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Revista de Educação PUC-Campinas

Print version ISSN 1519-3993On-line version ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.27  Campinas  2022

https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5353 

Artigos

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária: uma reflexão no âmbito das políticas de formação de educadores

The National Program of Education in Agrarian Reform: a reflection in the scope of the policies of formation of educators

Mauro Garcia de Mello1 
http://orcid.org/0000-0003-4087-7416

Luciana Rodrigues Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0002-7043-0765

Rosecélia Moreira da Silva Castro2 
http://orcid.org/0000-0001-8382-8636

Seidel Ferreira dos Santos3 
http://orcid.org/0000-0001-6049-1188

1Universidade da Amazônia, Departamento de Pós-Graduação, Programa de Pós-Graduação em Administração. Belém, PA. Brasil.

2Universidade da Amazônia, Departamento de Pós-Graduação, Programa de Pós-Graduação em Gestão de Conhecimentos para o Desenvolvimento Socioambiental. Av. Alcindo Cacela, 287, Umarizal, 66060-092, Belém, PA. Brasil.

3Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Naturais e Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Recursos Naturais e Sustentabilidade da Amazonia. Belém, PA, Brasil.


Resumo

Este artigo objetiva identificar a participação no contexto das inter-relações do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária e dos movimentos sociais do campo, a fim de analisar o papel da gestão participativa na seleção e a implementação dos projetos desenvolvidos nesse processo, baseado nas premissas e demandas sociais do campo no contexto das lutas dos movimentos sociais, mediado por uma política de estado do Pará. A metodologia se desenha como estudo exploratório de abordagem qualitativa, utilizando-se como procedimentos metodológicos: (a) observação; (b) diário de campo; e (c) pesquisa tipo survey. O trabalho de campo foi realizado nas reuniões dos movimentos sociais e do Conselho Regional da Reforma Agrária do estado do Pará. Nos resultados, evidenciaram-se duas dimensões que se articulam com a gestão participativa. A primeira se articulou com a formulação bottom up, na qual se verificou que os projetos de cursos implementados no programa partem das intervenções diretas de movimentos sociais que participam desde a elaboração até o acompanhamento, sendo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra o partícipe mais ativo. A segunda se refere à garantia de direitos sobre a qual os sujeitos participantes passam a demonstrar, nos últimos três anos, múltiplas dificuldades na efetivação do planejamento das propostas de curso, com queda no repasse de recurso e modificação da agenda governamental.

Palavras-chave Educação do campo; Gestão participativa; Movimentos sociais

Abstract

This article aims to identify participation in the context of interrelationships between the National Program of Education in Agrarian Reform and rural social movements, in order to analyze the role of participatory management in the selection and implementation of projects developed in this process, based on the premises and social demands of the countryside in the context of the struggles of social movements, mediated by a policy of the State of Pará. The methodology is designed as an exploratory study with a qualitative approach, using as methodological procedures: (a) observation; (b) field diary, and (c) survey. Fieldwork was carried out at meetings of social movements and at the Regional Council for Agrarian Reform of the State of Pará. In the results, two dimensions are highlighted that are articulated with Participatory Management. The first is articulated with the bottom-up formulation, in which it was found that the projects of courses implemented in the Program are part of the direct interventions of social movements that participate, from the elaboration to the follow-up, with Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra as the most active participant. The second refers to the guarantee of rights which the participating subjects start to demonstrate, in the last three years, multiple difficulties in carrying out the planning of course proposals, with a drop in the transfer of resources and modification of the governmental agenda.

Keywords Rural education; Participative management; Social movements

Introdução

As políticas públicas, ou políticas sociais, como são chamadas, resultam dos conflitos e das lutas dentro da própria sociedade civil, de acordo com Molina (2012). A política adotada pelo Estado traduz a forma de agir dos governantes, mediante programas que objetivam dar materialidade aos direitos constitucionais, direitos sociais, definidos no Artigo 6º da Constituição Federal brasileira, referente à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados (Brasil, 1988).

Uma das principais características e diferenças das políticas públicas de educação do campo, pautadas pelos movimentos sociais e sindicais, refere-se à sua participação e ao seu protagonismo na concepção e elaboração dessas políticas. Para Beltrame (2000), a instabilidade dos programas e projetos que resultam de parcerias com o Estado, na medida em que essas estão submetidas à rotatividade do poder, sofre os reveses da falta de transparência no acesso a informações, dificuldades no processo de consolidação de política pública, bem como entraves no repasse dos recursos públicos, garantidos por lei, seguindo, de forma constante, as prerrogativas econômicas de desenvolvimento, mais conhecidas pela sua propaganda do que pela sua atuação.

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) se estabeleceu a partir de um experimento, conforme Di Pietro (2004): “[...] um experimento com vistas à construção de uma política pública de Educação do Campo e um instrumento da estratégia de democratização do acesso à terra e desenvolvimento rural sustentado por meio da Reforma Agrária”.

O Fórum Paraense de Educação do Campo, com a coordenação da Universidade Federal do Pará, requer uma articulação entre diversos movimentos sociais e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Essa articulação se faz necessária, posto que a Universidade Federal do Pará, a entidade convenente/interveniente, por meio do INCRA, é responsável pela execução técnica/pedagógica dos encontros de formação dos monitores/educadores; da escolarização dos não habilitados; do acompanhamento técnico/pedagógico das ações previstas; dos relatórios de resultados; da coordenação geral; e da divulgação do processo.

