ter precisão em relação aos modos do fazer científico, sem que aspectos subjetivos prejudiquem a análise dos dados coletados no campo de investigação, buscando estudá-los com atenção ao distanciamento. Assim sendo, para a autora, essa exigência do afastamento objetiva preservar o rigor exigido pelo conhecimento científico. Nessa direção, ela sinaliza para o papel da teoria na pesquisa direcionada aos estudos etnográficos do campo da educação, bem como adverte que as linhas de trabalho devem atestar o conhecimento verídico e correspondente à prática escolar investigada, pontuando novas dimensões (André, 2008).

Dada a relevância dos instrumentos da etnografia apropriados à educação, acredita-se que a observação participante possibilita ao pesquisador interagir com a situação analisada e fazer uso de instrumentos como entrevistas, cujo foco vislumbra adentrar em questões e elucidar os entraves observados, assim como os documentos utilizados nessa investigação, os quais subsidiam a contextualização do fenômeno observado, permitindo completar as informações coletadas por outras fontes.

Os sujeitos participantes da pesquisa foram 29 alunos, regularmente matriculados no horário noturno, que se encontravam no interior escolar cotidianamente, com exceção dos trabalhadores que exerciam cargos em empresas de segurança pública e estavam, portanto, impossibilitados de frequentar o ensino regular. Além desses casos explicitados, foi possível constatar a presença diária na sala de aula de pessoas que trabalhavam na prestação de serviços, a citar: motorista, pintor, manicure, vendedores ambulantes e auxiliar de servente. Percebeu-se, ainda, uma variação etária e geracional, oscilando entre 15 e 65 anos, distribuídos em uma demanda social composta de jovens, adultos e idosos5.

Esta pesquisa, portanto, remete ao desafio posto à educação escolar nos moldes da interculturalidade, tendo em vista que, conforme Candau (2008), trata-se de sujeitos que estão inseridos em grupos sociais culturais plurais. Acredita-se que o ensino deve buscar o diálogo com os diferentes sujeitos sociais que frequentam a escola básica, com vistas ao exercício da cidadania e de uma sociedade constituída de pessoas capazes de dialogar com as diferentes culturas (Candau, 2008).

Nessa direção, recorre-se às contribuições de Rodrigues e Macário (2014, p. 76), que instigam o avanço no aprendizado da leitura, considerando a distribuição do alunado em níveis distintos de aprendizagem, bem como a diversidade etária dos participantes da pesquisa:

[…] Em razão do descompasso existente entre os alunos com faixa etária distintas, em relação ao perfil da EJA, optamos por investigar quais atividades contribuíam para o aluno avançar (ou não) no processo de aquisição da prática de leitura. Buscamos o diálogo entre os sujeitos da pesquisa, para posteriormente, em outros eventos de letramento sistematizados no decorrer da pesquisa, refletir o grau de satisfação por esses alunos, quanto às atividades realizadas em cada aula pela professora pesquisadora.

Nessa direção, com base na escuta sensível (Barbier, 2002) e mediante roda de conversa, procurou-se ouvir as vozes dos estudantes da EJA, conhecer suas histórias de vida e suas expectativas quanto à necessidade da leitura em sua realidade social, além de buscar a sistematização de encaminhamentos metodológicos para facilitar o acesso à leitura. Esse procedimento permitiu compreender suas justificativas e iniciativas na busca da escolarização, cujo propósito fundamental estava no desejo unânime de melhorar suas condições de vida.

Cumpre ressaltar que as ações didáticas envolvendo a leitura de revistas assumem um papel relevante no cenário da EJA. Atestou-se que os processos educacionais viabilizados nesse contexto escolar buscam trazer à sala de aula um acervo de revistas para, além de alfabetizar os estudantes, promover atividades diversas que ultrapassam a mera prática de recorte e colagem. O uso desse material em turmas de escolarização inicial de Ensino Fundamental encontra-se focado na promoção de eventos de letramento para incentivar a leitura interativa, numa perspectiva sociodiscursiva de linguagem. Nesse sentido, Rodrigues e Macário (2014) focalizam o trabalho com a diversidade de gêneros textuais que compõem a revista, levando em conta o nível de aprendizagem dos estudantes e partindo do entendimento de que as capas também constituem gêneros textuais, sendo consideradas como unidades comunicativas, assim como os demais gêneros textuais que a integram.

