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Revista de Educação PUC-Campinas

Print version ISSN 1519-3993On-line version ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.27  Campinas  2022

https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5829 

Artigos

Liderança e gestão escolar: um olhar questionador sobre o conceito de liderança em educação na perspectiva filosófica de Espinosa

Leadership and school management: a questioning view at the leadership concept in education according to Spinoza’s philosophical perspective

Vanja Ramos Vieira de Campos1 
http://orcid.org/0000-0003-0956-4390

Adriano Caetano Rolindo1 
http://orcid.org/0000-0001-7732-2444

1Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo, 13083-970, Campinas, SP, Brasil.


Resumo

O presente artigo tem como objetivo contribuir para a compreensão da qualificação da gestão escolar e do papel do diretor de escola, a partir do pressuposto de que todas as relações afetivas no coletivo escolar geram desdobramentos que podem aproximar as comunidades da conquista da qualidade social da educação. Foram retomados os conceitos da filosofia de Baruch de Spinoza, especialmente a teoria dos afetos; o debate sobre a gestão escolar, na perspectiva sociológica da crítica ao neoliberalismo e a discussão que tenta estabelecer o conceito de qualidade social da educação, entendida como a promoção da aprendizagem e do desenvolvimento do ser humano na sua integralidade. Conclui-se que a liderança na escola pública é garantidora de direitos e deve possibilitar que os alunos exerçam um papel ativo na sociedade e, portanto, a atuação do diretor, enquanto liderança na gestão escolar, não encontra similaridade com as abordagens teóricas de liderança utilizadas como embasamento aos modelos de gestão empresarial.

Palavras-chave Afetividade; Gestão escolar; Liderança; Qualidade social

Abstract

This article presents a contribution to understand the school management qualification and the school principal role. Affective relationships in the school collective produce results that can bring communities closer to achieving the social quality of education. We carried out a reflection based on Baruch de Spinoza’s philosophy; a debate on school management, in the sociological perspective of neoliberalism critique; and a discussion that tries to establish the concept of social quality of education, understood as the promotion of learning and the development of human beings in their entirety. In this context, we established a critique of neoliberalism’s sociological perspective. We concluded that leadership in public schools is a guarantor of rights and should enable students to play an active role in society. Therefore, the principal’s performance, as leadership in school management, is not similar to the theoretical approaches to leadership used as a basis for business management models.

Keywords Affectivity; School management; Leadership; Social quality

Introdução

Este artigo tem como objetivo contribuir para a compreensão da qualificação da gestão escolar e do papel do diretor de escola a partir dos resultados da pesquisa de doutorado de Rolindo (2021) e de alguns recortes teóricos que embasaram as discussões da tese, em especial a questão da qualidade social da educação, as relações afetivas e a precarização do trabalho educacional no âmbito da sociedade neoliberal. A pesquisa foi realizada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, entre os anos de 2016 e 2021; a tese intitulada: “Afetos que movem o coletivo: o trabalho da diretora de escola na construção da qualidade social” foi orientada pelo professor Dr. Sérgio Antônio da Silva Leite, realizada no âmbito do Grupo do Afeto2.

A tese defendida pelo autor relaciona o trabalho de gestão com a conquista da qualidade social, a partir de um estudo de caso (André, 1984). É importante afirmar que os resultados encontrados neste estudo não podem ser generalizados, entretanto, o conhecimento construído na pesquisa em questão pode adquirir relevância científica à medida em que seja difundido e reverbere a outros educadores. As posturas analisadas na tese a partir de um processo de verossimilhança encontram eco no pensamento de Benjamin (1994). Para Benjamin (1994), o homem produz semelhanças e todas as funções superiores podem ser codeterminadas por uma faculdade mimética relacionada ao desenvolvimento filogenético e ontogenético. Ele afirma: “Mesmo para os homens de nossos dias pode-se afirmar que os episódios cotidianos em que eles percebem conscientemente as semelhanças são apenas uma pequena fração dos inúmeros casos em que as semelhanças os determinam, sem que eles tenham disso consciência” (Benjamin, 1994, p. 109).

O presente artigo pretende, ainda, refletir sobre o conceito de liderança e questionar a sua utilização a partir das especificidades da educação, entendida aqui como a promoção da aprendizagem e do desenvolvimento do ser humano na sua integralidade, de acordo com os pressupostos dos estudos sobre a qualidade social da educação, alicerçados nos referenciais de Arroyo (2017), De Sordi, Varani e Mendes (2017), Freitas (2005, 2012) e Freitas et al. (2014).

O conceito de qualidade social pressupõe a qualidade do viver humano, conforme Arroyo (2017), a construção dos valores de convivência, da criatividade, da criticidade, o desenvolvimento das diversas dimensões do conhecimento acumulado pela humanidade ao longo de sua história, tais como as artes, a ciência, a cultura erudita e popular, o conhecimento do corpo, da motricidade, da história e da filosofia. Portanto, a qualidade social pressupõe, conforme o autor, a superação das políticas que reproduzem a segregação, o racismo, a violência de gênero, e, em última instância, a predefinição de uma existência humana marcada pela “[...] falta-negação da qualidade social”, instaurada por uma qualidade “formadora-deformadora do viver” (Arroyo, 2017, p. 27).

