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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023  Epub 28-Jun-2023

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a6059 

Artigos

As hierarquias escolares e a violência entre estudantes

School hierarchies and violence among students

Marian Ávila de Lima e Dias, concepção e desenho, coleta, análise e interpretação dos dados, revisão, aprovação da versão final do artigo1 
http://orcid.org/0000-0003-2343-842X

Patrícia Ferreira de Andrade, concepção e desenho, coleta, análise e interpretação dos dados, revisão, aprovação da versão final do artigo2 
http://orcid.org/0000-0002-3658-0313

João Luiz Cavalcante Carreira, concepção e desenho, coleta, análise e interpretação dos dados, revisão, aprovação da versão final do artigo3 
http://orcid.org/0000-0002-9618-3379

1Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Educação. Guarulhos, SP, Brasil.

2Universidade de São Paulo, Instituto do de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. São Paulo, SP, Brasil.

3Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, Diretoria Regional de Educação, EMEF Profª Sylvia Martin Pires. São Paulo, SP, Brasil.


Resumo

A partir das hierarquias escolares identificadas por Ador-no, investigou-se a relação entre o desempenho escolar (destaque nas notas e atividades de classe – hierarquia oficial) e ser vítima ou praticante de maus tratos; a relação entre o desempenho em Educação Física, a popularidade (hierarquia não oficial) e a condição de sofrer ou praticar maus tratos entre pares e, ainda, se os estudantes que se destacam na primeira situação, também se destacam na segunda. As respostas aos questionários e escalas aplicados a 223 estudantes do nono ano do Ensino Fundamental de escolas públicas de uma cidade da Grande São Paulo indicaram, sobre a hierarquia oficial, que os que nessa se destacam não tendem a ser vítimas ou agressores, enquanto aqueles que não se destacam, tendem a ser vítimas e agressores, conforme indicação de colegas. Se o mau desempenho na hierarquia oficial coloca o aluno como vítima ou agressor, é a sua posição na hierarquia não oficial que influencia qual desses papéis ele ocupará. Os considerados populares e com bom desempenho físico tendem a ser identificados como agressores e os impopulares e que não se saem bem em Educação Física, como vítimas. Além da correlação entre ser popular e sair-se bem nos esportes, que confirma a existência da hierarquia não oficial na escola, também há uma correlação entre popularidade e destaque na hierarquia oficial, sugerindo que a popularidade também é um aspecto importante nessa hierarquia. Esse dado leva ao questionamento sobre quais atributos identificam atualmente o “bom aluno” e quanto o reconhecimento do bom desempenho acadêmico pode ser confundido atualmente com um mero cumprimento de tarefas.

Palavras-chave Desempenho acadêmico; Desempenho em educação física; Popularidade na escola; Teoria crítica da sociedade; Violência escolar

Abstract

Based on the concept of school hierarchies identified by Adorno, the aim of this paper was to investigate the relation between school performance (standing out in grades and class activities – official hierarchy) and being a victim or perpetrator of maltreatment; the relation between performance in Physical Education and popularity (unofficial hierarchy) in suffering or perpetrating maltreatment among peers; and whether students who excel in the former also stand out in the latter. The responses to questionnaires and scales administered to 223 ninth-grade students from public schools in a city in the Greater São Paulo area indicated, in relation to the official hierarchy, that those who stand out are less likely to be victims or aggressors, while those who do not excel tend to be victims and aggressors, as reported by their peers. If a student’s poor performance in the official hierarchy positions them as a victim or aggressor, their position in the unofficial hierarchy will influence which of these roles they will occupy. Those who are considered popular and perform well in physical education tend to be identified as aggressors, while those who are unpopular and who do not perform well in physical education, as victims. In addition to the correlation between being popular and doing well in sports – which confirms the existence of an unofficial hierarchy at school – we also found a correlation between popularity and prominence in the official hierarchy, suggesting that popularity is also an important aspect in this hierarchy. This data raises questions about which attributes currently identify the “good student” and to what extent recognition of good academic performance can be misconstrued as mere accomplishment of tasks.

Keywords Academic performance; Physical education performance; Popularity at school; Critical theory of society; School violence

Introdução

As condições sociais na atualidade, assim como as observadas na educação escolar, não parecem ter se modificado em comparação ao que Adorno (1995a) observou e denunciou: uma conformação social competitiva, persecutória, que exalta e premia o mais forte e dá vazão à agressividade contra aqueles mais frágeis. Esse andamento evidencia o fracasso – da sociedade e, por conseguinte, da educação escolar – em lutar para que não se repitam as tragédias de assassinato em escala industrial como os ocorridos nos campos de extermínio nazistas que buscam consolidar como política de Estado a ideia de que é legítimo que alguns grupos sociais sejam assassinados e eliminados. De lá para cá, as condições políticas, econômicas e sociais, mesmo que dotadas eventualmente de uma aparência democrática, não só se mantiveram propícias a esse ideário, como se aprofundaram as desigualdades e a legitimação da dominação de poucos sobre muitos. Numa situação como essa, acompanhando a proposição de Adorno (1995a), a educação deveria se voltar para a formação dos indivíduo e de sua consciência, para que seja possível a formação da sua capacidade de análise do mundo e de suas contradições como forma de minimamente resistir ao avanço da frieza nas relações entre as pessoas e à centralidade do processo asfixiante da sociedade voltado a alimentar burocraticamente a sua própria administração em lugar da justiça social e da formação dos indivíduos e de suas formas singulares de expressão.

