SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26Educación en tiempos de resguardo involuntarioEducar e transmitir um laço com a ciência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.26  Campinas  2021

https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a5046 

Artigos

A epistemologia do ser estando ali: a identidade cultural como representação do espaço conhecido

The epistemology of being being there: cultural identity as a representation of the known space

David Arenas Carmona1 
http://orcid.org/0000-0002-6737-6235

Eva Teixeira dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-3571-6522

1Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Aquidauana, Programa de Pós-Graduação em Geografia. Pça. Nossa Senhora Imaculada Conceição, 163, Centro, 79200-000, Aquidauana, MS, Brasil.


Resumo

A pesquisa desenvolvida buscou dar visibilidade aos conhecimentos válidos que envolvem as questões referentes à construção de uma identidade cultural como representação do espaço conhecido. Assim, o objetivo principal foi analisar, para a cultura da etnia Terena, a relação existente entre os aspectos constitutivos de sua própria cultura: língua, tradições, folclore, mitos, cosmogonia, vestimenta, entre outros, com o espaço geográfico em que ela se encontra inserida, bem como examinar as especificidades da gênese e constituição da Cultura Terena. Partindo inicialmente pela pesquisa bibliográfica juntamente com estudo de campo, por meio da aplicação de questionários e posterior análise das respostas dos participantes da pesquisa, foram construídas categorias de análise. Nas respostas dos questionários, ao se utilizar da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, pode-se observar que existe uma percepção bastante difusa do termo espaço geográfico, pois este na sua maioria está relacionado aos elementos próprios da urbanização, dessa forma, para a quase totalidade dos participantes da pesquisa, espaço não é mais do que o espaço comunitário que eles habitam. Respeito aos elementos culturais, estes são mais vistos como fator hereditário genético do que como produto de uma relação simbiótica homem-espaço.

Palavras-chave Cultura; Espaço geográfico; Etnia Terena; Território

Abstract

The developed research tried to give visibility to the valid knowledge that involves the questions referring to the construction of cultural identity as a representation of the known space. Thus, the main objective was to analyze, in Terena culture, the relationship between the constitutive aspects of their own culture: language, traditions, folklore, myths, cosmogony, clothing, among others with the geographical space in which it is located and inserted; as well as examining the specificities of the genesis and constitution of Terena Culture. Initially based on bibliographic research, along with field study, through the application of questionnaires and subsequent analysis of the participants’ answers, categories of analysis were built. In the answers to the questionnaires, when using the Collective Subject Discourse technique, it can be observed that there is a very diffuse perception of the term geographic space, as it is mostly related to the elements proper to urbanization; in this way, for almost all research participants, space is no more than the community space they inhabit. With respect to cultural elements, these are seen more as a genetic hereditary factor than as a product of a symbiotic man-space relationship.

Keywords Culture; Geographic Space; Territory; Terena ethnicity

Introdução

A influência da cultura ocidental trouxe ao Brasil, como consequência da ocupação colonizadora realizada por um país europeu, uma percepção histórica utilitarista para a formação socioespacial do país; isso no que diz relação à percepção e ao uso do espaço geográfico como espaço habitável e gerador de recursos com reflexos lógicos na contemporaneidade; mesmo assim, existem, nas etnias originárias, concepções de mundo e construtos históricos costumeiramente subestimados. No estado de Mato Grosso do Sul, mesmo não existindo uma relação completamente harmônica, uma vez que há conflitos entre fazendeiros, produtores e os indígenas, pela altíssima população oriunda das diferentes etnias2 que se assentaram no estado, torna-se impossível negar a visibilidade que eles adquirem no conceito regional.

Dessa forma, no município de Aquidauana, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) exerce um papel social de extrema importância na formação no Ensino Superior. De modo que é possível constatar uma alta participação de alunos oriundos das aldeias indígenas presentes, no caso particular, no Campus de Aquidauana (CPAQ-UFMS).

A identidade cultural, sem dúvida, está relacionada com a fusão do espaço com o ser humano, uma vez que existe uma interferência de mão dupla entre ambos e, sob esse predicado, muitos dos aspectos que identificam a paisagem sul-mato-grossense encontram-se alinhados com alguns dos traços que possuem seus habitantes. Nesse contexto, Araújo e Carneiro (2015, p. 11) corroboram o exposto quando afirmam que:

identidade cultural, em sua essência epistemológica nas ciências sociais e humanas, pode ser vista como uma construção subjetiva, e em constante progressão e mudança do “eu” individual ou coletivo do sujeito, a ser substanciada não mais somente pelo olhar do outro, mas sim instrumentalizada pelas formas simbólicas, que ligam o ser social e sua condição existencial, a seus grupos sociais e suas práticas culturais, em textos e contextos geográficos de lugar, paisagem e território.A

Segundo os ensinamentos de Candau e Russo (2010), nas décadas de 1980 e 1990, 11 países latino-americanos reconheceram em suas Constituições o caráter multiétnico, pluricultural e multilíngue de suas sociedades. Diante dessa questão, impulsionada por pressões de múltiplos atores para que as políticas públicas na área educativa tivessem que contemplar as diferenças culturais existentes, o Estado teve que ceder.

Dessa forma, sendo o estado de Mato Grosso do Sul uma Unidade Federativa relativamente nova3 em termos de reconhecimento e história, possui por sua vez uma riquíssima identidade cultural fortemente associada à paisagem pantaneira. Com isso, é nomeada e representada em uma proporção enorme pela língua das etnias indígenas, maioritariamente a Terena, no que diz relação às paisagens, sua flora e fauna nativa, assim como muitas das localidades, relevos, etc.

Nesse sentido, na visão de Leite (2009), a paisagem de um lugar pode significar a expressão dos desejos coletivos na organização dos lugares daquele território ou como um registro, de eventuais protestos sobre as transformações impostas a esses lugares, o que felizmente no caso do estado de Mato Grosso do Sul não aconteceu, pois, no processo de miscigenação decorrente dos fluxos migratórios que constituíram a região, foram respeitadas e reconhecidas as influências culturais originais.

Uma das primeiras dúvidas que assaltam a qualquer indivíduo ao chegar em um território diferente daquele em que foi criado é o porquê da diferença da paisagem, do clima, da aparência das pessoas, sem mencionar também questões mais subjetivas – e de ordem cultural –, como a linguagem, os costumes e as tradições. Aos poucos, e fruto da observação simples, percebe-se que de alguma maneira existe uma correlação muito evidente de todos esses aspectos pessoais e coletivos de ordem cultural com o espaço geográfico que os indivíduos habitam. Nas palavras de Santos (2008, p. 41), “A questão do espaço habitado, pode ser abordada segundo um ponto de vista biológico, pelo reconhecimento da adaptabilidade do homem, como indivíduo, às mais diversas altitudes e latitudes, aos climas mais diversos, às condições naturais mais extremas”.