Educadores e alunos podem assumir um posicionamento crítico, atuar ativamente na transformação social, fazer a diferença na luta por equidade de condições e direitos, podem, enfim, fazer parte do mundo (Stetsenko, 2018). A liderança na escola pública deve possibilitar que os alunos exerçam uma postura ativa na sociedade, desempenhando, desta forma, o papel de garantidora de direitos. Sob esse ponto de vista, a atuação do diretor, enquanto liderança na gestão escolar, não encontra similaridade com as abordagens teóricas destinadas aos cargos de liderança utilizados como embasamento aos modelos de gestão empresarial.

O ponto central da discussão acerca da atuação da liderança no âmbito escolar consiste em perceber as pessoas como criadoras e agentes, não apenas de suas próprias vidas, mas, sobretudo, do mundo que criam de forma colaborativa e dinâmica. Sob esta visão, concordamos com Stetsenko (2015, p. 109, tradução nossa) 3:

O foco no compromisso sugere que as pessoas não esperam ou antecipam o futuro, mas, sim, trabalham ativamente e lutam para tornar esse futuro realidade por meio de seus próprios atos, mesmo que o futuro não seja antecipado como provável e, em vez disso, exija luta e esforço ativo, muitas vezes contra todas as probabilidades, para alcançá-lo. Isso se refere a pessoas e comunidades que lutam por seus ideais, pelo que “deveria ser”, trazendo assim o futuro para o presente, apesar das forças poderosas que estão puxando em outras direções, isto é, enquanto resistem e superam o presente em seu status quo, hierarquias de poder e contradições.

Um possível processo de emancipação, como superação do status quo, pode ser encontrado na filosofia de Baruch de Espinosa. Desde o século XVII, sabe-se, por intermédio da Ética de Espinosa que todas as relações humanas têm caráter afetivo e que os afetos movem os sujeitos por meio do aumento ou da diminuição de seu potencial de agir (Spinoza, 2009). Deste modo, a seguir, o presente estudo apresenta a filosofia espinosana como base teórica das reflexões e discussões; em seguida aponta a precarização do trabalho no âmbito da escola pública, para, finalmente, estabelecer correlações com os dados da pesquisa de doutorado sobre as práticas de uma diretora nas urgências do cotidiano da gestão escolar, evidenciando um processo de busca por emancipação no interior do trabalho educacional.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa de doutorado foi alicerçada nos estudos da metodologia qualitativa, de inspiração etnográfica. Contou com a produção de dados narrativos e descritivos, entrevistas semiestruturadas e análise de documentos, de uma escola pública estadual em Campinas. Os dados foram organizados em núcleos e subnúcleos de significação, caracterizando um estudo de caso. Os dados construídos pelo pesquisador, tendo como base as anotações em seu diário de campo, entrevistas semiestruturadas com a equipe escolar e análise do projeto político pedagógico da escola, são de natureza descritiva e foram organizados em núcleos e subnúcleos de significação, a partir do processo descrito por Aguiar e Ozella (2006), que serviram de base para a criação das categorias de análise da tese. A pesquisa foi realizada respeitando os princípios éticos definidos pelo CEP-CHS UNICAMP – Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual de Campinas, tendo sido aprovada sob o parecer nº 3.352.201 e CAAE nº 13848118.2.0 000.8142. Os nomes de todos os participantes da pesquisa foram mantidos em sigilo e somente a diretora da escola recebeu um nome fictício.

Foram elencados os seguintes núcleos: 1) ambiente e clima da gestão, 2) características pessoais da diretora, 3) relação com a comunidade, 4) dificuldades e desafios da escola e 5) consciência política; além de 16 subnúcleos decorrentes destes núcleos listados aqui. Os núcleos e subnúcleos representam as marcas afetivas do trabalho da diretora da escola, sujeito da pesquisa apresentada. São, também, essas marcas que podem afetar e mover o coletivo da escola em busca da qualidade social da educação. O conceito de afeto foi debatido a partir do pensamento de Baruch de Espinosa, que será retomado a seguir.

Monismo e o Dualismo – breve retomada dos conceitos epinosanos

O filósofo francês René Descartes marcou a filosofia com a icônica afirmação “penso, logo existo” e propôs a existência condicionada ao pensamento, à razão. Para a visão dualista, o homem passou a ser visto como um ser que ora pensa, ora sente, sendo esses processos entendidos de forma desvinculada, sem inter-relação. Essa visão, já identificada no pensamento grego, foi fortalecida, na Idade Média pela ação da Igreja e, na Modernidade, consolidou-se com a filosofia cartesiana.

A contestação da concepção dualista está presente na obra de Baruch de Espinosa desde o século XVII (Chauí, 2005; Damásio, 2003; Spinoza, 2009). O filósofo holandês defendia que corpo e alma são atributos de uma substância única, assumindo que ambos seguem as mesmas leis e atributos. Ele afirmava que “[...] a mente esforça-se, tanto quanto pode, por imaginar aquelas coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir do corpo” (Spinoza, 2009, p. 179). O pensamento de Espinosa rompeu com as ideias dualistas cartesianas apregoadas durante séculos, estabelecendo as bases de uma nova concepção: o monismo. Assim, na constituição humana, a razão e a emoção passaram a ser interpretadas como constitutivas da existência. Para o neurocientista Antônio Damásio, razão e emoção são igualmente relevantes nos processos de raciocínio e não são excludentes, “[...] pelo contrário, ao verificarmos a função alargada das emoções, é possível realçar seus efeitos positivos e reduzir seus efeitos negativos” (Damásio, 2012, p. 216).

