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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4926 

Artigos

Uma proposta com multiletramentos no atendimento educacional especializado na alfabetização do aluno autista

A proposal with multiliteracies in specialized educational service geared to the literacy of autistic students

Soraya Gonçalves Celestino da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-3521-5429

Evangelina Maria Brito de Faria1 
http://orcid.org/0000-0003-2114-1913

1Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Língua Portuguesa e Linguística, Programa de Pós-Graduação em Linguística. Jd. Universitário, s/n., Castelo Branco, 58051-900, João Pessoa, PB, Brasil.


Resumo

Este estudo, recorte de uma pesquisa de doutorado, aborda o uso dos multiletramentos na perspectiva de que o saber é observado sob o ponto de vista multimodal: letras, imagens, sons e a sinalização para novas habilidades, demandadas por uma nova organização textual, mais hibrida e interligada. Neste sentido, objetiva-se analisar o processo de aquisição da linguagem escrita de uma criança autista em ambientes tecnológicos, a partir dos multiletramentos, no atendimento educacional especializado. Teoricamente, a discussão apoia-se nos pressupostos interacionistas. A pesquisa de natureza qualitativa, baseada na metodologia de pesquisa-ação e no estudo de caso, desenvolveu-se a partir da sequência didática (quatro módulos), elaborada através da pedagogia dos multiletramentos e aplicada no Atendimento Educacional Especializado de um aluno autista com onze anos, matriculado no 3º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública de Olinda (PE). A partir do estudo, verificou-se que a utilização dos multiletramentos contribuiu para o avanço das habilidades da escrita desse aluno, abrindo perspectivas didáticas para o trabalho com crianças autistas. Os dados analisados apontam para a necessidade de a escola incorporar recursos multimodais, que contribuam para a aquisição da linguagem escrita.

Palavras-chave Aquisição de escrita; Autismo; Mulitletramentos

Abstract

This study, part of a doctoral research, addresses the use of multi-tools in the perspective that knowledge is observed from a multimodal point of view: letters, images, sounds and the signaling for new skills, which are demanded by a new textual organization, more hybrid and interconnected. In this sense, the objective of this study is to review the process of acquiring the written language of an autistic child in technological environments, based on multi-tools, in specialized educational assistance. Theoretically, the discussion is based on interactionist assumptions. The qualitative research, based on the action-research methodology and on case studies, was developed, based on the didactic sequence (four modules), elaborated through the pedagogy of the multi-tools and applied in the Educational Specialized Service, of an eleven-year-old autistic student, enrolled in the 3rd year of elementary school, from a public school in Olinda (PE). From the study, it was found that the use of multi-tools contributed to the advancement of this student’s writing skills, opening didactic perspectives for working with autistic children. The data reviewed point to the need for the school to incorporate multimodal resources, which contribute to the acquisition of written language.

Keywords Acquisition of writing; Autism; Multiliteracies

Introdução

O presente estudo se insere nas discussões sobre o processo de letramento de um aluno com Transtorno do Espectro Autista (TEA)2, a partir do seu contato com a cultura escrita escolar. Considera--se que o letramento não se restringe apenas aos aspectos relacionados à leitura e à escrita e que, ao extrapolá-los, outras questões colocam-se em jogo e requerem mais de um letramento em diversos contextos e em vários suportes. Com este trabalho, pretende-se mostrar o envolvimento de uma criança autista com a escrita em ambientes tecnológicos.

É possível, assim, falar em letramentos, como afirma Soares (2006). A autora sugere o uso do termo no plural – letramentos –, já que uma única definição não contempla as práticas de leitura e de escrita demandadas pelas transformações sociais que constantemente ocorrem nas culturas letradas. O letramento sofreu uma redefinição do seu conceito em função de duas dimensões que apontam para ressignificações da multiplicidade de sistemas semióticos e de culturas.

Rojo (2013, p. 8) afirma que “[...] se os textos da contemporaneidade mudaram, as competências/capacidades de leitura e produção de textos exigidas para participar de práticas de letramentos atuais não podem ser as mesmas”. Nesse contexto, a escola, por conseguinte, é chamada a ser cada vez mais um espaço de multiletramentos, socializando saberes da cultura escrita e da cibercultura, como afirma Rojo (2012). Hoje, já se sabe que o uso de multiletramentos semióticos propicia a estimulação visual, auditiva e cognitiva de alunos típicos e atípicos, o que reforça a presença de textos multimodais nas instituições de ensino.

Paralelamente ao crescimento do uso da tecnologia na sociedade, houve, na escola, um direcionamento para o acolhimento da diferença. Através das políticas públicas inclusivas, Santarosa e Conforto (2015, p. 350) entendem que “a diversidade humana e os dispositivos móveis (laptops e tablets) começam a imprimir as possibilidades e os desafios relacionados à presença de estudantes com deficiência na escola regular”. Essa demanda suscitou pesquisas no campo da Informática na Educação Especial, que tem demonstrado a potencialidade das tecnologias digitais, quando acessíveis, para impulsionar novas práticas de empoderamento para professores e estudantes, com ou sem deficiência (Santarosa; Conforto; Vieira, 2014).

