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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.27  Campinas  2022

https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5423 

Artigos

A forma corporal das super-heroínas dos quadrinhos e a educação para o lazer

The superheroine body shape in comic books and education for leisure

Cinthia Lopes da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-7979-0337

Nathalia Sara Patreze2 
http://orcid.org/0000-0002-6498-7268

Ana Carolina Capellini Rigoni3 
http://orcid.org/0000-0002-9757-6860

1Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, Escola Estadual Dr. Alfredo Cardoso. R. Morais Barros, 1884, Alto, Piracicaba, SP, Brasil.

2Universidade Metodista de Piracicaba, Grupo de Estudo e Pesquisa em Lazer, Práticas Corporais e Cultura. São Paulo, SP, Brasil

3Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação Física e Desportos, Departamento de Ginástica. Vitória, ES, Brasil.


Resumo

Dentre as diversas produções da mídia e da arte, estão as histórias em quadrinhos e, nelas, as super-heroínas que exibem formas condizentes com padrões de beleza corporal estabelecidos socialmente e que influenciam de certa forma os leitores dessas histórias. A escola e as aulas de Educação Física possuem um papel fundamental na construção de novos conhecimentos e são espaços fundamentais para mediações pedagógicas acerca do corpo e da beleza corporal. O objetivo deste artigo foi analisar as formas corporais das super-heroínas de HQs com base em um referencial cultural e suas relações com a educação para o lazer na escola. Para isso, foi desenvolvida uma revisão de literatura, de abordagem qualitativa. Foram consultadas as bases de dados Google Acadêmico e a biblioteca da Universidade Metodista de Piracicaba. Os resultados indicam que o consumo das histórias em quadrinhos como prática de lazer e, especialmente, o consumo da imagem das super-heroínas, pode estar relacionado à produção de desejo por um “corpo ideal”. Busca-se demonstrar como os quadrinhos de super-heroínas podem incentivar ou reforçar a busca por certos padrões de beleza e quantos problemas isso pode gerar nas crianças e jovens que os consomem. Assim, o professor de Educação Física, com base na educação para o lazer, pode levar os alunos a refletirem sobre essas influências no sentido de reverem significados e valores atribuídos ao corpo.

Palavras-chave Educação; Cultura; Histórias em quadrinhos; Lazer

Abstract

Among the various media and art productions, the superheroines in comics show socially accepted standards of body beauty, which influence the readers of these stories in a certain way. The school and Physical Education classes have an important role as spaces for the construction of new knowledge, and these are fundamental for pedagogical mediation about the body and body beauty. This article aimed to analyze the body shapes of comic book superheroes based on a cultural reference and their relationship with education for leisure at school. A literature review was developed with a qualitative approach. Google Scholar and the library of the Methodist University of Piracicaba were consulted. The results indicate that the consumption of comics as a leisure practice, and especially the consumption of the image of superheroines, may be related to the production of desire for an “ideal body”. We attempt to demonstrate how superheroine comics can encourage or reinforce the search for certain beauty standards and how much this can cause problems for children and young people who consume them. Thus, based on education for leisure, the Physical Education teacher can lead students to think over these influences to review the meaning and value attributed to the body

Keywords Education; Culture; Comic books; Leisure

Introdução

Se os super-heróis sempre fizeram parte do imaginário infantojuvenil (e até do adulto), as super-heroínas começaram a ganhar espaço e notoriedade mais recentemente. A Mulher Maravilha e a Capitã Marvel são exemplos de super-heroínas que foram retratadas em filmes que obtiveram bilheterias milionárias. Fato é que as super-heroínas (americanas) tornaram-se, nos últimos tempos, um produto extremamente difundido pela mídia, principalmente por meio de Histórias em Quadrinhos (HQs), filmes, brinquedos, jogos eletrônicos etc. Os jovens e adolescentes, principalmente as meninas, ao consumirem esses conteúdos, estão, também, se apropriando de referências e modelos corporais que se tornam padrões a serem desejados e perseguidos.

Alguns estudos produzidos nos últimos anos, como os de Corrêa (2018), Corrêa, Capraro e Moraes e Silva (2019), Corrêa, Moraes e Silva e Silveira (2020) e Silva et al. (2018), já chamaram a atenção para a inegável relação entre as HQs e as questões corporais. Silva et al. (2018, p. 97), tendo como base as ideias de Beiras et al. (2007), abordam o modo como são frequentemente constituídos os corpos das personagens de super-heróis e de super-heroínas e fornecem pistas para a construção do problema do presente estudo:

[…] os super-heróis na contemporaneidade possuem um status corporal padronizado e enfático. Os heróis masculinos possuem os corpos mesomórficos, viris, atléticos e musculosos para destacar protagonismo, enquanto que as super-heroínas possuem os corpos esguios e erotizados. Em relação à construção dos corpos femininos, Siqueira e Vieira (2008) abordam que as super-heroínas são construídas segundo as expectativas masculinas […].

