SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26Élisée Reclus: movimento ácrata, educação e ensino de GeografiaConcepções sobre as inteligências humanas no ambiente escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4927 

Artigos

O letramento da criança brasiguaia na escola brasileira de fronteira

Literacy of “brasiguayan” children in the Brazilian border school

1Universidade Federal da Grande Dourados, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Rod. Dourados/Itahum, Km 12, Cidade Universitária, 79804-970, Dourados, MS, Brasil.


Resumo

O presente artigo tem como tema central o letramento de crianças brasiguaias na fronteira Brasil – Paraguai, nas cidades fronteiriças Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai). O objetivo é compreender a vivência das crianças brasiguaias em relação às línguas portuguesa, guarani e espanhola nas diferentes esferas de letramento de seu convívio, identificando que língua utilizam para se comunicar de forma oral ou escrita. O estudo desenvolveu-se por meio de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo descritiva. Os participantes foram sete estudantes brasiguaios que moram no Paraguai e estudam no Brasil e um aluno que possui residência nos dois países, todos estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental I em uma escola municipal de Ponta Porã (MS). A técnica utilizada para obtenção dos dados foi a entrevista semiestruturada, e os aportes teóricos foram os Novos Estudos do Letramento. Os resultados indicam que as crianças conseguem conviver muito bem em praticamente todas as esferas de letramento com o português, com o espanhol e com o guarani. Elas demonstram desenvoltura e transitam com magnitude entre as diferentes esferas, com funções distintas nessas três línguas. A exceção é o âmbito escolar, o qual se mostra como um grande desafio, porque, nos momentos oficiais do uso da língua, as crianças se restringem ao português, utilizando o guarani e o espanhol apenas informalmente.

Palavras-chave Alfabetismo; Alunos brasiguaios; Esferas de letramento; Multilinguismo

Abstract

The present article has as its main theme the literacy of brasiguayan children on the Brazil - Paraguay border in the border cities of Ponta Porã (Brazil) and Pedro Juan Caballero (Paraguay). The objective is to understand the brasiguayan children’s language experience with Portuguese, Guarani and Spanish in the different spheres of literacy of their environment, identifying which language the children use to communicate orally or in written form. The study was developed through a qualitative investigation, of the descriptive type. The participants were seven brasiguayan students who live in Paraguay and study in Brazil, and a student who lives in both countries; they were all 3rd year elementary school students attending a municipal school in Ponta Porã (MS) in Brazil. The technique used to obtain the data was the semi-structured interview. The theoretical contributions that guided this study are the New Literacy Studies. The results indicate that the children demonstrated they can manage to get along very well with almost all different spheres of literacy, in Portuguese, Spanish and Guarani. They showed resourcefulness and ability to transit easily between the different spheres, with different functions in those three languages, with the exception of the school sphere which is a great challenge for them, because in the official moments the language use is restricted to Portuguese. At school children end up using Guarani and Spanish only in moments of informality.

Keywords Literacy; Brasiguaios students; Spheres of Literacy; Multilingualism

Introdução

O presente estudo insere-se na temática do letramento de crianças brasiguaias2 na fronteira Brasil – Paraguai e tem o objetivo de compreender a sua vivência em relação às línguas portuguesa, guarani e espanhola nas diferentes esferas de letramento de seu convívio, identificando que línguas utilizam para se comunicar de forma oral ou escrita.

Tomando como referência pesquisas realizadas na área, dentre elas Peres (1999); Santos (1999); Teis (2004); Sanches (2006); Dalinghaus (2009); Anjos (2011); Barbosa (2015); Berger (2015); Godoy (2015); Oliveira (2015); Silva (2016), Zambrano (2016), pode-se observar que poucos trabalhos abordaram a questão do bilinguismo/multilinguismo voltado para a alfabetização de crianças, ficando as produções restritas a um viés sociolinguístico. Percebeu-se também que a área da pedagogia pouco tem se interessado pelo assunto, com a grande maioria das produções restritas à área de Letras. Diante desse cenário, é possível concluir que muito tem a ser investigado nessa área que tanto pode contribuir nas pesquisas voltadas para a alfabetização e para o letramento de crianças das regiões de fronteira.

A particularidade entre Ponta Porã (BR) e Pedro Juan (PY)

Situada ao sul da região Centro-Oeste do país, no sudoeste de Mato Grosso do Sul, Ponta Porã fica a 324km da capital do estado, Campo Grande, e a 1.346km da capital federal, Brasília. Localizado na fronteira entre Brasil e Paraguai, o município é considerado cidade gêmea com a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero.

Para Pereira (2009), um dos grandes desafios a ser enfrentado nas regiões de fronteira é a língua. Na maioria das vezes, os sistemas nacionais de educação são pensados e planejados a partir dos grandes centros, sem levar em conta que em várias regiões do país existem particularidades, como é o caso da fronteira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, formada por uma população diferenciada por seus costumes, saberes, crenças e, principalmente, idiomas.

A diversidade linguística presente nessa região é algo bem característico. Pereira (2014, p. 102) afirma que:

[...] há o uso corrente de três línguas: guarani, espanhol e português. É comum a travessia de crianças residentes no país vizinho deslocarem-se para estudar nas escolas brasileiras: elas, em geral, falam guarani e são alfabetizadas com base numa pedagogia monolíngue, em língua portuguesa.

Com isso, parte dos alunos das escolas de Ponta Porã compõe uma realidade bem particular; eles moram em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, e todos os dias atravessam a fronteira para estudar nas escolas brasileiras. Em casa, com a família, falam em espanhol e guarani; na escola, são alfabetizados em português.

Isso acaba sendo um grande desafio para educadores das escolas do lado brasileiro da fronteira, pois eles têm que alfabetizar e letrar alunos que muitas vezes nem conhecem a língua portuguesa. São perceptíveis as inseguranças diante da alfabetização e do letramento dos alunos nessas escolas com tanta diversidade, e é nesse cenário que se dá o desenvolvimento desta pesquisa.

As múltiplas facetas da alfabetização e do letramento: compreendendo alguns conceitos

Inicia-se esta seção diferenciando os termos alfabetização e letramento. Para Soares (2013, p. 15), o termo alfabetização diz respeito ao “processo de aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e escrita”, já letramento são os usos sociais da leitura e da escrita. É importante destacar que, para a autora, “alfabetização e letramento são processos distintos, de natureza essencialmente diferente; entretanto, são interdependentes e mesmo indissociáveis” (Soares, 2004, p. 92).

