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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.27  Campinas  2022

https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5441 

Artigos

Compreensão e atuação de professoras em situações de bullying e violência no ambiente escolar

Teachers’ comprehension and interaction in situations of bullying and violence in schools

Vinícius Ferreira Amaral1 
http://orcid.org/0000-0002-7731-2913

Alayde Maria Pinto Digiovanni1 
http://orcid.org/0000-0001-6852-9857

1Universidade Estadual do Centro-Oeste, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Psicologia. R. Professora Maria Roza Zanon de Almeida, s/n., Engenheiro Gutierrez, 84505-677, Irati, PR, Brasil.


Resumo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que objetivou descrever e analisar as intervenções adotadas por professoras em situações de bullying e violência no ambiente escolar. Baseou-se na perspectiva histórico--cultural, que tem Vygotsky como seu principal autor. Os dados foram coletados em duas escolas públicas de um município de médio porte do interior do Estado do Paraná e foi adicionada uma terceira escola no percurso. Em um primeiro momento, disponibilizamos um questionário com perguntas abertas para as escolas contatadas e nove professoras o responderam. Dessas nove, após a leitura e análise de suas respostas, cinco foram selecionadas para uma entrevista semiestruturada que visava a aprofundar os dados obtidos no questionário. Concluiu-se que as professoras não têm um conhecimento abrangente do fenômeno bullying, o que acarreta dificuldades das mais variadas no cotidiano escolar. Nesse sentido, indica-se a necessidade urgente de maior qualificação das profissionais da educação e de uma práxis coletiva assumida pelas instituições de ensino para que haja uma intervenção efetiva nesse contexto.

Palavras-chave Bullying; Educação; Escolas; Psicologia; Violência

Abstract

This is a qualitative research that aimed to describe and analyze the interventions adopted by teachers in situations of bullying and violence in the school environment. It was based on the historical-cultural perspective, which has Vygotsky as its main author. The data were collected in two public schools in a medium-sized municipality in the interior of the State of Paraná and a third school was added along the way. At first, we made a questionnaire with open questions available to the contacted schools and nine teachers answered it. Of these nine, after reading and analyzing their answers, five were selected for a semi-structured interview that aimed to deepen the data obtained in the questionnaire. In conclusion, the teachers do not have a comprehensive knowledge of the bullying phenomenon, which causes the most varied difficulties in the school routine. In this sense, there is an urgent need for greater qualification of education professionals and for a collective praxis assumed by educational institutions so that there is an effective intervention in this context.

Keywords Bullying; Education; Schools; Psychology; Violence

Introdução

De modo geral, a violência não é um fenômeno estranho para a sociedade contemporânea, dado o fato de que todos entramos em contato com ela, de uma forma ou de outra, ao longo da vida. O fato de a violência ser algo tão próximo a nós diz respeito à dinâmica da sociedade ao longo do tempo, pois o ato violento, embora hediondo, é estratégia de controle das massas e, a partir das práticas sociais e das relações estabelecidas no interior de uma cultura, passa a fazer parte da subjetividade dos indivíduos.

Ao longo do desenvolvimento da sociedade humana foi criada a instituição escolar, com o objetivo de transmitir às pessoas o conhecimento científico desenvolvido pela humanidade e, além disso, moldar seus comportamentos para que estejam submetidas à lógica hegemônica instituída em diferentes momentos históricos. É importante pontuar que a escola deve ser entendida a partir da sua inserção histórica e do papel social que exerce ao longo do tempo, pois ela, inevitavelmente, manifesta em seu interior as contradições da sociedade em que está imersa, visto que “[...] dentro e fora da escola, crianças e adultos vivenciam – ainda que de modo contraditório – processos educativos que estão sujeitos hegemonicamente aos valores do capital na sociedade moderna e que se expressam em relações de poder e dominação exercidos em todos os níveis das relações humanas [...]” (Cruz, 2014, p. 160).

Nesse sentido, é correto afirmar que a instituição escolar é uma organização que também está submetida ao fenômeno da violência. Neste artigo, discutiremos sobre uma forma de violência específica, o bullying, analisando a compreensão de professoras sobre esse fenômeno e as diferentes estratégias utilizadas por elas no enfrentamento dentro de escolas sob a ótica da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica.

Bullying é um termo da língua inglesa que pode ser traduzido como assédio, zoação, importunação. Trata-se de um fenômeno consideravelmente antigo, mas de estudo recente, pois era tomado como algo natural em determinados momentos. No Brasil, as primeiras pesquisas dessa área foram realizadas por volta da década de 1990. Há um debate sobre o que seria o bullying e como ele se diferencia de outras violências, resultando em diferentes conceituações a respeito. Aqui, partimos do princípio de que ele se caracteriza como: “[...] um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, adotado por um ou mais alunos contra um ou outros, causando dor, angústia e terrível sofrimento às vítimas, gerando como consequências bloqueios psicológicos” (Levandoski; Cardoso, 2013, p. 136).

Outro aspecto importante a se destacar é a natureza vertical do fenômeno, isto é, a sua ocorrência em relações desiguais de poder; comumente o mais poderoso da relação é quem agride o mais fraco, pois “[...] a vítima não consegue se defender com facilidade devido a inúmeros fatores” (Fante, 2011, p. 28). Portanto, o bullying é uma manifestação violenta entre pares; é um fenômeno social que possui características singulares que o diferenciam de outras formas de violência.