Ou seja, falar sobre os super-heróis e super-heroínas de HQ é, de alguma forma, lidar com o imaginário e as representações do que são corpos femininos e masculinos desejáveis, atraentes e poderosos. Aqui, a ideia de poder masculino aparece vinculada à força, enquanto o poder feminino é representado pela sua capacidade de produzir desejo. As crianças e jovens, ao terem acesso a essas produções artísticas e midiáticas, podem ser levadas, em princípio, a comparar esses modelos corporais com o seu próprio corpo, o que produz neles sentimentos de insatisfação e rejeição às suas formas corporais. Essas crianças e jovens, que já são fortemente influenciados por diversas instâncias sociais a se preocuparem demasiadamente com o corpo, se apropriam dos conteúdos das HQs do mesmo modo. Não são poucas as meninas que iniciam, ainda bem jovens, uma busca por mudanças corporais que podem afetar todo o seu percurso de vida. Desse desejo desenfreado pelo “corpo perfeito”, desdobram-se diversos problemas de saúde decorrentes da percepção da imagem que a pessoa desenvolve de seu próprio corpo. Justamente por isso a bulimia, a anorexia, a vigorexia e outras tantas desordens emocionais têm sido analisadas e tratadas como doenças sociais.

A Educação Física (EF) é a disciplina escolar responsável por tratar pedagogicamente os conhecimentos sobre o corpo e as práticas corporais, bem como promover um tipo de educação que leve em conta a apropriação crítica e autônoma das experiências de lazer. O professor deve, portanto, estar atento, de alguma forma, aos diversos elementos que povoam o universo juvenil e que engendram práticas de desejo e de consumo.

Sendo o consumo dessas HQs e, consequentemente, dessas super-heroínas, uma prática comum entre os jovens e adolescentes em seu tempo de lazer, acredita-se que esse tipo de produto pode e deve ser tratado como recurso pedagógico nas aulas de EF. Uma vez que se compreende a escola como um espaço privilegiado para a realização de ações pedagógicas críticas e emancipatórias, esse pode ser um tipo de conteúdo potente para tratar de temas como “corpo e padrões corporais”, “lazer e consumo” e outros.

Acredita-se que os professores de EF podem desenvolver ações no sentido de promover uma mediação de conhecimentos capaz de levar os alunos à reflexão e à consciência crítica sobre o modo de consumir esse tipo de conteúdo. Essa mediação deve promover reflexões mais complexas do que aquelas possivelmente elaboradas pelos jovens em seus consumos cotidianos, incluindo, por exemplo, questões relacionadas ao papel da mulher na sociedade e às maneiras de propagação de padrões corporais, potencializadas nesse tipo de material.

O objetivo deste artigo é analisar as formas corporais das super-heroínas de histórias em quadrinhos a partir de um referencial cultural, buscando elaborar uma reflexão sobre a relação entre as aulas de EF e o “consumo” dessas super-heroínas nas práticas/experiências de lazer dos jovens e adolescentes.

Procedimentos Metodológicos

Neste trabalho é desenvolvida uma revisão de literatura que teve como base o projeto de pesquisa da A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) nº 201713279-4, de natureza qualitativa e fundamentada em um referencial cultural. As palavras-chave utilizadas na busca dos textos base foram: Super-Heroínas, Mercado do Corpo, Beleza Corporal, Empoderamento, Lazer, Educação e Cultura. Para a busca dos textos foram utilizadas as bases de dados Google Acadêmico e a biblioteca da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

Na base de dados Google Acadêmico utilizou-se a busca pela combinação das palavras-chave e, inicialmente, dentro do intervalo de 2014 a 2018, sendo encontrado apenas um texto (Corrêa, 2018). Assim, ampliou-se a busca para o intervalo de anos de 2014 a 2020 e foram encontrados os seguintes textos: Corrêa, Capraro e Moraes e Silva (2019), Corrêa, Moraes e Silva e Silveira (2020), Moreira (2020) e Prudêncio (2020). Também foi incluído, após breve leitura, devido à aproximação com o tema, o texto de Betti (1998). Portanto, na base de dados do Google Acadêmico foram selecionadas seis obras.

Na biblioteca da UNIMEP foram selecionadas obras do acervo reservado e de uso do Grupo de Estudo e Pesquisa em Lazer, Práticas Corporais e Cultura, que existiu de 2010 a 2021, que poderiam dar suporte para a discussão do tema e que tinham sido lidas previamente pelo grupo de estudos, como: Marcellino (2010), Mauss (1974), Pinto (2008), Requixa (1980) – um total de quatro textos. No sistema eletrônico da biblioteca da UNIMEP foi feita uma busca por livros de acordo com as palavras-chave mencionadas anteriormente e sem respeitar intervalo de anos. Chegou-se às seguintes referências: Beiras et al. (2007), Siqueira e Vieira (2008) e Wolf (1992) – um total de três textos.

Outros livros foram inclusos na pesquisa por serem de conhecimento dos autores ou produções dos autores e que poderiam dar base para a discussão proposta: Botelho e Souza (2007), Kofes (1989), Le Breton (2013), Rigoni, Nunes e Fonseca (2017), Rossi Filho Origuela e Lopes da Silva (2015), Santos, Rechia e Vivian (2019), Severino (2007) e Silva et al. (2018) – oito textos no total.