Ao apresentar esses conceitos apoia-se na compreensão da natureza social do letramento, que se originou e se desenvolveu por meio dos estudos e das pesquisas no campo dos Novos Estudos sobre Letramento (NEL). Esses estudos buscam compreender como a leitura, a escrita e a oralidade são usadas e significadas por diferentes grupos sociais/educacionais.

Os NEL são uma teoria defendida pela sociolinguística, a qual busca compreender como as práticas de letramento acontecem dentro e fora da escola, conhecendo os aspectos e os impactos do uso da língua escrita. O foco nessa teoria não é só a aquisição do sistema de escrita, pensa-se em letramento como uma prática social. Segundo Street (2003, p. 7), os NEL pretendem,

[...] usar especialmente a compreensão das experiências emergentes das crianças com o letramento no seu próprio meio cultural para se dirigir a questões educacionais mais amplas quanto à aprendizagem do letramento e da mudança entre as práticas de letramento exigidas em diferentes contextos.

Os NEL reconhecem que existem múltiplos letramentos, pois os usos da leitura, da escrita e da oralidade são variados, dependendo do local (casa, praça, igreja, escola, trabalho...), das situações, dos contextos, do tempo e das linguagens.

Para pesquisar sobre letramento com base na teoria dos NEL, é necessário que se tenha em mente a diferença entre o modelo autônomo e o ideológico de letramento.

O modelo de ensino que boa parte das escolas apresenta atualmente ainda é considerado como ineficiente, quando pensado para o âmbito social. Nesse sentido, Kleiman (1995) afirma que as instituições escolares têm suas práticas pautadas no modelo autônomo de letramento, que fica à parte da sociedade. Baseadas nesse modelo, as escolas e as pessoas que nela trabalham acreditam que são detentoras do saber e que o prestígio social está intrinsicamente relacionado ao grau de instrução.

O modelo ideológico de letramento percebe as práticas que envolvem a leitura, a escrita e a oralidade para além do espaço escolar. Nesse sentido, as práticas estão presentes na vida social, são múltiplas e levam em consideração os conhecimentos prévios e culturais que os indivíduos adquirem em sociedade. É nessa segunda perspectiva que se pauta este estudo.

Reconhecendo que as práticas de leitura, de escrita e de oralidade vão além da escola e perpassam outros locais da sociedade letrada, Ribeiro (2004, p. 21) conceitua esses espaços de circulação da língua como “esferas de letramento, ou esferas da vivência cotidiana em que práticas de leitura e escrita podem estar presentes”3. A autora divide as esferas da seguinte forma: a doméstica, a do trabalho, a do lazer, a da participação cidadã, a da educação e a da religião. Para cada uma dessas esferas, identifica-se que tipos de materiais escritos estão presentes:

A esfera doméstica [...] administração da casa, a vivência em família, o cuidado e a educação das pessoas, além de outras atividades relacionadas ao consumo, às finanças pessoais, aos deslocamentos, etc. [...] acervos de materiais escritos presentes na casa das pessoas: calendários, correspondências, livros, jornais etc. [...]. Na esfera do trabalho, [...] ações para conseguir um emprego (consultar anúncios classificados no jornal, elaborar currículo, fazer fichas e entrevistas, participar de concursos) como ações implicadas no próprio trabalho. [...] memorandos, formulários, orçamentos, planilhas, relatórios, manuais, catálogos etc. [...]. Abordando a esfera do lazer, [...] gostam ou não de ler para se distrair e quais são os tipos de leituras preferidas para esse fim. Além disso, [...] assistir à TV, ir ao cinema, ao teatro, a museus, a eventos esportivos etc. Na esfera da participação cidadã foram incluídas práticas básicas, como tirar documentos, acessar benefícios sociais, declarar importo de renda e votar nas eleições. [...]. Na esfera da educação foram incluídas práticas relacionadas à educação formal e não formal. Finalmente, à esfera da religião [...] crucial tanto no que se refere à disseminação da alfabetização quanto aos valores associados à leitura e ao livro. Os dados apurados pelo Inaf confirmam esse aspecto em relação à cultura brasileira, identificando que grande parte das leituras a que as pessoas se dedicam estão relacionadas a essa esfera [...]

(Ribeiro, 2004, p. 21).

Mesmo que não saibam ler e escrever, as crianças, os jovens e os adultos interagem com a escrita dentro e fora de suas casas, na escola, no parque, no comércio da cidade, entre outros locais. São vários os ambientes de circulação de material escrito com que se deparam diariamente; todavia, esse contato acontece de modos e em níveis diferentes, dependendo da interação social e cultural de cada indivíduo.

As complexas interações e mediações entre sujeito, sociedade e mundo da escrita levam o indivíduo às práticas sociais e escolares de letramento. Por meio delas, é possível compreender as funções sociais da escrita, o modo como ela se adapta aos diferentes contextos sociais e como o indivíduo a ela se adequa e dela se apropria (Marcuschi, 2001).

Percebe-se que não se pode separar a educação desses aspectos sociais e culturais, afinal, cultura, sociedade, cidadania e educação estão intimamente ligadas. Diante disso, o papel de um professor alfabetizador é muito importante para uma sociedade, pois, como Matêncio (1995, p. 241) destaca, “para nós, dado o fato de que, ao fazer sentido pela fala, escrita e leitura, o sujeito assume uma certa identidade social, materializando (e atualizando) relações de nomeação e de poder inscritas na língua, [...]”.

Procedimentos Metodológicos

Em busca de atender aos objetivos propostos neste estudo, a perspectiva de abordagem utilizada é a qualitativa, cuja característica é responder a questões muito particulares, que não podem ser quantificadas devido aos “significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes” (Minayo, 2002, p. 21). Compreende-se então um espaço mais aprofundado nas relações, nos processos e nos fenômenos, que vão além de variáveis operacionalizáveis.

Na pesquisa qualitativa o pesquisador procura reduzir a distância entre a teoria e os dados, entre o contexto e a ação, usando a lógica da análise fenomenológica, isto é, da compreensão dos fenômenos pela sua descrição e interpretação. As experiências pessoais do pesquisador são elementos importantes na análise e compreensão dos fenômenos estudados

(Teixeira, 2006, p. 137).

A pesquisa qualitativa aqui desenvolvida foi do tipo descritiva, a qual, segundo Gil (2002, p. 42.) “[...] têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno [...]”. Os pesquisadores que normalmente realizam esse tipo de pesquisa estão preocupados com a atuação prática.