Os participantes da investigação, identificados por letras6, expuseram suas narrativas de vida ao longo da investigação, revelando os desafios de conviver sem o domínio da leitura. Foram muitas histórias, porém, optou-se por destacar aquelas que mais se aproximaram do fenômeno estudado.

Histórias de leitura: dando voz ao alunado da EJA

Os desafios vivenciados na sala de aula das séries iniciais da EJA (1º ao 5º ano – Fundamental I) permitiram que a professora pesquisadora construísse um cenário de possibilidades focado na problemática das incertezas causadas pelo insucesso escolar, o qual, por sua vez, é resultado das dificuldades de aprendizagem da leitura. Diante disso, o alunado dessa sala de aula, caracterizado por pessoas jovens, adultas e idosas (15 a 65 anos), pôde participar ativamente das ações de mediação pedagógica desenvolvidas pela professora pesquisadora, o que propiciou avanços no seu desenvolvimento como leitor.

Para efeito de visualização, optou-se por trazer à tona um recorte da pesquisa, com destaque à participação de quatro alunos que contribuíram significativamente na concretização do objetivo estabelecido nesta investigação. O primeiro caso refere-se à performance da discente A, de 38 anos, a qual já frequentava a sala de aula, inclusive, com frequência normal, mas relatava não ter aprendido a ler. Ela restringia-se à execução de atividades de escrita na condição de “copista”, ou seja, não lia o que estava escrito nas atividades propostas pela professora pesquisadora e não entendia os enunciados.

Já o segundo caso diz respeito ao aluno L, de 18 anos, que exigia o ensino de letras e de sílabas por entender que “ninguém aprendia a ler sem conhecer as letras e sílabas”, não concordando com a ideia de ler textos de gêneros diversos em âmbito escolar. Ele demandava da professora/alfabetizadora um tipo de ensino que contemplasse o estudo de letras, sílabas e frases. Segundo a opinião desse aluno, ninguém aprendia a ler usando textos, mas com a utilização do método sintético. Cotidianamente, solicitava, inclusive, o uso de atividades de ensino tradicionais, a exemplo do ditado. Como pontua Rojo (2010, p. 36),

[...] a ideologia sobre alfabetização registra uma história de iniciar com as vogais isoladas, para depois se chegar às sílabas e palavras (Justamente, métodos sintéticos como fônico) e essas palavras não se prestavam bem ao trabalho, pois apresentavam, em sua maioria, como é o caso de português em geral, sílabas complexas (CVC, CCV) e não simples (CV). Eram, pois, ‘palavrinhas muito difíceis’.

Entende-se que o aluno L traz consigo a história de alfabetização da escola tradicional, então, buscou-se incluir na prática escolar exercícios que atendessem ao pedido do aluno, também como forma de viabilizar a continuidade da investigação. Desse modo, reservou-se um espaço cotidiano para a realização de ações escolares com o método sintético, partindo das contribuições de Lemle (2005) para o ensino de ortografia, cujas orientações metodológicas subsidiaram o trabalho com cruzadinhas, com caça-palavras etc. Foram aproveitados, inclusive, a própria capa e o sumário da revista, com ênfase na sílaba.

