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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4990 

Artigos

Sentidos atribuídos à literatura no currículo do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa

Meanings attributed to literature in the curriculum of the National Pact for Literacy at the Right Age

Maria Carolina da Silva Caldeira1 
http://orcid.org/0000-0003-0668-1989

1Universidade Federal de Minas Gerais, Centro Pedagógico, Escola de Educação Básica e Profissional. Av. Presidente Antônio Carlos, 6627, Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil.


Resumo

Este artigo analisa os sentidos atribuídos à literatura por formadoras, orientadoras de estudos e professoras cursistas que participaram do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, vinculadas à Universidade Federal de Minas Gerais. O objetivo é compreender os saberes acionados, as relações de poder estabelecidas e as posições de sujeito demandadas pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, compreendendo que esse programa de formação se constitui em um currículo que ensina modos de ser e estar para as docentes. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa utilizou entrevistas narrativas com as participantes do Pacto. Como referencial teórico, foram utilizados conceitos de Michel Foucault, particularmente discurso, poder e posições de sujeito. Com base nesses conceitos, mostra-se como esse currículo operava com pressupostos do “discurso de letramento literário”, com destaque para dois elementos principais: a importância da leitura literária no currículo de formação docente e de alfabetização de crianças, e as possibilidades de articulação da literatura com outros artefatos para produzir práticas multiculturais e interdisciplinares no currículo.

Palavras-chave Alfabetização; Currículo; Formação de professoras; Literatura

Abstract

This article reviews the meanings attributed to the literature by trainers, study advisors course teachers who participated in the National Pact for Literacy at the Right Age, who are associated to the Federal University of Minas Gerais. The goal is to understand the knowledge triggered, the power relations established and the subject positions demanded by the National Pact for Literacy at the Right Age, understanding that this training program constitutes a curriculum that teaches ways of being for teachers. From a methodological point of view, the research used narrative interviews with the Pact participants. As a theoretical reference, Michel Foucault’s concepts were used, particularly discourse, power and subject positions. Based on these concepts, I show how was this curriculum operating with assumptions towards the literary discourse, emphasizing two main elements: on one hand, the importance of literary Reading on teacher training curriculum and on children’s literacy curriculum; on the other hand, the possibilities of articulation through literature and other artifacts for the production of multicultural and interdisciplinary practices in the curriculum.

Keywords Literacy; Curriculum; Teachers training; Literature

Introdução

“O que cabe num livro?” Com essa pergunta, inicia-se o livro de mesmo título, de autoria de Ilan Brenman e Fernando Vilela, o qual procura mostrar que, nesse artefato, cabe tudo aquilo que a imaginação do/a leitor/a desejar (Brenman; Vilela, 2016). O livro foi indicado como uma das “leituras deleite”2 para os encontros de formação de professoras alfabetizadoras, realizados no âmbito do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Foi lido em uma das formações realizadas no ano de 2014 no Polo vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) do referido Pacto e lembrado por professoras entrevistadas para a pesquisa que dá base a este artigo. É trazido aqui como mote para pensar o que “cabe” nas leituras literárias e no trabalho realizado com literatura no currículo do PNAIC. Procura-se investigar de que modo os saberes e as práticas disponibilizados no currículo das formações realizadas na Universidade foram apreendidos pelas professoras cursistas e os significados que elas atribuem a esses saberes, particularmente os relacionados à literatura. Para isso, utilizam-se informações produzidas em entrevistas realizadas com formadoras, orientadoras de estudos e cursistas vinculadas à UFMG durante o ano de 20153.

Política pública firmada entre o Governo Federal, Municípios e instituições de Ensino Superior, o PNAIC tinha como objetivo garantir que todas as crianças estivessem alfabetizadas até os oito anos de idade. Para isso, estruturava suas ações em quatro eixos, a saber: Formação continuada presencial para os/as professores/as alfabetizadores/as; Materiais didáticos distribuídos para as escolas; Avaliações sistemáticas das crianças em processo de alfabetização; Gestão, mobilização e controle social. Este artigo centra sua análise em uma ação do eixo “Formação continuada presencial para os/as professores/as”, analisando particularmente as relações que docentes que atuaram no curso do PNAIC como formadoras, orientadoras de estudo ou cursistas estabelecem com a literatura e a leitura literária. Parte-se do princípio de que as estratégias encaminhadas diante dessa ação se constituem em um currículo para a formação de professores/as, o qual estabelece saberes e conhecimentos adequados para serem ensinados na escola e, nesse processo, define modos de ser professor/a alfabetizador/a.

Entende-se currículo como “um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos” (Silva, 1995, p. 195). Trata-se de uma construção social que “produz ideias, práticas coletivas e individuais, sujeitos que existem, vivem, sofrem e alegram-se, num mundo que se produz atravessado por complexas redes de relações” (Corazza, 2001, p. 14). Por incorporar saberes e definir relações de poder, compreende-se que “suas narrativas e significados ensinam, formam e produzem sujeitos de determinados tipos” (Paraíso, 2010, p. 12). Posições de sujeito são disponibilizadas para quem vivencia aquele currículo e podem ser por eles/as ocupadas.