A técnica de coleta de dados utilizada foi a entrevista semiestruturada, definida por Gil (2008, p. 109) “como a técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação”. As entrevistas representam instrumentos primordiais para a coleta de dados, permitindo correções, esclarecimentos e adaptações que as tornam eficazes na obtenção de informação. Gil (2002, p. 114) ainda diz que a entrevista “pode ser entendida como a técnica que envolve duas pessoas numa situação ‘face a face’ e em que uma delas formula questões e a outra responde”.

O roteiro de questões para a entrevista com os alunos foi composto por 21 questões, as quais trataram sobre o tempo que essas crianças estudam em escolas brasileiras, sobre qual das cidades fronteiriças os pais/responsáveis trabalham e sobre quais idiomas, português, espanhol ou guarani, eles costumam utilizar em diferentes locais e com diferentes pessoas.

O lócus de pesquisa e desenvolvimento deste estudo foi uma escola municipal da cidade de Ponta Porã (MS). O critério de seleção foi a proximidade da escola com a linha de fronteira Brasil – Paraguai, o que consequentemente possibilita maior número de alunos brasiguaios matriculados na instituição.

O critério de elegibilidade dos participantes dessa pesquisa foi que os alunos fossem registrados em cartório com documentação brasileira, mas morassem no Paraguai e estudassem no Brasil. Dos oito estudantes selecionados, apenas um possui residência nos dois países, mas todos frequentam o 3º ano do Ensino Fundamental I.

As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes, utilizando um gravador de voz disponível em um aparelho de celular (Samsung J8). Por meio das perguntas propostas, os participantes puderam relatar detalhes a respeito das diferentes línguas que utilizam para se comunicar de forma oral ou escrita nas diferentes esferas de letramento. As entrevistas foram posteriormente transcritas para a realização do processo de análise.

Primeiras aproximações

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, divididas em blocos de análise, para analisar de forma qualitativa e interpretativa como o letramento é vivenciado pelas crianças diante do multilinguismo na região de fronteira e, assim, compreender e identificar o uso que fazem para se comunicar de forma oral e escrita em língua portuguesa, espanhola e guarani, nas diferentes esferas de letramento de seu convívio.

No primeiro bloco, apresentam-se questões destinadas a conhecer mais a respeito da realidade dos alunos, como é constituído o seio familiar, onde os pais trabalham, que língua costumam usar em casa, com familiares, e na vizinhança, com amigos e colegas. Perguntou-se também desde que idade frequentam uma escola brasileira e se alguma vez já haviam estudado no Paraguai.

Fazendo um panorama a respeito das respostas dadas nesse primeiro bloco da entrevista, foi possível constatar, com relação à estrutura familiar dos alunos, que, das oito crianças entrevistadas, quatro moram com a mãe e com o pai, uma mora com a mãe e com o padrasto, uma mora somente com a mãe, uma somente com o pai e uma, por ter casas nos diferentes países, mora com a mãe e com o pai no Brasil e com o avô e com a avó no Paraguai.

Os pais são, em sua maioria, assalariados, tendo empregos como vendedor, açougueiro, doméstica, atendente de mercado, pedreiro e dona de casa. A maior parte trabalha do lado paraguaio da fronteira. Quando matriculam seus filhos nas escolas brasileiras, ao que parece, acreditam que os filhos receberão uma educação de melhor qualidade e, consequentemente, poderão melhorar suas condições de vida por meio do estudo.

Pesquisadora: E por que você acha que a sua mãe colocou para estudar no Brasil?

Íris4: Eu acho que vai ser mais melhor pra mim estudar no Brasil do que no Paraguai. Porque no Paraguai o ensino é mais ou menos e no Brasil ensina mais.

Pesquisadora: A sua mãe fala isso pra você? Ela fala que o ensino do Brasil é melhor que o do Paraguai?

Íris: Sim

O trecho remete a Street (1995), quando ele escreve que os pais, em sua maioria, procuram se comprometer com a aprendizagem dos filhos, levando-os para a escola, incentivando-os nos estudos, acompanhando sua vida estudantil, tornando-se o que o autor denomina de “guardiões da literacy escolar”.

Ao perceber, pela fala das crianças, que os pais têm e reproduzem o discurso sobre buscar uma escola de qualidade para seus filhos, identifica-se o que Graff (1994) define como “mito da literacy”. Este consiste na crença de que a pessoa alfabetizada, com um grau mais avançado de escolarização, terá uma melhor condição econômica e de vida e será mais desenvolvida cognitivamente, uma vez que os pais acreditam na “alfabetização-como-uma-via-para-o-desenvolvimento”, como destaca o autor (Graff, 1994, p. 34).

Cook-Gumperz (1991), ao pesquisar sobre o “mito da literacy”, relata como aconteceu a invenção desse mito, por meio dos estudos que demonstram as mudanças que ocorreram nas expectativas e no conceito de literacy ao longo da história da alfabetização. A autora faz um resgate histórico e verifica a importância que a alfabetização ganhou nos séculos XVIII e XIX, e como a ideia que liga a alfabetização ao desenvolvimento se difundiu no mundo como um todo.

[...] o ímpeto para o crescimento da escolarização não veio apenas dos reformistas sociais, [...] mas também dos capitalistas industriais e de sua necessidade por uma força de trabalho industrial. Dessa forma, adicionava-se um novo elemento à ideologia da alfabetização do século dezenove, o qual diferia essencialmente do igualitarismo do século dezoito. As mudanças iniciadas no século dezenove encorajaram uma ideologia da alfabetização que proporcionava a união e a justificativa para a visão de que o esforço, o sucesso econômico do indivíduo e o avanço da alfabetização por meio da escolarização estavam, necessariamente, relacionados

(Cook-Gumperz, 1991, p. 44).

Por conta disso, acredita-se que os pais apostam na procura por uma educação de qualidade, cruzando fronteiras em busca dessa crença, pois entendem o sucesso na escola como sinônimo de progresso econômico, social e cultural.

Com relação à história de vida estudantil das crianças, apenas dois alunos estudam desde a Educação Infantil nos Centros de Educação Infantil de Ponta Porã, cinco começaram a estudar a partir do Ensino Fundamental e um foi transferido de uma escola paraguaia para uma brasileira, onde ingressou no terceiro ano do Ensino Fundamental, após a realização de um exame.