Procurou-se priorizar referências que atendessem aos dois pontos centrais das análises: 1) questões relacionadas à beleza corporal, ao mercado do corpo e às super-heroínas e 2) questões relacionadas à ação pedagógica do professor de EF, a partir do tema das super-heroínas e com base no viés educativo de uma educação para o lazer. Inicialmente foram lidos os títulos dos trabalhos, os resumos e as palavras--chave com vistas a selecionar apenas os textos que possuíam maior relação com as questões que se desejava analisar. No total, como acima descrito, foram selecionadas 21 referências que deram suporte para o desenvolvimento deste artigo.

Em relação ao tratamento das obras que foram referência para este trabalho, foram tidas como base as diretrizes para leitura, análise e interpretação de textos, de acordo com Severino (2007). Essas diretrizes consistem em cinco fases: análise textual, análise temática, análise interpretativa, problematização e síntese pessoal. Essas fases foram seguidas, tendo sido feita inicialmente uma leitura e análise do texto, interpretação das ideias principais de cada texto, problematização a partir da discussão feita pelos autores e, por último, uma síntese pessoal que se deu na forma de organização de notas de cada texto para a sistematização do artigo. A partir dessas fases, foi feito ainda o recorte dos dois temas apresentados: beleza corporal, mercado do corpo e super-heroínas e a educação para o lazer como ação pedagógica.

Resultados e Discussão

Beleza corporal, mercado do corpo e super-heroínas

Neste tópico procura-se apresentar, com base em dados da literatura, argumentos que problematizam o mercado da beleza corporal, o mercado do corpo e as super-heroínas. Com isso, não se deseja atribuir exclusivamente às super-heroínas dos quadrinhos o papel de influenciar a construção de corpos belos femininos, mas de considerar que esse tipo de produção da arte e da mídia é relevante para esta análise, pois marca um posicionamento da mídia sobre o corpo, sendo essa uma instituição abrangente e que atinge diferentes leitores brasileiros e estrangeiros.

No livro “Obesidade: O Peso da Exclusão”, Stenzel (2002, p. 66) relata que o “[...] corpo da mulher tem sido alvo de diferentes representações e valores na história da humanidade. A arte, o cinema, e a poesia são alguns dos objetos culturais que nos revelam o significado do que é, e do que era ‘ser belo’ nos diferentes momentos histórico-culturais”. Dessa forma, a autora aborda que entre os séculos XIV e XVII, o corpo magro significava pobreza, doença e escassez. Até o final do século XIX, tanto mulheres como os homens desejavam corpos robustos e evitavam a magreza. Porém, segundo Stenzel (2002, p. 66) “[...] esse padrão foi modificando com o tempo, e os valores atribuídos à magreza e à obesidade adquiriram outros significados”. Nesse sentido, a autora argumenta que:

A obesidade durante algum tempo esteve associada à beleza: ser belo era ter formas arredondas e proeminentes. No início do século XIX esta associação sofreu forte mudança, na verdade houve uma inversão desta associação anteriormente positiva: ser belo passou a ser sinônimo de magro, e a obesidade passou a ser vista de forma negativa. Portanto obesidade e magreza são conceitos que, apesar das suas transições, sempre estiveram de alguma forma associados ao que chamamos de belo ou de feio. Fazer um retrocesso aos conceitos de beleza em nossa sociedade e cultura é fundamental para que possamos compreender as representações da obesidade e da magreza ao longo do tempo. É muito difícil separar estes conceitos (feio/a, belo/a; magro/a e vice-versa) pois, como veremos, eles andam juntos no percurso da história

(Stenzel, 2002, p. 29).

Com base nas considerações de Stenzel (2002), pode-se constatar que o corpo bonito nada mais é do que uma construção cultural de uma determinada sociedade, de uma determinada época, de um determinado contexto. Assim como para Mauss (1974) as técnicas do corpo se constituem em atos eficazes e tradicionais de uma determinada cultura e que é justamente através da transmissão dessas técnicas que o ser humano se diferencia dos animais. Essa constatação confirma um processo de educação segundo o qual as pessoas de diferentes contextos sociais podem aprender (e recriar) o conjunto de técnicas corporais de seu meio. Nessa perspectiva, podem-se compreender os gestos, atitudes, movimentos corporais em determinados grupos ou sociedades como atos culturais. Assim, Mauss (1974) relata que as técnicas corporais, que são diversificadas de acordo com a idade, podem ser assimiladas por imitação dos mais velhos, tecendo habitus que variam não apenas de ser humano para ser humano, mas “[...] sobretudo, com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas” (Mauss, 1974, p. 214). Assim, esse aporte teórico das técnicas corporais pode ser fundamental para a compreensão e discussão das diferentes intervenções corporais e do uso das técnicas corporais na contemporaneidade como os principais meios para a obtenção de um corpo belo. Nesse processo, a linguagem utilizada pela mídia nas imagens e mensagens difundidas alimenta o que se chama de “mercado do corpo” e, consequentemente, incentiva as pessoas a desejarem um tipo de corpo específico.