Além do mais, é de suma importância destacar que o bullying tem inúmeras causas possíveis para sua ocorrência, e dentre elas podemos destacar: características singulares de cada envolvido decorrentes de sua história de vida; relações interpessoais; situação socioeconômica; ação da escola sobre os alunos e alunas; padrões de normalidade aceitos culturalmente; e tantas outras mais. Vale também ressaltar que todas as causas possíveis não são determinantes e tampouco se encontram descoladas do contexto macroestrutural da sociedade, pois – cabe reforçar – as contradições presentes fora da escola manifestam-se também dentro dela.

O bullying é um fenômeno complexo e multideterminado, portanto, de difícil apreensão. Ele pode causar as mais diversas consequências nos envolvidos, inclusive manifestações físicas, como: dores de cabeça, náuseas, tremores, desmaios, fobia escolar, transtorno do pânico e, em casos mais graves, suicídios e/ou homicídios. Nenhuma dessas ocorrências é limitada a um ator específico; tanto vítimas quanto agressores e espectadores são afetados pelo bullying e sentem seus impactos singularmente.

A desigualdade social presente na sociedade brasileira é sentida na educação oferecida às crianças e jovens, portanto podemos “[...] considerar a escola como um produto social desigualmente distribuído” (Zequinão et al., 2017, p. 20). Esse fato impacta nas relações estabelecidas no ambiente escolar e acabam por ser impulsionadoras de comportamentos discriminatórios e violentos. Assim, evidencia-se a desigualdade social com uma das maiores causas do bullying, afirmando que esse fenômeno é um problema social e – por interferir e prejudicar a saúde dos indivíduos afetados –, uma questão de saúde pública.

Dito isso, fica evidente a necessidade de intervenções no âmbito da violência entre pares na escola. As professoras são agentes importantes nesse processo, pois são elas que vivem o cotidiano escolar e têm o papel de conduzir e organizar pedagogicamente o ambiente escolar. Porém, em alguns estudos (Silva et al., 2013, 2017) são encontradas ineficiências dessas profissionais para intervir em casos de bullying. Isso deve-se ao fato delas possuírem uma compreensão limitada do fenômeno e à lógica medicalizante da vida – tratamento de questões sociais, pedagógicas e de saúde mental à luz dos saberes biomédicos de cuidado pela via da medicação –, presente nas escolas. Silva et al. (2013) realizaram uma pesquisa que apontou para o fato de que algumas professoras evitam intervir nesses casos porque não sabem discernir muito bem o bullying de “brincadeiras típicas da idade” e de pequenos atos de “indisciplina”.

Concordamos com Duarte (1996) quando ele diz que o papel da educação escolar na formação dos indivíduos é o de mediadora entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não-cotidianas da prática social do indivíduo. Essa afirmação encontra eco na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica, que têm como principais nomes, respectivamente, Lev Vygotsky e Dermeval Saviani. Para Martins (2016, p. 136):

[...] afirmar como função precípua da educação escolar a transmissão dos conhecimentos objetivos, universais, representa, por um lado, tê-la como condição necessária para que cada indivíduo conquiste o domínio das propriedades da realidade – não dadas à captação de forma imediata. Esse domínio, como processo mediado, ancora-se no conteúdo de cada área concreta do conhecimento das quais se reveste o ensino escolar. Por outro, significa reconhecê-lo como um processo que engendra contradições entre as dimensões naturais e culturais da existência psicológica, impulsionando a superação dos processos funcionais elementares em direção aos processos funcionais superiores. Apenas os segundos possibilitam a conquista do autodomínio da conduta, do pensamento por conceitos, de capacidade imaginativa, dos sentimentos e valores éticos etc., e, portanto, se revelam representativos das máximas conquistas do gênero humano.

Desse modo, Martins (2013) destaca que tanto para Vygotsky quanto para Saviani, a natureza do humano é produzida sobre sua base biofísica, ou seja, é aprendida. A partir disso, pode-se afirmar que as professoras, em sua ação de ensino, possibilitam o desenvolvimento de suas funções psíquicas superiores, a saber: sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento, emoção, imaginação, criação. Pois para tornarmo-nos humanos é preciso apreender

[...] os comportamentos complexos culturalmente formados, [fato que] demanda a apropriação do legado objetivado pela prática histórico-social. Os processos de internalização, por sua vez, se interpõem entre os planos das relações interpessoais (interpsíquicas) e das relações intrapessoais (intrapsíquicas); o que significa dizer que instituem-se a partir do universo de objetivações humanas disponibilizadas para cada indivíduo, ou seja, por meio de processos educativos

(Martins, 2013, p. 271).

E em função disso, reafirmamos a importância de se ter profissionais da educação preparados para lidar com o bullying nas escolas a partir dos pressupostos mencionados.

A Psicologia-Histórico-Cultural teve como maiores expoentes Lev Vygotsky, Alexander Luria e Alexei Leontiev, com maior destaque para o primeiro. Os autores viveram no período pós-revolucionário da União Soviética e tinham como norte a proposição de uma psicologia que superasse as crises estruturais dessa ciência na época. A raiz filosófica e epistemológica dessa abordagem é o materialismo histórico-dialético de Karl Marx e Friedrich Engels e, devido a isso, Vygotsky desenvolveu uma teoria que considera o desenvolvimento humano um processo histórico e dialético.