Dinâmica dos afetos e a potência de agir

A filosofia de Espinosa é voltada à ação à medida em que leva o sujeito a decifrar como as circunstâncias e as pessoas, no decorrer de sua existência, afetam-no de alguma forma. Ao interagir com outros, cada indivíduo pode ter ampliada ou reduzida a sua capacidade de agir, dadas as condições da interação em que o evento ocorreu e os afetos advindos dessas mesmas interações. Em síntese, se a interação foi adequada, ou seja, foi pautada por afetos que aumentaram a sua capacidade de agir, significa que a sua potência foi ampliada. Ou o seu inverso, se os afetos provenientes da interação foram inadequados e, portanto, diminuíram a sua capacidade de agir, denotam que a sua potência foi reduzida.

Os afetos são definidos por Espinosa como “[...] afecções do corpo pelas quais nossa potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Spinoza, 2009, p. 163).

Isto posto, o aumento da potência de agir de cada indivíduo pressupõe que o indivíduo deva agir de forma ativa e se esforçar no sentido de vivenciar relações que produzam alegrias, que aumentem a potência de agir e afastem-no das tristezas que a diminui. Esses sentimentos positivos foram denominados pela filosofia espinosana de afetos alegres. A esse respeito, Deleuze (2002, p. 106) comenta:

[...] o conatus é o esforço para experimentar alegria, ampliar a potência de agir, imaginar e encontrar o que é causa de alegria, o que mantém e favorece essa causa; mas é também esforço para exorcizar a tristeza, imaginar e encontrar o que destrói a causa de tristeza; [e] quanto maior é a alegria de que somos afetados, tanto maior é a perfeição.

Reconhece-se na filosofia de Espinosa uma busca ativa de conhecimento de si mesmo, de seleção dos afetos e dos encontros alegres e da busca pelo entendimento do mundo a partir das ideias verdadeiras que aumentam ou diminuem nosso desejo de agir. Partindo desse pressuposto, é preciso que os educadores reconheçam o contexto político, econômico e social que acaba por interferir na conquista ou não de uma escola de qualidade social. Nos tempos atuais, é preciso reconhecer a influência da Nova Gestão Pública no trabalho no chão da escola.

O trabalho do diretor de escola no contexto na Nova Gestão Pública4

O diretor, tradicionalmente, tem sido encarado, pelas comunidades escolares, como o líder do processo educacional na escola. Entretanto, o conceito de liderança na educação está atrelado a ideia da escola como uma empresa (Laval, 2019) e continua a atuar no sentido de manter essa instituição como aparelho ideológico do estado (Althusser, 1980), atualmente a serviço da economia de mercado, do ponto de vista capitalista. É preciso, portanto, comunicar os subterrâneos da ideologia neoliberal e gerencialista aplicadas na escola, pois, de acordo com Espinosa, o indivíduo é levado passivamente ao sabor de ações e direções diversas, quando desconhece as causas que o afetam. Sendo assim, as ideias inadequadas aprisionam os educadores numa condição de passividade e diminuem sua potência de ação, uma vez que os “[...] desejos, que dependem não da potência de cada um e sim da potência de coisas exteriores, são desejos que se referem à mente enquanto esta concebe as coisas de forma inadequada” (Chauí, 2005, p. 13).

É desta forma, a partir das ideias inadequadas sobre liderança, que as comunidades aceitam, sem perceber, a invasão da escola pelo ideário empresarial, esperando da figura do diretor, um líder único, com poder de mando e sanção, que vai disciplinar, não apenas os alunos, mas também todo o processo educacional e administrativo das escolas, deixando para trás, os conceitos de democracia, participação e trabalho coletivo, para abraçar o conceito neoliberal de gestão escolar.

Gaulejac (2007) cunha a expressão “gestão como doença social” apontando o gerencialismo – expressão máxima do processo que implanta medidas neoliberais, especialmente nos países da periferia do capitalismo, a partir dos anos 1980 e a quantofrenia5 – fenômeno que tenta traduzir o humano pela lógica matemática, como conceitos determinantes da nova organização do trabalho que invade também o setor público. Nesse cenário, apoiado nos estudos da Escola de Palo Alto, o autor afirma que é necessário resistir e entender que no modelo de gestão empresarial, a única forma de não adoecer, enlouquecendo com as contradições, cobranças e responsabilizações, é comunicando o fenômeno (Gaulejac, 2007) que gera afetos tristes. Portanto, é preciso conhecer as forças e fraquezas que diminuem o conatus dos educadores e libertar as equipes escolares da busca por produtividade, falseada pela ideia do “indivíduo como empresa de si mesmo”.

Os membros da comunidade escolar composta pela gestão, corpo docente, alunos, funcionários e familiares, devem ser concebidos como um conjunto de sujeitos criadores, envolvidos, portanto, em processos de criação coletiva e não somente de distribuição de liderança. A constituição de uma sociedade livre da servidão, passa obrigatoriamente por rupturas epistemológicas e pela constituição de sujeitos integrais e criativos, que possam utilizar todo o potencial criador e infinito de suas mentes transformando, sob o ponto de vista espinosano, passividade em atividade (Stetsenko, 2015, 2018).

Se por um lado a figura do diretor, nesse contexto, adquire uma centralidade, por outro, sua valorização, conforme afirmam Hall e Gunter (2015), é seguida de responsabilização e culpabilização, ranqueamentos e constrangimentos. Entretanto, os diretores não são os únicos responsáveis pela qualidade da educação. Eles não podem ser vistos como lone rangers, os cavaleiros solitários ou líderes individuais, que tudo podem, pois, efetivamente, essa afirmação não é verdadeira.

