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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a6454 

Artigos

O lugar da cultura na formação inicial de professores de Química no norte do Brasil

The place of culture in the initial training of Chemistry teachers in Northern Brazil

David Alan Araújo de Jesus1 
http://orcid.org/0000-0002-6990-5524

Josias Martins dos Anjos Cruz1 
http://orcid.org/0000-0002-1293-7234

Maria Lúcia Tinoco Pacheco2 
http://orcid.org/0000-0003-1651-0219

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Campus Manaus Centro, Departamento Acadêmico de Educação Básica e Formação de professores. Manaus, AM, Brasil.

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Campus Manaus Centro. Manaus, AM, Brasil.


Resumo

O presente artigo propõe-se a analisar os projetos pedagógicos dos cursos de formação de professores de Química das Instituições Federais de Ensino Superior presentes na região norte brasileira a fim de identificar se os conteúdos referentes à cultura, previstos nas diretrizes para formação de professores, estão sendo incluídos nas propostas curriculares. Os documentos referidos foram obtidos nos sites das Instituições e via e-mail. Para análise dos dados utilizou-se a técnica de divisão em unidades temáticas. Na presente pesquisa constatou-se que os aspectos culturais, em termos gerais, estão sendo incluídos nas matrizes curriculares. Em especial, há a abordagem generalizada da cultura e questões étnicas em detrimento da relação entre os conhecimentos tradicionais amazônicos/indígenas e os científicos. Pouco se valoriza a cultura amazônica nos documentos analisados, o que distancia os debates científico-culturais propícios à significação do ensino de Química. Nesse sentido, é urgente repensar os currículos dos cursos de formação inicial de professores de Química, de modo a contribuir não apenas com a aprendizagem científica, mas também com a valorização dos conhecimentos tradicionais.

Palavras-chave: Currículo; Educação; Formação de professores; Multiculturalidade

Abstract

The present article analyzes the pedagogical political projects of the Chemistry teacher training courses of the federal institutions of Higher Education in Northern Brazil. It seeks to identify whether culture-related contents that compose the guidelines for teacher training are currently included in the curricular proposals. The courses’ political-pedagogical projects were obtained from the institutions’ websites and via e-mail. Data analysis proceeded from a division into thematic units. We found that cultural aspects, in general terms, are currently included in the curricular matrices. In particular, there is a generalized approach to cultural and ethnic issues to the detriment of the relationship between traditional Amazonian/indigenous knowledge and scientific knowledge. Little value is given to the Amazonian culture in the analyzed documents, which distances the scientific-cultural debates favorable to the meaning of Chemistry teaching. Thus, it is urgent to rethink the described curricula, so as to contribute not only to scientific learning, but also to the valorization of traditional knowledge.

Keywords: Curriculum; Education; Teacher training; Multiculturality

Introdução

A Química, no campo educacional, é uma disciplina escolar considerada“muito difícil” por grande parte dos estudantes, e, por vezes, sua aprendizagem parece irrelevante, já que seu estudo em sala de aula se afasta do contexto em que estão imersos os alunos. Esse problema, apontado já nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, não é atual, tampouco restrito a um espaço (Brasil, 2008).

Supõe-se que esse quadro persista dada a ressonância ainda de um modelo de ensino tradicional que desvincula as disciplinas escolares, em especial, a Química, da realidade em que se encontram os estudantes, limitando seu aprendizado à memorização de leis e conceitos científicos (Lima, 2012).

A Química, enquanto ciência, surge com a premissa de auxiliar no processo de compreensão da natureza. No entanto, essa ideia não é mantida em muitas práticas docentes. Para Cardoso e Colinvaux (2000), no ensino de Química falta correlação entre os conceitos científicos e os fenômenos cotidianos, o que compromete diretamente o aprendizado significativo dessa ciência. Possivelmente, isso explica a pouca importância dada a ela pelos estudantes, conforme destacado anteriormente. Também se observa essa situação na Região Norte do país, e, visto por outro prisma, isso parece muito incoerente, uma vez que o Brasil – e, em especial, o Norte – é rico em diversidade cultural.

O que se evidencia é que os estudantes possuem contato direto com a Química, através dos conhecimentos provindos de sua cultura, porém, por vezes, esse conhecimento não é retomado sob o viés científico. Estabelecer essa relação entre o saber científico e o cultural no contexto do ensino de Química pode possibilitar um aprendizado significativo (Candau, 2002; Duarte; Werneck; Cardoso, 2013; Moreira; Candau, 2003).

Bourdieu (1996), ao falar do capital cultural, ressalta a cultura como um conhecimento poderoso. Conforme Duarte, Werneck e Cardoso (2013), a necessidade da interação escola-cultura se dá pelo fato de que a escola é uma das responsáveis pela propagação da cultura. Para esses autores, a educação e a cultura são duas faces complementares e dependentes uma da outra.

Neste sentido pode dizer perfeitamente que a cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e sua justificação última: a educação não é nada fora da cultura e sem ela. Mas, reciprocamente, dir-se-á que é pela e na educação, através do trabalho paciente e continuamente recomeçado de uma ‘tradição docente’ que a cultura se transmite e se perpetua: a educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa necessária de continuidade humana. (Forquin, 1993, p. 14).