Para conhecer um pouco das pesquisas realizadas sobre o objeto de estudo, alfabetização e autismo, elaborou-se o Estado da Arte, traçando um panorama dentro dos últimos seis anos (2014-2019) de produção científico-acadêmica. Foram delimitados alguns parâmetros: busca nos formatos de artigos, dissertações e teses; busca nas áreas de Linguística, Letras, Educação; publicados disponíveis nas bases eletrônicas de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Scientific Electronic Library Online, Google Acadêmico e repositório institucional do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba. Foram utilizados os descritores: Transtorno do Espectro Autista (TEA), Tecnologia, Alfabetização, Multiletramentos, Atendimento Educacional Especializado (AEE), combinados entre si. Além disso, os critérios de inclusão criados foram: pesquisas nacionais com uso de tecnologia e aprendizagem de pessoas com TEA. Critérios de exclusão: trabalhos cujo tema não se integralizou na área de Linguística, Letras e Educação e de tecnologia para alunos sem TEA.

Foram encontrados 98 estudos, os quais envolvem abordagens nas áreas da saúde, da psicologia e da educação; após aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão, selecionaram-se três voltados ao tema, todos em caráter de artigos: (1) Revisão sistemática da literatura feita por Silva e colegas trazem o objetivo de “discutir o uso das tecnologias digitais da Informação e comunicação no processo de alfabetização e aprendizagem de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo” (Silva et al., 2020, p. 1); (2) Pesquisa desenvolvida por Laurindo (2018, p. 1) objetiva “verificar a evolução das habilidades de leitura e escrita de uma criança autista, a partir da escrita digital, por meio da aplicação de uma sequência didática adaptada para o AEE”; (3) Pesquisa bibliográfica realizada por Maia e Jacomelli (2019, p. 1) “abordam a importância do profissional do AEE como mediador na aprendizagem da criança com o TEA, apresentando a relevância das atividades que utilizam a coordenação motora fina, e os jogos pedagógicos no processo de alfabetização dessa criança”.

Apresentando um outro viés, este texto quer mostrar a importância da multimodalidade para a criança autista em processo de aquisição da escrita, evidenciando dificuldades e particularidades no processo, que podem ser superadas por meio de uma boa mediação entre metodologias apropriadas e auxílio de tecnologias.

A seguir, apresenta-se uma breve análise de algumas legislações sobre o TEA, AEE e os direitos de aprendizagem. Considerando a presente análise, sua adequação e alinhamento às diretrizes educacionais que versam sobre alfabetização, na sequência serão abordadas algumas questões sobre a alfabetização, as novas tecnologias e o TEA na aquisição da linguagem escrita; posteriormente, serão apresentados os procedimentos metodológicos, para, então, serem discutidos os resultados e as considerações finais.

Legislação e o Atendimento Educacional Especializado

O início da política pública inclusiva no Brasil se deu depois da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais, em 1994, na Espanha. Foi nessa conferência que foi formulada a Declaração de Salamanca em 1994, que fomentou o primeiro documento oficial brasileiro, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, nº 9394/1996, o qual incumbe-se do compromisso da inclusão de qualquer tipo de deficiência no sistema escolar (Brasil, 1996).

Com a necessidade de orientar e dar suporte ao ensino regular, o Decreto nº 7611/11, que trata do AEE, específica, no seu Art. 2º, §2, como esse serviço deve ser realizado:

O atendimento educacional especializado deve integrar a proposta pedagógica da escola, envolver a participação da família para garantir pleno acesso e participação dos estudantes, atender às necessidades específicas das pessoas público-alvo da educação especial, e ser realizado em articulação com as demais políticas públicas

(Brasil, 2011, online).

Esse decreto estabelece que os alunos – público-alvo da educação especial –, devem ser atendidos no contraturno do ensino regular, em salas de recurso Multifuncionais que já contam com o auxílio de novas tecnologias e que, em consonância com propostas educativas, dão suporte ao ensino e à aprendizagem.

Ainda conforme o documento anteposto, o AEE é um espaço reconhecido legalmente e faz parte do projeto político pedagógico da escola para atender às necessidades específicas de cada criança público-alvo. Esse serviço, em muitas escolas, ainda não se dá de forma plena, pois a comunicação entre professores e responsáveis de AEE possui muitas lacunas, na medida em que vários professores não acompanham e não reforçam em sala de aula o trabalho realizado no AEE. Em algumas escolas, são duas vertentes que prosseguem sem se tocar. Naturalmente, esse posicionamento não concorre para o pleno desenvolvimento do atendimento de necessidades específicas dos alunos.

Dentro das necessidades específicas, as crianças com TEA estão amparadas pela Lei nº 12.764/2012, a qual institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Essas pessoas estão enquadradas, no §1, como pessoa portadora da síndrome clínica, caracterizada nos incisos I e II:

I – Deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;

II – Padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos

(Brasil, 2012b, online).

O interesse na discussão sobre a escolarização das crianças com TEA faz parte da história pessoal das autoras deste trabalho. Vivenciando essa realidade, foram descobertos inúmeros questionamentos em relação ao trabalho pedagógico desenvolvido por professores de sala regular, por exemplo, que há visão preconcebida sobre o ensino da aquisição da linguagem escrita para um aluno com TEA, e que as dificuldades dificilmente serão superadas.