Os diretores de escola estão submetidos a toda precarização do trabalho educacional imposta ao setor público, como se observa no movimento denominado Nova Gestão Pública (NGP) (Linhart, 2007), que “[...] propõe administrar o Estado como uma empresa; pela lógica gerencialista, via o estabelecimento de metas, responsabilização dos indivíduos, avaliação e monitoramento do trabalho e resultados – accountability” (Rolindo, 2021, p. 48). Nesse processo, a meritocracia torna-se prática comum. A NGP instaurou-se no Brasil na gestão Fernando Henrique Cardoso com a criação, a partir de 1995, do Ministério da Administração e Reforma do Estado, comandado por Bresser Pereira, recém-chegado da Inglaterra, onde estudou a implantação da NGP. Observa-se a intensificação de um processo que rompe as amarras que impediam a ampla participação do mercado no setor público, gerando impacto no conceito de qualidade da educação e formação dos estudantes. O lema é fazer mais com menos e garantir, nas escolas públicas, a formação para o trabalho em detrimento de uma formação integral dos estudantes.

É importante afirmar que a formação humana, na sua integralidade, não pode ser pareada à produção de bens e serviços do setor privado. A esse respeito, Paro (2010, p. 770) indaga se é possível que “[...] fins tão antagônicos quanto os da empresa capitalista (apropriação do excedente de trabalho pelo capital) e o da escola (construção, pela educação, de sujeitos humano-históricos) sejam obtidos de forma idêntica”.

No atual contexto da organização do trabalho, o diretor de escola é visto como um líder, e a ele recai toda a responsabilidade pela administração da escola. O diretor, assim como os trabalhadores da empresa contemporânea, está submetido à accountability, processo que diz respeito ao par avaliação/monitoramento e que se insere numa artimanha ideológica difícil de contrapor-se. Como é possível depreender a partir da análise de Venco (2016), quem iria se opor às propostas de gestão que determinam o controle de gastos, à melhoria dos resultados ou à maior eficácia dos serviços públicos? É desta forma, segundo Venco (2016), que a NGP instala, também na escola, uma precariedade subjetiva, que afeta as relações de trabalho para além da precariedade de condições concretas que as escolas já enfrentam.

Os educadores, por um lado, buscam superar as dificuldades sem a plena consciência dos subterrâneos dessa estratégia de cooptação das subjetividades, onde os sujeitos na escola são constantemente levados a vivenciar culpabilização e responsabilização e, por outro lado, o poder público continua confortavelmente na posição de fiscalizador e controlador através de suas planilhas e demais documentos de monitoramento.

Entretanto, é imperativo que seja realizado um esforço a fim de não ser absorvido pelos percalços e perder de vista o cerne da ação escolar, ou seja, suas especificidades como processo pedagógico. Paro (2010, p. 777) afirma ser preciso imaginar uma nova epistemologia da organização do trabalho na escola, respeitando sua especificidade primeira, que é a formação do aluno na sua integralidade:

Assim sendo, qualquer que seja o caminho que venham a tomar as políticas públicas dirigidas à superação da atual escola básica, há que se ter como horizonte uma administração e uma direção escolar que levem em conta a educação em sua radicalidade, contemplando sua especificidade como processo pedagógico e sua dimensão democrática como práxis social e política.

É necessário um olhar para as causas que motivam as ações e para a dinâmica dos afetos de aproximação performados pelos sujeitos da comunidade escolar. Ressaltar quais práticas, antes entendidas como práticas de liderança, podem ser entendidas como práticas de imaginação e criação de novos possíveis na escola pública. Concordamos com a afirmação de Clot (2006, p. 21), apoiado na teoria vigotskiana, “[...] cada um de nós está repleto, em cada instante, de possíveis não realizados. Ou seja, a atividade realizada é uma ínfima parte do que é possível”.

A existência da liderança e do líder escolar é um fato, e este artigo, a seguir, apresenta um recorte do estudo sobre a gestão escolar realizado por Rolindo (2021) em sua pesquisa de doutorado. A pesquisa evidencia a figura de uma diretora de escola pública e identifica marcas afetivas positivas do trabalho da diretora, cujas ações buscam a superação dos processos de servidão, definida como o “[...] embate de forças na qual a potência das coisas exteriores é superior a do conatus corpo-mente” (Chauí, 2005, p. 29).

A potência de agir: ação e criação para além da ideia de liderança

A concretização de projetos políticos pedagógicos consistentes é, inevitavelmente, afetada pela relação estabelecida entre gestores, educadores e comunidade escolar. Como já foi afirmado, a elaboração coletiva da escola é permeada por afetos que podem promover a aproximação, ou o seu inverso, o afastamento dos sujeitos com os seus objetos de trabalho, estudo e conhecimento. Essa relação afetiva foi estudada na pesquisa de Rolindo (2021), o pesquisador encontrou um ambiente fértil para estudar a resistência aos efeitos da implantação da Nova Gestão Pública. Sua análise partiu das relações mediadas entre gestores, apoio administrativo e pedagógico, professores, funcionários, alunos, familiares e a comunidade externa. A tese sugere que é possível estabelecer ambientes de superação, onde consciência política crítica e posturas ativas e transformadoras se combinam para criar realidades contra-hegemônicas.