Moreira e Candau (2003, p. 159) também enfatizam que “[...] A problemática das relações entre escola e cultura é inerente a todo processo educativo. Não há educação que não esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histórico em que se situa”. Indo além, compreende-se que, no contexto amazônico, há uma intrínseca relação entre a cultura e a ciência Química.

Os documentos nacionais norteadores do ensino de Química na educação básica – os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (Brasil, 2000), em que se observam orientações pedagógicas, seguido das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Brasil, 2013), que trazem a obrigatoriedade dos conteúdos mínimos a serem estudados, e chegando-se à Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (Brasil, 2017a), em que se apontam as aprendizagens essenciais –, todos, a seu tempo, sublinham a importância dos aspectos culturais na educação escolar.

Entende-se, pelo exposto, que o trabalho com o elemento da cultura na sala de aula, conforme previsto pelos documentos referidos, articula-se fundamentalmente à formação inicial que prepara o professor para o exercício da docência. Em outras palavras, para que isso seja possível, é necessário haver mudanças nos cursos de formação de professores de modo a atender a essas necessidades que estão postas no seu fazer pedagógico (Mello, 2000).

Os professores de Química, dada a perspectiva, poderiam propor um ensino que possibilitasse aos alunos a redução da distância entre a vida cotidiana e a própria Química, utilizando-se, para isso, da cultura, em conformidade com o ensino proposto por Mortimer (1997).

Segundo a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (Brasil, 2018, p. 124), aos professores em exercício, em parceria com as instituições de ensino, é incumbida a responsabilidade de:

[...] Selecionar e aplicar metodologias e estratégias didático-pedagógicas diversificadas, recorrendo a ritmos diferenciados e a conteúdos complementares, se necessário, para trabalhar com as necessidades de diferentes grupos de alunos, suas famílias e cultura de origem, suas comunidades, seus grupos de socialização, etc.

Observa-se que, para o bom desenvolvimento das referidas responsabilidades durante a atividade docente, é necessário que o professor seja orientado, no espaço acadêmico, sobre essas responsabilidades ainda durante sua formação inicial, por meio de um currículo que permita ao aluno- professor uma imersão em contextos inclusivos e multiculturais, e, sendo a cultura e tudo que dela faz parte (aspectos, contextos, sujeitos) objeto do currículo dos educandos da educação básica, no mesmo sentido, ela também é prevista na formação inicial docente desde 2002.

A Resolução CNE/CP-1, de 18 de fevereiro de 2002 (Brasil, 2002a), que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível superior, em licenciatura de graduação plena, orientou as instituições formadoras para a inclusão do tema da cultura no projeto pedagógico dos cursos a partir de então.

Vigente até 2015, o documento assinala, em vários de seus artigos, a questão da cultura. Dentre esses, destaca-se o Art. 6º, o qual aponta, na construção da proposta do projeto pedagógico dos cursos de formação dos docentes, a necessidade de se observar as diferentes competências a serem desenvolvidas durante o processo formativo, definidas a partir de um conjunto de conhecimentos.

§ 3º A definição dos conhecimentos exigidos para a constituição de competências deverá, além da formação específica relacionada às diferentes etapas da educação básica, propiciar a inserção no debate contemporâneo mais amplo, envolvendo questões culturais, sociais, econômicas e o conhecimento sobre o desenvolvimento humano e a própria docência, contemplando: I - cultura geral e profissional; II - conhecimentos sobre crianças, adolescentes, jovens e adultos, aí incluídas as especificidades dos alunos com necessidades educacionais especiais e as das comunidades indígenas; III - conhecimento sobre dimensão cultural, social, política e econômica da educação [...] (Brasil, 2002a, p. 3).

Observa-se que no terceiro parágrafo do referido artigo fica explícita a importância das questões culturais no currículo na sala de aula, tendo essa que se articular antes à docência, no processo de formação inicial do futuro professor, para adentrar o espaço de sua prática em outro momento.

Também a Resolução CNE/CP-2, de 1º de julho de 2015 (Brasil, 2015), que veio em seguida e abrangeu tanto a formação inicial quanto a formação continuada, definindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores na Educação Básica até 2019, reiterou a importância do trabalho pedagógico com o tema da cultura já em seu preâmbulo. Esse documento destacou que:

[...] a realidade concreta dos sujeitos que dão vida ao currículo e às instituições de educação básica, sua organização e gestão, os projetos de formação, devem ser contextualizados no espaço e no tempo e atentos às características das crianças, adolescentes, jovens e adultos que justificam e instituem a vida da/e na escola, bem como possibilitar a reflexão sobre as relações entre a vida, o conhecimento, a cultura, o profissional do magistério, o estudante e a instituição [...] (Brasil, 2015, p. 1)

Mais abrangente e propositivo no que se refere às mudanças sócio-históricas que vinham ocorrendo no país desde 2000, o documento supracitado orienta que os projetos formativos para professores, construído de forma articulada entre os sistemas de educação superior e educação básica, contemplem, entre outras demandas, a aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais, as questões socioambientais, éticas, estéticas e relativas à diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional e sociocultural como princípios de equidade (Brasil, 2015).

O documento Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de professores para a Educação Básica, Base Nacional Comum para Formação Inicial, atualmente em processo de consolidação, reitera que os licenciandos devem ser capacitados a articular os contextos culturais, propiciando uma aprendizagem significativa àqueles com os quais se vai trabalhar (Brasil, 2019). Nesse sentido, apropriar- se do tema da cultura, preconizado desde as normativas de 2002, apresenta-se como essencial para o fazer pedagógico.