Essas inquietações foram decorrentes de reflexões quanto à educação especial no processo de inclusão e na sistematização da escola para os alunos autistas e, ainda, quanto ao entendimento de como esses caminhos interferiam na prática pedagógica, inviabilizando avanços nos seus desenvolvimentos.

Diante do cenário descrito, este estudo aborda estudos teóricos e práticos sobre o AEE da pessoa com TEA, objetivando analisar o processo de aquisição da linguagem escrita de uma criança autista em ambientes tecnológicos, a partir dos multiletramentos no atendimento educacional especializado. A seguir, será tratado sobre o processo da escrita nesse novo ambiente tecnológico e inclusivo.

Alfabetização, direitos de aprendizagem, tecnologias e Transtorno do Espectro Autista

Os processos de interação e de mediação entre os parceiros sociais faz parte do desenvolvimento humano e ocorrem quando atuam sobre o mundo e sobre si mesmos (Vygotski, 1998). De acordo com abordagem sociointeracionista: “a linguagem surge inicialmente como um meio de comunicação entre a criança e as pessoas em seu ambiente. Somente depois quando da conversão em fala interior, ela vem a organizar o pensamento das crianças, ou seja, torna-se uma função mental interna” (Vygotski, 1998, p. 117).

A linguagem permite a mudança das relações externas em internas. A palavra permite que a criança alcance os objetos e mobilize pessoas em torno de si; posteriormente, os processos de aprendizagem evoluem e se tornam mais complexos. Essas ações interiores mais complexas, chamadas de operações intelectuais, dão origem à formação de conceitos. Segundo Vygotski (1998, p. 126), “a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e entidades reais”. A escrita situa-se nessas operações intelectuais mais complexas. Para Vygotski (1999, p. 83) “[...] a escrita é um sistema de instrumentos porque se manifesta externamente através das suas funções sociais (noticiar, entreter, divulgar etc.) e, um sistema de signos, porque modifica a relação do homem consigo mesmo, quando ajuda a organizar suas ideias, a obter conhecimento”.

Vygotski (1999) sinalizou o gesto, o desenho e o jogo como principais precursores pelos quais a criança passa até se apropriar da linguagem escrita. Há dois momentos em que o gesto é ligado à escrita: os jogos simbólicos e o desenho. “Ensina-se as crianças a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita” (Vygotski, 1998, p. 139). De acordo com essa perspectiva, a alfabetização não é apenas o domínio de um sistema complexos de signos, não obstante adquirido por treinamento mecânico e externo, pois requer o processo de desenvolvimento de função cultural complexa. Evidencia-se aqui a importância do desenho no processo de aquisição da escrita desse sujeito autista.

Em seus estudos, Vygotski (1999, p. 142) defende três aspectos essenciais para a aquisição da escrita:

Primeiro, que a escrita pode ser ensinada para crianças de tenra idade. Argumenta que, se a criança é capaz de entender a função simbólica no desenho, quando rabisca a flor, ou no jogo, quando usa um pedaço de pau como cavalo, ela também é capaz de compreender que a escrita pode representar a fala; segundo, que a escrita deve ser ensinada como uma linguagem, como uma atividade cultural complexa e uma necessidade, ou seja, que esse ensino possa fazer a criança entender que precisa usar a escrita, escrita como parte da própria vida e não apenas como tarefa de escola; terceiro, a necessidade de a escrita ser ensinada naturalmente, isto significa que as crianças descubram as habilidades de leitura e escrita durante as situações de brincadeiras, para isso é necessário que as letras se tornem elementos da vida da criança, assim como a fala.

Dito de outra maneira, o autor defende a introdução da escrita em sua função de mediação com o mundo e não apenas com as atividades de decodificação. Assim como precedem e trabalham com a função simbólica, preparam para a compreensão do simbolismo da escrita. Nas palavras de Vygotski (1998, p. 142):

O gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente contém um futuro carvalho. Como se tem corretamente dito, os gestos são a escrita no ar, e os signos escritos são, frequentemente, simples gestos que foram fixados. [...] A segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos podem, de pronto, denotar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos; não é importante o grau de similaridade entre a coisa com que se brinca e o objeto denotado. O mais importante é a utilização de alguns objetos como brinquedos e a possibilidade de executar, com eles, um gesto representativo. Essa é a chave para toda a função simbólica do brinquedo das crianças [...] Notamos que quando uma criança libera seus repositórios de memória através do desenho, ela o faz à maneira da fala, contando uma história. A principal característica dessa atitude é que ela contém um certo grau de abstração, aliás, necessariamente imposta por qualquer representação verbal. Vemos, assim, que o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal. Nesse sentido, os esquemas que caracterizam os primeiros desenhos infantis lembram conceitos verbais que comunicam somente os aspectos essenciais dos objetos. Esses fatos nos fornecem os elementos para passarmos a interpretar o desenho das crianças como um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita.

Olhando para esse três precedentes, que ajudam à entrada da criança na escrita, observa-se que essa escrita é muito mais que uma habilidade motora, devendo ser apresentada às crianças sob essa nova perspectiva de atividade cultural complexa.