Cabe registrar que o currículo não se restringe a uma matriz na qual estão dispostos os saberes e os conhecimentos a serem construídos em determinado período de escolarização. O currículo envolve uma determinada forma de organizar saberes, conhecimentos e práticas, para produzir um tipo de sujeito (Silva, 1995). Nesse sentido, a análise aqui realizada não é dos documentos divulgados no Pacto nem das aulas ministradas pelas docentes que participaram dessa formação. O que se procura compreender são os sentidos que essas docentes atribuem à literatura e como os saberes com os quais tiveram contato são significados por elas. Busca-se compreender, ainda, os efeitos discursivos que a vivência do currículo do PNAIC teve para elas.

Analisam-se, então, com base em elementos da análise de discurso de inspiração foucaultiana, entrevistas narrativas realizadas com professoras que vivenciaram o currículo proposto pelo PNAIC. Essa análise mostrou que as falas das professoras relacionadas à literatura estavam, em grande medida, vinculadas ao que se nomeia aqui de “discurso do letramento literário”, o qual “exige o contato frequente e adequado com obras literárias, abordadas literariamente” (Paulino, 2010, p. 408). Na abordagem escolar desse letramento, pressupõe-se que essa instituição deve tanto ensinar a apreciar os textos literários como uma experiência estética quanto contribuir com “atividades sistematizadas e contínuas direcionadas para o desenvolvimento da competência literária, cumprindo-se, assim, o papel da escola de formar o leitor literário” (Cosson, 2014a, online). Ao acionar o discurso do letramento literário, as falas das professoras procuram destacar a importância da leitura literária para a formação das crianças, a necessidade da imaginação como ferramenta de escape a uma realidade nomeada como “difícil” e a demanda pelo ensino das estratégias interpretativas da literatura como tipo de texto específico. Porém, outros discursos se atrelavam ao discurso do letramento literário, ora tencionando-o, ora se articulando com ele para produzir determinados modos de ser professora nesse currículo de formação docente.

Mostra-se como a literatura estava presente na fala das professoras, articulando discursos, colocando em ação relações de poder e demandando modos de ser docente. Partindo do mote do livro citado no início deste artigo, pergunta-se: o que cabe em um currículo de formação de professoras que toma a literatura e a leitura literária como elementos importantes? Dois aspectos principais – vinculados de alguma forma ao discurso do letramento literário –, cabem nas falas das professoras entrevistadas: a necessidade da leitura literária na formação de professores/as e na alfabetização dos/as educandos/as; e as potencialidades da integração da literatura com outros artefatos para produzir práticas multiculturais e interdisciplinares no currículo escolar. Argumenta-se que esses diferentes modos de descrever a leitura literária e a literatura, por articularem diferentes discursos e inserirem as professoras em determinadas relações de poder, demandam uma posição de sujeito “professora leitora”.

A pesquisa que dá base a este artigo insere-se na vertente pós-crítica dos estudos curriculares, particularmente aquela que se utiliza das contribuições de Michel Foucault para pensar a educação. Nessa perspectiva, o currículo é compreendido como uma linguagem, como um discurso, o que implica compreendê-lo como uma construção arbitrária e ficcional (Corazza; Tadeu, 2003), cujo sistema de significação “disputa sentido com outras práticas discursivas” (Paraíso, 2002, p. 97). Dessa forma, ao analisar as falas das professoras a respeito de um aspecto do currículo do PNAIC (a literatura), procurou-se compreender que discursos são acionados, que conflitos são estabelecidos, que relações de poder emergem. Não se trata, portanto, de investigar as práticas desenvolvidas junto aos/às estudantes em processo de alfabetização ou de analisar os modos como esses/as docentes atuavam. Trata-se de procurar entender como a vivência desse currículo demandou determinados modos de ser docente para as professoras, particularmente no que se refere à literatura. Dessa forma, o currículo é um discurso que incorpora e entra em conflito com outros discursos, que disponibiliza posições de sujeito e que articula saberes, conhecimentos e práticas, tudo isso permeado por relações de poder.

O poder, nessa perspectiva, não é algo que se possui, mas que ocorre em múltiplas, variadas e conflitantes relações. O poder não é “um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras” (Foucault, 2000a, p. 183). Ele só ocorre em ato, o que significa que está em diferentes esferas sociais e que não se restringe apenas a dominação de alguém sobre outrem. Trata-se de uma relação em que os polos constantemente se modificam, entram em negociação, opõem-se e estabelecem uma permanente disputa, o que faz com que o poder não esteja permanentemente nas mãos de alguns. Ele é uma estratégia, e seus efeitos de dominação se devem “a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos” (Foucault, 1999, p. 27).