Conforme afirma Schnetzler (2002), há a fantasia de que o conhecimento científico não possui relação com o contexto cultural dos estudantes. Para romper com essas ideias apresentadas pelos alunos, é preciso fornecer, aos professores em formação, subsídios necessários para que eles possam adequar suas práticas e garantir, assim, as mudanças esperadas.

Para Gatti (2016), a qualidade formativa de professores está associada à imersão da educação na cultura. Deve haver uma conexão entre o homem e a realidade cultural onde ele está inserido. Moreira (2001), por sua vez, considera que há a necessidade de se pensar um currículo para formação de professores em que sejam apontados os aspectos multiculturais nas dimensões contemporâneas. Devem ser consideradas práticas curriculares que possibilitem ao docente em formação respeitar, valorizar e incorporar fatores culturais em suas ações.

De acordo com Bank (1994) apud Candau (2002), há várias formas possíveis de se abordar a cultura no contexto escolar, sendo as principais relacionadas à questão étnico-racial, linguagem, diferença cultural, entre outras. Porém, essas questões muitas vezes são deixadas de lado, ocasionando a desvalorização dos conhecimentos culturalmente construídos, os quais poderiam ser utilizados como um ponto de apoio para a apresentação de conceitos científicos.

Salienta-se que, diante das várias faces da cultura, neste trabalho pretende-se enfatizá-la representando os conhecimentos tradicionais de comunidades da região amazônica. Entretanto, os demais aspectos não serão desconsiderados.

Para se compreender o lugar da cultura na formação inicial, é necessário analisar se os licenciandos em Química estão sendo submetidos a momentos, durante sua formação, que possibilitem a eles um olhar sobre as questões culturais em sua prática enquanto professores de Química. É essencial investigar as raízes da formação dos professores de Química verificando como estão estruturados os cursos responsáveis por esses profissionais na região norte.

Tomando isso como base, o presente estudo propõe-se a estudar os projetos pedagógicos – dos cursos de formação de professores de Química (PPC) das instituições federais de ensino presentes na Região Norte brasileira, com recorte nas matrizes curriculares, objetivando identificar se os conteúdos referentes à cultura, previstos desde a Resolução CNE/CP-1, de 18 de fevereiro de 2002 (Brasil, 2002a), foram incluídos nas propostas curriculares apresentadas, dado o marco histórico estabelecido, e apontar quais, dentre eles, – estão sendo priorizados por essas instituições.

Procedimentos Metodológicos

Este trabalho configura-se como pesquisa documental, de natureza qualitativa e quantitativa, em que foram utilizadas as concepções de Moraes (1999) para análise de conteúdo, em uma perspectiva semelhante àquela utilizada por Vitor, Maistro e Zômpero (2020). Os dados foram coletados em ementários das matrizes curriculares presentes nos projetos pedagógicos de cursos ofertados pelas instituições federais de ensino existentes nos estados que compõem a Região Norte.

Em virtude dos objetivos propostos, os dados foram levantados via Sistema e-MEC, “[...] um sistema eletrônico de fluxo de trabalho e gerenciamento de informações relativas aos processos de regulação, avaliação e supervisão da educação superior no sistema federal de ensino” (Brasil, 2017b, p. 29), no qual foram identificados os cursos de Química ofertados por Instituições de Ensino Superior. Os cursos foram selecionados considerando-se os seguintes critérios: (I) deveria ser ofertado por uma instituição federal da Região Norte; (II) deveria apresentar o termo “Química” na extensão de sua nomenclatura e grau acadêmico igual a “Licenciatura”; (III) a situação do curso deveria ser igual a “em atividade”; isso é, “[...] Curso que foi regularmente autorizado, teve oferta efetiva iniciada e está com turmas em funcionamento ou com oferta interrompida por menos de dois anos” (Brasil, 2017b, p. 32).

A partir dos critérios estabelecidos, foram identificados 25 cursos, denominados: Licenciatura em Química; Licenciatura em Ciências – Química e Biologia e Licenciatura Integrada em Biologia e Química, todos vinculados a 16 Instituições de Ensino Superior da Região Norte, sendo 6 ofertados por institutos federais e 10 por universidades federais, tanto na modalidade presencial ou à distância.

Definidos os cursos em conformidade com os critérios supracitados, deu-se início à pesquisa documental a fim de se construir o acervo para análise. Assim, passou-se à coleta dos projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura em Química nos endereços eletrônicos das instituições de ensino. Frisa-se que, dos 25 cursos identificados, conseguiu-se, por meio do site, acesso a apenas 18 PPC. Para obter o máximo de documentos possíveis, unidades e departamentos responsáveis pelos cursos foram contactados via e-mail disponibilizado no site institucional. Entretanto, das oito instituições contatadas, somente uma respondeu. Desse modo, a amostra desta pesquisa totalizou 19 documentos.

Conforme Moraes (1999), faz-se necessário preparar os dados para análise por meio da seleção dos arquivos realmente pertinentes aos objetivos da pesquisa, os quais foram codificados a fim de serem identificados rapidamente durante a análise. Considerando, portanto, o objetivo do estudo proposto, tomou-se como amostra, conforme Quadro 1, um total de 19 cursos, distribuídos em 15 instituições.