Na visão desses pensadores, o ser humano é um ser natural, ou seja, submetido às leis gerais da natureza, porém “[...] se diferencia dela na medida em que é capaz de transformá-la conscientemente segundo suas necessidades” (Rego, 1995, p. 96). Nessa perspectiva, Vygotsky enxerga no cérebro humano a base biológica do mecanismo psíquico, o ponto a partir do qual o ser humano se desenvolve. Contudo, ele não é um sistema rígido e, devido a sua grande plasticidade, cada membro da espécie humana desenvolve-se singularmente de acordo com suas múltiplas determinações históricas, sociais e culturais.

Tais aspectos levaram Vygotsky a privilegiar o estudo do desenvolvimento humano por entender que se pode diferenciar:

[...] dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto à sua origem: de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas

(Vygotsky, 2007, p. 42, grifos do autor).

Portanto, na criança em desenvolvimento, podemos entender a gênese dos processos psicológicos superiores e especificamente humanos.

A Psicologia Histórico-Cultural estabelece uma crítica aos paradigmas existentes na ciência na época de sua inauguração: as abordagens inatista e ambientalista do desenvolvimento humano, indicando suas contribuições e suas limitações na compreensão do objeto de estudo da psicologia. A primeira das abordagens mencionada credita a características supostamente inatas e naturais a constituição do ser humano, sem considerar o contato com o ambiente; já a segunda, inverte essa lógica e entende os indivíduos como seres que apenas absorvem o meio externo e se constituem a partir disso. Conforme Rego (1995, p. 5) “[...] o ponto de vista de Vygotsky é que o desenvolvimento humano é compreendido [...] através de trocas recíprocas, que se estabelecem durante toda a vida, entre indivíduo e meio, cada aspecto influindo sobre o outro”.

Em síntese, o interesse maior de Vygotsky foi o estudo da gênese e do desenvolvimento dos processos psíquicos chamados de superiores e, para tal, se dedicou a estudar o desenvolvimento infantil. Concluiu que essas funções psíquicas são de origem cultural e internalizadas pelos sujeitos em um processo dialético de interação com os caracteres biológicos. A sua maior diferenciação quanto às outras abordagens deu-se por tratar dessa temática considerando o contexto sociocultural de maneira coerente com o materialismo histórico-dialético. Por isso, ele concluiu que o desenvolvimento humano é dialético, afinal, seu percurso “[...] não ascende do natural ao cultural, mas imbrica essas linhas contínua e permanentemente à medida das contradições geradas pela vida social entre o legado da natureza e o requerido pela cultura” (Martins, 2013, p. 79).

Sendo este trabalho baseado nos estudos de Vygotsky, fica claro o posicionamento marxista aqui proposto. O enfoque epistemológico utilizado é o materialismo histórico-dialético, isto é, parte-se da ética que considera a realidade empírica como definidora da sociedade que se constrói ao longo do processo histórico da humanidade, este que, por sua vez, se faz dialeticamente. Esse prisma entende “[...] que o mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas mas sim um processo de complexos” (Gomide, 2014, p. 2). O que se busca neste trabalho intelectual não é a aparência do fenômeno, porém a sua essência, aquilo que há de conflituoso em seu caráter histórico.

“O controle da natureza e o controle do comportamento estão mutuamente ligados, assim como a alteração provocada pelo homem sobre a natureza altera a própria natureza do homem” (Vygotsky, 2007, p. 55). Assim como essa mediação entre o ser humano, a natureza e os instrumentos utilizados para sua modificação são definidores da realidade social, o nosso psiquismo define-se na relação estabelecida entre nós e os signos – conceitos, significados, abstrações que representam coisas diferentes de si mesmas –, construídos historicamente pela humanidade. Também sendo a linguagem um sistema de signos extremamente desenvolvido e grande regulador das condições psíquicas e sociais, faz-se importante o estudo qualitativo de fenômenos sociais como o bullying, pois o requisito básico do método dialético é o estudo das coisas em seu processo de mudança (Vygotsky, 2007).

Como estamos falando sobre a compreensão teórica sobre o bullying e em como isso impacta na prática das profissionais da educação nesses contextos, é preciso abordar o conceito de práxis, que é, resumidamente, uma unidade entre teoria e prática, ambas entendidas numa relação dialética e não-dicotômica. Conforme Freire (1987), a reflexão e a prática são indissociáveis (práxis) e se retroalimentam possibilitando transformações na realidade. Esse deveria ser o norte para intervenções de todos os tipos, não só no ambiente escolar, mas em qualquer comunidade. Portanto “[...] educador e educandos (liderança e massas), co-intencionadas à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar esse conhecimento” (Freire, 1987, p. 31).

Sendo assim, é na ação e reflexão que se faz e refaz a sociedade; é na ação e reflexão que se luta contra o bullying.

Procedimentos Metodológicos

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Centro-Oeste (UNICENTRO) sob o parecer nº 3.087.105, em 17 de dezembro de 2018 e utilizou questionários e entrevistas como instrumentos de coleta de dados. Ela foi feita com professoras do sistema público de educação de uma cidade de médio porte do interior do Estado do Paraná. Como o número de professoras interessadas em participar da pesquisa poderia ser muito grande e não seria empregada uma seleção arbitrária, optou-se pela seguinte organização. Primeiramente, foi entregue um questionário em duas escolas públicas do município e nove professoras prontificaram-se a respondê-lo. A partir de suas respostas ao questionário – os critérios serão apresentados mais a frente –, foram selecionadas cinco professoras para serem entrevistadas; ao longo do processo foi adicionada outra escola para a pesquisa pois uma das professoras lecionava em uma das escolas selecionadas anteriormente mas no momento da entrevista trabalhava apenas como diretora em uma terceira instituição, também pública e da mesma cidade.