Outra característica das relações de poder na perspectiva foucaultiana é o fato de que elas “são, antes de tudo, produtivas” (Foucault, 2000b, p. 236). Isso implica que as relações de poder não são negativas, no sentido de que apenas reprimem e impedem certos fenômenos. Um dos primeiros efeitos do poder se refere à produção de saberes, pois “não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1999, p. 27). Ao adotar essa noção, o campo curricular passou a compreender o poder “em sua positividade, como produtor de verdades, de subjetividades, de saber” (Paraíso, 2007, p. 54).

As relações de poder-saber também se constituem como o espaço em que o sujeito “pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso” (Foucault, 1972, p. 221). Nessa direção, poder-saber se articulam com o conceito de posições de sujeito, já que possibilitam que alguém ocupe um determinado lugar para dele falar e, assim, ser reconhecido como sujeito daquele discurso. Dessa maneira, os diferentes aspectos que compõem um currículo, como as práticas possibilitadas pelos discursos, as posições de sujeito estabelecidas e as relações com a verdade, precisam ser investigados na perspectiva que utiliza conceitos foucaultianos para pensar um currículo.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa que dá base a este artigo utilizou como ferramenta metodológica entrevistas narrativas com formadoras, orientadoras de estudo e professoras alfabetizadoras. A entrevista narrativa consiste em uma técnica para produção de informações de pesquisa que parte de uma conversa, com alguns eixos estruturantes, para compreender os sentidos e os significados atribuídos pelos/as entrevistados/as a determinadas situações vividas (Andrade, 2008). Assim, “a narrativa, ao ordenar e atribuir sentidos aos acontecimentos, articulando-os em uma sequência temporal significativa, permite ao/a narrador/a a elaboração de imagens de si, do outro e do mundo e a atribuição de significados às suas experiências” (Pádua; Teixeira, 2006, p. 3).

A entrevista pode ser considerada como uma instância que “traz informações fundamentais acerca do vivido e possibilita uma interpretação (mesmo que provisória e parcial)” (Andrade, 2008, p. 175) daquilo que foi vivenciado. As professoras foram entrevistadas para buscar compreender como interpretavam o currículo vivido por elas e que sentidos atribuíam especificamente à literatura. A entrevista é compreendida como uma metodologia na qual é possível narrar e ressignificar práticas vivenciadas (Andrade, 2012), permitindo também a compreensão das relações de poder-saber que se estabelecem em determinado currículo.

As entrevistas foram realizadas com cinco das dez formadoras que atuaram no PNAIC em 2015. Foram selecionadas as cinco formadoras que atuaram nas formações dede o início das ações na UFMG, em 2012. Elas foram entrevistadas no decorrer de 2015, conforme horários agendados previamente com cada uma delas, e indicaram orientadoras de estudo para participarem da etapa seguinte da pesquisa. Foram realizadas entrevistas com 25 orientadoras de estudo, nos encontros presenciais de formação ocorridos na Universidade em 2015. Todavia, para fins deste artigo, serão utilizadas as informações produzidas nas entrevistas com três delas, as quais atuavam no Município de Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte/Minas Gerais. Foram selecionadas tendo em vista a disponibilidade do município para articular entrevistas com as professoras alfabetizadoras, bem como a organização própria do município para garantir a formação no PNAIC4. Após a entrevista com as orientadoras, foram realizadas entrevistas com nove cursistas (professoras alfabetizadoras), também indicadas por suas orientadoras de estudo. A pesquisa cumpriu todos os procedimentos éticos estabelecidos e foi registrada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, com o nº CAEE 35742014.0.0000.5149. Todas as participantes foram informadas a respeito de seus direitos e concordaram em participar da pesquisa, por meio da assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi acordado que seus nomes não seriam divulgados nos artigos resultantes da pesquisa.

As entrevistas foram transcritas e analisadas com base na análise de discurso de inspiração foucaultiana. Para Foucault (1972), discurso e fala não se confundem. O discurso “produz sistematicamente os objetos sobre os quais fala” (Foucault, 1972, p. 64), ou seja, por meio dos discursos são atribuídos significados aos diferentes elementos do mundo, que passam a ser compreendidos de determinada maneira. Assim, o discurso é produtivo; ele não somente narra um fato, mas está diretamente articulado à sua constituição. Os diferentes discursos colocados em disputa em uma dada sociedade tornam as falas possíveis, dando a elas certa inteligibilidade.

Analisar discursos na perspectiva foucaultiana significa estar atenta/o a alguns princípios. Nem todos eles foram adotados nesta pesquisa, mas aqui são destacados aqueles fundamentais para a compreensão dos sentidos atribuídos à literatura. O primeiro deles refere-se ao fato de que, ao analisar esse currículo, não se deve recorrer a uma essência ou a algo que estaria ocultado nas falas das professoras. Assim, não se busca descobrir “sob a superfície aparente um elemento oculto, um sentido secreto que se esconde nelas ou aparece através delas sem dizê-lo” (Foucault, 1972, p. 143). Pelo contrário, é preciso se ater “ao que efetivamente é dito, apenas à inscrição do que é dito” (Deleuze, 1988, p. 26). A partir desse entendimento, procurou-se compreender como o currículo do PNAIC era significado pelas professoras que o vivenciavam. A análise feita do currículo do PNAIC se refere, portanto, ao modo como as professoras percebiam as práticas em que eram inseridas e que sentidos davam a ela. Suas falas não escondem uma verdade mais oculta, mas entende-se que nelas aparecem diferentes saberes que articulam discursos distintos.