Neste contexto, questiona-se: no âmbito dos movimentos sociais do campo, como se configura a participação na seleção e implementação dos projetos desenvolvidos pelo Pronera? E qual a relação com a gestão participativa? A organização deste artigo se coloca em cinco seções interligadas. A primeira sessão se configura nesta introdução; a segunda apresenta a política da Reforma Agrária e a criação do Pronera no Brasil, com o intuito de apresentar o cenário geral em que se insere a educação do campo; a terceira apresenta a organização e o histórico do programa no estado do Pará; a quarta apresenta a metodologia de trabalho; e a quinta organiza os dados sobre os resultados da pesquisa.

O presente artigo tem como objetivo identificar a participação no contexto das inter-relações do Pronera e dos movimentos sociais do campo, a fim de analisar o papel da gestão participativa na seleção e implementação dos projetos desenvolvidos nesse processo, baseado nas premissas e demandas sociais do campo no contexto das lutas dos movimentos sociais, mediado por uma política de Estado.

A Política de Reforma Agrária no Brasil e a educação do campo

O contexto político e social brasileiro, desde as últimas décadas do século passado, tem sido marcado pelo processo de redefinição do papel do Estado, a partir da universalização dos direitos de cidadania, descentralização e gestão democrática das políticas públicas. A Constituição Federal, ao assegurar, dentre os seus princípios e diretrizes, “[...] a participação da população por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (Brasil, 1988, Art. 204), institui, no âmbito das políticas públicas, a participação social como eixo fundamental na gestão e no controle das ações do governo.

Segundo Molina (2010, p. 20), “[...] não é possível debater políticas públicas sem utilizar outros quatro conceitos fundamentais: direitos, Estado, Movimentos Sociais e democracia”. Portanto, o exercício democrático que se estabelece no interior do Estado e que terá rebatimentos na garantia dos diferentes direitos materializados nas políticas públicas dependerá do poder hegemônico que se estabeleceu no Estado.

As políticas públicas serão compreendidas como o “Estado em ação” (Hofling, 2001), em que esse implanta projetos de governo por meio de programas e ações voltadas para setores específicos da sociedade. Então, para se analisar as políticas públicas, referindo-se àquelas de corte social, é necessário compreender “a concepção de Estado e a (s) política (s) que este implementa, em uma determinada sociedade, em determinado período histórico”.

Rocha (2009) afirma que o envolvimento dos cidadãos na gestão pública incide diretamente sobre as possibilidades e os padrões de interação entre o governo e a sociedade, de forma que a participação social é condição indispensável tanto para a formulação de demandas quanto para a própria interação política entre a sociedade e as instituições governamentais.

No cenário do campo e dos movimentos sociais, depreende-se que existe um contexto histórico-social que demarca a participação dos atores, pois toda violência no campo conduz tanto a um aprofundamento do debate sobre a Reforma Agrária quanto à ampliação dos espaços para pensar políticas públicas (Arroyo, 2009; Felix, 2015; Molina, 2010).

Ao analisar a história dos movimentos sociais, a participação se coloca como força motriz e ideológica para garantia de direitos, pois se destaca desde a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984, como espaço de luta social em relação ao campo. Para Martins (2015), essas lutas não se destinavam somente à Reforma Agrária, mas, sobretudo, aos direitos sociais, como saúde, educação, moradia e crédito.

Outro marco a ser destacado é o Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária, realizado em 1977, como primeiro espaço constituído pelos movimentos sociais e sindicais do campo para pensar a formação dentro de assentamentos e a necessidade de se realizar a Reforma Agrária. Destacam-se, também, encontros nacionais que passam a ter apoio internacional de Organizações Não Governamentais e de organismos ligados à Igreja Católica (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) da Organização das Nações Unidas; da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura; e do Fundo das Nações Unidas para a Infância.

Segundo Hage (2014), trata-se de um espaço em constante disputa, com uma realidade contraditória de intervenções políticas e partidárias. Para Azevedo (2001), pelo olhar normativo, pode-se afirmar que as políticas públicas têm, em sua gestão, uma intrínseca conexão com o universo cultural e simbólico, mas a realidade emerge de outras relações de poder, com definições que são próprias de uma determinada realidade social.

Em 1998, foi criado o Pronera, o primeiro programa resultante da luta do MST e dos movimentos que apoiavam essa causa. Com o Seminário Nacional por uma Educação do Campo, ocorrido em 2002, pôde-se estabelecer um “[...] marco de ampliação da participação dos movimentos sociais do campo, incluindo outras organizações para além do MST e da CONTAG” (Santos, 2011, p. 46).

Por pressão dos movimentos sociais, que vêm lutando pela institucionalização da educação do campo, em 2004, foi criada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade no Ministério da Educação. Nessa secretaria, foi instituída a Coordenação Geral da Educação do Campo. No mesmo ano, também foi convocada a Articulação Nacional Por uma Educação do Campo, e iniciada a organização da II Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, que tinha como objetivo debater um sistema público de educação do campo.

A partir dessa conferência, tomam parte: o MST; o Movimento dos Pequenos Agricultores; o Movimento dos Atingidos por Barragens; a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar; a CPT; a PJR-Cáritas; a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil; o Movimento de Organização Comunitária; a Rede de Educação do Semiárido Brasileiro; o Serviço de Tecnologia Alternativa; a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, entre outros grupos.