É interessante perceber que a entrada dos estudantes brasiguaios no Brasil ocorre com mais frequência a partir dos anos iniciais do Ensino Fundamental, o que pode apontar que os pais dão pouca importância para a Educação Infantil. Segundo Coelho e Castro (2010), para que as crianças possam ampliar suas possibilidades de imersão e de participação nas práticas sociais, é importante que frequentem a Educação Infantil. Nessa etapa de ensino, os pequenos interagem e aprendem com as pessoas próximas, compreendendo e participando do ambiente em que estão presentes. Essas interações/comunicações proporcionam às crianças segurança para se expressar e para buscar conhecimento. Com relação à importância da Educação Infantil para o desenvolvimento de práticas de letramento na vida das crianças, Kleiman (1995, p. 18) destaca:

Uma criança que compreende quando o adulto lhe diz “olha o que a fada madrinha trouxe hoje!” está fazendo uma relação com um texto escrito, o conto de fadas: assim, ela está participando de um evento de letramento (porque já participou de outros, como o de ouvir uma historinha antes de dormir); também está aprendendo uma prática discursiva letrada, e, portanto, essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba ler e escrever.

Assim compreende-se que aprender uma língua vai muito além de aprender palavras e letras, é também compreender todos os significados que expressam as mais diversas formas como as pessoas vivenciam, interpretam e representam a realidade. Ao fazer parte da Educação Infantil, as crianças interagem com a língua falada e escrita, desenvolvendo-se integralmente em seu convívio com o mundo letrado.

Com relação à língua que costumam utilizar para se comunicar com pais, irmãos, amigos e familiares, é comum observar a presença de no mínimo dois idiomas entre os diálogos relatados pelas crianças. Normalmente, um dos pais é o “guardião do português”, que busca contribuir na formação letrada do filho, comunicando-se no idioma que ele acredita ser importante que a criança domine para ter um bom desempenho na escola brasileira.

Pesquisadora: Quando você está lá na sua casa, qual é a língua que você costuma utilizar para se comunicar com seus pais?

Calla: Português

Pesquisadora: Com a mamãe e com o papai? Você não fala espanhol na sua casa?

Calla: Às vezes eu até falo com a minha mãe assim, porque ela fala comigo assim também.

Pesquisadora: Sua mãe então fala em português e fala em espanhol com você?

Calla: Sim.

Com inspiração em Street (1995), em uma analogia ao termo “guardiões da literacy escolar”, foi cunhado o termo “guardião do português”, o qual se refere ao familiar que, mesmo morando e trabalhando no Paraguai, comunica-se com o filho em português para que ele tenha contato com a língua em que será alfabetizado.

No segundo bloco, por influência de por Kleiman (1995), buscando investigar a esfera do lazer, apresentam-se questões para investigar se os alunos costumam frequentar lugares como parques e praças para a prática de esporte e lazer, e qual língua costumam utilizar quando estão nesses lugares. Percebe-se que, por mais que as crianças não se dirijam especificamente para praças e parques, costumam brincar na rua com os irmãos e com os amigos nas proximidades de suas casas, o que se configura também como uma prática de lazer. Essas atividades lúdicas normalmente acontecem do lado paraguaio, mas algumas crianças brincam também no lado brasileiro da fronteira.

Durante essas interações lúdicas com outras pessoas, os estudantes relataram falar em português, em espanhol e em guarani, dependendo da língua falada pelo interlocutor.

Pesquisadora: Qual é a língua que você utiliza nesses lugares quando você vai na pracinha?

Girassol: Português

Pesquisadora: Com quem você utiliza o português?

Girassol: Tudo é brasileiro que fica mais lá, porque eles moram assim vira uma esquina e já têm mais casas de vizinhos brasileiros, meus amigos.

Pesquisadora: Se você vai nesses parques e têm pessoas paraguaias, você fala qual idioma?

Girassol: Espanhol

Pesquisadora: Então depende de quem está nesses lugares para você usar o idioma? Se você vai na praça ou no parque mesmo que seja no Paraguai, você chega lá e encontra pessoas brasileiras você fala qual idioma?

Girassol: É... Português

Pesquisadora: E se você chega lá e encontra pessoas paraguaias?

Girassol: Espanhol.

Pesquisadora: Quando você tá jogando lá no Paraguai, qual idioma você usa?

Trevo: Tem brasileiro e tem paraguaio. Com brasileiro eu falo português.

Pesquisadora: E com os paraguaios:

Trevo: Guarani si no espanhol.

Pesquisadora: E quando você está no Brasil participando desse projeto que você me contou, você fala qual idioma com seus amigos do projeto?

Trevo: O português.

Pesquisadora: Só português? Não tem paraguaio lá?

Trevo: Tem alguns, mas a gente não fala em guarani lá.

Pesquisadora: Falam só em português?

Trevo: É.

Diante disso, como destacado por Kleiman (1995) e por Street (2003), as práticas de letramento perpassam as relações sociais, os processos de aprendizagem e a forma como as pessoas se comunicam. Nesses encontros de lazer praticados pelas crianças e por seus familiares, podem ser encontrados diversos elementos constitutivos das práticas e dos eventos de letramento.

Outra questão levantada foi a respeito da prática religiosa das crianças e de suas famílias. Questionou-se se as crianças participam de grupos infantis na igreja, como catequese, escola dominical e infância missionária, por exemplo. Foi perguntado, também, a respeito da língua que costumam utilizar quando estão nesses locais.

Pesquisadora: Você participa de algum grupo para crianças dessa igreja onde você frequenta?

Girassol: Escola dominical no Paraguai [...]

Pesquisadora: Me explica uma coisa... Por que pra ir no culto sua família vai no Brasil e os estudos da escola dominical você faz no Paraguai?

Girassol: Os cultos eles vão no Brasil, na igreja que chama Deus é Amor daí no Paraguai chama Dios es Amor.

Pesquisadora: Qual língua você costuma utilizar quando vai à escola dominical?

Girassol: Espanhol

Pesquisadora: E quando vai ao culto?

Girassol: Se for no Brasil português, mas se for no Paraguai espanhol.

Kleiman (2007) destaca que a esfera religiosa se mostra como extremamente importante para a população de modo geral, e isso não é diferente com as crianças. Os cultos, as missas e os encontros infantis relatados pelas entrevistadas são eventos de letramento proporcionados pela “Igreja” dentro da esfera religiosa de letramento, a qual tem significativa importância, pois, como destacado por Kleiman (2007, p. 15) “exigem a mobilização de diversos recursos e conhecimentos por parte dos participantes das atividades”.

Por meio disso, é possível concluir que os eventos voltados para a resolução de problemas da vida social, como compreender as leituras da Bíblia, criam diversas oportunidades de aprendizagem para as crianças que frequentam esses locais.