No decorrer do processo investigativo, os desdobramentos metodológicos atingiram momentos distintos, visando a atender as especificidades do alunado em relação ao aprendizado da leitura e considerando as disparidades no tocante à sua faixa etária. A inquietação da professora pesquisadora envolvendo os alunos citados decorre do fato de que já havia sido desenvolvida uma prática pedagógica com a aluna A, porém, o método de alfabetização utilizado não surtiu os efeitos esperados. Diante disso, surgiu o impasse sobre como lidar com essa situação envolvendo a estudante A, ao mesmo tempo, atender as expectativas do aluno L. A pesquisa avançou a partir do momento em que os alunos que já sabiam ler começaram a compartilhar suas experiências leitoras, demonstrando como aprenderam a ler fora do âmbito escolar e valorizando os gêneros textuais com os quais tiveram contato.

Nessa direção, e a partir do relato da discente T durante roda de conversa em sala de aula, os encaminhamentos metodológicos passaram a contemplar um gênero textual específico. Ocorre que a estudante T, de 33 anos, já conhecia a problemática da aluna A, em relação à não aprendizagem da leitura na escola, e propôs o trabalho com revistas de horóscopo. Segundo ela, dessa forma a aluna A “aprenderia rapidinho”.

Observou-se que a fala da aluna T figura como um incentivo para repensar a prática de leitura no espaço escolar, inclusive despertando para a necessidade de ler gêneros textuais constituídos por múltiplas linguagens, tendo em vista ser de fundamental importância a habilidade de leitura como forma de inserção sociocultural e de construção de saberes em sociedade moderna/contemporânea (Silva; Rodrigues, 2019).

A orientação da estudante T reflete sua percepção quanto à relevância da leitura numa perspectiva de letramento social. Conforme Mollica e Leal (2012, p. 13), “alguns autores afirmam que os letramentos dependem de momentos e de situações diferentes de alunos, do contexto sócio-histórico e regional das pessoas, bem como de suas necessidades mais imediatas”. Pôde-se observar, na fala da aluna T, a legitimação dessa assertiva, haja vista sua migração de uma vida tranquila no interior de Boqueirão (PB) à vida “agitada” do Rio de Janeiro (RJ), em que se fez necessário o uso de uma adequação linguística ao contexto situacional. Assim, ela passou a figurar como uma falante que atua com a linguagem de forma especializada, sociogeográfica e historicamente diversa, tendo em vista “os letramentos multissemióticos exigidos na vida cidadã contemporânea” (Rojo, 2009, p. 107).

De acordo com a discente T, as experiências empíricas na cidade do Rio de Janeiro (RJ) resultaram na decisão de querer aprender a ler, principalmente pela necessidade da leitura em uma dimensão social composta por diferentes exemplos de linguagens (sinalização do trânsito, cartazes, endereços etc.). Observa-se que a saída dela da cidade de Boqueirão (PB), aos 13 anos, sem o conhecimento do código linguístico da leitura, mas com a motivação de arrumar um emprego para colaborar com a renda familiar, exemplifica os inúmeros casos de discentes da EJA impedidos de estudar por uma questão de desigualdade social. Portanto, cabe à escola não ignorar essa realidade sócio-histórica e cultural que desenha o cenário nacional brasileiro.

Para a educanda T, procurar um endereço se traduzia como “um sacrifício”, assim como se deslocar da sua residência ao trabalho. Notadamente, por não saber ler, restava-lhe o serviço doméstico, atividade laboral que também exigia o uso social da leitura para entender os recados da patroa, dar remédios às crianças, entre outras atividades.

A aluna T relatou também que, após uma sucessão de dificuldades enfrentadas no cotidiano da cidade grande, não procurou a escola, mas sim a ajuda de uma prima que, mediante suas angústias, buscou ensiná-la a ler. O procedimento sugerido por essa prima teve início por meio da leitura de revistas de horóscopo, de forma que a estudante passou a comprar as revistas indicadas. As leituras diárias seguiam em meio à intervenção da parenta que, com muita paciência, permitiu-a decifrar o código linguístico e, finalmente, efetivar a leitura.