Com esse pressuposto, aponta-se para a entrada da criança em uma escrita significativa, apoiada em aspectos multimodais do gesto, do desenho e do jogo. E como isso se enquadra com crianças com TEA? No processo de apropriação da escrita, algumas crianças com TEA, não verbais, utilizam o desenho para se comunicar. No caso do aluno da pesquisa, há bastante desenvoltura com o desenho, que contextualiza sua fala. Portanto, o desenho é um estágio preliminar quanto à aquisição da linguagem escrita (Vygotski,1998).

É importante que os professores percebam as habilidades das crianças autistas, que valorizem a importância do gesto, do desenho e do jogo na aquisição da escrita alfabética e que entendam que esse passo é possível no âmbito da escolarização. A escrita é um sistema de representação do campo simbólico, mediando a criança falar de si e conduzir seu texto a um outro que o reconhece e o compreende. Ferreiro (2011, p. 44) afirma que “[...] a escrita não é um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço coletivo da humanidade”. Observa-se, que, desde muito pequenas, as crianças estão imersas no mundo da escrita no seu papel social, ao imitarem os mais velhos utilizando livros, revistas, gibis, embalagem, rótulos, letreiros etc. para “ler” ou “escrever”.

Alguns estudiosos (Rojo, 2012; Vilas Boas; Valin, 2013; Frade et al., 2018; Rojo; Moura, 2019) apontam que o uso das tecnologias e dos jogos digitais como estratégias no processo de alfabetização vêm contribuir para aumentar o interesse dos alunos. Vilas Boas e Vallin (2013, p. 63) argumentam que “os recursos tecnológicos oferecem contribuições significativas para a aprendizagem e, [...] colaboram com a evolução dos alunos com atrasos no processo de leitura e escrita, trazendo uma roupagem nova para o trabalho com essas crianças”. Por isso, a educação precisa de renovação, em situações nas quais sejam utilizadas estratégias de ensino mais condizentes com a realidade dos alunos com TEA; nesse processo, a tecnologia tem muito a oferecer, uma vez que:

[...] no ensino da escrita para crianças autistas, o computador pode aparecer como um recurso bastante motivador. Pois, como muitas delas têm dificuldade em controlar o movimento das mãos, fica muito difícil conseguirem fazer letras bem desenhadas. E o computador vai diminuir bastante o esforço das crianças, além de lhes proporcionar o prazer de escrever de forma mais clara e rápida, através da digitação

(Sampaio; Oliveira, 2017, p. 361).

O aluno autista, quando manipula peças de jogos de encaixe ou quebra-cabeça e as deixam cair no chão, tem o foco de sua atenção alterada. Vale salientar que o manuseio de peças constitui um difícil desafio para algumas deficiências. Nesse sentido, Ribeiro (2012, p. 115) afirma que “[...] além das habilidades linguísticas, os jogos digitais online proporcionam o domínio gradual do mouse, do teclado, de programas e de outros recursos disponíveis no computador e na internet”.

Os jogos digitais são, geralmente, organizados com animação e com espaço delimitado. O aluno autista necessita dessa delimitação espacial presente, por exemplo, em jogos de encaixe ou em quebra-cabeças em que a peça, uma vez afixada, não sai do lugar na tela do computador. Porém, é preciso reconhecer que a maioria das experiências com ou sem uso de tecnologias nas escolas só obtêm êxito com uma competente mediação docente e com um bom plano de atendimento individualizado para os alunos com deficiências. Agora será abordado o percurso metodológico.

Procedimentos Metodológicos

Este estudo se caracteriza como qualitativo e descritivo, com caráter de pesquisa-ação, um estudo de caso, incluindo três fases: a primeira, que inclui os procedimentos éticos, como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e como o Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal da Paraíba (Parecer nº 3.293.348); a segunda, que se propõe à construção de propostas didáticas para atender à individualidade do sujeito; a terceira, que se dedica à análise dos dados, tomando como parâmetro a escrita inicial e sua evolução na habilidade de escrita.

Franco (2012) considera que a pesquisa-ação possibilita ao professor pesquisador adentrar um ambiente o qual ele observa e pesquisa e onde produz ações, em movimentos cíclicos, com a finalidade de mudança. Para alcançar o objetivo, utilizaram-se gravações, diário de campo e intervenções como ferramentas para a coleta dos dados que respaldaram a interpretação dos resultados alcançados.

Para esse artigo, foram apresentados recortes reais do AEE de um aluno de dez anos com TEA, diagnosticado na Educação Infantil. A seleção do estudante foi motivada por seu diagnóstico e por sua presença no 3º ano do Ensino Fundamental e no contraturno da Sala de Recursos Multifuncional, onde atua a professora pesquisadora, cuja prática demandava estudos que necessitavam de soluções para desenvolver aspectos para a alfabetização da criança. Trata-se de um menino calmo, sociável, com estereotipias, ecolalia, pouco vocabulário, baixa concentração e atenção e grande dependência do apoio escolar para realizar tarefas. Para esse estudo, o aluno recebeu o codinome de Leandro.