É importante pontuar a participação das universidades enquanto espaços de pesquisa e de reflexão de toda esta movimentação em torno da construção e do fortalecimento da educação do campo. Nessa perspectiva, em setembro de 2005, aconteceu em Brasília o I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo, organizado pela Coordenação Geral de Educação do Campo em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Pronera. O evento reuniu cerca de 70 pesquisadores de todos os estados da União e do Distrito Federal, vinculados a instituições universitárias e/ou a movimentos e organização sociais do campo (Molina, 2010).

Na elaboração da normatização da educação do campo, outra lei importante é a Resolução CNE/CEB no 2/2008, que demarca no Art. 1º que “A Educação do Campo compreende a Educação Básica em suas etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional Técnico de nível médio integrada com o Ensino Médio [...]” (Brasil, 2008, p. 46). Nos artigos seguintes, a referida resolução aborda algumas questões, como de quem é a responsabilidade da educação do campo, como devem ser tratadas a educação infantil, a questão do transporte escolar, as nucleações escolares, entre outras.

Em 4 de novembro de 2010, foi sancionado o Decreto no 7.352/2010, que instituiu a Política Nacional de Educação do Campo e o Programa Nacional de Reforma Agrária (Brasil, 2010). Ao analisar esse decreto em relação ao Pronera e às lutas dos movimentos sociais, Munarim (2011, p. 51) constatou que “[...] o Decreto eleva este programa governamental à categoria de política pública e valoriza, em vez de criminalizar, a ação das organizações e movimentos sociais do campo concernentes à educação escolar no âmbito da reforma agrária”.

Para Caldart et al. (2012), a educação do campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Objetivos e sujeitos remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos no campo e suas lógicas de agricultura que implicam o projeto de país e de sociedade e as concepções de política pública, de educação, de formação humana e de gestão participativa.

Conforme Freire (1987), a educação, quando se realiza no contexto das lutas, dos movimentos sociais e das demais organizações do povo, busca um ensino baseado em conteúdo que se refere especificamente à realidade das pessoas, e que é definido coletivamente pelos próprios sujeitos envolvidos nesse processo educacional.

Organização e histórico do Pronera no Pará (1998- 2017)

O Pronera é um projeto resultante de uma política pública de educação do campo que foi criado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria nº 10/1998, desenvolvida nas áreas de gestão sobre a Reforma Agrária, e executada pelo INCRA, atualmente no âmbito da Casa Civil. Ele tem o intuito de garantir o direito dos trabalhadores do campo, jovens e adultos de terem acesso à alfabetização e a continuar os estudos em diferentes níveis de ensino (Brasil, 2016a).

O princípio da participação social é possibilitado por uma gestão participativa, cujas responsabilidades são assumidas por todos os envolvidos na construção, acompanhamento e avaliação dos projetos pedagógicos, sendo que a parceria é condição essencial para a realização das ações dos projetos. Os principais parceiros são os movimentos sociais e sindicais do campo, as instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos e os governos municipais e estaduais (Brasil, 2016a).

Em 2001, o Pronera foi incorporado ao INCRA, ficando ligado diretamente ao Gabinete do Presidente, sendo designado um funcionário com a competência de estabelecer articulações entre os movimentos sociais e sindicais e as universidades, a fim de viabilizar projetos educacionais para os assentados(as). Nesse momento, foi aprovado e editado o segundo Manual de Operações do programa, com a edição da Portaria/INCRA n° 837.

Em dezembro de 2001, o Ministério de Educação (MEC) aprovou as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, por meio do Parecer nº 36/2001. Mas, somente em 3 abril de 2002, o MEC publicou a Resolução CNE/CEB nº 1, a qual estabelece as diretrizes que trazem a novidade de garantir, em seu Art. 10, a gestão democrática, com ampla participação da comunidade e dos movimentos, conforme se observa a seguir:

Art. 10. O projeto institucional das escolas do campo, considerado o estabelecido no art. 14 da LDB2 garantirá a gestão democrática, constituindo mecanismos que possibilitem estabelecer relações entre a escola, a comunidade local, os movimentos sociais, órgãos normativos do sistema de ensino e os demais setores da sociedade

(Brasil, 2002, p. 40).

Essa legislação é a garantia legal que não só referenda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mas também vai ao encontro do caráter participativo presente nas ações do Pronera. Em 2003, o INCRA publicou o II Plano Nacional de Reforma Agrária, que propõe a ampliação da atuação para além da garantia do acesso à terra, promovendo ações para que os assentados(as) pudessem produzir, gerar renda e ter acesso aos demais direitos fundamentais, como energia, saneamento, saúde e educação. Neste mesmo ano, foi realizado o I Seminário Nacional do Pronera, que teve como objetivo refletir sobre o momento e as condições que tornaram possível implementar essa política pública.

No estado do Pará, a participação da Casa Civil se efetiva via INCRA, que subsidia o Pronera por meio de três Superintendências Regionais (SR) no eixo Pará: SR-01 – de Belém; SR-27 – de Marabá; SR-30 – de Santarém. As três SR apresentam o tamanho da região norte na representação da Reforma Agrária, conforme a Quadro 1.

Quadro 1 Divisão das Superintendências Regionais no estado Pará por família assentada e número de assentamento. 