Assim, Sorre (2003), ao considerar o ponto de vista da Geografia Humana, também corrobora os aspectos relacionados a adaptabilidade e modificação do ambiente pelo homem, a partir do uso da técnica. “O primeiro problema da Geografia Humana consiste em elucidar as relações entre o homem e o meio, a partir do ângulo espacial. Trata-se de uma relação recíproca, posto que por meio da técnica os homens modificam o ambiente natural, ao tempo que se adaptam a ele” (Sorre, 2003, p. 137).

Embora para Santos (2005) o espaço geográfico seja o objeto de estudo da geografia, cabe aqui destacar o conceito de território enfatizado por esse autor.

O território são formas, mas o território usado, são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado. Mesmo a análise da fluidez posta ao serviço da competitividade, que hoje rege as relações econômicas, passa por aí. De um lado, temos uma fluidez virtual, oferecida por objetos criados para facilitar essa fluidez e que são, cada vez mais, objetos técnicos. Mas os objetos não nos dão senão uma fluidez virtual, porque a real vem das ações humanas, que são cada vez mais ações informadas, ações normatizadas

(Santos, 2005, p. 255).

Para reafirmar da mesma forma que o meio é o resultado da ação do homem sobre ele, também este, o homem, é o resultado da ação ou influência que dito meio exerce sobre ele, e que essas afirmações deram origem a esta pesquisa, pois, nas palavras de Santos (2013, p. 3).

É no espaço geográfico que caminha a vida, [...] nesse espaço existem rios e montanhas, ruas, edifícios e plantações; há também técnicas e práticas de trabalho, laços familiares, manifestações religiosas, relações de igualdade ou de desigualdade entre pessoas, grupos e nações. Nos múltiplos espaços da superfície terrestre estão representados, em íntima associação, elementos naturais e sociais, que se constroem e reconstroem o tempo todo.

Assim, apesar da dificuldade em estabelecer uma dissociação entre o homem e a natureza, produzida pela forma como a sociedade humana foi estabelecendo a ocupação dos espaços, como pelas diferentes formas como os povos primeiramente, e logo os Estados se estabeleceram, com todas as relações de poder subjacentes, pode-se inferir da fala de Reclus (1985, p. 70) que:

Entretanto, do ponto de vista especialmente geográfico, é importante saber como as formas políticas das sociedades correspondem normalmente às diversas formas terrestres na evolução da humanidade; pode-se estabelecer a este respeito regras gerais, que prevaleceram enquanto a constituição de grandes Estados centraliza-dores – que dispunham de formidáveis meios de coerção – não suprimisse os contrastes originários.

A partir de uma perspectiva de gênese do mundo mais holística, pretende-se mostrar quanto é gravitante a interferência do meio nos aspectos culturais tanto de ordem individual como no coletivo, a saber: linguagem, vestimenta, humor, caráter, entre outros. Embora a sentença anterior possa ser encaixada no Determinismo Geográfico, na verdade sua origem tem mais a ver com a fenomenologia do Espírito de Hegel. Assim, partindo-se de uma concepção da linguagem como elemento de cunho cultural, comunga-se com as ideias de Williams (1978, p. 27) quando este afirma que:

Uma definição de língua, ou de linguagem, é sempre, implícita ou explicitamente, uma definição dos seres humanos no mundo. As categorias tradicionais principais – ‘mundo’, ‘realidade’, ‘natureza’, ‘humano’ – podem ser contrapostas ou relacionadas com a categoria de ‘língua’, mas é hoje um lugar comum observar que todas as categorias, inclusive a categoria de ‘língua’, são em si mesmas construções idiomáticas, e com isso só com esforço podem ser separadas da língua, e dentro de um determinado sistema de pensamento, para a indagação sobre as relações.

Em termos simples, cada cultura ou grupo teve que criar, desde sua própria identidade e construção linguística, o nome com que teve que representar tudo quanto o rodeava; flora, fauna, relevos, rios, fenômenos climáticos do lugar, ou seja, o primeiro a ser representado foi seu habitat natural ou espaço geográfico. Da mesma forma, é desse espaço que toma as cores, formas, ícones e seres que vão povoar sua narrativa cultural que, consequentemente, vão dar contornos à sua identidade, tanto individual como coletiva, tais como: folclore, vestimentas e explicações acerca da origem do mundo e dele mesmo.

A presença de habitantes da cultura Terena nos biomas Pantanal e Cerrado, predominantes no estado de Mato Grosso do Sul e na cidade de Aquidauana em particular, oferece muitas possibilidades de exploração do espaço para os objetos de estudo da Geografia, entendendo-se o espaço segundo as palavras de Santos (2006, p. 13).

[...] um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações podemos reconhecer suas categorias analíticas internas. Entre elas, estão a paisagem, configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço produzido ou produtivo, as rigorosidades e as formas-conteúdo. Da mesma maneira e com o mesmo ponto de partida levanta-se a questão dos recortes espaciais, propondo debates de problemas como o da região e o do lugar o das redes e das escalas.

Os espaços são de alguma forma determinados pela visão que o homem tem deles, não tão só pela sua interferência; é o caso, por exemplo, do nome da cidade que se tomará como objeto de estudo, que deve seu nome ao rio cujas águas banham a cidade; este nome, Aquidauana, vem da língua Guaicuru e significa Rio Estreito.

Nesse contexto, o objetivo principal da pesquisa foi analisar para esta etnia (Terena) a relação existente entre os aspectos constitutivos de sua própria cultura: língua, tradições, folclore, mitos, cosmogonia, vestimenta, entre outros, com o espaço geográfico em que ela se encontra inserida. Como se sabe, toda cultura alberga sua própria visão do mundo, porque as perguntas que povoaram o imaginário coletivo desde sempre, em todas as línguas e independentemente do lugar, foram, quase sempre, as mesmas.

Procedimentos Metodológicos

Partindo inicialmente de uma pesquisa bibliográfica, caminhou-se para uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa. A escolha por esse procedimento técnico deu-se devido ao que destaca Gil (2008, p. 57): “[...] no estudo de campo estuda-se um único grupo ou comunidade em termos de sua estrutura social, ou seja, ressaltando a interação de seus componentes”. Percebe-se, então, que esse procedimento se vale tanto de técnicas de observação quanto de interrogação, o que permite maior flexibilidade no planejamento da pesquisa. Faz-se necessário considerar o que Guba e Lincoln (1994) nos advertem: os estudos conduzidos a partir de uma abordagem qualitativa não estão isentos de cuidados e critérios adequados para que tenham garantida sua qualidade científica.