O AEE dessa criança foi organizado de forma individual e seguiu uma rotina específica para o TEA, ocorrendo duas vezes por semana com duração de 1h30min. Antes de construir o Plano de Desenvolvimento Individualizado, observou-se que sempre que era proposta uma atividade no computador, ele a executava com mais habilidade do que com lápis e papel; essa indicação deu suporte para traçar os objetivos do seu atendimento, com base nos estudos relacionados à Pedagogia dos Multiletramentos. A condição desse aluno, que não se encontrava alfabetizado e apresentava dificuldades de atenção e de concentração para aprender, representou uma preocupação para a professora pesquisadora, uma vez que ele deveria estar alfabetizado até o final do ano. Para aquisição da escrita, optou-se por trabalhar na perspectiva histórico-cultural, levando em consideração que a criança estabelece relações com a cultura escrita, sempre mediadas socialmente.

Este trabalho é parte de uma pesquisa que surgiu da necessidade de introduzir o tema “As fases da Lua” no AEE, para atender a necessidade de adequação ao conteúdo ensinado em sala de aula. Dessa maneira, a professora pesquisadora elaborou a sequência didática com quatro módulos, cujo objetivo foi contemplar os direitos de aprendizagem, diretrizes metodológicas presentes nos documentos oficiais do Ministério da Educação para o Ciclo de Alfabetização (Brasil, 2012a). Esses documentos legais e parâmetros consideram o Ciclo de Alfabetização por área de conhecimento do componente curricular da Língua Portuguesa e Matemática. Para garantir esses direitos, é necessário promover um ensino com planejamentos consistentes e integrados que incluam os quatro eixos de ensino da Língua Portuguesa: oralidade, leitura, produção de textos escritos e análise linguística. Para o presente estudo, privilegiou-se o eixo da produção textual escrita juntamente aos multiletramentos e aos pressupostos de Vygotski (1998; 1999). O tempo de duração da sequência foi de agosto a dezembro de 2018.

Sequência didática – “As fases da Lua”

Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 82) consideram sequência didática “[...] um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 83) reiteram que “a sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero textual, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais adequada numa dada situação de comunicação”. A sequência didática que conta com escolha adequada dos diferentes gêneros e objetivos bem definidos, bem como com estratégias de ensino apropriada para os alunos, pode facilitar o domínio desse gênero.

A sequência didática aplicada neste estudo teve o tema ”As fases da Lua”, na qual procurou-se trabalhar alguns direitos de aprendizagem de forma interdisciplinar, como: ler textos com auxílio do professor do AEE; desenvolver habilidade de leitura e de escrita; apreender assunto/tema tratado em textos de diferentes gêneros: reportagem, memes; realizar experimentos através de observações; produzir textos com o auxílio do professor do AEE; produzir texto com autonomia, como será visto a seguir nos resultados e discussão (Brasil, 2012).

Resultados e Discussão

Será discutida, a seguir, a análise da sequência didática “As fases da lua”, aplicada no AEE do aluno com TEA. Será analisado o seu desenvolvimento na aquisição da escrita e em ambiente tecnológico. Para tanto, tomou-se como categoria de análise os Direitos de Aprendizagem do Ciclo de Alfabetização, da área de Língua Portuguesa (Brasil, 2012a) e a concepção da linguagem escrita de Vygotski (1998; 1999), partindo dos precursores da escrita.

1º Módulo – Introduzindo o tema: olhando para o céu...

O aluno foi levado ao pátio da escola e pediu-se que olhasse para o céu, questionando-o: O que vemos ao olhar para o céu? O que mais você acha que tem no céu? Qual o formato da Lua esta semana? Solicitou-se que ele desenhasse a lua que viu no céu. Para a execução dessa análise, será apresentado o trecho da transcrição do diálogo ocorrido nessa primeira atividade:

Pesquisadora: O que você vê no céu?

Aluno: Vê no céu?

Pesquisadora: Sim, o que você vê?

Aluno: Vê lua

Pesquisadora: Isso mesmo! O que mais você vê?

Aluno: Istela

Pesquisadora: Qual o formato da lua está hoje?

Aluno: Cheia

Observou-se que o aluno necessita de estímulo verbal para realizar a atividade, uma vez que ele não tem autonomia para isso. Na segunda linha, fica clara a ecolalia na sua fala, pois ele repete o final da frase da pesquisadora “Vê no céu?”. Partindo da contextualização da escrita, foi pedido que o aluno tentasse materializar no desenho as realidades do dia a dia em relação ao tema. Deixou-se que o aluno falasse sua opinião para trabalhar com ele os direitos de aprendizagem, que propõe “Participar de interações orais em sala de aula, questionando, sugerindo, argumentando e respeitando os turnos de fala” (Brasil, 2012a, p. 46) e “Relacionar textos verbais e não verbais, construindo sentido” (Brasil, 2012a, p. 49). Em relação ao desenho da lua cheia que o aluno fez, percebeu-se que ele sempre utiliza amarelo quando a lua é cheia, e cores escuras quando a lua é nova, relacionando-as com a realidade. Nesse momento, ele não escreveu, então, foram aplicadas algumas atividades para reforçar a aquisição da linguagem escrita.