O mercado do corpo impulsiona vários produtos, como medicamentos, cirurgias plásticas, dietas e aparelhos para a prática de exercícios físicos, que não têm a finalidade de promover a manutenção da saúde fisiológica, mas a ascensão à beleza e ao status social. Segundo Silva (2001, p. 3), “[...] no Brasil, a disseminação de uma expectativa de corpo baseada na estética da magreza é bastante grande e apresenta uma enorme repercussão, especialmente, se considerada do ponto de vista da realização pessoal”. A autora relata uma pesquisa, realizada na cidade de São Paulo, na qual 90% das mulheres entrevistadas se dizem preocupada com seu peso corporal. Dessa forma, Silva (2001) argumenta que os indivíduos contemporâneos passam a ter uma enorme preocupação com sua dimensão corporal quando não correspondem com a expectativa que lhes é colocada. Assim, para Silva (2001, p. 3), “[...] a insatisfação leva a intervenções drásticas sobre o corpo, como as cirurgias plásticas, as mais variadas dietas, as diferentes ginásticas cada vez mais especializadas em modelar milimetricamente o corpo humano”. Além disso, Silva (2001) acrescenta na lista dessas intervenções drásticas a ingestão de medicamentos e produtos químicos com essa finalidade.

Para Wolf (1992, p. 110), os lucros que sustentam a mercadorização do corpo são gerados a partir do mito da beleza: “Os anunciantes que viabilizam a cultura feminina de massa dependem das mulheres se sentirem tão mal em relação ao próprio rosto e ao próprio corpo a ponto de gastarem mais em produtos inócuos ou dolorosos do que gastariam se se sentissem belas por natureza”. Sendo assim, o mesmo autor relata que o parâmetro de feminilidade da feliz dona de casa foi substituído pelo modelo da jovem e esquelética. Para atender à demanda desse mercado, muitos personagens de ficção são construídos de acordo com esses padrões de beleza estabelecidos culturalmente, em uma linguagem que reúne características da mídia e da arte.

Siqueira e Vieira (2008), ao refletirem sobre a mercadorização do corpo e as super-heroínas, afirmam que as personagens são construídas de acordo com as expectativas masculinas. Quando são analisadas as diversas super-heroínas existentes, percebe-se que todas elas são “sedutoras” e suas roupas possuem características quase eróticas. Nesse sentido, os autores supracitados referem em seus estudos a super-heroína Emma Frost3, que mesmo depois de assumir o posto de Rainha Branca no Clube do Inferno ou a direção da academia dos X-Men, mantém sua identidade visual, uma vez que continua usando suas antigas roupas de dançarina de cabaré (Siqueira; Vieira, 2008).

Um exemplo disso é Emma Frost, a Rainha Branca. Esguia, cabelos artificialmente louros, seios siliconados e um rosto que ela mesma afirma, com orgulho, ter aperfeiçoado por meio de cirurgias plásticas, ostenta uma forma física condizente com valores da juventude frequentadora de academias de ginástica e lugares da moda. Rica, mais de uma vez relacionou seu gosto por objetos de marcas sofisticadas como uma bolsa Gucci e perfumes Dior. As transformações da personagem, rumo ao heroísmo, incluíram uma espécie de “mutação secundária”, que lhe deu a capacidade de converter seu corpo em diamante maleável

(Siqueira; Vieira, 2008, p. 194).

Levando em consideração os argumentos de Siqueira e Vieira (2008) em relação à personagem Emma Frost, pode-se fazer uma associação com a discussão do antropólogo Le Breton (2013). Para o autor, o corpo é considerado um simples suporte da pessoa, tornando-se um objeto à sua disposição; ou seja, uma matéria-prima na qual se dilui a identidade pessoal e não mais uma raiz de identidade do ser humano.

É nesse sentido também que Corrêa (2018) discute sobre a atualidade das tecnologias nas histórias em quadrinhos, sobretudo no que se refere à relação entre a transformação tecnológica presente nos corpos dos personagens de HQs e dos atletas de alto rendimento. Os autores problematizam a questão dizendo que o anseio dos sujeitos por corpos considerados belos deixa de ser uma produção natural e passa a ser uma produção tecnológica. Nesse sentido, a sociedade tecnológica influencia os sujeitos na busca da melhoria da condição humana, almejando aprimorar o orgânico através da técnica.

Corrêa, Capraro e Moraes e Silva (2019) analisam os padrões corporais presentes nas histórias em quadrinhos dos super-heróis Batman e Superman, do período de sua criação até os dias de hoje, e concluem que ocorreu nesse período uma mudança significativa, uma vez que as primeiras representações eram de um corpo sem uma grande hipertrofia. Com o passar dos anos, o padrão de corpo foi se modificando, refletindo na representação dos personagens – que passam a ter músculos cada vez maiores e mais definidos. Esses autores apresentam uma análise que contribui para a reflexão sobre o corpo como uma construção cultural contínua e dinâmica, influenciada pela mídia e pela arte – como é o caso das HQs.

Em Corrêa, Moraes e Silva e Silveira (2020, as similaridades entre os corpos dos atletas e paratletas em comparação aos personagens dos filmes do Capitão América, em que Bucky e Falcão são analisados a partir de suas interações tecnológicas em relação ao esporte moderno, são identificadas. Corrêa, Moraes e Silva e Silveira (2020, p. 1) observam que:

[…] os paratletas amputados têm sua equivalência em Bucky, pois seus corpos foram acoplados a partes mecânicas para, além de suprir suas deficiências, melhorar a capacidade orgânica. Falcão, por sua vez, faz uso de ferramentas externas ao corpo que melhoram seu rendimento, como vestimentas, equipamentos, calçados, etc. Isto é, ambos apresentam elementos de interações tecnológicas capazes de elevar suas performances.