A escola onde a pesquisa foi realizada situa-se na periferia de Campinas, uma das maiores regiões metropolitanas do Estado de São Paulo, mantinha em 2019, quando a coleta de dados foi realizada, os cursos de Ensino Fundamental no período diurno, atendendo os anos iniciais (1º ao 5º) e os anos finais (6º ao 9º) dessa etapa, bem como o Ensino Médio no período noturno. Na ocasião, contava com 28 turmas e 878 alunos, 58 professores e grupo gestor composto por 1 diretora, 1 vice-diretora e duas coordenadoras pedagógicas. A diretora, sujeito da pesquisa, buscava não se constituir como uma líder solitária, assim, fazia parte de um coletivo que afeta e é afetado pela ação de todos. Em uma das entrevistas, é possível inferir essa característica no relato de um professor:

Então eu vejo que a escola de qualidade é uma escola que tem identificação com o seu entorno e essa é uma escola que tem muita identificação com seu entorno[...]e ela (a diretora) tem essa visão de que o nosso trabalho não é só aqui que ele precisa refletir também lá fora, então, a partir do momento que ela vê que a comunidade tá dando uma boa devolutiva ela encaminha o trabalho dela aqui dentro. Mas o trabalho dela é fundamental para que a gente possa atender tanto nas demandas educacionais que nós temos, o nosso trabalho aqui, mas também atender essa questão do que a clientela dessa escola espera, o que os pais esperam, o que a comunidade espera (Entrevista 7).

(Rolindo, 2021, p. 314).

Na análise dos dados de sua pesquisa, o autor apresenta, como marcas afetivas do trabalho da diretora, as características criadas a partir de sua influência no ambiente e do clima da gestão. A atuação é marcada pelo trabalho coletivo e pelo alinhamento entre os membros da gestão – diretora, vice e coordenadoras, além de situações em que o protagonismo é compartilhado entre elas e entre os professores mais próximos do grupo gestor. Segundo Rolindo (2021, p. 308), a diretora “[...] convoca ajuda pelos corredores, levanta da mesa intempestivamente e pede auxílio, tem ideias repentinas e as espalha aos quatro ventos, “a diretora é ligada no 220V”, conforme comentário de uma professora coordenadora dos anos iniciais, na entrevista 10.

A comunidade escolar, às vezes, subverte a noção de líder criando situações e práticas de gestão que fogem ao escopo esperado no modelo empresarial de liderança. No cotidiano da escola, o protagonismo da liderança pode recair sobre o corpo docente, sobre pais voluntários, ou ainda sobre outros funcionários, especialmente quando todos estão engajados num movimento de trabalho coletivo visando aumentar o potencial de ação da comunidade em busca da qualidade social da educação.

É possível apontar, na escola pesquisada, os diversos aspectos das práticas de liderança escolar que podem ser identificados de acordo com o conceito empresarial do termo, como: maior participação dos trabalhadores, monitoramento dos resultados, resolução local dos problemas surgidos nos processos de trabalho, maior responsabilização e distribuição da liderança, dentre outros aspectos. Entretanto, a escola como ambiente onde é promovida a formação integral do ser humano, pode libertar-se desses conceitos empresariais, que reduzem seu escopo à busca por resultados, eficiência e produtividade. É preciso superar a mera formação de trabalhadores, para perseguir o objetivo radical da formação integral do ser humano na perspectiva de uma educação transformadora da realidade marcada por injustiças sociais. Essa realidade é plausível à medida em que o “líder” ou “os líderes” obtêm conhecimento das causas que os conduzem a agir de determinada forma.

A comunidade forneceu indícios de que reconhece nas ações da diretora o potencial afetivo que agrega as pessoas, especialmente no que diz respeito à preocupação com a aprendizagem dos alunos. Nesta passagem, segundo Rolindo (2021, p. 310), “[...] as coordenadoras e as professoras apontam a preocupação com os alunos e uma mãe voluntária afirma: “Para a diretora tem uma coisa assim: primeiro, sempre os alunos dela. Aconteceu uma situação, são os alunos em primeiro lugar” (Entrevista 09 – mãe de aluno voluntária).

Há no conjunto dessas atitudes, características que promovem a aproximação com os sujeitos envolvidos no processo educacional. Para Rolindo (2021, p. 268), ao subverter a identidade rígida e tradicional esperada dos gestores escolares, a diretora:

[...] do ponto de vista monista, é razão e emoção entrelaçadas, é alegria e felicidade e espalha isso por onde passa na escola. A descontração e bom humor são características de sua personalidade que, possivelmente, são despertadas na interação com o coletivo da escola: ela se alimenta da força e da resistência da comunidade ao seu redor. Ela consegue manter-se em um estado de alegria e felicidade, pois quem está ao seu lado a afeta nesse sentido.

Não basta, entretanto, que os educadores e as comunidades estejam motivadas e desejosas de atuar para melhorar as escolas, é preciso que o façam cientes das causas que os afetam. É preciso que tenham uma consciência política crítica e que conheçam os imperativos econômicos que determinam a situação de precarização ao seu entorno. Todos os sujeitos da comunidade escolar precisam entender onde e como o poder público e as políticas educacionais falham, culpando e deixando a responsabilidade para o chão da escola. Isso foi notado a partir da análise dos dados, como no excerto a seguir:

A equipe parece bastante preocupada com questões políticas, reformas e mudanças que possivelmente estão a caminho. A vice faz uma crítica à participação de empresas e fundações privadas na gestão da educação pública. A diretora reforça que é possível que as mudanças que estão sendo cogitadas aconteçam com a participação do empresariado, trazendo para a escola uma visão menos educacional e mais empresarial

(Rolindo, 2021, p. 251).