Os participantes desta pesquisa foram acadêmicos das turmas de Licenciatura e do Bacharelado dos cursos de Geografia do campus CPAQ, residentes em aldeias da etnia Terena do município de Aquidauana/MS (Figura 1); essa escolha se deu devido ao prévio conhecimento da noção de espaço atribuída aos acadêmicos dos respectivos cursos, totalizando 35, sendo que, desses, 12 participaram efetivamente da pesquisa.

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

Figura 1 Localização das aldeias de residência dos participantes da pesquisa. 

O instrumento de coleta de dados foi um questionário com questões abertas que versaram sobre como percebem a caracterização do espaço no qual estão inseridos, a relação do espaço com os aspectos culturais, bem como influência deste na construção da identidade cultural regional. A partir das respostas dos participantes da pesquisa, foram construídas categorias de análise que permitiram a comparação sobre a relação que eles estabelecem entre sua identidade cultural e o espaço geográfico que habitam. De acordo com Hall (2003), a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação de um sujeito, de uma cultura, de um grupo social pode não ser automática, mas muitas vezes pode ser adquirida ou até mesmo perdida.

Por envolver população indígena na coleta de dados, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, via Plataforma Brasil, sob o CAAE 07617518.0.0000.0021, parecer nº 3.474.915, recebendo aprovação em 30 de julho de 2019. Considerando que os referidos acadêmicos foram incluídos somente a partir da assinatura do Registro de Consentimento Livre e Esclarecido. O critério de exclusão da pesquisa centrou-se nos acadêmicos(as) das turmas de Licenciatura e do Bacharelado dos cursos de formação em Geografia do campus de Aquidauana, UFMS/CPAQ que residem nas aldeias indígenas da região, mas não têm origem indígena, bem como os que não estiveram de acordo com o Registro de Consentimento Livre e Esclarecido.

Devido à necessidade de valorizar as crenças, valores e significados pertencentes a um determinado grupo social, optou-se pela aplicação da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), uma vez que essa técnica tem demonstrado sua eficácia para o processamento e expressão das opiniões coletivas. As expressões-chave, as ideias centrais e os discursos do sujeito coletivo são os principais operadores metodológicos do DSC.

O que torna essa metodologia específica é que a cada categoria estão associados os conteúdos das opiniões presentes em diferentes depoimentos, como se fosse uma coletividade falando na pessoa de um indivíduo (Lefèvre; Lefèvre, 2014).

O DSC é uma proposta de reconstituição, uma vez que as opiniões, ou as representações sociais, funcionam efetivamente. Como corroboram Lefèvre, Lefèvre e Marques (2009), justamente porque o indivíduo acredita que suas opiniões são de fato suas, são geradas em seu cérebro, sem influência de ninguém.

Resultados e Discussão

Os elementos que dão constituição a uma identidade cultural tanto individual como coletiva envolvem desde a linguagem a questões de caráter ético a fim de estabelecer regras para o convívio dentro da comunidade.

Assim, a língua vai ser determinada por aquilo que os indivíduos conhecem dentro de seu universo visual, ou seja, por meio da língua, o indivíduo representa com sons e letras seu universo conhecido, assim como as coisas que representam seu universo interior, medos, certezas, convicções, etc.

Nesse sentido, cultura é a relação da espécie humana com o mundo em que vive, está relacionada à aprendizagem das manifestações artísticas, sociais, linguísticas e comportamentais de um povo como: música, teatro, rituais religiosos, língua falada e escrita, mitos, hábitos alimentares, danças, arquitetura, invenções, pensamentos, formas de organização social, formas de dar sentido ao mundo etc.

(Domingos; Maria, 2017, p. 61).

Dessa forma, percebe-se que a fusão homem-natureza conhecida é muito forte, mesmo que às vezes possa parecer difícil de apreciar, no caso da representação artística de uma cultura. Com isso, sempre a aparência dos indivíduos terá alguma relação de representatividade do espaço ao qual pertencem e do qual fazem parte; espaço não só comunitário senão também geográfico; por exemplo, no caso da fauna, os animais que povoam seu universo conhecido serão os mesmos que ele tentará representar nas suas danças (dança da ema)4, as cores que usaram para adornar seu corpo normalmente são as obtidas a partir de processos químicos ancestrais em raízes de plantas ou árvores que sempre realizaram.

Portanto, a fim de demonstrar os elementos constituintes da cultura indígena Terena, identificados a partir das percepções dos sujeitos da pesquisa e da análise de seus discursos, apresentam-se, na sequência, os resultados obtidos no trabalho.

No que se refere ao primeiro questionamento, que indaga: como você caracteriza o espaço onde está inserido ou espaço que ocupa? E que relação percebe desse espaço no desenvolvimento de sua identidade cultural? Observou-se que as respostas foram variadas, porém, alguns elementos são comuns, a saber: o espaço para eles está diretamente relacionado àquele lugar comunitário habitado por eles, é ali onde a vida se desenvolve, tanto na vida como na subsistência, da mesma forma, as modificações que esse espaço sofre são as mesmas que a vida na comunidade experimenta e estão em estreita relação com as suas necessidades. Chama atenção o fato de que a palavra aldeia quase não é mencionada, e sim a palavra bairro, conforme aparece nessa fala de um dos participantes da pesquisa: “É caracterizado como o espaço do bairro. E a nossa identidade cultural é desenvolvida, pois ela não pode acabar. Temos que honrar a nossa cultura”. Do ponto de vista geográfico, mesmo dando ao espaço uma grande importância, não conseguem utilizar de forma clara os conceitos fundamentais da Geografia: Território, Lugar, Espaço etc., com exceção da Paisagem, ora natural, ora urbana, mencionada nestas respostas: “É caracterizado com diversas paisagens já transformadas pela ação humana. No aspecto do desenvolvimento, na nossa identidade cultural muito diferente com o passar dos anos”; “Caracteriza-se como paisagem natural modificada pelo homem, mas sempre buscando preservar o que está ao redor. O espaço em que vivemos nos traz muita história do povo Terena e nos faz aprender mais sobre cultura com a finalidade de transmitir isso à nova geração”. Em síntese a percepção de espaço está mais relacionada ao meio social onde eles estão inseridos do que em outra coisa. Em relação aos elementos que são transmitidos desde o meio natural ou espaço em que estão inseridos na sua construção identitária, percebe-se que, mais uma vez, o sentimento ou percepção que predomina é o de senso de pertença a um espaço comunitário social em que os elementos estão fortemente enraizados com sua Etnia, ou seja, existe um forte sentimento de identidade social em detrimento da identidade individual e até familiar.