Dessa forma, Le Breton (2013) aborda que o corpo na contemporaneidade é considerado um objeto imperfeito, um rascunho a ser corrigido. O antropólogo aponta para a ideia de “sucesso” atribuída às cirurgias estéticas, pois as pessoas acreditam que, mudando o próprio corpo, estarão mudando a vida. Assim, Le Breton (2013) discute o contrassenso produzido pela modernidade, no qual o discurso aparentemente produz uma espécie de reverência ao corpo, mas acaba por esvaziá-lo de sentido, transformando-o em mercadoria, de modo que na contemporaneidade o corpo se torna quase descartável.

Estrutura modular cujas peças podem ser substituídas, mecanismo que sustenta a presença sem lhe ser fundamentalmente necessário, o corpo é hoje remanejado por motivos terapêuticos que praticamente não levantam objeções, mas também por motivos de conveniência pessoal, às vezes ainda para perseguir uma utopia técnica de purificação do homem, de retificação de seu ser no mundo. O corpo encarna a parte ruim, o rascunho a ser corrigido

(Le Breton, 2013, p. 16).

Se forem colocados em diálogo os argumentos de Le Breton (2013) e de Siqueira e Vieira (2008), será possível entender porque muitos super-heróis, com o passar do tempo, foram se adaptando aos modelos estéticos padronizados. Além do mais, os avanços científicos que facilitam a produção desses novos corpos têm influenciado diretamente na transformação das visões das pessoas sobre corpo e no desejo delas por um corpo que parece se tornar cada vez mais possível. Assim como o desenvolvimento biotecnológico facilita o alcance de um corpo “perfeito” e o mercado, por sua vez, produz nas pessoas o desejo por esse corpo padronizado, o movimento é recíproco, já que a sociedade também é responsável por fornecer o modelo para a criação das personagens, influenciando na construção das super-heroínas.

Esse raciocínio fica evidente nas imagens das super-heroínas da Marvel que, mesmo tendo papéis e histórias distintas, apresentam um biótipo corporal semelhante. Como argumentam Beiras et al. (2007), parece que as super-heroínas são mais um dos meios que o mercado do corpo utiliza para divulgar seu “modelo ideal” a ser seguido. Esse modelo ideal é definido por um corpo esguio, “ampulheta”, seios fartos e cabelos longos. Não por mero acaso, nas histórias em quadrinhos, personagens que se diferenciam desse modelo são coadjuvantes ou excluídos do enredo.

Com base nas considerações expostas, é possível elencar pelo menos duas questões fundamentais: para ser uma super-heroína é preciso ter um corpo esguio e ampulheta, com cabelos voluptuosos? Mulheres com histórias de vida diferentes e, nesse caso, com poderes diferentes, teriam, naturalmente, corpos similares? Segundo os questionamentos de Le Breton (2013, p. 31), “[...] é por seu corpo que você é julgado e classificado”. Para o autor, “nossas sociedades consagram o corpo como emblema de si. É melhor construí-lo sob medida para derrogar ao sentimento da melhor aparência”. Nesse caso, é compreensível que numa sociedade como a atual, apegada aos padrões corporais, não basta que uma super-heroína seja valente, corajosa e tenha superpoderes; afinal, ela precisa, antes de tudo, ser “bonita”. Esses exemplos levam a uma das principais críticas elaboradas por Le Breton (2013) ao constatar que a relação das pessoas com seus corpos é construída sob a égide do domínio de si. O que o autor está dizendo é que o ser humano contemporâneo “[...] é convidado a construir o corpo, conservar a forma, modelar sua aparência, ocultar o envelhecimento ou a fragilidade, manter sua ‘saúde potencial’. O corpo é hoje um motivo de apresentação de si” (Le Breton, 2013, p. 30). Essa reflexão fica evidente quando as capas de revistas são observadas: elas quase sugerem que, para alcançar a satisfação e a felicidade, as mulheres precisam adequar seus corpos ao modelo que possui um status social aceitável na sociedade.

Esses mesmos apontamentos feitos por Le Breton (2013) já são mencionados há décadas. Como é o caso de Kofes (1989, p. 55), que há cerca de 30 anos já se questionava se hoje “[...] não estaria havendo um discurso ao qual eu teria que adequar meu corpo, ao invés de se ter (se é que é possível) uma sociedade da qual o meu corpo estivesse liberado de um discurso que afirma como ele tem que ser?” Ao contrário de atingir essa liberdade proposta pela autora, parece que as pessoas continuam reféns de determinados padrões e imposições. Se o avançado desenvolvimento tecnológico e dos meios de comunicação das últimas décadas pode, por um lado, facilitar o acesso às informações e propagar, inclusive, posições críticas em relação a essas questões, por outro lado, a propagação das redes sociais facilita a disseminação desses padrões, como apontam Moreira (2020) e Rigoni, Nunes e Fonseca (2017). Nessa sociedade analisada por esses autores, relações com os outros e consigo são tecidas pautadas em valores capitalistas. O lazer e suas práticas não escapam dessa lógica e acabam até por reproduzi-la. De modo similar ao consumo de conteúdos nas redes sociais, as crianças e os jovens, ao acessarem as HQs, filmes e produtos do gênero, tendem a consumi-los passivamente. Justamente para que uma outra forma de consumo, menos alienada, desse tipo de material seja possível, é preciso, de alguma maneira, preparar os sujeitos para uma apropriação mais consciente, ressignificada.