Ao desenvolverem essa consciência, os sujeitos da relação de trabalho na escola atuam na dimensão da práxis, podendo criar uma realidade nova. A partir da reflexão de Espinosa, é possível inferir que a superação da servidão se dá através do conhecimento e da sua contraposição às condições objetivas e concretas do mundo, cotejando uma necessária retomada teórica e crítica acerca da dimensão contemporânea da organização social imposta às escolas.

O pensamento de Espinosa contribui para a formulação das bases de uma ação política na escola ao propor que o indivíduo tenha conhecimento claro e distinto de suas ações, não apenas dos efeitos delas advindos, mas, sobretudo, das suas causas. Ramacciotti (2014, p. 67, grifos do autor) esclarece:

Espinosa [...] em vez de opor a atividade da mente racional à atividade dos afetos e paixões, ou seja, no lugar de negar a força dos desejos, apetites e afecções corporais, tal como fez a tradição até então, afirma que o pleno poder da razão ou potência da mente está no conhecimento adequado e verdadeiro das causas que movem o desejo (conatus), das causas que afetam o corpo e produzem o aumento ou a diminuição da potência interna. A mente, quanto mais ativa, tanto mais realiza plenamente sua capacidade de pensar, mais aumenta sua potência, seu conatus.

Podemos afirmar que um afeto alegre, como os afetos performados pela diretora, se tornará mais potente à mesma medida em que a mente tenha ideias adequadas de si e produza ideias adequadas seguindo os preceitos do conhecimento. Rolindo (2021, p. 260) aponta em sua pesquisa, que a diretora, ao tomar decisões, em relação ao enfrentamento das dificuldades e desafios da escola, também afeta e mobiliza a comunidade no sentido de aproximá-la dos processos de transformação da realidade: “[...] a comunidade une-se em torno da escola e demonstra comprometimento para enfrentar coletivamente as diversas dificuldades que se impõem no processo de construção e conquista da qualidade da educação”. A diretora, com ajuda da comunidade, cria espaços coletivos de ação e crítica e tenta elucidar, com a equipe, as artimanhas do gerencialismo que assalta a escola tentando submetê-la às lógicas empresariais.

O conhecimento das causas dos afetos, desse ponto de vista, assume em Espinosa uma importante via para a emancipação, sendo que o não conhecimento das causas das afecções ativas ou passivas nos prendem ao reino da ilusão (Magiolino; Sawaia, 2016, p. 72).

É preciso que as atitudes de responsabilização do grupo gestor, dos docentes e da escola, não sejam lidas pela comunidade como abnegação e sim como situações em que a precarização leva aos desvios de função e à necessidade dos educadores assumirem responsabilidade ocupando espaços deixados vacantes pelo poder público. Em sua tese, Rolindo (2021, p. 246) descreve situações em que o corpo docente e a direção se responsabilizam e encontram soluções locais para resolver problemas que deveriam ser de responsabilidade do poder público:

Teve um ano que a gente começou a fazer o provão e a gente não tinha verba e a diretora foi atrás de verba; nos ajudou com material, com tinta, com impressão e durante muitos anos a gente começou a trabalhar as provas, mês atrás de mês, de uma forma que o aluno aprende a estudar e isso fortalece a educação. O que faz a escola ser de qualidade é uma postura de diretora. (Entrevista 6 – professor de ciências) Ela explanou que tem resolvido os débitos da escola com uniforme. Disse que existem materiais inservíveis que podem ser vendidos como reciclados. [...] mas o microscópio da escola estava quebrado por muito tempo. [...] levei para um amigo engenheiro eletricista, contei para ele a história. Ele ficou quase um mês com esse microscópio, descobriu o problema, comprou as peças e ele não cobrou um centavo, ele falou: “Para você eu não vou cobrar porque é para uma escola pública, eu estou fazendo isso por você, pela sua escola” e aí eu trouxe o microscópio e a gente fica vendo os micróbios, protozoários, é uma coisa que os alunos não têm acesso. Então tudo isso a diretora facilita, porque ela confia também. Se ela não confiasse em mim, se ela não confiasse no grupo, ela não ia fazer tudo isso

(Entrevista 6 – professor de ciências).

A escola apresentada na pesquisa, paulatinamente, vai tomando consciência do processo de responsabilização que lhe é imputado e das contradições decorrentes desse processo, como se observa a seguir, na fala da própria diretora: “Olha, tem coisa que dá para fazer, a gente corre atrás e faz. Eu pergunto: se o Estado se acomoda, como é que fica a sua consciência sabendo que tem alguma coisa que as crianças precisam e que ninguém vai nem ligar para você?” (Rolindo, 2021, p. 253). A diretora e parte do corpo docente, mergulhados na contradição, acabam cedendo à responsabilização, mas sabem que é preciso que os órgãos públicos sejam cobrados; mais adiante ela diz: “Se o Estado não se incomodar com os problemas, você “morre na praia” (Rolindo, 2021, p. 254).

Os afetos de aproximação na busca da qualidade social com criticidade e de forma coletiva começaram a ser despertados em face das contradições como descrito no excerto acima, no caso do microscópio. Para garantir a qualidade da relação de ensino-aprendizagem, os professores assumem responsabilidades que são dos órgãos centrais. Quando isso fica evidente, à luz da teoria, tem-se a práxis e o desenvolvimento de uma análise crítica.