A primeira atividade consistiu em desenhar, numa folha de papel, as fases da lua, para que o aluno realizasse a escrita inicial, isto é, produção inicial, como preconizam Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 86), “[...] pois permite circunscrever as capacidades de que os alunos já dispõem e, consequentemente, suas potencialidades”. Isso define como professores devem intervir e planejar as outras etapas, de forma que o aluno consiga evoluir processualmente.

Partindo da escrita inicial, elaborou-se a segunda atividade, na qual, para que o aluno pudesse ter acesso às sílabas, foram colocados as mesmas figuras e os quadrinhos da atividade anterior, demarcando a divisão silábica. As sílabas foram misturadas e, a partir da leitura da imagem e da mediação da pesquisadora, depois de várias tentativas, ele colocou as sílabas no local correto.

Na terceira atividade, partindo do anterior como modelo, foi solicitado que o aluno escrevesse as mesmas palavras com o alfabeto móvel. Para a execução, foi utilizado um recurso tecnológico, ao qual se deu o nome de vídeo modelagem3. Após a atividade, a pesquisadora enviou o vídeo para o celular da mãe e ela repassou para o tablet do aluno; ele assistiu ao vídeo diversas vezes e o resultado foi compensador. Quando se retomou a atividade, ele reproduziu a escrita de alguns nomes, fazendo uso da fala da pesquisadora, isto é, incorporando-a. Existiu engajamento dele com esse recurso. Evidencia-se a importância do vídeo modelagem para esse aluno, visto que ele vibrou ao se reconhecer na filmagem, demonstrou contentamento, fez vários flapping (movimento de balançar as mãos), e, ao retornar a próxima seção, pediu para ver novamente o vídeo, repetindo as falas da filmagem.

2º Módulo – Explorando uma reportagem sobre a Lua

Houve a leitura de um jornal eletrônico “Estadão” que propiciou o contato com texto eletrônico pouco utilizado por crianças, o que fez com que o aluno percebesse as características do gênero textual reportagem e identificasse mais um formato da Lua – lua sangrenta. Em seguida, foi feita a leitura de alguns memes4 e a identificação da palavra “lua” neles.

Procurou-se garantir mais um direito de aprendizagem, que propõe “Ler textos não verbais, em diferentes suportes” e “Compreender o texto lido por outra pessoa, de diferentes gêneros e com diferentes propósitos garantindo sua evolução processual” (Brasil, 2012a, p. 49).

Em relação ao desenvolvimento da atividade proposta: ao acompanhar a leitura da reportagem e ver as fotos nos memes, Leandro começou a chamar a lua sangrenta de “lua de sangue”; ele foi instruído a identificar o nome “lua” nos memes e a grifá-los. O aluno leu a palavra lua como L, U, A, e repetia lua; para uma maior sistematização, vivenciou-se a leitura de vários memes que traziam a escrita da palavra lua, e essa contextualização ajudou no processo de consolidação da escrita. Mais uma vez, comprovou-se a teoria de Vigotski5, que evidencia o valor da mediação tanto do ser humano como dos objetos semióticos.

No intuito de consolidar as fases da lua, a pesquisadora optou por uma atividade lúdica, excelente recurso para aprender determinados conteúdo. Ela confeccionou um jogo de memória com os corpos celestes (as fases da Lua, Sol e Terra), o qual foi montado com a ajuda do aluno para que ele sentisse que era parte integrante da atividade. As regras do jogo foram criadas em conjunto, da seguinte forma: primeiro jogou-se com as cartelas viradas, mostrando as figuras para facilitar o reconhecimento dos pares (Sol/Sol); após a consolidação da primeira etapa, reviraram-se as cartelas, enumeraram-se os pares (frente/Sol, verso/número 1) e assim por diante em todas as figuras; quando ele compreendeu a forma correta de jogar, retiraram-se as numerações das cartelas e jogou-se normalmente.

Em seguida, o aluno passou para a atividade no computador, na qual identificava as mesmas figuras do jogo de memória na tela do computador, nomeava-as, pegava a ficha do jogo e depois as digitava no teclado. O jogo de memória analógico, em conjunto com a atividade em ambiente digital, modificou a relação do aluno com o texto escrito, o que confirma a fala de Vygotski (1999, p. 129) “a segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças”.

3º Módulo – Compreendendo a Lua e suas fases

Ao ser constatado que o aluno reconheceu e nomeou todas as fases da lua, decidiu-se realizar um experimento, com o intuito de aprofundar e consolidar o conteúdo estudado por meio da escrita dos nomes das fases da lua. Naquele momento, optou-se por fazer um experimento no qual ele pudesse participar das observações através da interação, da colaboração e da troca de experiências.

Para o experimento, tomou-se como referência as posições dos três corpos celestes: Sol (lanterna), Lua (bola) e Terra (aluno). O birô foi colocado no meio da sala, a bola na metade do birô (retangular), em cima de um copo descartável, e a lanterna em numa das extremidades do birô, na altura dos olhos do aluno. A Figura 1 serviu de referência para o aluno, como um motivador para esse entendimento.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).

Figura 1 Ilustrativo das fases da lua. 