A educação para o lazer como ação pedagógica

Le Breton (2013, p. 31) aponta para o fato de que “[...] o extremo contemporâneo erige o corpo como realidade em si, como simulacro do homem por meio do qual é avaliada a qualidade de vida de sua presença e no qual ele mesmo ostenta a imagem que pretende dar aos outros”. Desse modo, diante dos elementos e valores contemporâneos presentes nas construções corporais das super-heroínas, faz-se o seguinte questionamento: Como as crianças e jovens podem consumir os produtos relacionados às super-heroínas em seu tempo disponível de modo mais consciente e autônomo? Como trabalhar essas questões na escola, especificamente nas aulas de EF, de modo que os alunos reflitam sobre os padrões corporais de beleza e as influências das HQ e das super-heroínas e passem a ressignificá-las?

Rossi Filho, Origuela e Lopes da Silva (2015), ao estudarem a forma corporal dos super-heróis das histórias em quadrinhos com base na proposta da “educação para o lazer” de Marcellino (2010), sugerem uma ação pedagógica no sentido de mostrar aos alunos que a beleza do corpo é fruto da construção cultural de uma determinada sociedade, determinada época e de um determinado contexto. Ou seja, a beleza não é inata, mas construída culturalmente. Para os autores, é importante ensinar aos alunos que não existe corpo feio ou bonito, pois ambas as qualidades são construções culturais de uma determinada sociedade e época. Na contemporaneidade, as super-heroínas são construídas de acordo com um padrão de corpo considerado belo a partir do referencial mercadológico. Se o padrão de beleza da sociedade atual fosse outro, bem diferente desse, certamente o mercado que difunde as HQs, ao construir suas personagens e produtos, faria isso pautado no modelo vigente em questão.

Quando esses modelos padronizados de corpo, reféns de uma disciplina exagerada, são criticados ou negados, não se está sugerindo que a completa indisciplina e descaso com o corpo seja defendida. Quando se fala em abordar esses temas na educação escolar de forma a criticar essa preocupação obsessiva com o corpo, há quem se questione se esse tipo de ação pedagógica não pode desencadear um processo reverso, mas tão ruim quanto o outro, incentivando, por exemplo, a obesidade. Como sugere Stenzel (2002), seria provável que as pessoas se questionassem sobre o que deve ser feito então. De acordo com a autora, a linha de raciocínio é a seguinte:

Devemos estimular a obesidade mesmo que tenhamos consciência de que ela é prejudicial à saúde física? Talvez não. Talvez não seja uma questão de reforço, mais sim de uma mudança de postura diante do problema, um posicionamento que não propicie o agravamento da situação: uma posição não julgadora, não preconceituosa, uma posição de acolhimento. Quanto mais rejeitamos a obesidade e idolatramos a magreza mais produzimos problemas relacionados à alimentação, entre eles, a própria obesidade

(Stenzel, 2002, p. 11).

Que se pense ainda sobre os perigos que o desejo inconsciente por um corpo padrão pode gerar a médio e longo prazo. Uma criança ou adolescente que cresce achando que seu corpo é feio e inadequado certamente se tornará um adulto que passou a vida toda rejeitando o próprio corpo. Ao contrário, a determinação desses jovens em alcançar a qualquer custo o corpo desejável pode levá-los a práticas radicais, colocando em risco sua saúde fisiológica e mental. Como já mencionado anteriormente, anorexia, bulimia, vigorexia, dietas sem orientação de profissionais capacitados, cirurgias plásticas arriscadas com fins meramente estéticos, uso de anabolizantes sem prescrições médicas, entre outras coisas, são alguns exemplos da consequência da falta de educação sistematizada e da construção de uma atitude crítica e criativa por parte dos sujeitos acerca dos padrões corporais de beleza. Afinal, como mostra Le Breton (2013, p. 29), isso é uma característica marcante na contemporaneidade:

A cirurgia estética passa por um desenvolvimento considerável, aumentado por esse sentimento da maleabilidade do corpo. Sua transformação em objeto a ser modelado traduz-se de imediato nos catálogos que os cirurgiões depõem nas salas de espera e que mostram aos clientes para propor uma intervenção precisa. Neles se veem o rosto, ou o fragmento de corpo a ser modificado, e o resultado após efetuada a operação. Transmutação alquímica do objeto errado. Na gama das intervenções, o cliente escolhe a que proporcionará ao seu rosto ou ao seu corpo a forma que lhe convém. Seios cheios de silicone, modificados por próteses ou remodelados, vários tipos de liftings do rosto, lábios, reconstituídos por injeções, lipoaspirações ou retalhamento da barriga ou das coxas, cabelos repicados, implantes subcutâneos para induzir as proporções físicas desejadas etc.