Paralelamente, outros espaços de qualidade social foram criados pela diretora, para além do seu papel formal como líder. Um dos relatos assinalou que “[...] a diretora recebeu uma ex-aluna com Síndrome de Down por quase três anos na escola, como ouvinte e participante do ambiente escolar” (Rolindo, 2021, p. 316). Essa decisão da diretora pareceu afetar positivamente uma das professoras da escola: “A menina com síndrome de Down já tinha terminado o terceiro ano do ensino médio, (...) e o que ela mais gostava era aqui da escola e a diretora abriu espaço para ela vir” (Entrevista 4 – professora de português) (Rolindo, 2021, p. 448). Esse caso relatado, que envolveu um sujeito sem matrícula formal na escola, representou, reconhecidamente pela comunidade e colaboradores, a criação de um espaço de inclusão que expressa a qualidade social em construção na escola.

A conquista da qualidade social em vista da superação dos processos de servidão voluntária se dá em uma perspectiva da coletividade (Chauí, 2005). Criar na escola pública uma nova realidade parece ser possível pelos afetos que movem o coletivo e pela atuação de diretores e diretoras de escolas comprometidos com a transformação da sociedade rumo às relações mais justas e dignas de vida. É necessário que se manifeste o potencial criador dos sujeitos educadores; segundo Toassa (2004, p. 6), “[...] criar (processo hoje erroneamente encarado como prerrogativa das artes ou das ciências) é uma atividade relacionada às necessidades especificamente humanas de transformação das condições naturais e sociais”.

A construção da escola pública de qualidade social

Neste trabalho, buscou-se apresentar um recorte teórico e parte dos resultados encontrados na pesquisa de doutorado de Rolindo (2021) que contribuíssem para qualificar a gestão escolar. Destaca-se que na educação o papel do diretor, enquanto liderança, não tem como propósito aumentar a produtividade ou a eficácia da escola, mas, sim, garantir o pleno desenvolvimento dos estudantes. Assume-se que a escola pública não é uma empresa. Sendo assim, a escola não é prestadora de serviços, mas, sobretudo, garantidora de direitos e, portanto, os alunos não são clientes e nem a aprendizagem pode ser vista como um produto. Ampliar o olhar sobre a educação, permite perceber que seu papel não se reduz a formar, no sentido de adaptar o sujeito a um molde, mas, especialmente, perceber que a educação deve libertar, emancipar e possibilitar a ocupação dos mais diversos papéis sociais.

Os conceitos de liderança empresarial chegam às escolas como estratégia de modernização dos processos de administração, agora nomeada gestão escolar. Embora esses conceitos possam ser assentados em paralelo com as práticas escolares, a simples sobreposição do fazer empresarial ao fazer educacional leva a escola a distanciar-se do papel de promoção da formação humana no sentido da transformação social. Administrar uma escola envolve concepções e ações amplas e a adoção de padrões empresariais, por si, não promove mudanças, mas tão somente, garante a reprodução de um modelo de sociedade marcado pela desigualdade social.

A rede pública de ensino do Estado de São Paulo, onde encontra-se a escola analisada na pesquisa de Rolindo (2021), conta com mais de 5 mil escolas, mais de 250 mil professores, cerca de 65 mil servidores e mais de 4 milhões de alunos, de acordo com os dados divulgados pela Secretaria Estadual da Educação em seu site oficial. É possível criar uma imagem mental dessa grande rede de pessoas, professores, gestores, funcionários, familiares e principalmente alunos – as futuras gerações – que estão nas mãos dos educadores no chão da escola. Essa imensa rede de ensino e a sociedade ao seu redor guarda uma potência de ação que pode ser mobilizada de forma transformadora.

Há espaço de criação e recriação no mundo do trabalho, é possível que os sujeitos inventem novas soluções e situações para além do que está determinado ou previsto para ser executado. Reconhece-se o potencial transformador encerrado nas escolas, que pode ser despertado pela consciência da dinâmica dos afetos, pelo conhecimento da potência do conatus e, por fim, a partir do desvelamento das ideias adequadas que movimentam esse potencial.

Assim, pondera-se que o desejado no processo de gestão escolar não é forjar líderes, mas, sim, catalisar a potência de agir de todos os sujeitos envolvidos na busca pela qualidade no chão da escola pública. Desta forma, parece ser necessário uma nova conceituação dos processos de liderança. Evidencia-se uma liderança criativa, transformadora e enredada por diversos atores dispostos a mudar o seu microcosmo. Contudo, esses sujeitos podem ser capazes de interconectarem-se a outros, ampliando exponencialmente sua atuação, num movimento para transformação do macrocosmo da educação e da sociedade. Para Espinosa, é somente pelo conhecimento que será possível ao homem libertar-se da servidão. Portanto, será pelo conhecimento que se constituirão as bases para a transformação da realidade social.

A escola apresentada na tese de Rolindo (2021) mostra um potencial de ação em expansão, onde a diretora, mais do que uma líder tradicional, tenta criar, coletivamente, uma nova realidade. Ao observar os sete indicadores da qualidade social descritos abaixo, de acordo com o conceito defendido nos estudos organizados por De Sordi, Varani e Mendes (2017) e cruzar esse conceitual com os dados narrativos (descrição das observações do pesquisador, vozes dos sujeitos da comunidade e análise do projeto político pedagógico da escola) presentes na pesquisa de Rolindo (2021), podemos inferir que a escola caminha no sentido da construção da qualidade social.