O questionário foi elaborado especialmente para este fim e seu intuito foi levantar algumas questões gerais sobre a compreensão das professoras a respeito do fenômeno bullying e suas intervenções para que algumas docentes fossem selecionadas às entrevistas. As perguntas abarcavam a compreensão geral delas sobre o bullying, sobre suas causas, consequências e quais foram/são suas intervenções nesses casos.

Quanto aos critérios de seleção para as entrevistas, uma das docentes não foi selecionada porque deixou de responder a uma página do questionário. Os outros critérios de seleção foram: (1) lecionar Educação Física, pois essa disciplina possui a especificidade de ter aulas em outros ambientes e com estruturas diferentes, portanto poderia diversificar os dados; (2) a partir do tempo de carreira foram escolhidas as professoras com pouco e com muito tempo de exercício da profissão, também no intuito de diversificar as respostas; (3) com base na revisão de literatura a respeito da temática e seguindo a lógica de buscar diversidade nas respostas, o último critério foi escolher as professoras que aparentavam ter maior compreensão do fenômeno e as que aparentavam ter menor compreensão. Sendo assim, foram escolhidas cinco docentes para serem entrevistadas e todas elas aceitaram o convite. Como somente duas professoras que responderam ao questionário lecionavam Educação Física, foram essas duas as filtradas para as entrevistas.

Das professoras entrevistadas da primeira escola, uma era professora de Inglês e outra de Educação Física; na segunda escola, uma era de Química, uma da Sala de Recursos e acompanhava um aluno com deficiência auditiva em sala de aula e outra era de Educação Física, embora no momento da entrevista atuasse apenas como diretora de uma terceira escola. As cinco entrevistas possuíam questões norteadoras que procuravam responder às indagações da pesquisa e ao mesmo tempo davam flexibilidade ao pesquisador. Após as transcrições foi feita uma análise de conteúdo, buscando a sistematização dos enunciados das entrevistadas e das respostas do questionário. Essa técnica permite que,

[...] a partir dessa organização seja possível extrair seu conteúdo e explicitar seu significado conhecendo as variáveis psicológicas, sociológicas, históricas, etc., que estão na base de sua produção. [Portanto] busca efetuar deduções lógicas e justificadas a partir do emissor e seu contexto, que fundamente a interpretação dos dados

(Pereira, 2016, p. 64).

Ou seja, a posteriori, define-se as categorias de análise e examina-se à luz da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. São elas: definição e compreensão do fenômeno; compreensão das causas e das consequências; e atuação. Vale destacar que o objetivo inicial do trabalho foi levantar questões relacionadas às intervenções adotadas pelas professoras e, para chegar nesse objetivo, investigou-se, também, a compreensão delas sobre o fenômeno. Com o conteúdo levantado nos questionários e principalmente nas entrevistas, as questões ligadas à compreensão delas sobre bullying teve mais destaque que o previsto, esse achado será comentado adiante.

Questionários

Dentre as respostas obtidas, é possível destacar que apenas uma das professoras nunca tinha estudado nada sobre bullying, porém, quando questionadas sobre esse fenômeno, as respostas foram simplistas e algumas até mesmo incoerentes, como observa-se na definição de uma delas: “é um termo da língua inglesa que se refere a todas as formas de atitudes agressivas físicas ou verbais”. Ao unir o bullying e a violência no geral, ambos ficam definidos como o mesmo fenômeno.

Numa descrição breve das intervenções efetuadas, foco deste trabalho, uma relatou nunca ter feito uma intervenção por não ter presenciado nenhuma situação de bullying; outra relatou ter trabalhado com os(as) alunos(as) uma apostila, apresentada mais à frente, que ela encontrou na internet; quatro contaram que preferem conversar com a sala e orientá-los(as) a não repetirem o ato violento e, quando necessário, chamar a atenção; outras duas afirmaram que costumam encaminhar tais casos para a equipe pedagógica e uma delas atua conversando com os(as) alunos(as) e encaminhando-os para a direção. Tendo como base os conhecimentos sistematizados sobre o fenômeno e algumas intervenções realizadas com sucesso no ambiente escolar – como a contada por Rauber (2016) –, é possível afirmar que essas respostas expressam limitações quanto à forma de atuar nesses casos e uma necessidade de maior esforço da sociedade para estudar e intervir nesse campo.

Definição e compreensão do fenômeno

Todas as entrevistadas responderam o que elas entendem por bullying, tanto no questionário quanto nas entrevistas, e foi majoritária a definição que compreende as variações que o bullying possui – pode ser verbal, físico, material e de muitas outras formas –, mas apenas duas das cinco mencionaram a necessidade das violências se repetirem para serem configuradas como bullying.