Um segundo princípio importante da análise de discurso que inspirou a análise aqui empreendida refere-se à identificação dos discursos que davam inteligibilidade às falas das professoras. De acordo com Fischer (2003, p. 373), analisar discursos significa compreender as falas como “algo que irrompe num tempo e espaço muito específicos, ou seja, no interior de uma certa formação discursiva – esse feixe complexo de relações que ‘faz’ com que certas coisas possam ser ditas (e serem recebidas como verdadeiras)”. Dessa forma, procurou-se verificar a que discursos essas falas se vinculavam, em que se ancoravam para que fossem compreendidas como verdadeiras e para que gozassem de legitimidade no momento histórico atual. Por meio desse mecanismo, foi possível perceber que as falas, em grande medida, se aproximavam do discurso acadêmico do letramento literário e era nele que buscavam os saberes com os quais operavam.

Um terceiro princípio da análise de discurso refere-se ao fato de que os discursos necessariamente estão envolvidos em relações de poder. Como afirma Foucault (1996, p. 2), “suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e distribuída por um certo número de procedimentos”. A distribuição desigual dos discursos na sociedade faz com que haja disputas entre eles, nenhum discurso é absoluto e homogêneo, todos se articulam a outros, seja para multiplicar os sentidos divulgados, seja para opor-se a eles. Dessa forma, procurou-se analisar nos ditos das professoras os discursos que se opunham e os que se articulavam ao do letramento literário e como eles se emaranhavam para produzir determinados sentidos sobre a literatura. As falas das professoras foram analisadas, então, procurando compreender de que modo a literatura operava nesse currículo, acionando saberes, estabelecendo relações de poder e demandando certos modos de ser docente. Esses usos da literatura serão analisados a partir de agora.

Resultados e Discussão

Saindo das caixas e indo para as rodas: caminhos para formar o “gosto pela literatura”

Diferentes análises têm mostrado que a literatura muitas vezes está ausente dos currículos de formação de professores/as e das práticas curriculares desenvolvidas com crianças e adolescentes (Paulino, 2010). Nesse sentido, políticas públicas variadas foram criadas a fim de garantir o acesso aos livros por meio da escola, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE)5. O currículo de formação de professores/as produzido pelo PNAIC também se insere nessas políticas, seja distribuindo livros para as escolas por meio de Obras Complementares, seja criando práticas que visam à divulgação da leitura literária e seu estímulo na sala de aula. Entre essas práticas, destaca-se a “leitura deleite”, apontada pelas formadoras como uma prática que “ficou institucionalizada [...] toda palestra, todo encontro, toda aula sempre tenha algo da literatura, algo pra se pensar” (Entrevista com a formadora N., outubro de 2015)6.

A leitura deleite parece ser entendida como uma prática que pretende retirar os livros das caixas enviadas pelo MEC e levá-los para as salas de aula. Na percepção das formadoras, a prática da leitura deleite

mobilizou a escola, mobilizou pra conhecer os materiais, porque tudo que a gente falava aqui elas começaram a procurar na escola [...] a minha pesquisa de mestrado mesmo mostrava isso, porque eles não sabiam o que era PNBE, o que era [...] ninguém sabia nada dessas políticas. O PNAIC foi fundamental pra isso, porque pelo menos tirou das caixas e pôs nos armários (Entrevista com a formadora D., novembro de 2015).

Nesse sentido, esse currículo de formação de professores/as faz com que “livros que são enviados para as escolas e para as salas de aula e que, muitas vezes, ficam adormecidos lá, sem um trabalho efetivo, por parte das professoras” sejam utilizados (Entrevista com a formadora E., dezembro de 2015).

A prática de ler livros literários para iniciar encontros de formação constitui-se em elemento que encontra base no discurso de letramento literário. Partindo de um princípio amplamente divulgado por estudos literários, segundo o qual “a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (Candido, 1988, p. 191), o discurso do letramento literário considera que ter acesso à literatura é fundamental no currículo de formação de professores/as. Assim, a leitura deleite constitui-se em uma prática que atualiza o princípio do direito à literatura ao inseri-lo em um currículo de formação docente. Divulga-se nas formações a importância da literatura, o que faz com que as orientadoras e as cursistas se inspirem para trabalhar com a leitura deleite também com as crianças em processo de alfabetização. Esse aspecto passa a ser destacado como uma prática essencial.