Isso remete ao conceito geográfico de lugar, que segundo Cavalcanti (1998) pode ser entendido como espaço vivido (lugar), onde os alunos têm contato e vislumbram relações locais e globais; pode-se perceber nitidamente uma imbricação dos conceitos de paisagem e de lugar, como demonstrado nas respostas dos participantes da pesquisa. Cavalcanti (1998, p. 100) reforça que,

[...] na formação do raciocínio geográfico, o conceito de paisagem aparece no meu entendimento, no primeiro nível de análise do lugar, estando estreitamente com este conceito. É pela paisagem, vista em seus determinantes e em suas dimensões, que vivencia empiricamente um primeiro nível de identificação com o lugar.

Para Souza (2013, p. 32), “[...] o espaço social é, a princípio, algo material, tangível, palpável, campos de cultivo, pastagens; casas, prédios, cabanas, ocas, estradas, ruas, vielas, picadas; barragens, represas, usinas... a lista é imensa, quase infinita”. Notam-se ainda as noções de cuidado ao meio ambiente e de preservação deste, como mencionado nesta resposta: “Devido a convivências por anos caracterizo os seguintes aspectos que o espaço me permite uma ampla visão estruturada e adequada de uma convivência mútua, uma familiaridade mais extensa, a preservação desenvolve a influência e um desenvolvimento cultural mais agrupado e constituindo uma identidade mais pragmática em minha visão, o que desenvolve mais uma função e a preservação do espaço onde estou situado”.

O segundo questionamento reforça a segunda parte da primeira questão, pois retoma a discussão acerca de se: existem peculiaridades e/ou especificidades desse espaço que você percebe que de alguma forma exerceram ou exercem influência na construção de sua identidade? É possível estabelecer que, mais uma vez, a palavra identidade não é associada ao termo cultura num sentido específico particular, pois predomina o conceito no âmbito dos costumes e das tradições como expressão comunitária, reforçando ainda mais a visão de que no seio da comunidade as particularidades não aparecem. Aqui aparece, sim, um elemento interessante de ser analisado que é o da percepção de vários dos respondentes acerca do fato de eles perceberem que existem mudanças de ordem social que são preocupantes, como, por exemplo, da forma como os costumes e o uso da língua perdem terreno para as novas formas de se organizar e de se comunicar que as sociedades hoje em dia possuem. Além disso, mudanças mais positivas como as possibilidades que a comunidade atribui às camadas mais jovens pela sua inserção no âmbito da Educação Superior, o que na visão deles fará com que ditas gerações tenham um papel mais ativo e eficaz na salvaguarda do acervo cultural Terena (manutenção da língua materna, dos costumes, etc.).

Esses aspectos podem ser observados em algumas falas dos participantes: “As mudanças são grandes que de alguma forma trouxeram benefícios. Hoje podemos ver e destacar os professores indígenas atuando dentro das escolas e também os avanços tecnológicos”; “Sim, existe, diante da evolução a nossa cultura sofre alterações, como a língua que está se perdendo, no caso a língua Terena”; “A maneira como a aldeia vem evoluindo é um pouco preocupante, pois nós futuros professores temos a missão de ensinar os costumes dos antepassados, mas às vezes é difícil, pois o espaço onde vivemos vem evoluindo cada vez mais, trazendo assim uma dificuldade de manter a questão cultural”; “A nossa identidade sempre está sendo exercitada nas escolas, pois precisamos ensinar as crianças que estão ali a manter nossa cultura”; “Levar conhecimento à minha comunidade, que aprendi ao longo da graduação e ajudar a minha comunidade”; “Pela UFMS sim, como tem bastante indígenas estamos mantendo a nossa identidade, tentando mostrar ser bem influente”.

No que diz respeito às respostas da questão número três, cuja abordagem é: a expressão espaço geográfico, ou simplesmente espaço, aparece, por vezes, associada a uma porção específica da superfície da Terra. E tem o seu uso associado indiscriminadamente a diferentes escalas, global, continental, regional, da cidade, do bairro, da rua, da casa e de um cômodo em seu interior. Na cultura Terena, a palavra espaço está associada a quais escalas? Aqui existem várias percepções, pois se considera uma visão micro, partindo-se da noção de uma escala que sugere a ideia de Bairro que eles habitam, passando também pela ideia mais macro, ou seja, da região onde eles estão espacialmente inseridos, já num sentido mais holístico, mesmo que não explicitamente, e sim implicitamente está associado à pátria ancestral que os viu nascerem. Aqui também aparecem elementos de respeito ao meio, pois independentemente da escala, o espaço é algo que deve ser cuidado.

Nessa perspectiva algumas respostas apontam elementos anteriormente citados: “Sim, a palavra está associada dentro da cultura terena em diversas coisas, pois cada indivíduo na comunidade ocupa seu espaço”; “A questão do espaço geográfico está associada ao povo Terena em latitude, longitude, o que está à nossa volta”; “Na cultura Terena a palavra espaço está associada em nossa comunidade a terra, campos, lazer sem discriminação. Um espaço que serve um povo só”; “Na minha cultura está associado à escala regional, cada um está mais ligado ao lugar onde geralmente nasceu, de origem”; “Em minha visão a palavra espaço está associada a uma escala regional, porque primeiramente a cultura Terena está mais agrupada a essa região específica de Mato Grosso do Sul, em cidades como Aquidauana, Miranda, Dourados e alguns outros pequenos municípios dando um impacto forte na cultura de cada região”.

Tais respostas referendam o entendimento de Souza (2013, p. 117), ao afirmar que, “[...] se todo o lugar é um espaço social, nem todo o espaço social é um ‘lugar’, ao menos no sentido forte aqui especificado: o espaço social é aquele espaço produzido socialmente, fruto da transformação e apropriação da natureza, ao passo que lugar é um espaço dotado de significado, um espaço vivido”. Já Serpa (2008) afirma que o “saber ambiental”, por sua vez, é produzido no diálogo de saberes. Implica a apropriação de conhecimentos e saberes de diferentes racionalidades culturais e identidades étnicas. Produz novas significações sociais, novas formas de subjetividade e posicionamentos políticos em relação ao mundo. Tal afirmação do autor é referendada na resposta de um participante: “É um lugar onde moramos. O espaço também que a natureza nos reserva, a beleza natural de um lugar, a preservação do meio ambiente e de seres vivos que existem nela”.