Frente a esse relato ou “recado”, a professora pesquisadora passou a adquirir revistas de horóscopo e a disponibilizá-las no interior escolar, investindo em eventos de letramento que giravam em torno das rodas de leitura mediadas pelo uso de revistas. Entretanto, considerando o formato da revista de horóscopo, surgiu a problemática do tamanho da letra, pois na turma havia alunos com problemas de visão. Estes não conseguiam ler o sumário nem as informações de cada signo, pois as letras eram pequenas para a decodificação e posterior compreensão textual.

Diante da dificuldade de leitura revelada pelos sujeitos colaboradores da pesquisa, optou-se pela mudança do tipo de revista, já que alguns alunos não liam devido a uma restrição pessoal, não utilizando óculos por implicações macroestruturais que não convém pontuar, considerando o objeto de pesquisa.

Vale assinalar que os trabalhos pedagógicos fomentados no lócus de investigação vislumbraram pontuar a organização de sequências de atividades que dialogassem, conforme Rodrigues (2016), com as necessidades do aluno, com atenção ao aspecto da diversidade cultural e do multiculturalismo. O olhar centrou-se no diálogo com esses estudantes, em sua maioria jovens e adultos que não veem atrativos na escola noturna e acabam a abandonando, uma vez que esta não oferece condições favoráveis para que eles progridam no aprendizado da leitura. Obviamente, o aluno brasileiro assimilou a cultura escolar que tem no uso do livro um porto seguro, principalmente aqueles que não tiveram, quando jovens, acesso aos instrumentos típicos usados na escola, com destaque para o livro didático.

Desse modo, no intuito de instigar os alunos a refletir acerca das ações pedagógicas de que eles gostavam e que os ajudavam a ler, foram providenciadas, simultaneamente, outras possibilidades de textos informativos (notícias locais) que tratassem de questões ambientais relacionadas à seca do Nordeste. Assim, buscou-se conduzir o alunado a confrontar informações/saberes entre o conhecimento impresso na cartilha (utilizada pela escola) e a leitura advinda de outros gêneros textuais que circulam no cotidiano das cidades (Rodrigues, 2011).

O uso de revistas nas práticas de letramento na EJA

Conforme relatado em linhas anteriores, foi a partir da fala dos alunos que o trabalho com revistas passou a integrar as aulas de leitura, contribuindo, assim, para a alfabetização dos jovens e dos adultos envolvidos na pesquisa. Nesse sentido, após a delimitação do gênero que viabilizaria a pesquisa, a professora pesquisadora passou a disponibilizar, nas aulas no horário noturno, um acervo de revistas de atualidades como incentivo para a leitura. No primeiro momento, houve uma exploração do gênero textual citado, abarcando uma variedade de revistas do convívio social dos estudantes, a exemplo de publicações que tratassem assuntos distintos em temáticas (religiosidade, vendas de produtos de cosméticos etc.).

Sendo assim, a atividade aplicada em sala de aula atestou o que Macário (2014) examinava quanto ao acesso à diversidade de gêneros textuais pelo aluno (foco na arquitetura do texto), reiterando o que defende Bakhtin (1992) em relação à configuração do gênero em três dimensões (construção composicional, conteúdo temático e estilo verbal), determinadas conforme a situação de produção dos enunciados. Ao acessar as revistas e, consequentemente, determinados discursos, os alunos passaram a se posicionar mais nas atividades de leitura, assumindo a condição de leitores e identificando as marcas ideológicas presentes nas entrelinhas dos textos lidos.

Destaca-se que a leitura mediada por revistas, conforme os trabalhos de Rodrigues e Macário (2014), amplia a discussão em torno da organização de atividades além do livro didático, pois aponta possibilidades de se trabalhar a leitura em sala de aula a partir da própria capa de revista, sendo um convite para leituras futuras em torno de temas da atualidade. Um ponto a ser destacado é que os exemplares eram adquiridos pela professora pesquisadora, uma vez que a escola não dispunha de recursos financeiros para essa finalidade.