Diferentes razões são apresentadas para isso. De um lado, considera-se que a literatura é uma possibilidade de desenvolver habilidades diversas previstas no currículo do Ensino Fundamental, pois pelo trabalho com os livros se “desenvolve a questão da oralidade, que a Língua Portuguesa não é só a escrita. Na verdade, a oralidade, ela bem desenvolvida, com certeza, ela vai influenciar nessa parte, nessa questão da escrita” (Entrevista com a cursista L., novembro de 2015). Percebe-se, assim, que a literatura pode proporcionar aquilo que é o objetivo central do PNAIC: a alfabetização das crianças até os oito anos de idade. Por outro lado, a literatura também é apresentada como importante para imaginação e fruição, uma vez que, “através de um livro, você leva a criança no processo totalmente de imaginação, tira ela desse mundinho difícil, às vezes, que ela traz isso de casa. E vai dar a ela possibilidade de um mundo melhor através da leitura. Quem lê, viaja, isso eu tenho pra mim” (Entrevista com a cursista A., novembro de 2015).

Dois aspectos centrais do discurso do letramento literário aparecem nessas justificativas para o uso da literatura. O primeiro deles refere-se à escolarização da leitura literária, visando à construção de habilidades de oralidade, de leitura e de escrita. Afinal, o discurso do letramento literário presente nesse currículo também pretende contribuir para “o desenvolvimento de habilidades de compreensão, interpretação e construção de sentidos de textos” (Soares, 2010, p. 16), particularmente daqueles considerados literários. O segundo refere-se à demanda para que a escola ensine a apreciar os textos literários como uma experiência estética, aprendendo que a leitura literária “é associada à reflexão e à imaginação, quando estimula nossa percepção a romper com o automatismo da rotina cotidiana” (Paiva; Paulino; Passos, 2006, p. 25). Percebe-se, assim, como esse currículo demanda professoras e estudantes leitores/as, tanto no sentido de capazes de interpretar textos literários como de capazes de extrair da experiência de leitura literária práticas que os/as levem para além de sua experiência imediata.

A presença do discurso do letramento literário nas falas não se dá, porém, sem tensões, dúvidas e questionamentos. Evidenciando que o currículo é espaço de lutas, de articulações e de acordos, limitações percebidas no trabalho com a leitura deleite apareciam nas falas das professoras. Assim, a formadora E. afirma que “o grupo ficou muito incomodado com o fato de usar muito PNLD, porque esses livros foram selecionados mais com o intuito de usar a literatura para trabalhar conteúdos”. Na mesma direção, a formadora D. também afirma que “a própria Leitura Deleite lá do caderno7, às vezes, é uma leitura duma obra didática, que eles tão chamando de Leitura Deleite. A gente fica que não quer desconsiderar o material e nem ficar, também, só falando mal do material que é o que elas têm”. Cabe registrar, aqui, que parece haver uma diferença no modo como formadoras e cursistas percebem o uso da literatura. Para as cursistas, o sentido de uso no cotidiano para garantir práticas de alfabetização parece ganhar mais espaço do que aquele atribuído pelas formadoras de garantir a fruição e a experiência estética. Isso evidencia um conflito discursivo no que se refere aos modos como a literatura deve estar presente no currículo dos anos iniciais.

Na tentativa de garantir um equilíbrio entre esses dois aspectos importantes, as formadoras procuram levar outros materiais para o currículo de formação de professoras, no intuito de produzir uma prática que possibilite um trabalho com a literatura e que considere sua “função maior de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, sabores e formas intensamente humanas” (Cosson, 2014b, p. 17), assim como se afirma no discurso do letramento literário, que deve ser o papel da literatura. Nesse sentido, são produzidos encontros nos currículos com outros materiais. A literatura aparece, assim, como mobilizadora de articulações com outros artefatos culturais, conforme mostrado a seguir.

Possibilidades de articulação com outros artefatos: cinema, música, diversidade racial e literatura

Articular-se com filmes, músicas, objetos diversos, disciplinas escolares e temáticas emergentes, como a educação das relações étnico-raciais: essa é mais uma das possibilidades da literatura no currículo do PNAIC. Elas aparecem de diferentes formas, ora articulando-se, ora contrapondo-se ao discurso do letramento literário. A articulação se dá sobretudo quando textos literários acionam outros artefatos para produzirem o encantamento e o deleite. Já a contraposição ocorre quando a literatura é utilizada para trazer para o currículo saberes das diferentes disciplinas escolares. Nesses momentos, o entendimento da literatura como fruição e ampliação das vivências humanas parece perder força para um caráter utilitário, já muitas vezes combatido pelo discurso do letramento literário (Lajolo, 2009).

Elementos comumente usados em práticas de contação de história, como aventais, malas com livros, fantoches e músicas são acionados pelas professoras cursistas nas práticas de leitura deleite. Esses materiais servem tanto para despertar o gosto pela literatura como para produzir determinados padrões de comportamento, pois, como afirma a cursista A., “às vezes, com um lenço ou uma madeira ou um objeto, um fantoche, você consegue tirar ela [a criança] daquele fato de agitação e trazer ela pro momento de tranquilidade e aprendizagem” (Entrevista com a cursista A., novembro de 2015). A literatura é acionada aqui com dupla função: tanto pode despertar as crianças para a fruição como trazê-las para uma prática considerada pela professora como mais tranquila e adequada ao processo de ensino e aprendizagem. Se Almeida (2011, p. 62), em pesquisa cujo foco era o uso da literatura em sala de aula, encontrou práticas nas quais o “controle corporal relacionado à crença de que a ‘postura inadequada’ promove ‘aprendizagens inadequadas’” era necessário à contação de histórias, na narrativa da Cursista A. a literatura parece ser utilizada para promover certa tranquilidade em sala de aula, produzindo determinadas aprendizagens.