Como dito anteriormente, o bullying elucida as relações de poder estabelecidas na estrutura social e parte de alguém mais poderoso e respeitado – salvo em raríssimos casos –, e quando acontece em uma situação inversa a essa, trata-se de uma vingança das importunações já recebidas em algum momento. Contudo, nenhuma professora relatou identificar essas relações nos casos presenciados. Uma delas respondeu que apenas as minorias sociais sofrem a violência do bullying, mas hoje em dia não consegue mais perceber essa dinâmica. Outra professora ainda inverteu essa lógica afirmando que para ela “o agressor [faz] pra chamar a atenção. Porque ele não pode ser menorizado pela turma. E a vítima por não ter coragem [de dizer] que está sofrendo esse bullying”. Segundo ela, os agressores costumam ser, por exemplo, gordos e negros que, por serem ridicularizados pela sociedade, agem violentamente contra outros para se proteger. Fante (2011) conceituou esse tipo de vítima como vítima agressora. Na fala dessa professora não é reconhecido o processo de agressão sofrido por essas pessoas. Ademais, para ela, as vítimas se colocam nessa posição por falta de coragem e, assim, acaba culpabilizando-as.

Além disso, quatro delas mencionam a família diversas vezes. Aqui estão alguns exemplos:

Então eu acho que tudo começa na família. Então não tem como fugir disso.

[...] tendo uma base familiar melhor, que às vezes chega em casa conta pro pai o que aconteceu, o pai e a mãe ajudam a lidar com aquilo, passa!

Porque a cabeça daquele aluno já está formada, porque principalmente é o que eu acredito, não sei se estou certa, mas é formada dentro do ambiente familiar. Dentro dessa base familiar.

Só que eu digo que o problema está na base familiar, pra mim é isso. Então deveria ser... as famílias serem mais presentes, esse é o problema.

Então a escola está vivendo, está fazendo o que a família devia fazer. Eu acho que isso devia vir da família, e não da sala de aula, de uma escola.

[...] apoio familiar pra essa pessoa é essencial.

Porque às vezes a gente passa por uma coisa aqui dentro da escola que é um tipo de pensamento, mas ele vai chegar lá no pai, vai chegar lá na mãe, e eles são racistas. A gente fala aqui que todo mundo é igual, só que o que ele escuta em casa é outra coisa.

Nessas afirmações, as professoras atribuem à família o peso de serem causadoras e solucionadoras de problemas escolares; dessa forma, a escola descumpre seu papel de mediadora entre os(as) alunos(as) e o conhecimento desenvolvido pela humanidade, deixando que as orientações a respeito de um problema escolar, que manifesta as construções sociais a cargo das famílias. Essa prática também é, de certo modo, espontaneísta por acreditar que o conhecimento e a mudança surgirão sem intervenção escolar, sem a escola fazer sua parte. Essa concepção é a tão criticada pela Psicologia Histórico-Cultural e pela Pedagogia Histórico-Crítica, pois duvida do valor da educação e do peso que o(a) professor(a) tem na vida de seus(suas) alunos(as).

Uma das professoras não atribuiu à família o mesmo peso atribuído pelas outras; ela focou nas vítimas para comentar sobre o fenômeno, como podemos constatar nos fragmentos abaixo:

Eu acho que o bullying sempre existiu. Mas assim, quando a gente conversa com os professores, o que acontece muito é que antes o que era brincadeira, agora está sendo denominado bullying.

É [...] mas assim, eu acho assim, que pelo fato da geração atual não estar sabendo lidar com frustrações, ela tá internalizando coisinhas mínimas. “Ai hoje falaram do meu cabelo, meu deus, mãe, e agora? Tão falando do meu cabelo, vou ficar depressiva” e acaba ficando porque não sabe lidar com as frustrações.

O bullying eu acho que é uma questão muito difícil tanto pelo momento que a gente vive, porque eu acho assim, que é uma geração muito, muito frágil, muito sensível, que vem com muitos problemas. Ela não tá sabendo lidar com as frustrações né, então a época da adolescência eu acho que é onde surge mais, tanto por questão é... hormonal, emocional.

Segundo essa professora, o problema se encontra nas vítimas; elas deveriam não internalizar as violências, e o bullying passou a ser um problema quando as pessoas começaram a não se calar diante dele e a problematizarem sua existência. Não obstante, ao ser perguntada sobre como enxerga uma solução para essa temática, ela comenta que é necessário

[...] fortalecer essa geração, fazê-los conseguirem lidar com uma frustração, saber receber [...] digamos um bullying ou alguma coisa e saber simplesmente ignorar aquilo, não internalizar aquilo. “Ai me chamou de gorda... tudo bem! Posso ser, posso não ser”. Mas assim, não ficar: “ai meu deus ele me chamou de gorda” assim sabe. Agora como fortalecer essa adolescência daí [...] aí é pra psicologia pensar.

Seguindo essa lógica, o problema acabaria com a “escolha” de não sofrer por ele. No fim, a resolução da questão é deixada a cargo da Psicologia, e essa profissão assume aqui o lugar atribuído à família nas outras respostas.

As outras soluções apresentadas pelas demais professoras variam entre respeito e amor, mudança de pensamento e orientação, e também se configuram como limitadas e pouco efetivas na solução do problema discutido; é perceptível em todas as entrevistas a falta de práxis transformadora como Norte de qualquer ação.