A questão número quatro incorpora a língua como objeto a ser estudado e foi formulada da seguinte forma: é através da linguagem que são construídas as narrativas históricas e sociais de um povo com o espaço em que habita. Explique como se dá essa construção linguística envolvendo a flora, fauna, relevos, rios, fenômenos climáticos do lugar, atualmente? E que relações são tecidas com essa construção linguística e os contornos de uma identidade, tanto individual como coletiva? As respostas permitem entrever que existe uma percepção um tanto fixa da linguagem ancestral, o que pode ser exemplificado por meio da ideia que passam de que a manutenção do uso da língua materna é quase de exclusiva responsabilidade dos maiores, da mesma forma, muito raramente conseguem estabelecer a relação da língua com o espaço habitado, pois não a percebem como a forma como as gerações anteriores nomearam o mundo por eles habitado, não vislumbram a relação direta que existe entre linguagem e representação do mundo conhecido. Segundo Domingos e Maria (2017), costumes tradicionais e heranças do passado costumam deixar suas marcas na paisagem, nas memórias e nas informações socioculturais de um povo, que são dimensionadas no espaço e no tempo socioambiental. Nesse contexto, referendando o pensamento dos autores, algumas respostas apresentadas pelos participantes trazem a concepção de que essa construção linguística e sua consequente manutenção se darão a partir do saber dos anciãos: “A construção linguística do espaço é construída através dos anciãos e professores da própria comunidade, ou seja, do nosso espaço. A língua materna, os costumes e a vivência em família”; “Hoje a construção linguística está presente mais em anciãos, pois a língua é muito pouco falada por jovens ou crianças. É raro encontrar, mas, praticando e ensinando os costumes e dando mais valor a isso, o cenário pode mudar”; “Está no conhecimento. O valor que o ambiente nos traz, sons e cantos, coisas que ele nos permite sentir”; “A nossa língua Terena ela é muito clara quando a relação é a natureza e atualmente isso dificulta porque vemos desastres e catástrofes ambientais e por isso nos dificulta a ensinar o espaço onde vivemos”.

Assim, para Moser e Damke (2012), a identidade do sujeito se constrói a partir de sua interação na sociedade e mediada pelas práticas linguísticas, sociais e culturais. Por ser construída socialmente, é vista como transitória, passível de transformação e mudança e moldada pelas relações de poder e pela percepção dos sujeitos frente ao contexto sociocultural no qual estão inseridos. Sob esse aspecto, pode-se considerar que é na e pela linguagem que as identidades são construídas e reveladas, pois “[...] todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (Bakhtin, 2006, p. 261), assim, além de ser um meio de interação, ela nos constitui como sujeitos sociais. Essa visão foi identificada em algumas das respostas dos participantes: “É através da língua que podemos preservar a nossa cultura Terena, uma vez que nos dias atuais temos avanços muito grandes na língua portuguesa e deixado a própria nossa língua de lado e assim o modo de se pronunciar acaba ficando um pouco sem cultura, pois tem lugar que já não existe essa comunicação afetando assim a vida individual como coletiva, principalmente na nossa região dos Terenas”; “Claramente em poucas palavras há uma influência muito grande, mas perdeu-se um pouco dessa essência. A minha pessoa, por exemplo, alguns tipos de plantas medicinais eu conheço, mas não sei seu nome e onde procurar, eu só sei para que serve, vejo no lugar onde eu moro em um grupo de amigos essa questão das plantas, um ou outro que sabe dessa existência por isso da observação das questões anteriores, onde a tecnologia altera um modo específico daquele lugar, hoje infelizmente de uma forma impactante perdeu-se essa essência, introduziu uma mudança radical no modo individual e coletivo”; “Sim, a linguagem é de extrema importância para a cultura, mas está se perdendo, eu mesmo não sei a língua Terena”.

Quando perguntados acerca das práticas e visões adotadas no ensino da Geografia: na sua visão existe a presença de um eurocentrismo no ensino e aprendizado da Geografia? Qual seria a melhor forma para materializar e dar visibilidade às narrativas históricas e sociais nos estudos tradicionais dessas questões atualmente? Nessa questão existe consenso de que há a necessidade de incorporar os elementos próprios da cultura Terena para uma real inserção no mundo acadêmico, pois se percebe que a prática educativa desdenha o conhecimento das comunidades ancestrais e privilegia as práticas da Educação ocidentalizada. Destacam a importância de o aluno conhecer fisicamente o espaço a ser estudado por meio da observação in loco, e não somente nos livros ou textos de estudos. Para Domingos e Maria (2017), é evidente que, ao interagir com o meio ou “mundo”, a espécie humana o transforma e que essa transformação se dá de diferentes formas porque isso também depende da cultura e percepções de cada grupo, sendo assim muito subjetivo. Dessa forma, o ser humano dominou a natureza subjugando-a segundo suas ambições. O domínio da natureza se deu ao longo de sua vida na Terra, por meio de suas percepções, observações e experimentos.

Nesse sentido, algumas respostas trazem similaridade com o pensamento de Domingos e Maria (2017) quando afirmam que: “Tem uma influência cultural maior dentro da Universidade, onde são apresentados danças, artesanatos e pesquisas feitos pelos próprios alunos indígenas”; “Existe, mas pouco no aprendizado de Geografia, apenas presenciado nos projetos que as escolas desenvolvem. A melhor forma é envolver a comunidade para ser participativa e buscar valorizar os anciãos que existem e que fazem as narrativas de histórias e sociais”; “Sim, uma importante forma é levar o aluno a conhecer, a sentir, não apenas ficar preso no livro, uma importante forma é a aula de campo, onde os alunos conseguem adquirir conhecimentos mais aprofundados nos dias atuais”; “Sim, seria uma aprendizagem cada vez mais prática no dia a dia”; “Estudando a Geografia do passado e de hoje atuais”; “Sim, estudar mais sobre culturas indígenas e tribos porque existem várias tribos no Brasil e quase ninguém sabe quantas e quais são e por isso deveriam ser mais estudadas e sair um pouco do eurocentrismo”; “Então poderíamos dar prioridade ao espaço geográfico em que vivemos, buscando melhorias, nas regiões onde se preserva o meio ambiente, cultura, valorizar cada vez mais as potencialidades de cada região, onde se encontra uma determinada comunidade, assim a cada ano que passa buscando meios que melhoram a vida de uma maneira geral até na política, hoje estamos cada vez mais inseridos, participando cada vez mais, isso tudo está inserido nos dias atuais cada vez mais”; ”Existe se levarmos em conta algumas especificidades em introduzir uma visão como por exemplo a educação, a educação ocidental não leva muitas das vezes uma certa visão específica como a questão do espaço geográfico, não há uma influência como na agricultura uma visão eurocêntrica, a agricultura, por exemplo, serve para aumentar a renda, já na questão indígena é uma forma de sustentabilidade, uma agricultura mais para a sobrevivência de nossos familiares do que uma sustentação financeira”; “Na geografia deveria ser mais lembrada a cultura indígena”; “Precisa de mais professores capacitados na área da nossa linguística materna. Para ter estudos tradicionais, identidade cultural de dança, demonstração de artesanatos e pintura indígena”.