Para codificação dos documentos analisados, conforme Quadro 1, foram utilizados os seguintes critérios: (I) as instituições foram organizadas por ordem alfabética. Ainda, em caso de cursos ofertados pela mesma instituição, levou-se em consideração também a ordem alfabética dos locais de oferta; (II) cada curso recebeu um algarismo arábico de 1 a 19; (III) manteve-se a sigla oficial conforme consta no sistema e-MEC. O número arábico atribuído a cada curso foi inserido após a sigla, separado por hífen.

Quadro 1 – Cursos selecionados para participação na pesquisa. 

Código Instituições de Ensino Superior Licenciatura (em) Município Ano do PPC
UNIR-1 Fundação Universidade Federal de Rondônia Química Porto Velho 2018
UFT-2 Fundação Universidade Federal do Tocantins Química Araguaína 2009
UFT-3 Fundação Universidade Federal do Tocantins Química EAD 2009
IFRO-4 Instituto Federal de Rondônia Ciências – Química/Biologia Guajará-Mirim 2017
IFRO-5 Instituto Federal de Rondônia Química Xapuri 2019
IFAC-6 Instituto Federal do Acre Química Ji-Paraná 2009
IFAP-7 Instituto Federal do Amapá Química Macapá 2011
IFAM-8 Instituto Federal do Amazonas Química Manaus 2019
IFPA-9 Instituto Federal do Pará Química Belém 2016
IFTO-10 Instituto Federal do Tocantins Química Paraíso do Tocantins 2016
UFRR-11 Universidade Federal de Roraima Química Boa Vista 2018
UFAC-12 Universidade Federal do Acre Química Rio Branco 2019
UNIFAP-13 Universidade Federal do Amapá Química Macapá 2014
UFAM-14 Universidade Federal do Amazonas Ciências – Química/Biologia Itacoatiara 2009
UFAM-15 Universidade Federal do Amazonas Química Manaus 2016
UFOPA-16 Universidade Federal do Oeste do Pará Integrada em Biologia e Química Santarém 2017
UFPA-17 Universidade Federal do Pará Química Ananindeua 2017
UFPA-18 Universidade Federal do Pará Química EAD 2006
UNIFESSPA-19 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará Química Marabá 2010

Após a codificação dos cursos, iniciou-se a definição das unidades temáticas conforme as orientações de Moraes (1999). Uma leitura cuidadosa do documento como um todo foi realizada a fim de identificar fragmentos que apresentavam o termo cultura em quaisquer das dimensões do ementário, desconsiderando apenas aqueles que faziam menção à cultura linguística estrangeira ou a aspectos biológicos (meios de cultura), uma vez que não eram pertinentes à pesquisa.

Com base nesses fragmentos, foram estabelecidas as unidades temáticas, organizadas por disciplinas, apresentadas a seguir:

    (I). Menção à cultura em geral – Contempla as disciplinas que abordam a cultura sem muitas delimitações, tratando-a em sua generalidade ou fazendo associação com algum aspecto não apresentado nas unidades temáticas seguintes, como: conceito antropológico de cultura; cultura e ética; cultura e relações de poder; multiculturalidade; cultura da paz; diversidade sociocultural; história cultural.

    (II). Aspectos étnico-raciais – Refere-se às disciplinas que apresentam em sua ementa algum fragmento relacionado às temáticas étnico-raciais; história e cultura afro-brasileira e/ou africana.

    (III). Cultura, comunicação e linguagem – Faz referência às disciplinas cuja ementa contempla a cultura e sua relação com os aspectos linguísticos e/ou o processo de comunicação, abrangendo também a cultura surda e a cultura digital.

    (IV). Cultura, escola, educação e currículo – Refere-se às disciplinas nas quais são apresentadas as interfaces entre cultura e as temáticas escola, educação e/ou currículo.

    (V). Cultura amazônica/indígena – Abrange as disciplinas cujos fragmentos apresentam algo referente à cultura dos povos/comunidades amazônicas ou indígenas.

    (VI). Química e cultura – Envolve as disciplinas cujos fragmentos do ementário direcionam à relação entre a ciência Química e os aspectos/saberes tradicionais.

Resultados e Discussão

Em geral, os Projetos Pedagógicos de Curso analisados alertam para a necessidade de os discentes perceberem a Química como uma construção humana, relacionada ao contexto cultural. Entretanto, realizando-se a leitura das ementas a fim de identificar como a questão da cultura era apresentada, notou-se que o termo cultura assume várias vertentes, de acordo com as disciplinas, e concorre para a definição das unidades temáticas. Assim, cada unidade contabiliza e organiza as disciplinas com a frequência demonstrada na Tabela 1.

Tabela 1 – Relação quantitativa das disciplinas em cada unidade temática por instituição. 