Superintendência Regional n° de famílias assentadas n° de assentamentos Área de assentamentos (hectare)
Total 224.393 1.066 16.452.188,96
SR-01 - Belém 0 98.555 397 04.102.092,24
SR-027 - Marabá 0 72.162 514 04.282.244,54
SR-030 - Santarém 053.676 155 08.067.852,18

Fonte: Elaborado pelos autores com base no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (2018).Nota: Informações gerais sobre os assentamentos da Reforma Agrária (2018). Casa civil da presidência da república Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) diretoria de obtenção de terras e implantação de projetos de assentamento – DT.

Nas instâncias regionais do INCRA, o vínculo operacional com a universidade ocorre por meio do papel da asseguradora do Pronera, cumprindo aos parceiros da SR do INCRA acompanhar o desenvolvimento do projeto, bem como o cumprimento do convênio. No período de 1998 a 2017, o programa atendeu a 167.648 beneficiários oriundos dos assentamentos de Reforma Agrária no país, conforme site do INCRA/Pronera. Os Quadros 1 e 2 comprovam a atuação do Pronera em todo o país (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2015).

Quadro 2 Realizações de atividades do PRONERA no Brasil (2017). 

Realizações de atividades Total de alunos (n)
Atendidos pela Educação de Jovens e Adultos 167.648
Formados no nível médio 9.116
Graduados no nível superior 5.347
Alunos especialistas 1.765
Alunos na Residência Agrária Nacional 1.527

Fonte: Adaptado com base no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (2018).

No período de 1998 a 2011, foram ofertados 320 cursos por 82 instituições de ensino, que contaram com 247 parceiros, os quais foram identificados por tipos: 14 movimentos organizados em diferentes escalas (nacional, regional e estadual); 18 associações organizadas nas escalas nacional, regional e estadual, segundo sua natureza pública ou privada; sete cooperativas, sendo seis estaduais e uma regional; 36 Organizações Não Governamentais, igualmente dispostas nas escalas estadual, regional e nacional; 14 universidades públicas estaduais; 21 universidades públicas federais, cinco universidades privadas; 67 instituições de governos municipais; 50 instituições de governos estaduais e 15 do Governo Federal. A Tabela 1 apresenta o número de cursos e matrículas por modalidade em cada SR, no período entre 1998 e 2011, dos quais foram realizados 33 cursos.

Tabela 1 Dados de cursos por nível e superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, no Pará (1998-2011). 

Nome/no da Superintendência do INCRA EJA
fundamental
EJA
fundamental
Ensino
Médio
Ensino
Médio
Ensino Superior Ensino Superior Total de cursos Cursos por SR (%) Total de matrícula Matrículas por SR (%)
Total 20 18.414 7 633 6 298 33 100,0 19.345 100,0
Pará/Belém/SR 01 3 05.001 1 40 2 100 6 018,2 05.141 026,6
Pará/Marabá/SR 27 4 03.160 4 336 4 198 12 036,4 03.694 019,1
Pará/Santarém/SR30 13 10.253 2 257 0 0 15 045,5 10.510 054,3

Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2015).Nota: EJA: Educação de Jovens e Adultos; INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; SR: Superintendência Regional.

Observa-se na Tabela 1 que, em relação ao número de cursos, a SR que mais se destaca é Pará/Santarém, com 45,5% dos cursos e 54,3% das matrículas, embora o foco da formação nessa SR seja os cursos de Ensino Fundamental, oferecidos na Educação de Jovens e Adultos, provavelmente para suprir uma demanda histórica no número de analfabetos existentes no leste do Pará. Em contrapartida, não existiu oferta de cursos de nível superior.

Segundo INCRA (2015, p. 54), dentre os atores que se destacam na demanda de atuação do Pronera, pode-se apontar o MST, a CPT e a Confederação Nacional dos Trabalhadores da agricultura (CONTAG). Apesar das atuações do MST, da CONTAG e da CPT em escala nacional, o MST não atuou nos estados do Amazonas, Roraima e Amapá, e a CONTAG não se fez presente nos estados de Roraima, Amapá, Paraíba, Alagoas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e São Paulo e na SR de Pernambuco, enquanto a CPT atuou em seis estados das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, com destaque para Paraíba e Mato Grosso do Sul. As outras 35 organizações demandantes, associações, fundações, cooperativas e uma pastoral, foram responsáveis por 19% dos cursos e se destacaram por estar, especialmente, onde a CONTAG, o MST e a CPT não atuaram ou pouco atuaram.

Segundo os dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2015), o número de participações individuais e conjuntas de organizações demandantes nas SR do INCRA do Pará, entre 1998 e 2011, foram 138, sendo que, na SR de Belém, foram cinco, e na SR de Marabá e Santarém, foram 17 e 116, respectivamente.

Identifica-se, no estudo dos relatórios do Pronera I/Pronera II, que o princípio da gestão participativa permite que os movimentos sociais e sindicais, em conjunto com as instituições públicas, tenham a oportunidade de renovarem permanentemente a agenda, o conteúdo e as matrizes curriculares junto com a Comissão Pedagógica Nacional (CPN), gerindo as necessidades de desenvolvimento do homem do campo.

A pesquisa documental foi elaborada com base nas experiências desenvolvidas no âmbito do Pronera e na análise de documentos governamentais e outras fontes como: estatísticas oficiais e dados disponíveis em relatórios, processos, memórias de reuniões, seminários e registros de monitoramento dos convênios colhidos junto à coordenação do programa e à SR do INCRA em Belém, além dos movimentos sociais, entidades públicas e as universidades.