Nas práticas que têm como base o discurso do letramento literário, também são acionadas músicas, mesmo em livros em que não há música, como afirma a cursista R.: “eu... contei pra eles a história daquele livrinho ‘Os reizinhos do Congo’. Até que lá não tem música, é a história, mas aí nós colocamos um ritmo naquele “Kalunga ê Kalunga a”, sabe? Aí, os meninos cantam, os meninos dançam, os outros tocam e eu até preparei essa questão pra trazer como a musicalidade desse Para Casa”8. A literatura pode ser articulada também ao cinema, como narra a formadora D.:

A gente trabalhou semestre passado [...] com o livro ‘Balão’ que era um livro do Daniel Cabral. E aí, a gente passou um filme antigo, desses... clássicos que chama ‘Le Ballon Rouge’ pras professoras, fizemos uma dinâmica, tudo em volta da literatura. Uma professora que é uma das que dá aula pra criança, fez com as crianças, além de fazer com cursistas. Ela falou que teve menino que chorou no filme, né?! Aí, falei: “como é que a gente ia pensar que um filme desse, ele é preto e branco, tocou as crianças?

(Entrevista com a formadora D., novembro de 2015).

A literatura – em sua articulação com a música e com o cinema –, tem também a capacidade de promover emoções nas professoras. Compagnon (2012) afirma que a literatura pode provocar “[...] minha compaixão; quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seu destino; suas felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente meus” (Compagnon, 2012, p. 62). Assim, a formadora N. afirma que um livro:

[...] me marcou, especialmente, [...] um dia eu fiz um encontro em Betim e eu estava trabalhando um dos gêneros que podem ser usados na sala de aula que é indicação literária. Então, eu li esse livro para as professoras, que eram minhas cursistas, fazerem a indicação literária, como elas iam propor lá. Mas foi tão lindo! Foi um trabalho tão, tão emocionante, que elas levantaram, elas se abraçaram, sabe?

(Entrevista com a formadora N., outubro de 2015)9.

Indicações de livros lidos para além daqueles propostos nos Cadernos de formação também causam emoções nesse currículo, como mostra a formadora M., que diz: “Eu sempre faço propaganda do livro que eu tô lendo. Ontem, eu falei que eu tô lendo ‘A bibliotecária de Auschwitz’. Que eu falei ‘Gente, eu não sou de chorar, eu tenho chorado com esse livro’” (Entrevista com a formadora M., novembro de 2015). Acionam-se, assim, elementos do discurso do letramento literário nesse currículo, na medida em que são possibilitadas emoções propiciadas pela literatura. Ao mesmo tempo, opera-se nele com uma técnica que busca aproximar formadoras, orientadoras e cursistas, por meio da troca de experiências, para que um currículo que tem a literatura como elemento central possa funcionar e produzir professoras que sejam leitoras.

Nessa direção, a ampliação do repertório literário das professoras aparece também como uma reivindicação desse currículo. Aciona-se, assim, outro elemento do discurso do letramento literário, o contato com livros diferentes dos convencionais. Esse currículo parece ter “potencial para possibilitar o surgimento e a renovação de disposições de alunos, professores e bibliotecários nesse complexo jogo de valores e regras que permeiam o campo da literatura” (Grossi, 2018, p. 86). Esse aspecto é reconhecido e valorizado pelas professoras que afirmam que “eu gostei muito, principalmente, pela novidade. Acho que é uma coisa, se é literatura, tem que estar sempre renovando” (Entrevista com a cursista N., novembro de 2015).

Essa ampliação do repertório possibilita também incluir livros sobre diferentes culturas, como aponta a formadora M. ao dizer que:

esse ano eu trouxe um que era até novo pra mim, que era do Daniel Munduruku, aquele indígena, que foi sobre a cultura indígena, e elas comentaram ‘M, era sempre tão chato trazer algum livro indígena!’ E esse foi bem tranquilo, foi bem [...] todo mundo comentou, me pediram o livro emprestado, geralmente, elas fazem PowerPoint do livro e passa pra todo mundo

(Entrevista com a formadora M., outubro de 2015).

A presença de outras culturas por meio da literatura é também reforçada pela cursista R., “Eu contei ‘Que cor é a minha cor?’ Eu tô até com o livrinho ali [...] Depois, eu levei eles pra ver o vídeo, desse mesmo livro, porque aí passa as fotos e contando a história, e eu fiz um trabalho todo da africanidade em cima dessa história” (Entrevista com a cursista R., novembro de 2015).