Código Menção à Cultura Aspectos Étnico-Raciais Cultura, Linguagem e Comunicação Cultura, Escola, Educação e Currículo Cultura Amazônica ou Indígena Química e Cultura
UNIR-1 ø 1 1 1 ø 2
UFT-2 ø ø 1 2 ø ø
UFT-3 2 ø ø 1 ø ø
IFRO-4 4 2 3 2 1 ø
IFRO-5 1 1 1 1 ø 1
IFAC-6 1 1 1 2 ø ø
IFAP-7 2 ø 2 ø ø 1
IFAM-8 1 1 1 1 ø ø
IFPA-9 1 3 1 1 1 ø
IFTO-10 1 10 2 1 6 1
UFRR-11 ø ø ø 3 ø ø
UFAC-12 1 2 ø ø 1 1
UNIFAP-13 1 1 1 ø 1 ø
UFAM-14 1 ø ø ø ø ø
UFAM-15 2 1 1 ø ø 1
UFOPA-16 3 1 1 1 3 ø
UFPA-17 2 ø ø ø ø 1
UFPA-18 1 ø ø ø ø 1
UNIFESSPA-19 ø ø ø ø ø 1
Total 24 24 16 16 13 10

Constatou-se que os aspectos culturais estão sendo incluídos nas matrizes curriculares dos cursos de Licenciatura em Química de forma bastante heterogênea. De modo geral, faz-se uma abordagem generalizada da cultura e das questões étnicas em detrimento da relação entre os conhecimentos tradicionais amazônicos/indígenas e a Química. Porém, nem todas as instituições estão totalmente alinhadas a esse cenário. Conforme se pode observar, as temáticas mais abordadas dizem respeito à cultura em sua generalidade (menção à cultura) e aos aspectos étnico-raciais, sendo ambas contempladas em 24 disciplinas.

Com o objetivo de identificar o que é estudado em cada uma das temáticas mais frequentes, o Quadro 2 traz alguns dos fragmentos das disciplinas que abordam as unidades temáticas I – Menção à cultura e II – Aspectos étnico-raciais.

Quadro 2 – Fragmentos dos documentos que abrangem as unidades temáticas I e II. 

Unidade Temática Fragmento
Menção à cultura Multiculturalidade, diversidade [...] (IFRO-4); [...] cultura da paz (UFT-3); Identidade, diferença e diversidade sociocultural (IFRO-4); Estudos conceituais sobre a cultura [...]. A diversidade cultural [...] (IFRO-5); [...] interpretar e de usufruir das produções da cultura (IFAP-7); Cultura e ética; Cultura e relações de poder; O conceito de diversidade [...] (IFPA-9); A construção da identidade profissional: relações de gênero, classe e as representações socioculturais da profissão (UFAC-12); História Cultural (UFAM-14); Psicologia da Aprendizagem: aspectos históricos e socioculturais [...] (UFAM-15); Sociedade, cultura [...] (UFOPA-16); Cultura: seu conceito antropológico. Antecedentes sócio-culturais de uma comunidade científica (UFPA-18).
Aspectos étnico-raciais

Identidades dos sujeitos da escola: [...] etnia (IFRO-5); Educação para as relações étnico-raciais (IFAC-6); A Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (IFAM-8); Estudo da história e cultura afro-brasileira [...] (IFPA-9); Bases Legais da Educação para Relações Etnicorraciais; Termos comumente usados nas questões etnicorraciais; Formação Inicial e continuada de professores para Educação para Relações Etnicorraciais; Intervenção Pedagógica da Educação para Relações Etnicorraciais na Educação Básica (IFPA-9); Discussões sobre cultura [...] afro-brasileira (IFTO-10); Inserção na prática educativa, com ênfase na história e cultura afro-brasileira, africana [...] (IFTO-10); Sociedades tradicionais acreanas e relações étnico-raciais e ensino de história e cultua afro-brasileira [...] (UFAC-12).

A inclusão da cultura nos currículos de formação de professores é relevante para o processo de formação desses profissionais, pois possibilita seu enriquecimento cultural (Dias, 2015). Além disso, essa inclusão pode ter como desdobramento a adoção de práticas pedagógicas centradas nesse aspecto, contribuindo para o acolhimento da diferença.

Os fragmentos relacionados na unidade I, por exemplo, auxiliam o futuro professor na organização de sua prática em conformidade com o disposto na Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, no que diz respeito ao trabalho com temas como cultura da paz, interculturalidade, aspectos socioculturais, diversidade cultural, manifestações culturais, divulgação da cultura etc. (Brasil, 1996).

Santos (2004) apresenta a diversidade cultural como essencial na formação de professores, pois constitui uma imersão na realidade em que ele se encontra, possibilitando ao docente a aquisição de um repertório acerca da cultura que o rodeia, e “[...] Quanto maior o repertório, maior a possibilidade de estabelecer diálogo com as ‘coisas do mundo’ [...]” (Ostetto, 2011, p. 4).

Quanto às relações étnico-raciais, a importância de sua inclusão na formação de professores parece ainda mais clara, uma vez que o Art. 1° da Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assevera que essas diretrizes devem ser “[..] observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores” (Brasil, 2004, p. 11).

Ainda que se observe nos documentos uma predominância de disciplinas sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana, é certo também que a cultura indígena, em atendimento à Lei nº 11.645/08, bem como o estudo das populações tradicionais, já ocupam espaços nas formações ofertadas, o que poderá implicar futuramente em mudanças atitudinais em prol de uma educação antirracista para além da sala de aula.

Desse modo, a abordagem desses conteúdos revela-se essencial no processo de formação, fornecendo subsídios que auxiliam o futuro educador em sua prática, em conformidade com as orientações curriculares para o ensino médio, contribuindo, entre outras coisas, tanto para o exercício do respeito e da empatia quanto para o trabalho com etnometodologias no ensino que atendam o público diverso.