Em seguida, com a sala pronta para o experimento, foi mostrado ao aluno que seria necessário apagar a luz, para que ele pudesse visualizar o efeito do Sol (lanterna) na Lua (bola) iluminada e identificar, em relação a sua posição na sala (Terra), qual fase da lua ele visualizava e reconhecia nos quatros cantos do local. Solicitou-se que, ao identificar as fases da lua, o aluno desenhasse e escrevesse seus nomes; naturalmente, após várias tentativas, ele realizou o experimento com êxito. Nessa perspectiva, Vygotski (1998, p. 136) afirma “que o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal”.

Esses resultados permitem ver o desenvolvimento de algumas habilidades dessa criança, as quais foram apropriadas de forma específica, na medida em que a sua compreensão teórica se aplicou na prática, dentro e fora do espaço escolar. A proposta de trabalho foi pensada para atender esse autista na alfabetização, apoiando-o nas suas dificuldades com ludicidade e com ambiente adequado, bem como alterando e ressignificando o percurso para garantir sua aprendizagem. No Quadro 1, é possível observar a evolução da sua escrita, tomando como parâmetro sua escrita inicial.

Quadro 1 Comparativo escrita inicial e atual. 

Escrita inicial Escrita da atividade
Ova Lua nova
Gia Lua gia
Ecte Lua qcete
Mete Lua minguante

Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).

Verificou-se com esse experimento que o aluno, além de desenhar, escreveu as palavras “lua nova” convencionalmente, o que demonstra uma evolução da atividade da escrita inicial (linha 1 do Quadro 1). Em relação às palavras “lua gia” (cheia), ele ainda não conseguiu realizar o processo fonológico do fonema “ch”, mas escreveu a palavra lua. Também houve uma evolução na escrita de “lua qcte” (crescente). No entanto, em lua minguante, o resultado foi surpreendente devido ao recurso do vídeo modelagem.

Vygotski (1998, p. 126) relata que:

A escrita não está separada da linguagem, e é constituída por um sistema de símbolos e signos (capacidade de atribuir significados) que determinam os sons e as palavras da linguagem oral. Para dominar esse sistema simbólico, é necessário que a criança desenvolva certas funções superiores, especificamente a abstração, sua função é fazer com que gradualmente a fala desapareça, sendo substituída pela escrita.

O autor revela que a linguagem se constitui primeiro no pensamento da criança, para depois ser registrada na escrita; contudo, a escrita deve ser ensinada como uma atividade cultural complexa.

Nessa etapa, para desenvolver a escrita, fundamenta-se também nos direitos de aprendizagem no eixo da produção de texto escrito “Produzir textos de diferentes gêneros, atendendo a diferentes finalidades, por meio da atividade de um escriba” e “Produzir textos de diferentes gêneros com autonomia, atendendo a diferentes finalidades” (Brasil, 2012a, p. 52).

4º Módulo – Produção textual

É imprescindível, ao docente, entender que os alunos com TEA possuem peculiaridades próprias para serem estimulados, de forma a atrair sua atenção pelo assunto e, consequentemente, promover a aprendizagem.

Nessa pesquisa, procurou-se comprovar que o desenho (estímulo visual) como precursor da escrita impulsionou o desenvolvimento verbal da criança. Com apoio em Vigotski, optou-se por partir do desenho para propor a atividade de produção textual. Pediu-se para ele desenhar um painel que representasse as fases da lua com os recursos da Sala de Recursos Multifuncional, como papel, pincel e tinta. A atividade foi realizada com autonomia e êxito, pois Leandro tem muita habilidade para artes, como é possível observar na Figura 2.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).

Figura 2 Desenho do painel. 

Depois de explorar o desenho com perguntas ao aluno e de entender a história que ele criou, orientou-se que ele escrevesse a história do desenho utilizando uma ferramenta móvel, notebook, com o propósito de atender aos direitos de aprendizagem, no eixo da produção de texto “Compreender e produzir textos destinados à organização e socialização do saber escolar/científico e à organização do cotidiano escolar e não escolar” (Brasil, 2012a, p. 39).

Para essa análise, será apresentado o trecho da transcrição do diálogo ocorrido nessa etapa do 4º módulo.

Pesquisadora: Leandro a lua aparece de dia ou de noite?

Aluno: A noite

Pesquisadora: A lua estava onde?

Aluno: No céu

Pesquisadora: O que é isso (aponta para escada)?

Aluno: Terra subiu menino subiu lua

Pesquisadora: O que aconteceu com o menino?

Aluno: Chegou na lua e caiu

Importante observar que a pesquisadora faz perguntas sobre o desenho construído e que a história da ilustração serviu de andaime para a história escrita. A mediação da pesquisadora ajuda na organização das ideias colocadas no desenho. Esses dois suportes auxiliaram na transposição da história contada através do desenho para a escrita. É um texto com início, desenvolvimento e fim, seguindo o percurso desenhado. Segue a escrita do texto no computador, que pode ser vista na Figura 3.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2018).

Figura 3 Produção de texto escrito no computador. 