Por fim, ao analisar as percepções dos participantes referentes aos aspectos de sua identidade cultural e quais desses aspectos são visualizados como os mais presentes dentro da identidade cultural regional, observa-se, ao teor das respostas, que existe uma ligação da comunidade Terena com a região por eles habitada, a qual é possível perceber em inúmeras influências. Estas vão desde as questões mais básicas dos elementos culturais, alimentação, formas de vida e de representação artística, até as de ordem mais rituais, como comemorações próprias da cultura, danças, indumentária própria, etc.

Essas percepções podem ser interpretadas com a ideia de que se sentem completamente inseridos e reconhecidos no espaço social externo a eles, em contrapartida frisam que, no espaço educativo, a sua visibilidade é mais efêmera e fica circunscrita às datas comemorativas, como mencionado nas respostas a seguir. “Cultura: Dança, comida, língua e o conhecimento da história. São coisas que também não interferem na relação e convívio com o índio”; “A minha identidade cultural, pode ser visualizada através da língua, dança, pintura, artesanatos e o modo de ser Terena”; “A língua, os trajes, a maneira como o Terena vive, a economia, a forma como vivemos nossa cultura. O aspecto cultural que mais predomina são as pinturas corporais e a confecção de artesanatos”; “O que são visualizados e praticados durante todos esses tempos é a nossa língua materna”; “Um povo de uma personalidade forte, sempre buscando sua melhoria lá fora e dentro de sua região e nunca deixando a sua identidade”; “São comidas típicas, danças e artesanatos, são elas que são mais visualizadas”; “Podemos ver através da dança, comida típica, ato de ser com a terra, sempre estar dentro da comunidade buscando estar dentro da comunidade buscando isso em cada região que nós estivermos”; “As mais fortes são, na minha visão, a agricultura e traços corporais (pinturas), artesanato que a família compactua de uma forma mais específica de uma determinada região onde a influência é forte e que é notado por exemplo como por turistas”; “A questão dos aspectos culturais, a vivência da cultura e as atividades desenvolvidas, a interação na comunidade acadêmica está cada vez mais participativa”; “A nossa cultura é somente desenvolvida no mês em que se comemora o Dia do Índio. A meu ver deveria ser mais desenvolvida com a base da Universidade Federal”; “A linguagem indígena”; “A dança, as pinturas, a língua, todos os aspectos, assim como tudo que envolve a cultura Terena”.

Percebe-se a partir das respostas citadas que o significado da cultura, representado por eles pela dança e língua, são extremamente importantes na sobrevivência da Etnia Terena. Nesse contexto, Moura e Accolini (2015) consideram como exemplo disso a dança do bate-pau, que é uma manifestação ritualística vinculada à guerra do Paraguai, cuja dança legitima o grande guerreiro. Atualmente, essa dança é apresentada durante as festividades do Dia do Índio, comemorado no dia 19 de abril, em praticamente todas as aldeias Terena localizadas nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e São Paulo. Acompanhados pelos músicos e seus instrumentos (um pequeno tambor e uma flauta), os homens dividem-se em dois grupos, marcados por cores distintas (azul e vermelho), conforme se observa na Figura 2.

Fonte: Campus de Aquidauana (2019).

Figura 2 Dança do bate-pau, Cultura Terena. 

Para Aguiar (2015), o ato de representar e materializar o imaginário pode se dar por meio de pinturas corporais, grafismos rupestres, padrões em cestarias, e por meio de uma cenografia dos mitos, convertendo-os em verdadeiras peças teatrais. É a identidade que se constrói e se mantém viva através da cultura de um povo (Figura 2).

Assim, a análise do discurso coletivo dos sujeitos que participaram da pesquisa mostrou sentimentos de pertencimento e reconhecimento a uma cultura, um lugar, um espaço. A pesquisa resultou em interessantes discursos e/ou posicionamentos acerca da paisagem e de como essa paisagem pode de fato interferir na constituição da identidade do sujeito, até porque a utilização da técnica do DSC permite o processamento das respostas dos participantes na pesquisa de tal forma que culmina na produção dos discursos e, segundo Figueiredo, Chiari e Goulart (2013), trata-se de uma postura rigorosamente descritiva, a análise detalhada, a seleção do conteúdo relevante de cada resposta, a busca e a nomeação das ideias centrais e ancoragens presentes no conteúdo das respostas.

A base da experiência humana encontra-se firmemente cimentada na dimensão social do homem, dita qualidade pressupõe uma premissa fundamental; o ser humano precisa da inter-relação constante dele com todos aqueles e tudo aquilo que o rodeia. É esse exercício dialético constante, com o outro e com o espaço conhecido pelo qual circula, um dos fatores que vão contribuir para a formação de sua identidade, pessoal e cultural. Quanto aos processos que tendem a trazer uma essência para as identidades, Silva (2011, p. 87) destaca que:

O hibridismo está ligado aos movimentos demográficos que permitem o contato entre diferentes identidades; as diásporas, os deslocamentos nômades, as viagens, os cruzamentos de fronteiras. Na perspectiva da teoria cultural contemporânea esses movimentos podem ser literais [...] ou podem ser simplesmente metafóricos. ‘Cruzar fronteiras’, por exemplo, pode significar simplesmente mover-se livremente entre os territórios simbólicos de diferentes identidades.

Outro aspecto importante a ser destacado é a questão da linguagem, cuja importância se dá na preservação de elementos culturais, e é através dela que a cultura se perpetua e garante a identidade de um povo. É com a linguagem que ocorre a transmissão das nossas tradições orais e escritas.

A linguagem é bem mais do que um instrumento, pois materializa, torna real uma cultura e, apesar de existir uma grande diversidade linguística, faz-se necessário documentar, conhecer e preservar as diferentes formas de comunicação dos povos tradicionais.