Dando sequência às apresentações das unidades definidas, o Quadro 3 sintetiza alguns fragmentos das unidades temáticas III – Cultura, linguagem e comunicação e IV – Cultura, escola, educação e currículo.

Quadro 3 – Fragmentos dos documentos que abrangem as unidades temáticas III e IV. 

Unidade Temática Fragmento
Cultura, linguagem e comunicação Cibercultura [...] (IFRO-4); Relação entre língua, cultura e sociedade (IFAC-6); Cultura e identidade surda (IFAM-8); Estimular o reconhecimento e o respeito à diversidade linguística, com base na percepção dos fatores socioculturais (IFAP-7); Compreender os aspectos da Língua Brasileira de Sinais Libras e suas manifestações histórico-culturais (IFAP-7); Cultura Surda (UFAM-15).
Cultura, escola, educação e currículo Contextualização, interdisciplinaridade, cultura e currículo (UNIR-1); Currículo na perspectiva global e local, em seu contexto histórico, cultural e social (UFT-2); Educação e cultura (IFAC-6); Currículo e cultura (IFAC-6); Sociedade, cultura e educação (IFAM-8); Currículo: ideologia, cultura e poder (UFRR- 11); Cultura e educação no mundo contemporâneo (UFRR-11).

A comunicação é fundamental em toda a sociedade, vindo a ser considerada como a mais universal forma de cultura, portanto não é com surpresa que a unidade temática III seja abordada em 16 disciplinas (Coseriu,1997). Ressalta-se que essa unidade, cujo eixo é a cultura, preocupa-se com a relação que é estabelecida com a linguagem e a comunicação no contexto da Química, e, por esse motivo, não se ocupa do estudo específico de uma língua.

Nos fragmentos destacados dos documentos de 2009, 2011, 2017 e 2019, observa-se o atendimento das questões linguísticas voltadas principalmente para o uso da Língua Brasileira de Sinais, reconhecida pela Lei nº 10.436/2002 (Brasil, 2002b) e instituída pelo Decreto 5.626/2005 (Brasil, 2005). Esse fato só reforça a importância da linguagem no campo sociocultural como um marcador de identidades bem no espaço que ela passa a ocupar no cenário do país, do qual faz parte o sistema educacional brasileiro.

Prevista como componente curricular desde 2005, a Língua Brasileira de Sinais aponta para a entrada de uma população específica na escola pública que, de antemão, possui um jeito singular de aprender, o que implica, para além da necessidade de um profissional de apoio durante as aulas, o tradutor-intérprete, também em mudanças no professorado quanto à dinâmica comunicacional e metodologia de ensino. Lavor e Tinoco Pacheco (2022) propõem aos docentes refletirem sobre a adoção de uma didática visual quanto às aulas e produção de material no que se refere ao estudante surdo, dado que sua aprendizagem se dá por meio do campo visuoespacial.

Decerto, a linguagem exerce um papel essencial nas comunidades, de modo geral, e no processo de socialização do conhecimento. No contexto das sociedades tradicionais, sobretudo aquelas que são ágrafas, ela se reveste de igual importância, posto que todo o acervo cultural, transmitido de geração a geração, dá-se por via oral. Logo, disciplinas que trabalham com a relação língua, cultura e sociedade, na perspectiva sociolinguística, podem trazer contribuições significativas para o exercício docente.

No que tange à cultura digital, há a necessidade de transformação radical no processo de formação de professores, uma vez que a “[...] própria relação entre teoria e prática pedagógica inevitavelmente está se transformando, em virtude da mediação constante das TIC” (Pino; Zuin, 2012, p. 971).

Cumpre dizer que embora a frequência desse tema nos documentos seja inexpressiva, sua discussão é relevante principalmente se for considerado o aspecto geográfico da Região Norte, composto de rios e florestas, onde o meio de comunicação mais usual é o rádio e a tevê. Graças aos aparatos tecnológicos – telefonia celular, principalmente –, o distanciamento comunicacional na região vem diminuindo.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC) de 2018 [...] o Amazonas tem o segundo maior índice de domicílios do Brasil sem acesso à internet por falta de serviços das operadoras. [...] Mesmo com os entraves de serviço disponibilizado, principalmente para áreas rurais e comunidades mais isoladas, os dados da pesquisa indicam um aumento nos acessos à internet por banda larga móvel, uma vez que o Amazonas aumentou em 95,6% (Fundação Amazônia Sustentável, 2021, p. 17).

Se antes o uso da tecnologia na educação ligava-se mais à modalidade da educação a distância, hoje ganha nova perspectiva a partir do ensino remoto, surgido no período de isolamento social. No caso do Amazonas, como um recorte nesse contexto, dadas as distâncias, a educação já vem ocorrendo por via remota, com conteúdo telemediado vindo de Manaus, por isso “[...] compreende-se a importância da conectividade digital e também dos benefícios que a mesma traz [...] principalmente para áreas mais rurais, onde historicamente há desafios básicos e necessários, como saúde e educação” (Fundação Amazônia sustentável, 2021, p. 18).

Essas e outras questões são fundamentais e devem ser discutidas nos cursos de formação de professores, não no que diz respeito apenas à cultura, mas sim em sua abordagem com a (e na) escola. O diálogo entre cultura e escola é crucial nos debates de professores em formação, uma vez que pode proporcionar aos licenciandos a compreensão da cultura, nos seus variados sentidos e contextos, desde a diversidade cultural até a propagação da cultura da paz, desde a cultura digital até a cultura inclusiva (Macêdo, 2018).