É possível perceber que a escola, consegue em alguma medida, promover a participação (1) do maior número possível de sujeitos da comunidade no cotidiano escolar; busca estabelecer o trabalho coletivo (2) como uma realidade na condução, tanto dos processos administrativos, como pedagógicos da escola; esse coletivo tem uma preocupação com o acesso e a permanência (3) dos alunos, o que representa também um compromisso social (4) da escola com seu entorno; as práticas pedagógicas (5) desenvolvidas por uma parte do corpo docente e a relação da escola com a comunidade (6) estabelecida pelos sujeitos que participaram da pesquisa demonstram um compromisso com aprendizagem de todos (7). Evidências dessas categorias da qualidade social destacadas acima podem ser encontradas nos dados da pesquisa de Rolindo (2021), tanto nas falas dos sujeitos entrevistados, como nos dados narrativos e descritivos produzidos ao longo da pesquisa.

Considerações Finais

A análise das práticas da gestão escolar e do papel do diretor de escola, a partir dos resultados destacados na pesquisa de doutorado abordada, pode contribuir para a qualificação da atuação dos educadores no chão da escola. É possível que diretores, professores e comunidades escolares possam repensar os limites da atuação de líderes na perspectiva tradicional e encontrar seus próprios caminhos, criativos, que afetem as escolas promovendo o movimento de aproximação com a conquista e construção de uma escola de qualidade social. Tanto os limites do presente artigo como os limites de um estudo de caso como este apresentado aqui, parcialmente, não permitem que os resultados sejam generalizados, como já foi dito, mas permitem que o conhecimento científico possa ser estabelecido a partir da verossimilhança, quando a realidade carrega uma probabilidade de verdade e pode, assim, inspirar outras escolas, educadores e diretores a trilhar seus próprios caminhos na conquista da qualidade social da educação. Assim, novas formas de gestão, impregnadas de resistência às forças neoliberais que acometem a realidade das escolas públicas, podem seguir caminhos semelhantes aos trilhados pela escola em questão.

A qualidade social na educação pode ser conquistada em diferentes contextos, porém, precisa ser reconhecida em instâncias próprias de avaliação institucional participativa a serem constituídas nas unidades escolares ao redor do país, tomando como base os dados singulares de cada realidade.

As reflexões e os questionamentos apresentados neste trabalho, levam ao reconhecimento da importância da realização de novos estudos, em diferentes contextos e instituições educacionais, como, escolas particulares, universidades públicas e privadas e escolas rurais. Debater a precarização do trabalho nas escolas, debater o potencial de ação dos sujeitos motivado pelos afetos advindos de ideias adequadas e questionar o conceito de liderança do ponto de vista empresarial aplicado na educação pode contribuir para impulsionar as escolas na conquista e na construção da qualidade social como a finalidade radical da educação.

2Grupo do Afeto: “[...] vinculado ao grupo de pesquisa ALLE/AULA, da Faculdade de Educação da Unicamp, constituiu-se no final da década de 90, do século passado. É formado por professores, doutorandos, mestrandos e alunos do curso de Graduação em Pedagogia. Tem como objetivos pesquisar, analisar e discutir os impactos afetivos produzidos pela mediação pedagógica, desenvolvida por agentes mediadores, como os pais e os professores, nas relações que se estabelecem entre o sujeito e o objeto de conhecimento” (Alle-Aula, 2021, online).

3No original: The focus on commitment suggests that persons do not so much expect or anticipate the future, but rather, actively work and struggle to bring this future into reality through their own deeds, even if the future is not anticipated as likely and instead, requires struggle and active striving, often against the odds, to achieve it. This refers to persons and communities struggling for their ideals, for what “ought to be,” thus bringing the future into the present in spite of the powerful forces that are pulling in other directions, that is, while resisting and overcoming the present in its status quo, power hierarchies, and contradictions.

4 Newman e Clarke (2012) cunharam em seu artigo o termo estado gerencial na tentativa de abarcar as mudanças culturais e políticas que ocorriam no âmbito dos governos de Margaret Thatcher (1979-1992), John Major (1992-1997), Reagan nos EUA, e Pinochet na década de 1970 no Chile. As transformações visavam a liberação do mercado do controle do Estado e do consumidor assolado pela carga de impostos, além de reduzir o tamanho do Estado. No bojo do estabelecimento do neoliberalismo, surge o conceito de gerencialismo ou Nova Gestão Pública (NGP), um conceito determinante para explicar a lógica global e globalizante que se estabelecia naquele momento histórico.

5O termo quantofrenia refere-se a “[...] ‘mania de quantificar a qualquer custo’ no campo das ciências psicológicas e sociais”, de acordo com o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (2012, p. 960).

Artigo elaborado a partir da tese de A.C. ROLINDO, intitulada “Afetos que movem o coletivo: o trabalho da diretora de escola na construção da qualidade social”. Universidade Estadual de Campinas, 2021.

Como citar este artigo/How to cite this article

Campos, V. R. V.; Rolindo, A. C. Liderança e gestão escolar: um olhar questionador sobre o conceito de liderança em educação na perspectiva filosófica de Espinosa. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 27, e225829, 2022. https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5829

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Recebido: 21 de Maio de 2022; Revisado: 12 de Outubro de 2022; Aceito: 22 de Outubro de 2022

Correspondência para/Correspondence to: V.R.V. CAMPOS. E-mail: vanja.ramos@gmail.com.

Colaboradores

V. R. V. CAMPOS foi responsável pelo desenho, concepção e planejamento da ideia para o artigo. Atuou no aprofundamento do referencial teórico em afetividade e na retomada dos conceitos epinosanos. A. C. ROLINDO atuou na delimitação dos conceitos de qualidade social da educação e na abordagem do trabalho do diretor de escola no contexto na Nova Gestão Pública, contribuindo para análise e interpretação dos dados e discussão dos resultados da pesquisa. A redação e revisão do texto ficaram a cargo dos dois autores coletivamente.

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