A educação das relações étnico-raciais vem ganhando espaço no currículo escolar desde a promulgação das Leis 10639/2003 e 11645/2008, que definiram essa temática como obrigatória nos currículos escolares. Para atender a essa demanda legal, diferentes artefatos têm sido utilizados, entre eles, a literatura. Como apontado por Freitas (2018, p. 116), a literatura infantil na atualidade tem atuado na “produção e divulgação de sujeitos com marcas explícitas de raça/etnia, que anteriormente ficavam à margem de uma literatura voltada para o público infantil”. Tornam-se, assim, artefatos utilizados nos currículos para atender à demanda histórica de luta de grupos negros e indígenas, para que suas visões de mundo sejam incorporadas aos currículos escolares. Essa parece ser a percepção da orientadora de estudos A., que diz: “Então, quando tem que desenvolver algum trabalho, a gente já busca na literatura” (Entrevista com a orientadora A., novembro de 2019). Parece haver aqui uma tensão em relação ao que estabelece o discurso do letramento literário. Se, por um lado, a literatura possibilita o conhecimento e aproximação com outras culturas, por outro, esse uso pode ser entendido como um pretexto para trabalhar determinadas temáticas, deixando de lado o aspecto estético que marca o texto literário. No que se refere ao trabalho com diferentes culturas, percebe-se que formadoras, orientadoras de estudo e cursistas recorrem a livros literários para trabalhar as temáticas. Todavia, um uso da literatura com o objetivo de trabalhar aspectos culturais aparece de forma mais evidente nas narrativas de orientadoras de estudo e cursistas, enquanto parece haver certa ressalva nesse trabalho no que se refere às formadoras.

Esse aspecto é ainda mais perceptível quando a literatura é acionada para produzir práticas nomeadas como interdisciplinares. A orientadora de estudo A. aponta que “a gente conseguiu, a partir da teoria, a partir da prática, das orientações lá da formação, fazer com que os professores compreendessem a importância de incluir a literatura como um recurso dentro das áreas do conhecimento, não só da língua portuguesa” (Entrevista com a orientadora A., novembro de 2015). De modo semelhante, a orientadora L. aponta que as cursistas “não aproveitavam essa leitura, nessa história, pra trabalhar os outros conteúdos [...]. E foi muito bom porque elas aprenderam que de uma leitura você pode [...]. Você não precisa de trabalhar Matemática separado, Ciências separado, disciplinar, elas podem trabalhar interdisciplinar, né?!”. Essa ideia passa a constituir as percepções das cursistas acerca da sua prática. Como afirma uma delas: “foi aí que eu aprendi a dar aula contando, introduzindo em todas as minhas aulas com uma história. Porque prende a atenção, eles se interessam e depois, a gente vai andando com o conteúdo” (Entrevista com a cursista R., novembro de 2015).

Esse aspecto é problematizado pelas formadoras que procuraram mostrar para as orientadoras:

a diferença entre livros literários e livros paradidáticos e, mais ainda, que tivessem a consciência da diferença de um trabalho a ser feito com literatura e um trabalho a ser feito com outros conteúdos, porque, muitas vezes, o professor acha que pelo fato de ter trabalhado com um livro, como, por exemplo, ‘Os dez sacizinhos’, é... onde trabalhava ordem crescente e decrescente, já tinha vencido o seu papel de trabalhar com a literatura

(Entrevista com a formadora E., novembro de 2015).

Parece haver aqui uma tensão entre a literatura utilizada como pretexto (Lajolo, 2009) para trabalhar determinado aspecto do currículo e o discurso do letramento literário. Esse modo de trabalhar a literatura para incluir algum conteúdo ou para trabalhar de forma interdisciplinar é considerado no discurso do letramento literário como operador de uma “inadequada escolarização da literatura” (Soares, 1999, p. 25). Dessa forma, há uma tensão entre o que as formadoras dizem fazer no currículo de formação docente e aquilo que as cursistas e orientadoras de estudo afirmam fazer nos currículos por elas praticados. Essa tensão mostra como esse currículo está envolvido em relações de poder, que demandam das professoras múltiplas facetas.

Conclusão

Analisar um currículo a partir das falas daquelas que o produziram e vivenciaram traz potencialidades e desafios. Potencialidades por ser possível perceber os saberes retidos na memória daquelas que passaram pela experiência curricular, por ser possível verificar os discursos que subsidiam as falas, por possibilitar a percepção dos conflitos inerentes às diferentes práticas. Desafios, pois não se trata de uma análise direta do currículo, como aquela que se processa por meio de uma observação em sala de aula ou pela análise documental. Todavia, considera-se que, para o objetivo deste artigo de compreender os saberes e os significados atribuídos à literatura em um currículo de formação docente, a escolha pela entrevista narrativa possibilitou entender quantos elementos “cabem” nesse currículo a partir do recorte da literatura.