No terceiro bloco, outro ponto abordado trata das dificuldades que as crianças poderiam ter com relação à língua durante as atividades propostas pelas professoras na escola e em sala de aula. O excerto abaixo é representativo das respostas dadas pela maioria dos alunos:

Pesquisadora: A respeito das atividades e tarefas que as professoras passam pra você aqui na escola, você tem alguma dificuldade na hora que vai fazer essas atividades? Você acha difícil ou acha fácil?

Hibisco: Difícil.

Pesquisadora: O que você tem dificuldade pra fazer aqui na escola? Por exemplo, quando a professora passa atividade, você tem dificuldade de ler ou de escrever?

Hibisco: De escrever.

É interessante mencionar que as dificuldades relatadas pela maior parte das crianças estão restritas à esfera escolar, principalmente ao ato de escrever, já que, como visto anteriormente nas esferas doméstica, religiosa e do lazer, eles transitam oralmente com facilidade ao se comunicar com pais, familiares, amigos e com outras pessoas próximas.

Nos relatos dados até aqui pelas crianças, cabe retomar o que Street (1984) fala a respeito dos modelos autônomo e ideológico de letramento, bem como ver o quanto as escolas, como afirma o próprio autor, ainda praticam e vivenciam o modelo autônomo, o qual concebe a escrita em si mesma, de forma reducionista e desvinculada de um contexto. Em contrapartida, o ideal seria que as escolas seguissem o modelo ideológico, que propõe observar o processo como um todo, envolto na socialização das pessoas e na construção de significado por seus participantes.

Cagliari (2006) reconhece a existência de transformações linguísticas presentes na escola e frisa que não deve haver a valorização de uma em detrimento da outra, mas sim o reconhecimento da diferença entre elas.

Ler, escrever e falar em guarani, espanhol e português

No bloco quatro, buscou-se saber em quais lugares frequentados pelos alunos fala-se, lê-se e escreve-se em guarani, quais atividades eles realizam quando estão nesses locais e sobre o que eles e as outras pessoas falam, leem e escrevem nessa língua.

Catalogando os dados, percebeu-se que a língua guarani se faz presente em eventos que utilizam a linguagem oral. São raras as respostas em que os estudantes declararam presenciar atos de leitura e de escrita nessa língua, ficando os casos restritos a eventos em que as crianças veem amigos que estudam no Paraguai realizando as tarefas de casa. Isso faz lembrar que por muito tempo o guarani foi depreciado no Paraguai, pois era a língua dos povos colonizados. Foi só no ano de 1992 que a atual Constituição da República do Paraguai oficializou a língua no país e as escolas paraguaias passaram a trabalhar com ela em sala de aula, juntamente com o espanhol.

O guarani se apresenta em atividades informais, como as realizadas na esfera do lazer. Sobre isso Trevo explica:

Trevo: Falo em guarani no campo de futebol perto da minha casa.

Pesquisadora: O que você fala?

Trevo: Pra tocar a bola.

Pesquisadora: E na sua casa, você seu pai e seus irmãos, vocês falam em guarani?

Trevo: Fala às vezes.

Pesquisadora: O que vocês falam em guarani? Que tipo de conversa?

Trevo: No meu bairro tem muitas pessoas que falam.

Pesquisadora: O que você escuta as pessoas falarem em guarani no seu bairro?

Trevo: Jaha Tererê.

Pesquisadora: O que é isso?

Trevo: Vamos tomar tereré.

Na esfera religiosa, o guarani parece dar o tom de acolhida, de proximidade entre os fiéis, pois existem momentos em que há a sua utilização e momentos em que se fala o espanhol.

Íris: Na igreja eles cantam em guarani e de vez em quando eles falam entre si em guarani. Quando eles vão cantar eles cantam uma música assim... guarani mesmo.

Pesquisadora: Música pra Deus?

Íris: Sim.

Pesquisadora: Você sabe, você conhece essa música?

Íris: Acho que é uma que fala “Ñandejára Jesús Cristo” até aí só sei.

Ressalta-se que nos dois exemplos citados acima as esferas são diferentes, mas a função é a mesma, levando à conclusão de que aqui a língua guarani é utilizada informalmente, buscando a aproximação entre os interlocutores, pois são amigos de brincadeiras, familiares ou pastores querendo arrebanhar seus fiéis.

Marcuschi (2001, p. 25) define a oralidade como “uma prática social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora”. Por meio dessa característica apresentada pelo autor, passou-se a compreender que as pessoas se apropriam da fala, seja na “norma padrão” ou não, por meio das interações pessoais que vivenciam, sem se dar conta da importância dessa prática no seu cotidiano. Parte-se da oralidade para que se chegue ao uso formal da escrita.

No bloco cinco, procurou-se saber em quais lugares frequentados pelos alunos fala-se, lê-se e escreve-se em espanhol, quais atividades eles realizam quando estão nesses locais e sobre o que eles e as outras pessoas falam, leem e escrevem nesse idioma.

Como apontado acima, o espanhol e o guarani são os idiomas oficiais do Paraguai, porém o espanhol é a língua mais utilizada. Isso faz com que as crianças entrevistadas vivenciem muitas das suas práticas tanto na oralidade quanto na leitura e na escrita desse idioma. Os excertos a seguir são exemplos representativos:

Pesquisadora: Lugares que você frequenta onde percebe a presença da escrita em espanhol?

Íris: Quando eu vou brincar de escola com meus amigos, meus vizinhos. Eu passo tipo texto, ou tipo uma frase.

Pesquisadora: Onde mais você percebe a presença da escrita do espanhol?

Íris: Na minha casa, a minha vó. A Bíblia dela é em espanhol, ela pega vê na Bíblia e depois copia no caderno dela.

Pesquisadora: E você lê a Bíblia?

Íris: Eu leio.

Pesquisadora: Você lê em espanhol também?

Íris: Em português e espanhol.

Pesquisadora: Lugares que você frequenta onde você vê as pessoas falando em espanhol.

Lírio: Lá na igreja eles falam.

Pesquisadora: O que eles falam?

Lírio: Pra abrir a Bíblia, chama as pessoas pra poder ir lá no púlpito para cantar, e também assim quando vem novas pessoas ele apresenta.

Pesquisadora: Lugares que você frequenta onde percebe a presença da escrita do espanhol?

Calla: Em casa minha mãe faz lista.

Pesquisadora: Que lista?

Calla: Lista de frutas, de verduras.

Pesquisadora: Para ela ir ao mercado?

Calla: Para o meu pai.

Pesquisadora: E a vovó?

Calla: Eu já vi ela escrevendo no caderno dela, porque ela vende sabão né. Daí ela escreve no caderno dela o que ela vendeu, tudo em espanhol.