Quanto à referência de que a linguagem está estreitamente ligada à construção e preservação de uma cultura, considera-se o que apresenta Silva (2011, p. 93):

[...] ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um ‘fato’ do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente estamos descrevendo.

Para Chomsky (2005), a faculdade humana da linguagem parece ser uma verdadeira propriedade da espécie. E como o autor enfatiza, varia muito pouco entre os seres humanos. Ao reportar a questão da identidade, observa-se que ela é em sua maioria o resultado de afiliações a crenças particulares e possibilidades que estão disponíveis aos indivíduos nos contextos sociais. Essa abordagem aponta para o fato de que, para participar das atividades de uma comunidade, é preciso tomar parte de seus valores e práticas.

Destaca-se, ainda, o fato de que, no estado de Mato Grosso do Sul, existe uma diversidade linguística e, ao mesmo tempo, o perigo de extinção das línguas, em especial a Terena, que é objeto deste trabalho, como apontam Martins e Chamorro (2015, p. 735):

Dentro do nível de vitalidade descrito como seriamente em perigo, está a língua Teréna, pois, para boa parte da população, somente os avós e as pessoas das gerações mais velhas falam a língua. Embora haja adultos que a compreendam, eles não a utilizam entre si, tampouco com seus filhos.

Diante da constatação dos autores, é preciso ficar atento para outro aspecto observado por eles e que condiz com muitas das respostas dadas pelos participantes desta pesquisa ao longo do texto e que podem contribuir para a preservação da cultura, bem como diminuir o perigo de extinção da língua.

Entre as iniciativas para desencadear mudanças que favoreçam a permanência e a ampliação de uso de línguas indígenas em Mato Grosso do Sul, bem como a valorização dos aspectos culturais dos povos que o habitam, foram criados cursos específicos de formação de professores indígenas em nível médio e superior. Esses cursos têm como objetivo habilitar professores indígenas para atuar, preferencialmente, nas escolas indígenas de suas respectivas aldeias, nas séries iniciais e finais do ensino fundamental e no ensino médio. Por se tratar de cursos diferenciados, prioriza-se a formação intercultural e bilíngue dos alunos, conforme a realidade de cada povo

(Martins; Chamorro, 2015, p. 737).

Urge preservar a cultura e a identidade dos povos a partir da preservação de sua linguagem e do estabelecimento de sua relação com o mundo e, nesse contexto, a formação em nível médio e superior tem papel preponderante.

Conclusão

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, o que envolveu as leituras e o conhecer autores que se debruçaram sobre toda a história da gênese da constituição dessa importante cultura, foi possível perceber a riqueza de aprendizagens que a busca por alcançar os objetivos proporcionou. Sem dúvida a paisagem de Aquidauana guarda sua individualidade, mas é também claramente perceptível a inserção da cultura Terena.

Ao propor a elaboração desta pesquisa, muitas dúvidas surgiram, uma vez que se tratava de examinar as especificidades da gênese e constituição da Cultura Terena inserida em um contexto cultural e processo histórico-social, observando-a como evidência histórico-geográfica objetivamente determinada. A história do povo Terena tem sido de mudanças e de luta, conforme mencionado ao longo do texto, por alguns autores. Isso não significa que outras características de vida não tenham sido mantidas e permaneçam até os dias de hoje, comprovando a resistência dos Terena em manter sua identidade como povo.

Ao considerar que a cidade é um espaço de representações, pois ela é totalidade e também particularidades. Cidades são espaços públicos, são instituições representativas do mercado, são instituições representativas do serviço público, tem-se que, por exemplo, no caso das instituições públicas do Ensino, existe, sim, esse diálogo Geográfico, pois existe a interação permanente dos representantes da cultura Terena com o espaço físico dessas representações da cidade, ou seja, há, sim, uma relação dialética permanente entre estes dois interlocutores, o indivíduo Terena e o representante espacial simbólico da cidade de Aquidauana, no caso em questão, a instituição de Ensino Superior inserida nela, a UFMS.

E quanto a analisar qual a relação existente, para a cultura Terena, entre os aspectos constitutivos de sua identidade cultural com o espaço geográfico em que ela se encontra inserida? Ficou claro que conhecer e refletir, através dos discursos dos participantes da pesquisa sobre as diferentes manifestações culturais da vida cotidiana, é importante para o estudo da história do povo Terena. Na visão de muitos autores, essa história é destacada e marcada por permanentes mudanças, mas, que ainda se encontram presentes na língua, festas, relações familiares e políticas, o artesanato, entre outras manifestações da cultura.

Evidencia-se a importância das contribuições dos estudos realizados pela Geografia, sendo necessário um repensar de muitas visões arraigadas em concepções que não deixavam vislumbrar o que de fato compõe os reais conceitos de território, territorialização, espaço, cultura, identidade e sua intensa ligação com a cultura de um povo que nos últimos séculos mantém-se em luta pela garantia e manutenção de seus direitos.

2A palavra etnia deriva do substantivo ethnos, que significa gente ou nação estrangeira. É um conceito polivalente, que constrói a identidade de um indivíduo resumida em: parentesco, religião, língua, território compartilhado e nacionalidade, além da aparência física. No Brasil, os povos indígenas constituem uma identidade racial. Entretanto, em razão das diferentes características socioculturais, os grupos são definidos por etnia (Santos et al., 2010).

3A data de separação do estado de Mato Grosso, ao qual pertencia anteriormente, deu-se em outubro de 1977.

4Tradicional dança terena (Kohixoti-Kipaé, dança da ema), em referência às roupas usadas, que eram confeccionadas com penas de ema, que representa a vitória dos guerreiros e atualmente é chamada de dança do bate-pau (Jesus, 2007).

Artigo elaborado a partir da dissertação de D.A. CARMONA, intitulada “A dialética nas relações homem-espaço, a cultura terena e sua inserção no território sul-mato-grossense”. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, 2020.