Cumpre ressaltar que a professora pesquisadora, seguindo o planejamento de atividades semanais, buscou organizar as aulas agrupando os alunos por níveis de ritmos de aprendizagem, levando em consideração, principalmente, o fator da afetividade, em razão da observação no decorrer das aulas da existência de relações interpessoais como fruto de amizade entre os participantes da pesquisa. Ao estudar o sumário das revistas, cada grupo de estudantes fazia leituras distintas, e o que se observou nessas ações foi que todos acabavam lendo o mesmo texto. Essa situação gerou a necessidade de aquisição de vários exemplares de um mesmo tipo de revista, a fim de que todos os estudantes passassem a estudar o texto sugerido. Na situação descrita, a professora pesquisadora, na condição de uma professora alfabetizadora, fez uso de estratégia de leitura ao escrever na lousa os títulos dos textos, bem como o desdobramento de atividades de leitura para que o aluno, além de decodificar os enunciados, também compreendesse os implícitos dos enunciados.

A leitura numa dimensão social para fins de entretenimento, conforme enfatizam Rodrigues e Macário (2014), apareceu na pesquisa com proporções significativas, visto que a experiência refletiu a leitura de um texto pelo qual o estudante tinha interesse, por levar em conta a sua relação com o seu mundo externo à escola. Nesse sentido, falar de leituras no universo da EJA significa considerar que, embora com severas dificuldades na aprendizagem, o aluno desta modalidade é um sujeito leitor. Assim, a motivação da leitura como entretenimento assumiu dimensões relevantes na prática de pesquisa-ação, devido à participação e à colaboração de todos os participantes com a leitura diária extraída das revistas, as quais retratam assuntos de interesse dos estudantes jovens, adultos e idosos, a mencionar: resumos de novelas apresentadas pela TV Globo, horóscopos e fofocas.

Na pesquisa de Rodrigues e Macário (2014), é interessante destacar que os alunos avançam em outros tipos de leituras em torno dos textos jornalísticos, de saúde, de receitas, entre outros, também abordados em sala de aula, retirados das revistas com circulação nacional (Veja, Cláudia, Atrevida, Superinteressante, etc.). A prática docente consistiu na organização de ações didáticas aliadas aos objetos de conhecimento propostos pelo planejamento escolar, bem como no pronto atendimento de leituras no espaço escolar relacionadas aos interesses culturais dos estudantes.

Nesse intento, ao pensar a prática pedagógica no universo da EJA à luz do letramento, sinalizam-se as contribuições de Macário (2014), ao serem formuladas ações didáticas que extrapolam o âmbito escolar no que diz respeito ao ensino de leitura com uso de revistas. Desse modo, a professora pesquisadora possibilitou aos participantes da pesquisa o acesso ao lugar onde encontravam-se as revistas. Nessa ação educativa, a aula ganhou uma dimensão social, pois a professora pesquisadora planejou com a turma o deslocamento ao o centro da cidade do município de Campina Grande (PB), no intuito de possibilitar a eles a leitura no âmbito externo escolar. Os estudantes participantes da pesquisa visitaram as três bancas de revistas situadas no centro da cidade; enquanto sujeitos leitores, tiveram acesso a uma variedade de exemplares de revistas com temáticas diferentes, inclusive aplicando os conhecimentos já apreendidos em sala de aula, cujo evento de letramento observava o interesse dos participantes na aquisição de revistas com temas diversificados.

A partir desse cenário, a atividade de leitura transita em um universo interno e externo à escola, como assevera Macário (2014, p. 107) acerca das situações de leitura:

[...] o caso da aluna A, de 38 anos, que motivou nossa ação docente com o estudo da leitura em sala de aula, com foco no uso de revistas. Ela se envolveu com a prática encontrando o prazer pela/na leitura, motivando todos para a aquisição de mais revistas, de mais leituras, a cada encontro. Uma prática que adquiriu proporções positivas e momentos encorajadores, como quando essa aluna relata o quanto é emocionante poder decifrar o código escrito, chorando e sorrindo ao mesmo tempo, por se revelar, descobrir-se, leitora.