Como é possível verificar, há muito mais em sua escrita do que a simples repetição de letras, vejamos a transcrição da pesquisadora “A noite a lua nova no céu terra subiu o menino subiu lua chegou na lua e caiu”, mostra uma produção textual, que ele desenvolveu com autonomia a partir do desenho do painel. Para Vygotsky (1995), a aquisição da escrita é a própria história do desejo de expressão da criança – que começa com o gesto e se manifesta pelo desenho, pela fala, pelo faz-de-conta e chega à linguagem escrita. Assim, compreende-se que o desenho e o faz-de- conta são representações simbólicas de uma etapa anterior, a qual leva à linguagem escrita.

Durante a situação didática, a pesquisadora conseguiu que o aluno participasse de todas as atividades; ora ele era capaz de realizá-las com autonomia, ora precisava de auxílio. Nesse momento, destaca-se a importância do trabalho dos profissionais de educação que respeitam as especificidades dessas crianças. Na história escrita por Leandro, percebeu-se um grande avanço da sua escrita inicial, pois ele foi além de palavras e construiu textos. Não é preciso lembrar a dificuldade existente na produção textual no processo de alfabetização, sendo que, no caso, lidou-se com um autista.

O fundamental nessa etapa é compreender a escrita como uma atividade complexa. À luz de Vygotski (1995, p. 183) “o domínio da linguagem escrita significa para a criança dominar um sistema de signos simbólicos extremamente complexo” e, para as autoras, o maior desafio é ensinar ao autista a linguagem escrita, não as letras. Naturalmente, a mediação da pesquisadora é parte essencial desse processo. Diante do exposto, é fundamental que o docente analise seus alunos autistas de maneira singular, para que possa encontrar o melhor método de fazê-los desenvolver esse sistema simbólico.

Considerações Finais

Objetivou-se, neste estudo, analisar o processo de aquisição da linguagem escrita de uma criança autista em ambientes tecnológicos, a partir dos multiletramentos no atendimento educacional especializado. A base consistiu na experimentação de usar o gesto, o desenho e o jogo como andaimes para a entrada na escrita, observando a teoria de Vigotski. Dessa maneira, entende-se que a representação simbólica no faz de conta e no desenho é uma etapa anterior a escrita, sendo uma atividade cultural complexa.

No quadro comparativo da escrita inicial e final das palavras estudadas, vê-se um desenvolvimento notável na habilidade da escrita. Na produção textual, percebe-se como o desenho serviu de aporte para a produção textual. Entre a fala e a escrita, o desenho permitiu uma mediação muito mais concreta, viabilizando a proposta de Vigotski.

Com os recursos dos jogos, dos desenhos, das maquetes e do computador, constata-se que os elementos multimodais ajudam no processo inicial da escrita. Como se vê, o emprego de ferramentas culturais, conduzido pelo mediador na ação educativa, impulsiona o funcionamento biologicamente dado, isto é, sensações e percepções a níveis superiores de funcionamento, levando a uma melhor participação nas atividades sociais. Essa ação amplia as experiências dos alunos, fundamentais para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (raciocínio, pensamento, linguagem).

É muito importante que o docente avalie diagnosticamente os alunos autistas, com o objetivo de intermediar o ensino e aprendizagem, por meio da interação entre o professor e essas crianças. Destaca--se o professor do AEE como mediador durante o processo de aprendizagem, cujo papel é incentivar, modelar e reinventar atividades para atender as especificidades de cada aluno com deficiência, no caso o autismo, rumo à aquisição da linguagem escrita.

As competências e as limitações de cada aluno precisam ser identificadas pelos seus professores, para que possam planejar a melhor forma de direcionar cada um ao desenvolvimento intelectual e social. Essa experiência impulsionou a continuar a pesquisa de experimentação do gesto, do desenho e do jogo como andaimes para a entrada na escrita.

2Nesse estudo, as palavras Autismo e TEA serão considerados sinônimos.

3Vídeo modelagem: termo utilizado pela autora para gravar a atividade durante sua execução, com o intuito de que o aluno assista a esses vídeos e, ao executar a atividade, essa informação seja retomada com êxito.

4Memes: criado pelo zoólogo e escritor Richard Dawkins, em 1976, quando escreveu no livro “The Selfish Gene” (O Gene Egoísta) que tal como o gene, o meme é uma unidade de informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que se propagam de indivíduo para indivíduo (Dawkins, 1976).

5Levando-se em consideração as diferentes formas de escrita do nome do estudioso russo Lev Semenovich Vigotski (1896-1934) – Vygotsky, Vigotsky, Vygotski, Vigotskii, Vigotski, entre outras –, a forma usual neste trabalho será Vigotski, exceto as citações x referências, as quais serão escritas conforme a grafia do texto original.

Como citar este artigo/How to cite this article

Silva, S. G. C.; Faria, E. M. B. Uma proposta com multiletramentos no atendimento educacional especializado na alfabetização do aluno autista. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e214926, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4926

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Recebido: 30 de Abril de 2020; Revisado: 25 de Outubro de 2020; Aceito: 05 de Novembro de 2020

Correspondência para/Correspondence to: E.M.B. FARIA. E-mail: evangelinab.faria@gmail.com.

Colaboradores

S. G. C. SILVA contribuiu para a construção da concepção, do desenho, da análise e da interpretação dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo. E. M. B. FARIA contribuiu com ajustes na análise e na interpretação dos dados, na revisão e na aprovação da versão final do artigo.

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