Diante dessas considerações, emergem dúvidas sobre como agir frente a essa situação de necessidade de intervenção pedagógica para a melhoria do quadro. Nesse sentido, utilizar os conteúdos do universo juvenil, transformando aquilo que os alunos consomem em seus tempos de lazer em recurso didático, pode ser bastante enriquecedor. Logo, não se deve menosprezar produções como as HQs – já que essas temáticas e o tipo de material podem ser de grande interesse dos alunos – mas compreender sua aplicabilidade no meio escolar e proporcionar a reflexão sobre as questões que os envolvem. Em outras palavras, é preciso compreender o potencial discursivo desse tipo de conteúdo e o modo como a EF pode tirar proveito desse tipo de linguagem. No dizer de Betti (1998, p. 85, grifo do autor):

O que se pretende é desenvolver nos alunos a capacidade de associar informações desconexas, analisá-las e aprofundá-las. Porque a Escola deve ser um lugar de conexões, de comunicação entre os homens, na qual a individualização e o parcelamento dos conhecimentos corrigem-se e unificam-se – enfim, lugar de reflexão crítica coletiva.

Somado a isso, nota-se que os temas retratados em especial nas HQs abrangem aspectos que permeiam as vidas e as circunstâncias vivenciadas por adolescentes e jovens; ou seja, se relacionam com a forma como a sociedade e os acontecimentos dela se apresentam, e, portanto, podem ser utilizadas como uma possibilidade, uma ferramenta pedagógica para a própria leitura da realidade sociocultural, associada à educação para o lazer. Para Pinto (2008, p. 49), a função política da educação para o lazer se materializa por meio da vinculação com a realidade de formas de “[...] conhecê-la e de nela interagir com liberdade de expressão e de trocas de experiências entre diferentes sujeitos e grupos nesse processo”. Em concordância com essa afirmação, Santos, Rechia e Vivan (2019, p. 84) afirmam que a compreensão e a leitura da realidade dos sujeitos é uma importante função e exercício na educação para o lazer:

Essa análise da realidade de qualquer ação cotidiana permite a reflexão sobre as atitudes que tomamos todos os dias e se elas realmente refletem o que desejamos para as nossas vidas, pausa necessária para todos os cidadãos, principalmente àqueles que se encontram no processo de formação inicial escolar e que passam por todas as variações físicas e psicológicas do crescimento e amadurecimento, de crianças para adolescentes e adultos jovens.

Nessa perspectiva, a educação para o lazer inclui não somente uma formação para o consumo autônomo e crítico dos produtos, como também a produção de valores que promovam o respeito de uns com os outros no que se refere a diferenças corporais. Botelho e Souza (2007) relatam que o bullying em escolas é um fenômeno negativo, e grande parte dos alunos que sofrem com essa prática maléfica são os que fogem dos “modelos” de beleza vigentes. Portanto, quando se trata pedagogicamente dos conhecimentos relacionados às questões do “mito da beleza” e do “mercado do corpo”, promove-se, nos alunos, uma reflexão capaz de minimizar os efeitos que esse “mercado do corpo” produz por meio dos produtos relacionados ao contexto do lazer. Por meio de aulas de EF que tratem dessas questões, os alunos podem compreender que as diferenças corporais são próprias dos seres humanos e que, portanto, não há motivos para nenhum tipo de hierarquização.

Para Requixa (1980), a educação para o lazer pode confrontar os valores capitalistas inspirando nos alunos outros valores, mais solidários e colaborativos. Pinto (2008, p. 49) argumenta que a função ética e estética da educação para o lazer envolve a busca por autonomia, liberdade e responsabilidade dos sujeitos, podendo proporcionar a vivência de valores como “[...] tolerância, justiça, cooperação, solidariedade, respeito mútuo, confiança e outros [...] desenvolvimento da sensibilidade, autoconhecimento, reconhecimento e valorização da diversidade cultural”. Assim, a educação para o lazer vinculada aos conteúdos das HQs pode ajudar a minimizar os efeitos negativos do mercado do corpo e proporcionar o respeito e a aceitação.

Nesse sentido, a educação para o lazer voltada à questão das super-heroínas não seria, de maneira alguma, contra o consumo de produtos do gênero das HQs, filmes, brinquedos, jogos eletrônicos etc. Pelo contrário, a ação partiria do trato pedagógico dessas personagens e seus desdobramentos. Uma vez que as super-heroínas são elementos que fazem parte do cotidiano das crianças e jovens em suas práticas do contexto do lazer, a finalidade das aulas voltadas ao tema deve ser a de que os alunos possam usufruir desses produtos e práticas como, por exemplo, a leitura de histórias em quadrinhos de forma crítica e criativa ao longo de suas vidas. O objetivo de uma proposta como essa é formar cidadãos autônomos diante do mercado do entretenimento e da oferta desses produtos. Marcellino (2012) aponta como possibilidade na educação para o lazer a mudança de níveis elementares para superiores e críticos, como um mecanismo de combate aos conteúdos divulgados pelos meios de comunicação em massa, já que proporciona o alcance de níveis mais críticos, conscientizando os sujeitos sobre uma forma de pensar mais criativa e gratificante.