Ao averiguar a situação da aluna F na condição de leitora, a professora pesquisadora concluiu a aula destacando alguns avanços daquele encontro, como a leitura de alguns implícitos encontrados nos textos, bem como momentos de interlocução do leitor com o texto e com demais leitores presentes naquele espaço de letramento. O presente estudo se volta, dessa forma, para o conteúdo da formação do professor, o qual assume proporções relevantes quando o professor alfabetizador passa a observar a dificuldade do alunado.

Macário e Rodrigues (2018), assim como Macário (2014), chamam atenção para o papel que o professor pode assumir mediante a dificuldade da aprendizagem da leitura, cabendo-lhe a ressignificação da sua prática pedagógica a partir de metodologias que dialoguem com as especificidades de cada aluno. Esses autores sinalizam que não há receitas prontas para ajudar o alunado a avançar no aprendizado da leitura, mas apontam para a organização da prática pedagógica mediante a participação discente em eventos de letramento que podem ser situados em contextos específicos, como neste caso, em que a leitura feita numa banca de revistas adquiriu sentido a partir da experiência vivenciada pelo aluno da EJA na condição de leitor ativo (Macário, 2014; Macário; Rodrigues; 2018).

Cumpre ressaltar que os resultados da pesquisa atingem aspectos positivos em termos de aprendizagem da leitura pelos estudantes citados nesta investigação, considerando que as práticas de leitura com o uso de revistas viabilizaram a organização de momentos distintos em torno de temáticas de interesse do aluno, bem como suscitaram possibilidades de amadurecimento profissional, a exemplo do interesse por leituras de receitas culinárias por parte de estudantes que buscavam a sua aplicabilidade nos setores de trabalhos domésticos (Macário; Rodrigues, 2018).

Por outro lado, os discentes que participaram deste estudo pontuaram aspectos impactantes gerados pelo estabelecimento da importância da leitura em suas vidas cotidianas. O efeito positivo da leitura para esses alunos incide fundamentalmente na forma como eles passam a enxergar o mundo, na condição de sujeitos leitores, não mais de analfabetos. Essa importância é observada nesta pesquisa ao se considerar o olhar da aluna B, de 36 anos, que associou uma pessoa que não sabe ler a um cego que vive na dependência das outras pessoas. Além dela, a aluna T reforçou outro ponto importante como efeito da apropriação da competência leitora, relacionando-a ao desenvolvimento da autonomia que permite ao alunado da EJA fazer uso das leituras nas culturas letradas, sem necessariamente depender de outra pessoa para desempenhar ações geralmente exercidas por leitores experientes, como lidar com um caixa eletrônico (Macário, 2014).

Macário (2014) também assinala que o aluno L, de 18 anos, apresentou resistência quanto à mudança no formato da rotina das aulas, mas acabou se identificando com as leituras e passou a solicitar à professora pesquisadora que ele mesmo fizesse a leitura, partindo do uso de revistas que tratavam de assuntos do interesse dele. Posteriormente, ele passou a despertar o interesse por leituras que partissem do universo da revista. Nessas rodas de leitura, salienta-se o ponto ápice, ao se verificar que esse aluno aprendeu a ler na escola.

O uso de mídias escritas nas aulas de leitura nessa etapa educativa permitiu atestar que os alunos liam fora da escola e que a sua relação com a revista estava associada à interatividade em torno da leitura com fins de obtenção de um conhecimento interdisciplinar, percorrendo as áreas da esfera religiosa, comercial, publicitária, mística, entre outras. Dessa forma, as ações didáticas foram repensadas e reformuladas, permitindo a concretização de atividades leitoras com a possibilidade de o aluno estabelecer relações entre o lido e o seu acervo pessoal, questionando e mudando seu conhecimento e, também, transferindo seus saberes a contextos diversos, dentro e fora da escola (Rodrigues; Macário, 2014; Macário; Rodrigues, 2018).