Procedimentos Metodológicos

No campo metodológico, optou-se pela pesquisa qualitativa, por possibilitar análise ampliada sobre o tema. Segundo Chizzotti (1991, p. 96), a abordagem qualitativa parte do pressuposto “[...] de uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo do objetivo e a subjetividade do sujeito”.

A princípio, apresenta-se pesquisa documental e revisão de literatura. Na pesquisa documental, no âmbito da coordenação do programa e da SR do INCRA em Belém, dos movimentos sociais, entidades públicas e universidades, destacam-se: Relatório da II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária – junho de 2015; II PNERA, Manual de Operações do Pronera; Relatório de Gestão de 2014 da SR-01; e estudo de todos os documentos, leis e portarias que foram utilizados para a criação e execução do Pronera em todos os órgãos do Governo Federal.

Em relação à revisão de literatura, a principal vantagem é o fato de o pesquisador, na sua análise, poder contar com uma cobertura mais ampla do que ele poderia pesquisar diretamente (Chizzotti, 1991). Nesse sentido, incluíram-se o levantamento de pesquisa (artigos, dissertações e teses), cuja fundamentação teórica se situa no campo da avaliação de políticas públicas (Rocha, 2009), as investigações sobre o desenvolvimento do programa (Azevedo, 2001; Molina, 2012), e a participação da Reforma Agrária por intermédio dos movimentos sociais (Arroyo, 2009; Munarim, 2011; Hage, 2014) e dos princípios da gestão participativa e democrática (Diniz, 2015; Di Pietro, 2004).

Para a pesquisa de campo, foram utilizados os seguintes procedimentos metodológicos: a) observação; b) diário de campo, e c) pesquisa tipo survey. A observação e o diário de campo ocorreram no ano de 2016, período em que foram acompanhadas cinco reuniões, realizadas entre os movimentos sociais e universidades, e reuniões do Conselho Regional da Reforma Agrária do estado do Pará.

A pesquisa tipo survey foi elaborada com perguntas fechadas e abertas, para funcionários do INCRA, na SR de Belém, integrantes da CPN do Pronera e dos movimentos sociais, além de professores universitários envolvidos no Movimento de Educação do Campo.

Entende-se que, dentre o processo de explicitação metodológica, os procedimentos para levantamento de dados referentes ao objeto são fundamentais, tendo em vista o conhecimento mais pormenorizado do contexto e das questões que envolvem o trabalho de pesquisa, “[...] que tem o objetivo de coletar elementos relevantes para o estudo geral ou para a realização de um trabalho em particular” (Severino, 2002, p. 12). Parte-se da importância de o pesquisador comparecer in loco na investigação, para poder elucidar as questões de pesquisa, ou seja, a coleta dos dados “em situação” necessita do complemento de informações obtidas no contato direto do investigador com a situação de análise.

Resultados e Discussão

O Pronera e os movimentos sociais do campo sob os pressupostos da gestão participativa

A avaliação se pautou em um dos princípios que orientam o Pronera em seu conjunto – partici-pação – o que implicou o compromisso de diálogo e negociação com os atores estratégicos do programa – universidades, movimentos sociais do campo e SR do INCRA em Belém – nos limites permitidos pelas restrições de tempo do estudo.

Para uma melhor análise da gestão participativa e do Pronera, foi elaborado um roteiro de perguntas, que foi realizado com seis participantes4, de áreas estratégicas na execução do trabalho do programa, cuja especificidade é apresentada no Quadro 3.

Quadro 3 Identificação dos sujeitos. 

Função Descrição
Professor João Professor universitário
Professora Maria Professor universitário e integrante da Comissão Pedagógica Nacional
Professora Bete Professor universitário, integrante da Comissão Pedagógica Nacional e do Movimento Social
INCRA-Pedro Assegurador do PRONERA no INCRA
INCRA-Jacira Assegurador do PRONERA no INCRA
Líder Mário Coordenador do MST

Fonte: Elaborado pelos autores (2017).Nota: INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; PRONERA: Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.

A pesquisa de campo ocorreu no período de dezembro de 2016 a maio de 2017. Entre as questões fechadas, optou-se por explorar aspectos coletivos, modo de gestão, organização e espaço de participação dos movimentos sociais no programa. No campo subjetivo, os sujeitos puderam expor o que pensam sobre a efetividade da participação no Pronera e a importância da relação com os movimentos sociais. O Quadro 4 apresenta o perfil dos sujeitos participantes.

Quadro 4 Perfil dos sujeitos. 

Função Faixa etária Nível de escolaridade
Professor João 31 a 40 anos Doutorado
Professora Maria Mais de 60 anos Doutorado
Professora Bete Mais de 60 anos Doutorado
INCRA-Pedro 41 a 50 anos Mestrado
INCRA-Jacira 31 a 40 anos Mestrado
Líder Mário 41 a 50 anos Mestrado

Fonte: Elaborado pelos autores (2017).Nota: INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

A participação social no Pronera: o processo de seleção dos projetos

No caso do estado do Pará, por não ter sido ainda criado o Colegiado Estadual, suas SR ficaram impossibilitadas de organizar os fluxos do processo de seleção dos projetos, de forma diferenciada, sendo que todas as propostas de projetos são encaminhadas aos asseguradores do Pronera. Esses asseguradores, por sua vez, após fazerem o estudo de viabilidade econômica e jurídica, encaminham-nas à CPN, para ser dado um parecer sobre a proposta pedagógica e, depois, reencaminham à SR para que, se aprovadas, ser solicitada verba para que o curso seja realizado.