Nos fragmentos apresentados, identifica-se a presença do espanhol em eventos de leitura, de escrita e de oralidade. As esferas de uso são plurais: a escolar, durante as aulas de espanhol; a de lazer, quando brincam com seus colegas; a doméstica, ao lerem rótulos e fazerem a lista de compras; e a do trabalho, ao tomarem nota das mercadorias vendidas. Algumas situações narradas chamaram atenção, como xingamentos, quando estão do lado brasileiro, e a utilização da leitura, da escrita e da oralidade do espanhol com maestria pela esfera religiosa. A esfera escolar parece ser a que mais tem dificuldade em trabalhar com o espanhol, uma vez que, conforme os relatos das crianças, o uso dessa língua fica restrito às conversas informais e às aulas da disciplina de espanhol.

O que muda em cada uma das esferas analisadas é o grau de formalidade com que a língua espanhola é utilizada. Com relação a esse grau de formalidade, Travaglia (2009, p. 51) afirma que:

O grau de formalismo representa uma escala de formalidade, entendida como um maior cuidado e apuro (no sentido normativo e estético) no uso dos recursos da língua [...] e também como uma maior variedade de recursos utilizados, aproximando-se cada vez mais da língua padrão e culta [...]”.

Assim, pode-se observar que a “norma padrão” da língua está relacionada com o grau de formalismo, o que faz com que os falantes monitorem suas falas, mudando o estilo de acordo com a situação. São diversas as funções que o texto assume, seja ele oral ou escrito. Quando se considera os interlocutores, todo conteúdo a ser expresso tem uma intencionalidade; ao formulá-lo, passa-se a pensar, por exemplo, o que será exposto, quem será o destinatário, que objetivo se quer alcançar, entre outras variáveis (Antunes, 2003).

Diante dos aspectos mencionados acima, torna-se importante destacar que as escolas brasileiras da região da fronteira deveriam oportunizar mais momentos nos quais o espanhol seja abordado, além das aulas desse idioma. Uma possibilidade mais rápida e viável é que o bilinguismo faça parte das práticas de letramento trabalhadas na escola, levando em consideração a prática sociocultural que essas crianças fronteiriças vivenciam em seu dia a dia, como destacado por Street (2003).

No bloco seis, o objetivo consistiu em descobrir em quais lugares frequentados pelos alunos fala-se, lê-se e escreve-se em português, quais atividades eles realizam quando estão nesses locais e sobre o que eles e as outras pessoas falam, leem e escrevem nessa língua.

Os fragmentos abaixo são representativos dessas práticas:

Calla: Aqui na escola as pessoas falam em português.

Íris: Na escola quando eu vou falar com as minhas amigas. Na aula de educação física a gente conversa.

Margarida: Falando o português aqui na escola quando fala ‘vamos brincar’.

Trevo: Na escola... muita coisa, pede pra professora pra ir tomar água, pede as coisas emprestadas, quando joga futebol pede falta.

Hibisco: Falam de muitas coisas da escola, de estudar, xingando os colegas.

Girassol: Aqui na escola, lendo em português, a professora, eu e meus colegas. A professora chama pra ler no quadro, fazer leitura em voz alta, fazer história em quadrinho, lê o livro e a gente faz no caderno atividade.

Íris: A leitura do português é mais na sala mesmo, quando passa texto e nós começa a ler o texto no caderno, nos livros e nos gibis.

Narciso: Aqui na escola lê livro, quando copia no caderno também né, escreve e lê. A professora lê em português.

É possível concluir que as crianças utilizam e observam os colegas e as professoras falarem o português na esfera escolar, no campo da oralidade, da leitura e da escrita, quando conversam entre si informalmente e quando realizam as atividades escolares.

Nas esferas doméstica e do lazer, o uso da língua portuguesa para as crianças depende de quem vai receber a mensagem que elas, enquanto emissoras, querem passar. Se as pessoas com quem elas estão conversando têm domínio da língua portuguesa, elas optam por se comunicar nessa língua.

Pesquisadora: Qual é a língua que você utiliza nesses lugares quando você vai na pracinha?

Girassol: Português.

Pesquisadora: Com quem você utiliza o português?

Girassol: Tudo é brasileiro que fica mais lá, porque eles moram assim vira uma esquina e já tem mais casas de vizinhos brasileiros, meus amigos.

Pesquisadora: Se você vai nesses parques e têm pessoas paraguaias, você fala qual idioma?

Girassol: Espanhol.

Essa situação remete ao que Travaglia (2009) afirma sobre a língua: ela é um código usado para transmitir uma mensagem, é por meio dela que a comunicação é efetivada em sociedade. Portanto, para que a comunicação aconteça efetivamente, é necessário que esse código seja usado de maneira semelhante.

Os relatos feitos pelas crianças mostram que o português está presente na esfera religiosa, no nível da informalidade, por meio de palavras e de frases ditas durante o culto.

Girassol: Às vezes a minha avó lê em português a Bíblia que é do Brasil. E vota também na igreja, escreve se você quer se batizar ‘sim ou não’, daí ele escreve lá em português.

Pesquisadora: Como assim voto?

Girassol: Voto de trabalho, que Deus vai abençoar.

Pesquisadora: Papel com oração?

Girassol: Sim, na igreja.

A leitura e a escrita nessa esfera aparecem por meio da leitura da Bíblia, da anotação de versículos pelos adultos e da entrega de panfletos e de mensagens, conforme relatado pelas crianças. Em casa, na esfera doméstica, as crianças costumam ler livros infantis e brincar de escolinha; alguns pais também se mostram como “guardiões do português” e leem livros para seus filhos nessa língua.

Íris: Eu e minha irmã temos o costume de ler livrinhos.

Pesquisadora: Quais histórias vocês leem?

Íris: Rapunzel, Branca de Neve, Cinderela.

Pesquisadora: Em português?

Íris: Sim, em português. Minha mãe também lê histórias pra gente em português.

Terzi (1995, p. 93) faz a análise da influência dos eventos de leitura familiares com relação à vida escolar das crianças, afirmando que “os benefícios de um ambiente familiar rico em eventos de letramento resultam em maior sucesso no desenvolvimento inicial da leitura e, consequentemente, maior sucesso nas primeiras séries escolares [...]”.