Para Moreira e Candau (2007), o professor é um dos grandes responsáveis pela construção dos currículos escolares, e, portanto, deve articular o currículo à sua atuação de modo a relacioná-lo aos aspectos provindos de sua cultura, num movimento constante de questionamento dos produtos por ela apresentados, uma vez que,

[...] os produtos culturais à nossa volta nada têm de ingênuos ou puros; ao contrário, incorporam intenções de apoiar, preservar ou produzir situações que favorecem certos grupos e outros não. Tais artefatos, como se tem insistentemente acentuado, desempenham, junto com o currículo escolar, importante papel no processo de formação das identidades de nossas crianças e nossos adolescentes, devendo constituir-se, portanto, em elementos centrais de crítica em processos curriculares culturalmente orientados(Moreira; Candau, 2007, p. 42).

O currículo, nesse sentido, deve ser o espaço onde o futuro professor, no que tange à questão cultural, busque atender as diferenças dos múltiplos sujeitos com os quais trabalhará. Moreira e Candau (2007), nessa perspectiva, propõem a abertura das portas da escola às diferentes manifestações da cultura popular, não apenas da chamada cultura erudita, de modo a tornar o ambiente escolar em um local de reflexão acerca da cultura.

Essa cultura pode ser abordada em várias dimensões, e, tendo em vista que este artigo trata da Região Norte, parece adequado que a formação dos professores traga para os trajetos formativos dos docentes em formação inicial os conhecimentos tradicionais e cotidianos transmitidos pelas comunidades nortistas. Buscando dar visibilidade ao tratamento dessa questão, o Quadro 4 traz alguns fragmentos das matrizes curriculares associados às unidades temáticas V – Cultura amazônica ou indígena e VI – Química e cultura.

Quadro 4 – Fragmentos dos documentos que abrangem as unidades temáticas V e VI. 

Unidade Temática Fragmento
Cultura amazônica ou indígena Estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena (IFPA-9); Aspectos culturais e educacionais dos indivíduos que formam a população regional [..] (IFRO-4); Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e [...] indígena (IFTO-10); Sociedades e culturas amazônicas (UFOPA-16); A presença negra na Amazônia e a cultura afro-amazônica (UFOPA-16).
Química e cultura

Introduzir questões relacionadas ao desenvolvimento histórico/cultural da ciência Química [...] (IFAP-7); Principais etapas do desenvolvimento da Química: [...] algumas relações entre Química, sociedade e cultura [...] (IFRO-5); Resgatando a ciência nos saberes populares. Conhecimento químico e tradição amazônica (UFPA-17); Noções de etnografia na abordagem cultural do conhecimento químico (UNIFESSPA-19);

O ensino de ciências no contexto das culturas amazônicas [...] (UNIR-1); Saberes de sociedades tradicionais e o ensino de Química (UFAC-12).

O Quadro 4 representa duas unidades de suma importância para este trabalho, sobretudo porque se apresentam nos currículos com frequência inferior em relação às outras já expostas.

A Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, prevê a valorização das raízes indígenas na nação brasileira; entretanto, para que se alcance êxito, é necessário preparar os professores para isso (Brasil, 2004). Dessa forma, alguns autores propõem a diversidade nos currículos de modo que estes sejam adequados às características regionais.

[...] o país também precisa de diversidade curricular que dê conta de sua complexidade cultural, social e econômica. Os cursos de formação docente deverão ter também como referência os planos curriculares e os projetos pedagógicos dos sistemas de ensino públicos e privados e, sempre que possível, das próprias escolas. Isso poderá estimular o surgimento de vários modelos de formação de professores, com maior adequação às necessidades e características das regiões e dos alunos

(Mello, 2000, p. 102).

Além do já exposto, nota-se a necessidade de se formar professores não somente em harmonia com os parâmetros curriculares para a formação de professores, mas também expandir o horizonte de formação para as diretrizes da educação básica. A recente Base Nacional Comum Curricular, que deve provocar novos alinhamentos nos cursos de formação, orienta considerar os aspectos inerentes à cultura regional na proposição dos currículos escolares (Brasil, 2017a).

Tendo em vista a vasta riqueza cultural norte brasileira, “[...] o fazer cultural dos povos da floresta é significativo para a aprendizagem em ciências, em especial em Química” (Regiani, 2017, p. 123). Entretanto, os ementários indicam que somente metade dos documentos consultados norteiam os futuros professores nesse sentido.

Há que se refletir sobre o(s) motivo(s) dessa invisibilidade: será que as instituições formadoras ainda compreendem a Química numa perspectiva pragmática, aplicada, técnica, e daí advém a dificuldade de estabelecer um diálogo entre essa ciência e a cultura? Ainda, é a Química apresentada nos cursos sob um parâmetro monista de cientificidade (Ribeiro; Pereira, 2012), difícil de estabelecer-se em outras bases de conhecimento por meio da interdisciplinaridade ou transversalidade?