Em relação à organização da seleção das propostas, os sujeitos participantes do estudo – professora Maria, professora Bete, INCRA-Pedro, INCRA-Jaciara e Líder Mário – afirmaram que o Pronera apresenta como espaço institucional a CPN, e o sujeito participante do estudo – professor João – citou ainda o Fórum Paraense de Educação do Campo, por meio do qual, em determinada região, no entendimento dos sujeitos, as demandas dos movimentos sociais se efetivam entre 91% e 100%, em conjunto com a instituição pública. Eles propiciam a discussão e a deliberação sobre os projetos a serem executados pelo programa, e, após essa deliberação, são encaminhados à SR do INCRA que, depois dos trâmites de seleção, encaminha-os à CPN.

Segundo todos os sujeitos participantes do estudo, a elaboração dos projetos pedagógicos dos cursos, que se dá de forma coletiva, com participação e uma relação dialógica entre governo, universidades e movimentos sociais, requer a presença do Estado, no financiamento e na gestão, da universidade, na produção do conhecimento, tecnologia e inovação, e dos movimentos sociais, no controle social e democratização das necessidades dos sujeitos do campo.

A construção da parceria se mostra processual, conforme avaliação de todos os sujeitos participantes do estudo, para aquém ou além da assinatura de convênios. Quando os movimentos buscam as universidades, procuram mediadores, como professores ou alunos com quem têm vínculos de confiança, para elaboração dos projetos. Na aprovação e, ao se firmarem os contratos de trabalho, a relação com novas instituições ainda estará por ser construída.

Nesse sentido, pode-se relacionar essa participação à força dos movimentos sociais e sua articulação com as universidades, conectada ao que Santos (2011) trata, quando afirma que a participação, assegurada pela relação entre movimentos sociais e instituições, possibilita a legitimidade na dinâmica da negociação entre os demandantes; no caso, os movimentos sociais e quem tem condições de atender a tais demandas, como o poder público, mediado pelas instituições de ensino (Santos, 2011).

O Pronera e a gestão participativa na percepção dos sujeitos da pesquisa

Como relatado pelos entrevistados, a existência de um espaço institucional para discussão dos projetos do Pronera torna necessária a participação de todos. Para que isso ocorra, as convocações são realizadas por diversas ferramentas de comunicação (e-mail, reuniões presenciais, redes sociais, blog e sites), de acordo com os sujeitos participantes do estudo, que afirmaram que são ativos nas decisões desse fórum, embora os sujeitos participantes do estudo (professor João, professora Maria, professora Bete, INCRA-Pedro e INCRA-Jacira) tenham afirmado que, em alguns momentos, precisam estar ausentes das reuniões para a tomada de decisões. A esse respeito, Demo (1996) afirma que não é a total presença que estimulará os atores, mas sim o sentimento de pertencimento e a conquista de um espaço de participação, pois, assim, é valorizado.

A capacidade de influenciar nas decisões dos projetos nas SR do Pará é de média força, segundo professora Maria, a professora Bete, o INCRA-Pedro e o Líder Mário, e de nenhuma força, para o professor João e para a INCRA-Jacira, que demonstra, cada vez mais, a necessidade de uma luta contínua de todos para a importância da existência da gestão participativa.

A visão dos sujeitos participantes do estudo sobre o papel dos “movimentos sociais no fortalecimento da gestão participativa do Pronera” revelou que a luta é constante na implementação de políticas públicas para cada movimento com suas diversidades e que o diálogo com os representantes do Estado e a própria existência dos movimentos sociais garante participação de todos nas decisões dos projetos dos cursos para a educação do campo.

Pôde-se verificar que tal importante presença dos movimentos sociais para indicação das ações/projetos do Pronera é fundamental para a existência da educação do campo via Pronera, conforme pôde-se constatar nos depoimentos dos sujeitos participantes do estudo:

O movimento social é fundamental para garantir a concepção e a operacionalidade do curso a partir dos princípios da educação do campo e o fortalecimento dos territórios camponeses

(Professor João, 2017).

A importância se dá no aspecto de indicação da demanda e participação na gestão com o respectivo acompanhamento por parte das lideranças no desenvolvimento do curso

(Professora Maria, 2017).

É vital, é fundamental, porque vivemos em uma sociedade capitalista onde a correlação de forças é desigual e onde os interesses da burguesia do poder constituído, dos imperialistas, dos empresários, do judiciário, do parlamento BBB, da mídia capitalista é muito grande. Quanto mais organizados, mobilizados, mais os movimentos sociais conseguem suas reivindicações

(Professora Bete, 2017).

Os movimentos sociais apresentam as demandas. Em um nível de intensidade tem uma intensidade significativa, orientando na demanda dos cursos

(INCRA-Pedro, 2017).

Os movimentos sociais participam no levantamento das demandas dos projetos e na divulgação dos processos seletivos dos cursos. Em conformidade com a legislação os movimentos sociais só podem indicar as demandas para cursos, isto é, apresentar números que justifiquem cursos em cada modalidade de ensino e a área do conhecimento aprendido

(INCRA-Jacira, 2017).