Apoio/Support: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como citar este artigo/How to cite this article

Carmona, D. A.; Santos, E. T. A epistemologia do ser estando ali: a identidade cultural como representação do espaço conhecido. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 26, e215046, 2021. https://doi.org/10.24220/2318-0870v26e2021a5046

Referências

Aguiar, R. L. S. A Arte rupestre em Mato Grosso do Sul. In: Chamorro, G.; Combès, I. (org.). Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: história, cultura e transformações sociais. Dourados: Ed. UFGD, 2015. [ Links ]

Araujo, F. R. F.; Carneiro, R. N. Por um olhar geográfico sobre a identidade cultural: breves propostas conceituais através das dimensões espaciais do lugar, paisagem e território. In: Encontro Nacional da Anpege, 11., 2015, Presidente Prudente. Anais eletrônicos [...]. Presidente Prudente: UNESP, 2015. p. 1687-1698. Disponível em: http://livrozilla.com/doc/839947/por-um-olhar-geografico-sobre-a-identidade-cultural. Acesso em: 25 set. 2019. [ Links ]

Bakhtin, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec Editora, 2006. Disponível em: https://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Bakhtin-Marxismo_filosofia_linguagem.pdf. Acesso em: 18 out. 2019. [ Links ]

Campus de Aquidauana. 3ª Noite Cultural dos Povos Indígenas teve dança, artesanato e muito mais. Aquidauana: CPAQ, 2019. Disponível em: https://cpaq.ufms.br/3a-noite-cultural-dos-povos-indigenas-teve-danca-artesanato-e-muito-mais/. Acesso em: 24 abr. 2020. [ Links ]

Candau, V. M. F.; Russo, K. Interculturalidade e educação na américa latina: uma construção plural, original e complexa. Revista Diálogo Educacional, v. 10, n. 29, p. 151-169, 2010. [ Links ]

Cavalcanti, L. S. Geografia, escola e construção de conhecimentos. Campinas: Papirus, 1998. [ Links ]

Chomsky, N. Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2005. [ Links ]

Domingos, S. V.; Maria, E. C. Análise do comportamento socioambiental terena por meio de marcadores espaço-temporais: uma contribuição para a conservação da cultura. Interações, v. 18, n. 1, p. 59-73, 2017. [ Links ]

Figueiredo, M. Z. A.; Chiari, B. M.; Goulart, B. N. G. Discurso do Sujeito Coletivo: uma breve introdução à ferramenta de pesquisa qualiquantitativa. Distúrbios da Comuicação, v. 25. n. 1. p. 129-136, 2013. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/dic/article/view/14931/11139. Acesso em: 20 jan. 2020. [ Links ]

Gil, C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Editora Atlas, 2008. [ Links ]

Guba, E.; Lincoln, Y. Competing paradigms in qualitative research. In: Denzin, N. K.; Lincoln, Y. (ed.). Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications, 1994. p. 105-117. [ Links ]

Hall, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. [ Links ]

Jesus, N. T. Kohixoti-Kipáe, a Dança da Ema: memória, resistência e cotidiano terena. 2007. Dissertação (Mestrado em Arte) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007. [ Links ]

Lefevre, F.; Lefevre A. M. C.; Marques. M. C. C. Discurso do sujeito coletivo, complexidade e auto-organização. Ciências e Saúde Coletiva, v. 14, n. 4, p. 1193-1204, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232009000400025&script=sci_arttext. Acesso em: 2 fev. 2020. [ Links ]

Lefevre, F.; Lefevre, A. M. C. Discurso do sujeito coletivo: representações sociais e Intervenções comunicativas. Texto Contexto Enfermagem, v. 23, n. 2, p. 502-507, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/tce/v23n2/pt_0104-0707-tce-23-02-00502.pdf. Acesso em: 25 jan. 2020. [ Links ]

Leite, A. N. Raízes na língua: identidade e rede social de crianças Terena da escola Bilíngue da Aldeia Bananal. 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2009. Disponível em: http://docplayer.com.br/10220371-Nilza-leite-antonio-raizes-na-lingua-identidade-e-rede-social-de-criancas-terena-da-escola-bilingue-da-aldeia-bananal.html. Acesso em: 3 fev. 2020. [ Links ]

Martins, A. M. S.; Chamorro, G. Diversidade linguística em Mato Grosso do Sul. In: Chamorro, G.; Combès, I. (org.) Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: história, cultura e transformações sociais. Dourados: Ed. UFGD, 2015. p. 729-744. Disponível em: http://omp.ufgd.edu.br/omp/index.php/livrosabertos/catalog/view/172/233/515-1. Acesso em: 15 jan. 2020. [ Links ]

Moser, F.; Damke, C. A construção da identidade na e pela linguagem. Revista Travessias, v. 6, n. 2, p. 428-447, 2012. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/6682/5223. Acesso em: 5 fev. 2020. [ Links ]

Moura, N.; Accolini, G. Os Terena em Mato Grosso do Sul. In: Chamorro, G.; Combès, I. (org.). Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: história, cultura e transformações sociais. Dourados: Ed. UFGD, 2015. [ Links ]

Reclus, É. A origem da família, do Estado e da propriedade. In: Andrade, M. C. Élisée Reclus. São Paulo: Editora Ática, 1985. p. 61-99. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/bernardo/BIBLIOGRAFIA%20DISCIPLINAS%20POS-GRADUACAO/ELISEE%20RECLUS/Reclus,%20%C3%89lis%C3%A9e%20-%20Cole%C3%A7_o%20Grandes%20Cientistas%20Sociais.pdf. Acesso em: 1 ago. 2020. [ Links ]

Santos, D. J. S. et al. Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar. Dental Press Journal of Orthodontics, v. 15, n. 3, p. 121-4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dpjo/a/cpSn3rmDvrkMNTHj7bsPxgh/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 15 mai. 2020. [ Links ]

Santos, M. A Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. [ Links ]

Santos, M. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia. São Paulo: Editora EDUSP, 2008. [ Links ]

Santos, M. O retorno do território. Observatório Social de América Latina, n. 16. p. 250-261, 2005. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020. [ Links ]

Santos, M. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora EDUSP, 2013. [ Links ]

Serpa, A. Espaços culturais: vivências, imaginações e representações. Salvador: EDUFBA, 2008. [ Links ]

Silva, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011. [ Links ]

Sorre, M. A Geografia humana. Geographia, v. 5 n. 10, p. 137-143, 2003. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/13461/8661. Acesso em: 10 fev. 2020. [ Links ]

Souza, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. [ Links ]

Williams, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Disponível em: https://culturaemarxismo.files.wordpress.com/2019/03/raymond-williams-marxismo-e-literatura.pdf. Acesso em: 25 fev. 2020. [ Links ]

Recebido: 27 de Julho de 2020; Revisado: 06 de Novembro de 2021; Aceito: 12 de Novembro de 2021

Correspondência para/Correspondence to: E.T. SANTOS. E-mail: eva.teixeira@ufms.br.

Contribuição

D. A. CARMONA contribuiu na concepção, análise e interpretação dos dados. E. T. SANTOS foi orientadora da dissertação e contribuiu com a revisão, complementação e aprovação da versão final do artigo.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.