Foi possível perceber a presença marcante do discurso do letramento literário, materializado pela recordação dos momentos de leitura deleite e pela preocupação das formadoras com a ampliação do repertório literário das cursistas e das orientadoras de estudo. Foi possível constatar os conflitos que se estabelecem entre esse discurso e outros que circulam no campo pedagógico, como aqueles associados à educação das relações étnico-raciais e à interdisciplinaridade. Foi possível, ainda, verificar a demanda pela professora leitora que poderá, quem sabe, formar também o/a estudante leitor/a. Ainda que não seja objetivo do artigo analisar as diferenças nas formas como formadoras, orientadoras de estudo e cursistas percebem a literatura, notou-se que os diferentes modos como elas utilizam os livros literários e o público com o qual trabalham (professoras em formação continuada ou crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental) também marcam os significados que elas atribuem à literatura e à leitura literária.

Assim como muitas coisas cabem em um livro, muitos aspectos também cabem na posição de sujeito professora leitora demandada pelo currículo do PNAIC. Cabe a professora que incorpora o uso de livros literários em sua prática e faz com que políticas de incentivo à leitura literária sejam efetivadas no cotidiano escolar. Cabe a professora que procura dar voz, por meio da leitura literária, aos grupos historicamente excluídos do currículo. Cabe a docente que busca produzir um currículo interdisciplinar. Cabe também a professora que tem dúvidas quanto a esses diferentes aspectos e que problematiza saberes que circulam com força de verdade na contemporaneidade. Nesse sentido, o trabalho com a literatura permite diferentes modos de ser docente e de incluir certos discursos no currículo escolar. Considerando que a literatura tem uma grande capacidade para o desvio e para a fabulação, ela sempre trará a possibilidade para o novo e para o diferente no currículo de formação docente, mesmo que isso se faça com tensões e com contradições.

2Na Proposta de formação do PNAIC, todos os encontros presenciais devem ser iniciados com a prática da leitura deleite, que é definida como a “leitura de textos literários, com conversa sobre os textos lidos, incluindo algumas obras de literatura infantil, com o intuito de evidenciar a importância desse tipo de atividade” (Brasil, 2013, p. 32). A indicação específica desse livro foi feita no Caderno 5 de Alfabetização Matemática que trata de Geometria.

3O PNAIC esteve em vigor entre 2012 e 2015. Ele funcionava com uma estrutura em que professoras são selecionadas em cada um dos municípios que aderiram ao Pacto para frequentar a formação das Universidades. Essas são chamadas de “orientadoras de estudo”. A formação nas Universidades é ministrada por profissionais nomeadas de “formadoras”. Geralmente, as formadoras são professoras ou participantes de Grupos de Pesquisa da Universidade. As orientadoras de estudo são responsáveis por repassar a formação recebida nas Universidades para as professoras alfabetizadoras cursistas em seus municípios. No grupo que foi sujeito da pesquisa que dá base a este artigo, todas as profissionais são ou foram professoras, seja na educação básica, seja no ensino superior. Por essa razão, quando estiver me referindo a todo o grupo que participou das entrevistas, utilizarei o termo professoras ou docentes. Quando houver necessidade de especificar as diferenças entre os grupos, usarei as expressões com as quais elas eram identificadas no PNAIC (formadoras, orientadoras de estudo ou cursistas). Cabe registrar, todavia, que há poucas diferenças entre as concepções, conforme se mostrará ao longo do artigo.

4Em Sabará, as orientadoras de estudo deixaram de atuar diretamente nas escolas da Rede Municipal e passaram a trabalhar na Secretaria de Educação, articulando as políticas voltadas para os três anos iniciais do Ensino Fundamental. Essa forma de trabalho possibilitou, na visão das professoras, uma maior dedicação às ações do PNAIC.

5Além da distribuição de livros didáticos, o PNLD também distribuía (por meio de “Acervos complementares” e do PNLD Literário) livros de literatura para escolas públicas do País. O PNBE, por sua vez, promovia o acesso a acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência para as escolas do País. A partir de 2017, o Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, unificou as ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários, anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Nesse sentido, pode se considerar que houve um retrocesso nas políticas públicas que incentivavam o acesso à literatura na escola nos últimos anos. No período de realização da pesquisa, porém, ambos os Programas estavam em execução. Além disso, obras complementares vinculadas às ações do PNAIC foram enviadas às escolas.

6As professoras que atuaram no PNAIC serão identificadas pelas letras iniciais de seus nomes, conforme acordo estabelecido com elas no momento das entrevistas.

7A formadora refere-se aos Cadernos de Formação, material didático indicado pelo MEC para subsidiar as práticas formativas desenvolvidas com as professoras alfabetizadoras.

8O “Para Casa” a que a cursista se refere é a atividade que a orientadora de estudo indica para ser feita com os/as estudantes pelas professoras alfabetizadoras e levada no encontro de formação seguinte.

9Cidade do Estado de Minas Gerais/Brasil.

Apoio/Support: Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Edital 04/2016 – Programa de Auxílio a Doutores Recém-Contratados).

Como citar este artigo/How to cite this article

Caldeira, M. C. S. Sentidos atribuídos à literatura no currículo do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e214990, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4990

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Recebido: 26 de Junho de 2020; Revisado: 22 de Outubro de 2020; Aceito: 05 de Novembro de 2020

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