As falas reforçam a importância da participação para os diversos entes que compõem o processo de seleção dos projetos do Pronera. Observa-se que professores das universidades, pesquisadores da área, sendo alguns integrantes da CPN têm um posicionamento sobre participação diferenciada dos técnicos asseguradores do Pronera. Os professores priorizam a participação como condição para que as demandas dos movimentos sociais sejam, de fato, atendidas, de modo que a gestão participativa, como filosofia de gestão, seja o modus operandi de um programa com caráter social e coletivo. Os técnicos, ao defender que a participação é importante para “levantamento das demandas” em conformidade com a legislação do programa, valem-se, instrumentalmente, da participação, sendo esta mera condição qualitativa.

As relações de parceria através dos movimentos sociais, conforme pode ser constatado pelo depoimento dos sujeitos participantes do estudo, com as quais se sustenta o Pronera, muito importam, pois estabelecem vínculos para além das assinaturas dos convênios, detectando-se menos conflitos quando existe maior proximidade ideológica entre os parceiros.

Na sequência, destacam-se dois grandes desafios para a gestão do Pronera, o primeiro está na transitoriedade de ‘onde’ se orienta a gestão da política sobre o campo, pois, desde os anos de 1980, transita entre Ministérios5. No final dos anos de 1990, os assuntos agrários foram incorporados pelo MDA, criado pela medida provisória n° 1.91112, em 25 de novembro de 19996. Na reconfiguração política do governo Temer, os programas do campo, como o PRONERA, foram transferidos pelo Decreto n° 8.780 de maio de 2016 para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, vinculado à Casa Civil da Presidência da República, substituindo o antigo MDA.

Tal fato repercute no segundo desafio, que diz respeito aos recursos para os projetos, pois, à medida que há mudanças na gestão e na organização do programa, observa-se uma repercussão nos recursos para sua execução. Nesse sentido, Carvalho (2017), em notícia sobre os recursos para a educação do campo, apresentou a fala da professora Clarice Santos, da Universidade de Brasília, representante do Fórum Nacional do Campo, que destaca: “[...] o orçamento de 2017 para manutenção do Pronera é de 17 milhões, mas para 2018 é de apenas 3 milhões. Isso é o fim do Pronera” (Santos, 2011, online).

Além disso, essa situação compromete a construção de uma gestão democrática e participativa, seja na busca de um modelo em que Estado e sociedade sejam partes constitutivas do processo de definição de políticas públicas, seja na manutenção de parcerias e cogestão entre universidades e movimentos sociais, pois a redução dos recursos pelo MEC forçaria a desarticulação da manutenção dos mais de 40 cursos voltados à educação no campo e implementados por 38 universidades junto ao programa.

Entende-se que há a implementação de um processo participativo muito mais conectado com a filosofia e histórico de participação dos movimentos sociais do que um processo de gestão participativa propriamente dita, que significa a participação social dentro do Pronera. Esse programa se coloca também como espaço de resistência das minorias, conforme é possível observar na recente Carta-Manifesto dos movimentos sociais, em comemoração aos 20 anos da educação do campo e do Pronera, em 15 de junho de 2018:

A suspensão da política de Reforma Agrária, a prioridade da política de titulação e consolidação de assentamentos, o desmonte da política de assistência técnica, as medidas que sinalizam a redução das áreas quilombolas e indígenas demarcadas, a permissão para aquisição de terras por estrangeiros revelam-se em favor da expansão do agronegócio, impedindo um projeto de desenvolvimento comprometido com a soberania alimentar da população brasileira e impondo o acirramento das históricas estatísticas de violência, em todas as suas formas

(Fórum Nacional de Educação do Campo, 2010, p. 2).

O Fórum Nacional defende o Projeto Popular para o Brasil, bottom up, que visa a fortalecer a economia nacional, o desenvolvimento autônomo e o enfrentamento das desigualdades. Nesse sentido, aponta-se a necessidade de:

Avançar com os princípios da Educação do Campo nas escolas do campo e na formação de educadores. Na construção de uma escola ligada à produção e reprodução da vida, que tome o trabalho socialmente produtivo, a luta social, a organização coletiva, a cultura e a história como matrizes organizadoras do processo formativo, com participação da comunidade e auto-organização de educandos e educandas, e de educadores e educadoras

(Fórum Nacional de Educação do Campo, 2010, p. 4, grifos do autor).

Nessa vertente, mesmo que o Pronera conte com espaços de participação sistematizados pelo Estado, o qual exerce determinado controle sobre o referido programa, é possível inferir que o processo decisório da seleção e a organização dos cursos levados aos assentamentos se consolidam como espaço de resistência e de reinvindicação dos movimentos sociais, que têm a escola como campo de formação e de luta, na qual se pode desenvolver práticas estratégicas em processos de cogestão.

A cogestão, outro aprendizado necessário à gestão pública, pode ser entendida como uma forma alternativa de gestão iniciada na década de 1980, quando a participação é firmada como um produto da coprodução (Borgo, 2011).

Na concepção de Carlsson e Berkes (2003), a cogestão pode ser entendida como a criação de uma arena formal de cooperação. É um processo complexo, pois são várias as partes envolvidas que, geralmente, têm interesses distintos, sendo um desafio encontrar um consenso entre elas. A cogestão se coaduna com preceitos que envolvem, quase sempre, a necessidade de pluralidade de participantes e um planejamento consistente em um processo inclusivo que, ao mesmo tempo, respeita a autonomia de pensamento dos participantes, visando sempre ao bem comum. Esses valores são apresentados por Tenório (2005), quando de processos de gestão social, em relação aos quais a gestão da escola pública brasileira ainda encontra resistências e desafios a serem superados.