Compreensão das causas e das consequências

Quando indagadas sobre quais seriam as causas do bullying, elas atribuíram motivos para os agressores agirem violentamente, mas eram visões limitadas. Um exemplo dessa concepção pode ser visto neste fragmento: “então eles agridem os outros pra não serem agredidos, pra não mostrarem a sua fragilidade para os outros”. Como já foi comentado anteriormente, as agressões possuem diversos motivos, mas nesse e em outros comentários das professoras aparece um recorte pequeno desse contexto. Outro exemplo pode ser dado com este trecho: “então se aquela criatura já vem com aquele pensamento preconceituoso, nós, enquanto professores, mudar é muito difícil”. Aqui, além da visão limitada quanto às motivações do agressor, existe uma variável comentada em algum momento por todas elas: a família. Uma das professoras afirmou que os valores e a educação dados em casa são responsáveis pelas atitudes dos filhos na escola. As outras comentaram que maus tratos sofridos em casa podem resultar em comportamentos agressivos no ambiente escolar, ou então, que a omissão dos pais é responsável pelo quadro que encontramos. Se analisarmos essas concepções separadamente, podemos dizer que de fato essas características de formação familiar são influenciadoras do comportamento escolar dos(as) alunos(as), mas não é possível falar sobre bullying de maneira simplista; o erro reside em considerar a família como a única e exclusiva formadora de caráter. Além disso, uma das professoras segue culpabilizando as vítimas ao dizer que os pais protegem demais seus filhos, e isso criaria uma geração mimada não sabendo lidar com as frustrações.

As consequências do bullying são muito diversas e afetam todas as pessoas que estão em volta dele mas apenas uma das professoras entrevistadas apontou para esse fato. Dentre as demais, uma diz que quem não tem apoio e estrutura familiar sofre mais com as violências. O trecho abaixo exemplifica essa questão:

São esses, é [...] que tão aí meio largados pelo pai, pela mãe, e acabam não tendo com quem desabafar aquilo e tentar lidar com aquilo, ele tem que [...] são os que têm que lidar sozinhos. Eu penso. Não pai, mãe, às vezes tem um amigo ali né, um tio, um parente que possa ajudar a lidar com aquilo. Agora, quem não tem, que tem que lidar com o bullying sozinho, eu acho que são os que sofrem mais.

Essa visão não considera o sofrimento dos agressores e espectadores do bullying e diferencia vítimas que sofrem mais das que, segundo ela, sofrem menos. É evidente que pessoas que possuem apoio, sendo ele familiar ou não, podem lidar com situações estressantes de forma mais efetiva, porém, isso não é válido em todos os casos e o bullying não acaba porque a vítima conta as agressões para alguém. Muitas vezes elas até pioram, pois o agredido passa a ser visto como “dedo-duro”, “x-9” ou “cagueta” pelos agressores.

Duas professoras percebem que os envolvidos podem sentir os impactos das violências tanto a curto quanto a longo prazo. Os impactos mencionados por elas, assim como pelas demais, variam entre adoecimento psíquico – automutilação, automedicação, depressão, baixa autoestima e suicídio são exemplos dados por elas –, mudança de escola e traumas. Aqui repete-se a análise feita anteriormente sobre a estrutura familiar; os exemplos dados por elas são de fato consequências possíveis para as agressões, mas são exemplos limitados e inconsonantes a uma concepção mais contextualizada do fenômeno. Não é dito em nenhum momento que todas as pessoas em torno do bullying são afetadas; para as professoras, os impactos são sentidos apenas nos indivíduos específicos.

Atuação

Uma das professoras leciona Educação Física na primeira escola e, por iniciativa própria, trabalhou com seus(suas) alunos(as) uma apostila sobre bullying encontrada em uma busca na internet. Ao termos contato com a apostila constatamos que ela se encontra no site do governo do estado de São Paulo, em uma página intitulada “Chega de Bullying: Não fique calado”. De acordo com o conteúdo apresentado, havia uma apostila destinada ao Ensino Fundamental I, outra para o Ensino Fundamental II e Médio2. A professora passou grande parte da entrevista mostrando o material e embasava-se nele para falar. Ao final da entrevista, disponibilizou o material para análise. A maneira como as apostilas tratavam o assunto era clara e didática, com ilustrações e exercícios a respeito do assunto trabalhado mas fazia uma leitura mais individualista do fenômeno, sem considerar uma saída coletiva para o problema encontrado.

Ao ser perguntada sobre dificuldades encontradas ao trabalhar com esse material em suas aulas, disse ter encontrado apenas uma: a apostila destinada ao Ensino Fundamental II abordava questões sobre sexualidade e a mãe de uma aluna, ao saber disso, foi até a escola reclamar à direção. A professora tentou falar com essa mãe, mas ela não retornou à escola. Durante a entrevista, a professora se defendeu dizendo que já havia feito um curso ofertado pelo Estado a respeito desse assunto e que após o ocorrido explicou aos(às) alunos(as) que ela não estava incentivando nenhum tipo específico de ato sexual e que estava explicando todas as possibilidades, sobretudo, o respeito a todas as formas de sexualidade.

Ao final do processo, a entrevistada percebeu mudanças no comportamento dos(as) alunos(as) e julgou positivos os resultados, pois eles(as) diminuíram a quantidade de insultos que dirigiam aos(às) colegas, ao menos em suas aulas. Ainda deixou as apostilas à disposição dos(as) demais colegas, mas, segundo ela, ninguém demonstrou interesse.