A educação para o lazer, no âmbito das aulas de Educação Física, pode levar os alunos, por exemplo, a refletirem sobre o maléfico incentivo do mercado que direciona o consumo feminino e a produção de desejo por um “corpo perfeito”. A partir de vivências que incluem a leitura e discussão dos quadrinhos na própria aula, o professor pode incentivar os alunos a compreenderem as mensagens dos quadrinhos, os significados atribuídos ao corpo e à beleza corporal, e, assim, como viabilizar aos estudantes a oportunidade de construção de novas representações do próprio corpo e de valorização das diferenças expressas pela corporeidade. A educação para o lazer consiste em um ato educativo que pode abranger ações práticas e/ou teóricas de modo a viabilizar aos alunos o acesso ao conhecimento sistematizado com vistas a uma vida mais “saudável” e “livre”. Durante o processo pedagógico, os alunos poderão atribuir novos significados aos quadrinhos, às super-heroínas e aos modelos de corpo fornecidos pelo mercado. Dessa forma, se oferece aos alunos, de maneira geral, uma educação que atribui novos sentidos à imagem e ao papel da mulher na sociedade atual, papel esse que, no caso das super-heroínas, esteja mais relacionado às suas ações do que aos seus corpos. Enfim, a educação para o lazer poderá ter um papel fundamental no processo de ressignificação dos alunos com relação às referências que esses possuem sobre corpo, beleza, saúde e, principalmente, sobre a imagem da mulher nas HQs e na sociedade.

Considerações Finais

Procurou-se, neste texto, refletir sobre os modos como o consumo das HQs como prática de lazer e, especialmente, o consumo da imagem das super-heroínas, pode estar relacionado à produção de desejo por um “corpo ideal”. Buscou-se demonstrar como as HQ de super-heroínas podem incentivar ou reforçar a busca por certos padrões de beleza e quantos problemas isso pode gerar nas crianças e jovens que os consomem. Percebeu-se, a partir disso, a necessidade de ações pedagógicas por parte dos professores que lidam diretamente com as questões relacionadas ao corpo e às práticas corporais. Sugere-se, principalmente durante as aulas de EF, uma atenção do professor para a realização de intervenções pedagógicas capazes de desconstruir e ressignificar o consumo de produtos relacionados às HQs e, principalmente, às super-heroínas. Essas ações podem ser exitosas justamente por partirem de um tipo de prática comum ao cotidiano dos alunos, fora da escola.

Concebendo a EF como uma disciplina da área de Linguagens e tendo apoio numa perspectiva de educação para o lazer, acredita-se que o professor de EF pode levar os alunos a ressignificarem suas próprias referências de corpo e de beleza e a compreenderem e refletirem sobre produções como as HQs, que são construídas a partir de uma certa linguagem originária da mídia e da arte, sendo um gênero textual que deve ser lido, refletido e ressignificado no processo educativo junto a crianças e jovens em idade escolar. É preciso pontuar que, apesar do foco estar na discussão sobre as super-heroínas dos quadrinhos e a relação desses quadrinhos com o corpo feminino na sociedade atual, entende-se que o problema apresentado se estende também à construção do corpo masculino. Assim, em estudos futuros, outras questões poderão ser debatidas e ampliadas no que se refere à construção e aos discursos sobre o corpo na sociedade atual.

Por fim, apesar de não ter sido o tema deste artigo, é preciso mencionar o potencial positivo das super-heroínas dos quadrinhos e filmes debatido nos últimos anos, que também pode e deve ser tema das aulas. Essas figuras femininas dotadas de superpoderes são capazes de produzir reflexões diversas, assumindo um duplo papel: ora operam de forma mais conservadora, predeterminando modelos ideias de corpo e de beleza, ora funcionam como exemplos de resistência e empoderamento feminino.

O aumento do número de super-heroínas nos últimos anos tem produzido debates em diversos grupos feministas, como aconteceu com o filme da Mulher-Maravilha, lançado em 2017, e que desencadeou uma série de debates sobre a desigualdade de gênero. A autora trata o filme como exemplo significativo da emergência de feminismos midiáticos. Nesse sentido, a Mulher-Maravilha, assim como a Capitã Marvel, lançada em 2019, são filmes que aparecem com frequência em debates sobre representação e empoderamento.

Essas duas perspectivas e outras tantas, como, por exemplo, as questões raciais tratadas a partir de filmes como Pantera Negra e principalmente a partir da heroína negra chamada Tempestade, da série dos X-Men, mobilizam conhecimentos que podem ser tratados pedagogicamente nas aulas de EF.

Suporte/Support: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2017/13279-4).

3Super-Heroína criada por Chris Claremont e John Byrne, licenciada pela empresa Marvel Comics. Sua primeira aparição ocorreu na HQ Uncanny X-Men

Como citar este artigo/How to cite this article

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Recebido: 07 de Agosto de 2021; Revisado: 10 de Julho de 2022; Aceito: 17 de Agosto de 2022

Correspondência para/Correspondence to: A.M. NACARATO. E-mail: cinthialsilva@uol.com.br.

Colaboradores

C. L. SILVA foi responsável pela concepção do desenho, contribuição na discussão dos dados e interpretação, revisão e aprovação da versão final do artigo. N. S. PATREZE foi responsável pela contribuição na análise e interpretação dos dados, discussão dos resultados e aprovação da versão final do artigo. A. C. C. RIGONI foi responsável por fazer contribuições na discussão dos dados, resultados e revisão e aprovação da versão final do artigo.

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