Terzi (1995, p. 93) destaca também o quão importante é que a criança seja exposta constantemente às leituras infantis: “Ouvir e discutir textos com adultos letrados pode ajudar a criança a estabelecer conexões entre a linguagem oral e as estruturas do texto escrito, a facilitar o progresso de aprendizagem de decodificação da palavra escrita [...]”, contribuindo para a facilidade do acompanhamento do ensino proposto pela escola e, consequentemente, para o maior sucesso escolar da criança.

O uso da Internet por meio de sites e de aplicativos também foi relatado pelas crianças, mostrando que se utilizam do letramento digital em seu dia a dia.

Trevo: Com meu irmão que mora no Brasil eu falo em português, com meu irmão que mora no Paraguai espanhol.

Pesquisadora: Por mensagem?

Trevo: Às vezes escreve, às vezes manda áudio.

Pesquisadora: Pelo celular?

Trevo: É pelo WhatsApp

Pesquisadora: E quando você lê no seu celular? Você lê em qual idioma? Português, espanhol ou guarani?

Trevo: Leio mais em espanhol.

Pesquisadora: O que você lê?

Trevo: Muita coisa, YouTube, Face.

Pesquisadora: Então você pesquisa no YouTube e olha o Face, faz isso só em espanhol?

Trevo: Em espanhol e em português também.

Como destacado por Ribeiro e Coscarelli (2014), a pessoa que domina o letramento digital sabe se comunicar em diversas situações e propósitos nesses ambientes digitais, trocando mensagens por WhatsApp e por demais redes sociais, buscando informações na Internet, entre outras atividades.

No próximo tópico, são feitas as considerações finais deste estudo, diante dos dados coletados e analisados nas entrevistas.

Considerações Finais

As análises feitas alcançam o objetivo de compreender a vivência das crianças brasiguaias em relação às línguas portuguesa, guarani e espanhola nas diferentes esferas de letramento de seu convívio, identificando que língua utilizam para se comunicar de forma oral ou escrita.

Nas entrevistas, foi possível concluir que a língua guarani é utilizada com diferentes funções: quando empregada de forma oral, visa à informalidade presente em situações cotidianas, como em parques e na escola. Na esfera religiosa, o guarani parece dar o tom de acolhida e de proximidade entre os fiéis, já que existem momentos em que há a sua utilização e momentos em que se fala o espanhol. A leitura do guarani é pouco vivenciada pelos alunos, ficando restrita a momentos na igreja e na escola, quando observam amigos realizando tarefas escolares, pois estudam no Paraguai. O mesmo ocorre com a escrita, praticamente inexistente, que aparece apenas quando os entrevistados assistem amigos fazendo a tarefas no Paraguai.

As crianças entrevistadas vivenciam muito as práticas de leitura, de escrita e de oralidade quando se trata do idioma espanhol, primeiro pelo fato de que essa língua é a mais utilizada no Paraguai, segundo porque elas moram nesse país. Uma esfera que se destaca pelo uso do espanhol, tanto na oralidade como na leitura e na escrita, é a religiosa. No lado brasileiro, essa língua é também percebida em situações orais menos formais, como quando estão confeccionando listas de compras ou xingando. A esfera escolar parece ser a que mais tem dificuldade em trabalhar com o espanhol, uma vez que, conforme os relatos das crianças, o uso dessa língua fica restrito às conversas informais e às aulas da disciplina de espanhol.

O português no campo da oralidade, da leitura e da escrita é a língua mais utilizada na esfera escolar, conforme os relatos das crianças, as quais conversam entre si e observam as professoras falando esse idioma.

Nas esferas doméstica e do lazer, o uso da língua portuguesa para as crianças depende de quem é o receptor da mensagem que elas, enquanto emissoras, querem passar. Em casa, a leitura de livros infantis e as brincadeiras fazem parte de situações em que se presencia o uso da língua portuguesa. Além disso, alguns pais se mostram “guardiões do português” e leem livros para seus filhos. A presença do letramento digital no dia a dia dos entrevistados também foi percebida, já que eles relataram utilizar a Internet, por meio de sites e de aplicativos, para se comunicar com seus amigos e familiares.

Na esfera religiosa, o português está no nível da informalidade em palavras e em frases ditas durante o culto. A leitura e a escrita nessa esfera aparecem por meio da leitura da Bíblia, da anotação de versículos pelos adultos e da entrega de panfletos e de mensagens, conforme relatado pelas crianças.

É importante destacar que os estudantes participantes dessa pesquisa conseguem conviver muito bem em praticamente todas as esferas de letramento com o português, com o espanhol e com o guarani. Elas transitam com desenvoltura entre as diferentes esferas, com funções distintas nessas três línguas. A exceção é o âmbito escolar, o qual se mostra como um grande desafio, porque, nos momentos oficiais do uso da língua, as crianças se restringem ao português, utilizando o guarani e o espanhol apenas informalmente.

Acredita-se que os benefícios mais significativos deste estudo se apresentam a longo prazo, uma vez que permitirá ampliar o olhar sobre alfabetização e letramento de crianças fronteiriças. Além disso, o artigo contribuirá para a elaboração de uma política linguística para as escolas e para a formação dos professores, melhorando a qualidade de ensino-aprendizagem dos alunos que vivenciam a realidade das instituições educacionais brasileiras na região de fronteira.

Em relação a benefícios a curto prazo, acredita-se que essa investigação leva a enxergar o multilinguismo como algo positivo e rico culturalmente, pensando em formas de melhorar a alfabetização, o letramento e a fluência na leitura e na escrita dos alunos, e resolvendo, assim, possíveis problemas de aprendizagem que as crianças fronteiriças tenham devido à variedade linguística que vivenciam.

2Segundo Albuquerque (2010) o termo brasiguaio foi se diversificando e mudando, assumindo vários sentidos que foram negociados com o passar dos anos. Hoje, o termo brasiguaio designa uma identidade imprecisa e mutável que faz referência a várias pessoas e situações: “(1) ao imigrante pobre que foi para o Paraguai, não conseguiu ascender socialmente e que, muitas vezes, regressou ao Brasil; (2) aos grandes fazendeiros brasileiros no Paraguai; (3) aos filhos dos imigrantes que já nasceram naquele país e têm a nacionalidade paraguaia; (4) aos imigrantes e aos descendentes que já misturam a ‘cultura brasileira’ com elementos da ‘cultura paraguaia’; (5) a todos os imigrantes brasileiros que vivem na nação vizinha” (Albuquerque, 2010, p. 228).

3Nesta investigação, não serão examinadas a esfera do trabalho e a esfera da participação cidadã, pois este estudo não reconhece as mesmas como significativas para as crianças que participaram da pesquisa.