Quanto à sua intervenção direta em casos de bullying, sem o intermédio da apostila, contou que no primeiro dia de aula aborda essa questão com seus(suas) alunos(as) e disse não tolerar esse tipo de comportamento em suas aulas. Além disso, é ela quem escolhe os times durante as atividades práticas e suas aulas que, no geral, são cooperativas. Também disse que alguns(algumas) alunos(as) a procuram em particular para conversar sobre bullying ou sobre outro assunto delicado e que ela costuma recomendar meditação a esses(as) alunos(as). Ainda fala muito em sala de aula sobre amor-próprio desta forma: “então eu falo muito essa questão pra eles assim, sabe, de se amar como você é, se aceitar como você é”.

A segunda professora lecionava Educação Física na segunda escola, mas no momento da entrevista estava atuando como diretora em uma terceira escola. Ela conta que, durante suas aulas, intervém no momento em que percebe algum ato de violência entre pares, de forma a conversar com o grupo ou individualmente. Ela julga suas intervenções efetivas, mas somente durante as suas aulas. Ela questiona se nas demais disciplinas seus(suas) alunos(as) comportam-se da mesma forma. Em casos mais graves, ela e seus(suas) colegas costumam encaminhar a questão para a direção e/ou rede de proteção (Centro de Referência da Assistência Social, Centro de Referência Especializado de Assistência Social e Conselho Tutelar foram os exemplos dados). Os casos relatados foram diversos e não se configuravam especificamente como bullying. Ela conta que em algumas situações em que um(a) aluno(a) possuía algum problema de ordem psicológica, o encaminhamento para a rede se configurava efetivo. Contudo, casos reais de bullying e, sobretudo, os enfrentados apenas pela direção, não costumam ter resultados positivos.

Essa professora ainda conta neste trecho sobre suas dificuldades: “assim, a dificuldade de se posicionar a gente não sente, mas o difícil é fazer quem está fazendo, com quem a gente tá conversando, se situar na situação, entendeu? Tipo, o difícil é fazer eles entenderem que o que eles estão fazendo é errado”.

Em outro momento, a professora diz sentir falta da capacitação para atuar nesses contextos. Ela ainda fecha dizendo que é “melhor fazer uma coisa errado tentando acertar do que ficar omissa”.

A terceira professora dá aula de Química na segunda escola. Ela diz já ter ouvido falar sobre bullying em outras situações mas nunca buscou se aprofundar nesse assunto por não ter sentido essa necessidade em nenhum momento. Ela narrou um caso, em que ao incomodar-se com a situação, partiu em defesa da vítima tentando conversar grupalmente com a sala toda. Num outro dia, em que a vítima em questão não estava presente, ela ainda conversou novamente com a sala para tentar explicar o porquê daquele aluno ser da maneira que ele é.

Sua atuação nesse caso deu-se de forma grupal, mas em outros casos, diante da necessidade, ela conversa individualmente com alguns(algumas) alunos(as) também. Ainda conta não ter sentido nenhuma dificuldade para intervir até então, mas devido ao fato de apenas ter presenciado casos entendidos como não tão graves. Porém, duvida se em casos com maior gravidade conseguiria posicionar-se.

A quarta professora leciona a disciplina de Inglês na primeira escola. Ela foi bem direta quando indagada em sua atuação nos casos de bullying. Conta que não permite esse tipo de comportamento em suas aulas e, pelo fato dos(as) alunos(as) saberem que ela é muito “ruim” em sala de aula, “não se repetem” com ela. Devido a isso, ela conta não sentir dificuldades em intervir: “Quando eles falam algum apelido eu falo assim: ‘o nome dele é fulano, é ciclano, é beltrano’ [...] ‘ah, mas ele gosta’. ‘Pra mim o nome dele é esse, eu vou chamá-lo desse’. Eu não deixo isso. Que eu sou muito ruim em sala de aula, então eles não se mexem. Apelido essas coisas eu não admito na sala”.

A quinta e última professora atua na Sala de Recursos e como acompanhante de um aluno surdo na segunda escola. Inicialmente, teve dificuldade para lembrar-se de algum caso de bullying que tenha presenciado em sala e disse o seguinte: “[...] a gente passa por situações, mas sinceramente, a gente já tá tão curtido que você nem grava. Você chega em casa e esquece. Tenta resolver naquele momento, chama uma equipe pedagógica, chama alguém se for algo sério e depois você esquece. Por isso que eu nem lembro. Porque realmente são situações muito rotineiras na escola”.

A forma de atuar que ela conta ser a mais comum nas escolas em que já trabalhou é tentar dar uma aula diferente sobre bullying ou aplicar uma dinâmica da internet; às vezes, os casos são levados à equipe pedagógica e os pais dos envolvidos são chamados. Ela entende que essas intervenções são repetitivas e não surtem efeito na realidade escolar.

No decorrer da conversa, a professora consegue se lembrar de dois casos e conta que nesses e em outras situações, tenta ao máximo não interferir na aula mas nos momentos em que ela se incomoda demais com a situação seu “sangue ferve” e é difícil se controlar. Em tais ocasiões ela age de maneira a tentar fazer o agressor se sentir como agredido, de forma a tentar criar empatia nele. A entrevistada entende que essa forma de atuar não seja a melhor possível e diz se sentir incomodada com sua explosão nesses casos, mas aproveita e realiza um desabafo que é muito significativo para a pesquisa:

Realmente pra você ver [...] a meu ver, que ninguém sabe o que fazer. Todo mundo tem uma opinião diferente e ninguém sabe o que fazer. Todo mundo tenta fazer o melhor, e tenta intervir, eu acho que isso ainda tem acontecido, os professores não têm feito vistas grossas pro bullying, a maioria né. Ainda é tentado fazer alguma coisa, que a gente não sabe bem o que fazer, mas tenta. Mas que a gente esteja preparado pra enfrentar isso, a gente não está.