Considerações Finais

A execução dos projetos no estado do Pará revelou limites dos espaços de participação e deliberação, principalmente no que tange à dificuldade de partilhar o poder decisório, embora não se possa negar que o programa no estado teve o mérito de efetivar a articulação dos movimentos sociais, universidade e o Governo Federal para colocar em prática suas implantações.

A parceria vivenciada pelos sujeitos participantes do estudo identifica relações determinantes entre um projeto financiado pelo Estado, pelas universidades, por meio de seus professores-pesquisadores, e pelos movimentos sociais, configurando-se inter-relações complexas, pois essas são pautadas pela execução de projetos de médio e longo prazo que visam, de modo geral, ampliar o acesso das comunidades e assentamentos amparados pela política de Reforma Agrária no Brasil.

As falas dos referidos sujeitos constituíram um aprendizado para todos em relação à vivência dos conflitos, à delimitação de papéis e funções e aos confrontos de saberes sociais e conhecimentos sistematizados. Constata-se que o Pronera é uma política pública em construção, reforçando-se que a relação entre a sociedade civil e o Estado, instituída neste processo, é fundamental para a efetivação da democracia, tanto pela garantia do direito à educação quanto pela ampliação da esfera pública estatal, constituída pela participação dos movimentos sociais na gestão da política.

Observou-se que os sujeitos da pesquisa estão aptos a intervir nos processos de discussão e deliberação dos interesses dos assentamentos e que o fazem com parcerias interinstitucionais, que caracterizam exercícios de ‘produção conjunta’ ou cogestão, especialmente entre universidades e movimentos sociais; porém, enfrentam diversos desafios na configuração das políticas sociais no país, que impactam imediatamente os recursos dos projetos e o desenvolvimento de uma política de Estado para educação no campo e a Reforma Agrária.

O exercício da gestão participativa, apresentado no estado do Pará, mostrou que a gestão, que preconiza o envolvimento dos atores e suas demandas, está em constante transformação. Embora os documentos analisados neste estudo demonstrem uma preocupação constante em relação à atuação colaborativa do programa com os atores do campo e sua expansão, desde 1998, pôde-se identificar duas dimensões contraditórias.

Por fim, entende-se que este estudo colabora com a produção de conhecimento existente sobre o campo e a educação do campo, especialmente aquela voltada para a gestão, por pontuar a possibilidade de se pensar que as inter-relações entre os movimentos sociais e o Estado podem ser efetivadas com o modelo de gestão que priorize a coletividade e a democracia, possibilitando o ‘empoderamento’ decisório das organizações e movimentos sociais do campo, como a gestão participativa.

A participação da sociedade civil está mesmo delineando novas tendências na gestão das políticas públicas? Tal questão indica a necessidade de discussão sobre a gestão participativa na sociedade brasileira, o que significa compreender até onde se pode falar em constituição de novas formas de gestão das políticas públicas no Brasil como resultado dos encontros e desencontros na relação entre Estado e sociedade civil.

Nessa perspectiva, é necessário repensar as políticas públicas, considerando alguns pressupostos fundamentais: envolvimento dos diferentes atores sociais na definição das prioridades sociais; utilização de metodologias cujos desenhos e efeitos sistêmicos gerem impactos na realidade socioeconômica, política e cultural; busca de eficiência e eficácia na utilização dos gastos públicos; revitalização e fortalecimento da função social do Estado, a partir de uma maior capilaridade desse em relação à participação da sociedade civil; e delineamento de mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação dos resultados das políticas públicas.

4Para manter o anonimato dos participantes, optamos em usar nomes fictícios.

5Em 1982, houve a primeira organização com o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, criado pelo Decreto nº 87.457. Logo depois, em 1985, repassaram-se as atividades para o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, que, em 1990, é incorporado pelo Ministério da Agricultura.

6Em maio de 2016, a medida provisória nº 726 (convertida na Lei nº 13.341, de 29 de setembro de 2016), extingue o Ministério do Desenvolvimento Agrário e transfere suas competências para o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (Brasil, 2016b).

Artigo elaborado a partir da dissertação de M. G. MELO, intitulada “Movimentos Sociais na Educação do Campo: Estudo Sobre Gestão Participativa no PRONERA”, Universidade da Amazônia, 2017.

Como citar este artigo/How to cite this article

Mello, M. G. et al. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária: uma reflexão no âmbito das políticas de formação de educadores. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 27, e225353, 2022. https://doi.org/10.24220/2318-0870v27e2022a5353

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Recebido: 22 de Abril de 2021; Revisado: 23 de Março de 2022; Aceito: 27 de Setembro de 2022

Correspondência para/Correspondence to: R.M.S. CASTRO.E-mail: rosecelia.castro@unama.br.

Colaboradores

M. G. MELLO e L. R. FERREIRA contribuíram para, a concepção e desenho, análise dos dados, interpretação, redação, revisão e aprovação da versão final do artigo. R. M. S. CASTRO e S. F. SANTOS contribuíram para análise dos dados, interpretação dos dados, redação, revisão e aprovação da versão final do artigo.

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