Parece que embora haja orientação clara nos documentos sobre o currículo a ser trabalhado na formação inicial dos professores, bem como naqueles do ensino que orientam sua prática na educação básica, a cultura ainda não ocupa um lugar mais abrangente na sala de aula, posto que sua discussão se daria na conjuntura de uma Química pluralista, em que as questões didáticas e pedagógicas têm tanto valor quanto o conhecimento da própria Ciência. Se estiver invisível na formação, consequentemente estará no ensino.

Tudo isso contribui para que a hipótese sobre a falta de contextualização da Química em relação aos conhecimentos culturais na educação básica seja reflexo do próprio processo de formação, uma vez que, conforme Silva e Oliveira (2009), o repertório de conhecimento do discente é desconsiderado durante o próprio processo de formação, e esse o reproduz em sua prática docente. Além disso, essa falta de diálogo com os conhecimentos nortistas pode contribuir para oprimir as culturas tradicionais, como apontam Pansini e Nenevé (2008).

Para Shulman (1987), um dos conhecimentos que deve fazer parte da constituição de um professor competente é aquele que se refere aos contextos educacionais em que ele atua, o que implica que ele conheça, entre outros pontos, as características das comunidades e as culturas locais e seus saberes.

Conforme o autor, deve compor a bagagem do professor o conhecimento do mundo em que ele e seus educandos estão inseridos.

Esse domínio cultural possibilita ao professor a oportunidade de apresentar e representar certo conteúdo específico em uma base comum a ambos, docente e discente, tornando a aprendizagem mais significativa. É, nesse sentido, que se ressalta a importância da inserção da cultura amazônica/ indígena nos currículos de formação de professores na Região Norte. Além disso,

[...] a valorização dos contextos e das culturas regionais permite a docentes e discentes reconhecer as diferentes visões de mundo de diversos povos, além de valorizá-las e respeitá-las pelas suas contribuições à cultura global. Também é possível inferir que partindo do conhecimento e do contexto local o ensino e a aprendizagem de Química e de ciências são mais significativos (Regiani, 2017, p. 129).

Regiani e Di Deus (2013) realizaram uma pesquisa com licenciandos de Química no estado do Acre. Os docentes em formação tinham como proposta desenvolver planos de aula relacionados à abordagem de temas significativos ligados às culturas tradicionais acreanas e suas interfaces com a Química por meio de um discurso antropológico e químico.

Essa pesquisa indicou que, quando devidamente orientados e estimulados, os futuros professores interessam-se por compreenderem “[...] como a disciplina na qual estão se especializando dialoga com outros sistemas de saberes e em aplicar esse diálogo em suas vivências pedagógicas, possibilitando a valorização da diversidade cultural regional” (Regiani; Di Deus, 2013, p. 2966).

Considerações Finais

Desconstruir a imagem da Química como uma disciplina difícil e, por vezes, sem conexão com a vida dos estudantes, implica considerar que ela carece de ser construída sob a base de certa significação que, muitas vezes, encontra-se no cotidiano, na realidade sóciocultural do alunado, mas que é invisibilizada pelas práticas estabelecidas no contexto de um ensino tradicional, reducionista dessa ciência. Esse quadro descreve também o que ocorre nas salas de aula da Região Norte do país.

Para que o professor promova, no ensino de Química, uma aprendizagem significativa e qualitativa, existem diferentes possibilidades e uma delas é o diálogo que essa disciplina pode fazer com a cultura, no que se refere aos saberes tradicionais, os quais fazem parte do repertório dos alunos. No entanto, a relação entre essas duas esferas, cultura e Química, deve ser contemplada desde a formação inicial do professor, com maior ênfase.

Para esse estudo, foi feita uma extensa pesquisa documental nos PPC de formação inicial de professores em Química e entendeu-se que há a possibilidade de que outras disciplinas não citadas, quando abordadas em sala de aula, visem a relação com a cultura. Dado o objetivo deste trabalho, foram consideradas apenas aquelas que apontavam essa inclinação em sua ementa curricular.

Na análise dos PPC selecionados, nota-se que, genericamente, contempla-se o estudo da cultura e de suas interfaces; no entanto, em pouquíssimos casos ela está associada às abordagens científicas dos conteúdos que perpassam a Química. A pouca oferta de disciplinas que valorizam a cultura amazônica distancia debates científico-culturais propícios à significação do ensino da ciência. Nesse sentido, é urgente repensar os currículos dos cursos de formação inicial de professores de Química.

Cabe às instituições assumir a tarefa de formar educadores comprometidos não apenas com a ciência, mas também com a valorização do conhecimento tradicional das comunidades amazônicas e seu diálogo com os conhecimentos científicos, para que emerjam daí práticas pedagógicas igualmente comprometidas com a transformação do ensino.

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Apoio/Support:Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Edital n° 002/2019/DPI/PPGI/IFAM/IC) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Edital nº 003/2020-PPGI/IFAM).

Recebido: 22 de Julho de 2022; Revisado: 19 de Janeiro de 2023; Aceito: 29 de Janeiro de 2023

Correspondência para/Correspondence to:

M.L.T. PACHECO

E-mail:<lucia.tinoco@ifam.edu.br>.

Editores associados:

Samuel Mendonça, Elvira Cristina Martins Tassoni.

Conflito de interesse: não há.

Como citar este artigo/How to cite this article

Jesus, D. A. A.; Cruz, J. M. A.; Pacheco, M. L. T. O lugar da cultura na formação inicial de professores de Química no norte do Brasil. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 28, e236454, 2023. http://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a6454

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