Todos os relatos levantam uma questão central: a falta de qualificação e preparo das professoras para atuar de forma efetiva em situações violentas nas escolas. É extremamente importante deixar claro aqui que não temos a menor pretensão de julgar as atuações dessas profissionais, muito menos culpabilizá-las por uma questão que é muito maior. Utilizamos os dados levantados na pesquisa para compreender melhor esse fenômeno e compartilhar com as demais pessoas, a fim de pensarmos em alternativas para a construção de uma escola mais plural.

Retomando algumas discussões já abordadas neste trabalho, dizemos que “importa considerar inicialmente que toda práxis educativa, isto é, toda ação teórico-prática que se efetiva como ensino aprendizagem produz alterações nos sujeitos” (Martins, 2011, p. 552). Em decorrência disso, o que nos cabe como imperativo ético é a realização e uma práxis libertadora, visando a eliminação de atos violentos e repetitivos em nossa sociedade e não à sua perpetuação; ainda mais, precisamos erradicar as relações de poder desiguais que estruturam nossa sociedade e possibilitam que o bullying exista. Para isso, não bastam ações isoladas, como a da primeira professora. É necessária uma mobilização coletiva, abrangente e engajada para transformação. Exemplos de intervenções imediatas, como das demais professoras, apenas evitam manifestações desagradáveis em aula servindo como mascaramento de problemas que devem ser enfrentados cara a cara sem medo de represálias; é necessário posicionar--se abertamente contra a violência e a estrutura social que a sustenta. As entrevistadas mostram como existe uma intenção em lutar contra o problema e eliminá-lo (prática) mas falta preparo para esse enfrentamento (teoria). As entrevistas evidenciam o quanto esse preparo é quase nulo, em discursos que apontam para as vítimas como o verdadeiro problema.

[...] é possível afirmar que a práxis, enquanto movimento dialético entre ação e reflexão, teoria e prática, configura-se como um necessário componente dentro do contexto profissional desempenhado pelo educador. Afirmaríamos ainda, em torno desse debate que, se educadores e educadoras desejam a transformação do atual modelo de escola pública, o caminho pelo qual devem construir esta busca não pode se dar fora da práxis, longe do constante e dialético processo de ação e reflexão ou ainda distante do diálogo permanente entre teoria e prática

(Pereira, Rocha; Chavez, 2016, p. 36).

Assim, ressalta-se a importância do desenvolvimento dos programas de apoio que visem a capacitação para a temática do bullying como resultado de um processo social multideterminado. Pois somente após a compreensão de seu contexto e seus múltiplos condicionantes sociais, históricos e psicológicos o bullying, enfim, será superado.

Considerações Finais

Conforme apresentado nesse trabalho, o bullying é um fenômeno violento que acontece devido às relações desiguais de poder estabelecidas em nossa sociedade. Ele pode ocorrer entre duas ou várias pessoas e precisa acontecer repetidas vezes para configurar-se como tal. Além disso, são inúmeras as causas possíveis para este fenômeno, assim como as consequências, que podem ser sentidas por todos(as) envolvidos(as). A diferença entre o bullying e outros tipos de violência precisa ser apontada, a luta contra todas as opressões deve ser igual.

A Psicologia Histórico-Cultural, base teórica desta pesquisa, aponta para o papel mediador que exerce a educação escolar entre as funções psicológicas inferiores e as superiores. É por causa disso que a participação da instituição escolar é fundamental na luta contra a violência e, no caso do bullying – que acontece majoritariamente nesse ambiente –, é ainda mais crucial.

Os dados coletados nesse trabalho e também em outros apresentados ao longo do texto, apontaram a necessidade de intervenções efetivas para erradicar o problema de bullying. Porém, mostraram também que essa é uma realidade a ser buscada, porquanto encontramos limitações que professoras possuem à compreensão do fenômeno e, consequentemente, limitações também na hora de atuar.

É fato que as professoras incomodam-se com o fenômeno. No entanto, destacamos que as professoras, de modo geral, reagem conforme suas condições históricas individuais de formação e vida privada, que não são e/ou não se sentem preparadas para intervir adequadamente. Para a mudança dessa realidade, fica evidente a necessidade de um ideal que passe pela práxis coletiva em conjunto às comunidades, não apenas escolares, para um debate profundo sobre violência, relações de poder desiguais e como erradicá-las.

Como citar este artigo/How to cite this article

Amaral, V. F.; Digiovanni, A. M. P. Compreensão e atuação de professoras em situações de bullying e violência no ambiente escolar. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 27, e225441, 2022. https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5441

2As apostilas estão disponíveis para serem baixadas no seguinte endereço: <https://www.educacao.sp.gov.br/faca-download-das-apostilas-da-campanha-chega-de-bullying-nao-fique-calado/>.

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Recebido: 02 de Setembro de 2021; Revisado: 08 de Dezembro de 2021; Aceito: 07 de Janeiro de 2022

Correspondência para/Correspondence to: A.M.P. DIGIOVANNI. E-mail: alayde@unicentro.br.

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