Assim, concorda-se com o pensamento de Macário e Senna (2018) no que se refere aos desafios de ensinar a ler e a escrever na educação escolar. Para esses pesquisadores, “o resultado dessa inadequação é percebido na cultura escolar, quando essa instituição passa a segregar os alunos em turmas de EJA e passa a excluir esses alunos do sistema de ensino” (Macário; Senna, 2018, p. 67), não os enxergando em suas especificidades humanas.

Considerações Finais

Ressignificar as ações pedagógicas focadas no ensino de leitura nos espaços formativos das séries iniciais (1º ao 5º ano) de Ensino Fundamental da EJA, possibilitou a reflexão acerca da relevância do conteúdo da formação docente continuada para a atuação nessas séries. No presente estudo, observa-se que a prática educativa que engloba os educandos com registro de insucesso escolar, nessa etapa de ensino, não pode ser organizada de qualquer modo. Ao mesmo tempo, sinaliza-se que não há receitas prontas e acabadas para a mediação escolar.

Pensar a elaboração da proposta de mediação pedagógica atrelada ao uso da leitura numa perspectiva de letramento exige, por parte do professor/alfabetizador, formação acadêmica capaz de dialogar com os diferentes sujeitos sociais que frequentam a sala de aula. Ademais, é imprescindível que essa formação acadêmica vislumbre um tipo de educação que inclua o alunado sem, necessariamente, excluí-lo do sistema escolar.

Das distintas narrativas de alunos mencionadas nesta pesquisa, vale destacar o caso da discente A, que já frequentava a sala de aula noturna regularmente, sem que o método de alfabetização utilizado pela professora alfabetizadora surtisse os efeitos esperados. Nesse cenário, a situação apresentada por essa aluna em relação ao não aprendizado da leitura despertou na professora pesquisadora o interesse em buscar resposta para a problemática.

Cabe chamar a atenção para o desafio posto neste estudo, o qual se contrapõe ao que é disseminado na cultura escolar que se refere ao aluno dessa modalidade de ensino como um sujeito que não aprende. Alfabetizar a aluna A, e contribuir para o processo de desenvolvimento de leitores na sociedade contemporânea permitiu enxergar a relevância de uma prática escolar como fruto das ações geradas por um professor reflexivo sobre sua própria atuação docente.

1Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de R.O. MACÁRIO, intitulada “Práticas de letramento na Educação de Jovens e Adultos: a revista como possibilidade de formação de leitor crítico”. Universidade Estadual da Paraíba, 2014.

4A pesquisa envolvendo seres humanos teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba, sob o Parecer nº 0365.0.133/12.

5O fato de alunos dessa faixa etária ainda registrarem dificuldades no aprendizado do código linguístico da leitura está em harmonia com pesquisas já realizadas por Brunel (2008), as quais tratavam sobre alunos jovens saindo da escola sem o aprendizado da leitura.

6Considerando os princípios éticos da pesquisa, a identificação dos sujeitos participantes se dará pelas letras A, B, L, T.

Como citar este artigo/How to cite this article

Macário, R. O.; Rodrigues, L. P. A leitura na Educação de Jovens e Adultos: uma experiência pedagógica para a formação de leitores mediada com revistas. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e214922, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4922

ERRATA

No artigo “A leitura na Educação de Jovens e Adultos: uma experiência pedagógica para a formação de leitores mediada com revistas”, com número de DOI: 10.24220/2318-0870v26e2021a4922 publicado no periódico Revista de Educação PUC-Campinas, 2021, vol. 26, e214922, na página de rosto:

Onde se lia:

Alfabetização e o processo de apropriação da língua materna: políticas, formação de professores e práticas pedagógicas

Leia-se:

Artigos

Referências

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Recebido: 29 de Abril de 2020; Revisado: 30 de Outubro de 2020; Aceito: 10 de Novembro de 2020

Correspondência para/Correspondence to: L.P. RODRIGUES. E-mail: linduartepr@gmail.com.

Colaboradores

Todos os autores participaram das fases de coleta e análise dos dados da pesquisa, bem como da elaboração do texto final.

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