4Para manter o sigilo da identidade das crianças participantes do estudo utilizamos nomes fictícios, nesta e nas outras transcrições que seguem. As falas foram transcritas respeitando a linguagem informal/coloquial, tanto da pesquisadora, quanto das crianças entrevistadas.

Artigo elaborado a partir da dissertação de K.F. CUNHA, intitulada “Multilinguismo na região de fronteira: o letramento da criança brasiguaia”. Universidade Federal da Grande Dourados, 2020.

Como citar este artigo/How to cite this article

Cunha, K. F.; Silva, T. O letramento da criança brasiguaia na escola brasileira de fronteira. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e214927, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a4927

Referências

Albuquerque, J. L. C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010. [ Links ]

Anjos, A. L. A. Entre os muros da escola: experiências linguísticas bilíngues em uma escola pública em Ponta Porã/MS. 2011. 120 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2011. [ Links ]

Antunes, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003. [ Links ]

Barbosa, J. M. Olhares investigativos sobre a fronteira internacional de Aral Moreira/Brasil com departamento Santa Virginia/Paraguai: um estudo de caso etnográfico. 2015. 141 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2015. [ Links ]

Berger, I. R. Gestão do multi/plurilinguismo em escolas brasileiras na Fronteira Brasil-Paraguai: um olhar a partir do observatório da educação na Fronteira. 2015. 298 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. [ Links ]

Cagliari, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 2006. [ Links ]

Coelho, S.; Castro, M. O processo de letramento na educação infantil. Pedagogia em Ação, v. 2, n. 2, p. 79-85, 2010. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pedagogiacao/article/view/4848. Acesso em: 22 ago. 2020. [ Links ]

Cook-Gumperz, J. A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. [ Links ]

Dalinghaus, I. V. Alunos brasiguaios em escola de fronteira Brasil/Paraguai: um estudo linguístico sobre aprendizagem do português em Ponta Porã, MS. 2009. 182 f. Dissertação (Mestrado em Letras, Linguagem e Sociedade) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2009. [ Links ]

Gil, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002. [ Links ]

Gil, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. [ Links ]

Godoy, M. E. C. Ser criança em uma escola pública do lado brasileiro da fronteira Brasil/Paraguai: dos feixes atando pontes. 2015. 220 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu, 2015. [ Links ]

Graff, H. J. Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]

Kleiman, A. B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995. (Coleção Letramento, Educação e Sociedade). [ Links ]

Kleiman, A. B. Letramento e suas implicações para o ensino da língua materna. Signo, v. 32, n. 53, p. 1-25, 2007. Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/viewFile/242/196. Acesso em: 19 mar. 2020. [ Links ]

Marcuschi, L. A. Da fala para a escrita: atividade de retextualização. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. [ Links ]

Matêncio, M. L. M. Analfabetismo na mídia: conceitos e imagens sobre o letramento. In: Kleiman, A. (org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 239-266. [ Links ]

Minayo, M. C. S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: Deslandes, S. F. et al. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 9-29. [ Links ]

Oliveira, J. A. B. Representações do sujeito-aluno da fronteira Brasil - Paraguai em documentos oficiais do Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF). 2015. 167 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, 2015. [ Links ]

Pereira, J. H. V. A especificidade de formação de professores em Mato Grosso do Sul: limites e desafios no contexto da fronteira internacional. Inter Meios, v. 15, n. 29, p. 106-119, 2009. [ Links ]

Pereira, J. H. V. Educação na fronteira: o caso Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (PY). Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos e Linguagens, v. 18, n. 36, p. 93-106, 2014. [ Links ]

Peres, E. P. Contato entre línguas: subsídios linguísticos para o ensino de Língua Portuguesa para Bilíngues em português e espanhol. 1999. 155 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999. [ Links ]

Ribeiro, V. M. Por mais e melhores leitores: uma introdução. In: Ribeiro, V. M. (org.). Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Global, 2004. p. 9-32. [ Links ]

Ribeiro, A. E.; Coscarelli, C. V. Letramento digital. In: Frade, I. C. A. S.; Val, M. G. C.; Bregunci, M. G. C. (org.). Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG, 2014. p. 181-182. [ Links ]

Sanches, R. A. S. Fotografias sociolinguísticas sob a ótica das atitudes linguísticas na região de fronteira: Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. 2006. 180 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2006. [ Links ]

Santos, M. E. P. Fatores de risco para o sucesso escolar de crianças brasiguaias nas escolas de Foz do Iguaçu: uma abordagem sociolingüística. 1999. 112 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999. [ Links ]

Silva, N. B. P. R. Escola de fronteira: proposta para alfabetização de alunos residentes na Bolívia que estudam na escola CAIC, em Corumbá-MS. 2016. Dissertação (Mestrado Profissional em Estudos Fronteiriços) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Corumbá, 2016. [ Links ]

Soares, M. Alfabetização e letramento. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2013. [ Links ]

Soares, M. Letramento e escolarização. In: Ribeiro, V. M. Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Global, 2004. p. 89-113. [ Links ]

Street, B. Lyteracy in theory and practice. Cambridge: Camdridge University Press, 1984. [ Links ]

Street, B. Social literacies: critical approaches to literacy in development, ethnography and education. London: Longman, 1995. [ Links ]

Street, B. What’s “new” in new literacy studies? Critical approaches to literacy in theory and practice. Current Issues in Comparative Education, v. 5, n. 2, p. 72-91, 2003. [ Links ]

Teis, D. T. A (Re)construção da Identidade do aluno brasiguaio. 2004. 162 f. Dissertação (Mestrado em Letras, Linguagem e Sociedade) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2004. [ Links ]

Teixeira, E. As três metodologias: acadêmica, da ciência e da pesquisa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006. [ Links ]

Terzi, S. B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In: Kleiman, Â. B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 91-117. [ Links ]

Travaglia, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2009. [ Links ]

Zambrano, C. E. G. O bilinguismo no entre lugar de crianças “brasileiras venezuelanas” na fronteira. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Roraima, Boa Vista. 2016. [ Links ]

Recebido: 30 de Abril de 2020; Revisado: 22 de Novembro de 2020; Aceito: 15 de Dezembro de 2020

Correspondência para/Correspondence to: K.F. CUNHA. E-mail: kalynefranco@gmail.com.

Colaboradores

K. F. CUNHA contribuiu na escrita e redação do artigo e da dissertação, na aplicação das entrevistas, tabulação e análises de dados produzidos. T. SILVA colaborou com a concepção do projeto, escrita do artigo e orientação do trabalho dissertativo; revisão crítica do conteúdo intelectual e metodológico da investigação e do presente artigo.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.