Tampouco essa premissa tem sido a base para a educação nas instituições escolares. Essas, via de regra, têm se baseado principalmente no mérito, orientando-se por processos excludentes – o que compromete a formação dos educandos. No Brasil, isso pode ser notado tanto nas políticas que regem a educação pública como naquelas da iniciativa privada. Ambas fomentam, na educação escolar, a ênfase na perspectiva administrada do domínio instrumental para o desenvolvimento de competências e habilidades dos alunos como um fim em si mesmo. A competição e a meritocracia são estimuladas como justificativa, seja para a hierarquização entre os estudantes, seja para delimitar sua posição na sociedade (Silva, 2018). Essas diretrizes evidenciam a distância de uma educação voltada para a formação da sensibilidade e da consciência autorreflexiva, conforme proposto por Adorno (1995a) como forma de opor-se à tendência de destruição daqueles considerados mais fracos. A escola tem se mostrado um espaço em que prevalecem as práticas de adaptação dos indivíduos, e, nesse contexto, a violência escolar entre pares é um fato (Dias; Rocha; Mota, 2019; Luna et al., 2020; Santos et al., 2013; Silva et al., 2020) que não pode ser atribuído apenas às características pessoais dos alunos e de suas famílias. Há que se considerar tanto os aspectos sociais – afinal, estamos submetidos a uma estrutura social que divide, classifica e qualifica os indivíduos – como também os da própria dinâmica escolar, com o constante ranqueamento entre alunos, como fatores relacionados à violência escolar (Crochík et al., 2018; Dias; Dadico; Casco, 2020).

Adorno (1995b), em texto sobre os professores e os tabus de seu ofício, mencionou as hierarquias na escola em uma clara alusão às hierarquias sociais decorrentes da divisão social do trabalho,

há nisto evidentemente uma crítica ao próprio processo educacional, que até hoje em geral fracassou em nossa cultura. Este fracasso é atestado também pela dupla hierarquia observável no âmbito da escola: a hierarquia oficial, conforme o intelecto, o desempenho, as notas, e a hierarquia não oficial, em que a força física, o ‘ser homem’ e todo um conjunto de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial desempenham um papel

(Adorno, 1995b, p. 110).

Considera-se então que, na escola, a hierarquia oficial seria aquela ligada ao desempenho acadêmico, explicitada nos documentos escolares como notas, conceitos, aprovação ou reprovação, e que é partilhada por toda a comunidade escolar. Todos ali sabem apontar quem são aqueles considerados “bons alunos” em suas respectivas turmas. A hierarquia não oficial, ligada à esperteza e à força, poderia ser observada no cotidiano escolar pela popularidade, o bom desempenho nos esportes ou mesmo nas aulas de Educação Física. Novamente, todos dentro do ambiente escolar são capazes de apontar aqueles que se sobressaem nessas atividades. Em estudo anterior (Crochík et al., 2018) buscou-se verificar a presença dessas duas hierarquias no Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior, concluindo que, de fato, essa hierarquização se faz presente nas escolas.

Porém, dada a contradição existente nas sociedades contemporâneas (e, portanto, também na instituição escolar), não se trata de condenar de partida as hierarquias. Se de um lado elas podem ser vistas como algo a ser superado, também podem ser um elemento importante na educação. Contudo, se forem um fim em si mesmas, baseadas na premiação de um determinado desempenho individual (que, por sua vez, tende a se ancorar nas condições sociais), tornam-se mera reprodução da calamitosa situação da sociedade de classes. Diante da tendência à adaptação presente na escola, a boa performance na hierarquia oficial não necessariamente indica o aprofundamento nos conhecimentos ofertados, o que levaria à reflexão sobre si e sobre os objetos do mundo, contribuindo para uma posição de autonomia na formação individual. Infelizmente, o destaque na hierarquia oficial pode indicar também o sucesso na adaptação a partir de respostas rápidas e estereotipadas de submissão e obediência sem questionamentos ao que é demandado como tarefa, em uma constante posição de heteronomia. Já o destaque na hierarquia não oficial na escola explicita que ainda estamos submetidos à força física como parâmetro para as relações de poder entre os indivíduos; porém, ser popular e ter bom desempenho nos esportes poderia também ser algo benéfico à socialização e à identificação de que nem todos têm as mesmas capacidades físicas, o que levaria a uma posição de reconhecimento das diferenças – traço fundamental para a formação dos indivíduos. Compreender e explicitar as dinâmicas presentes nas hierarquias pode permitir à instituição escolar fazer críticas ao seu papel adaptador e, assim, reorientar--se na busca de outras práticas (Crochík et al., 2018; Dias; Dadico; Casco, 2020).

Se a violência escolar relaciona-se com o andamento da sociedade, o tipo específico de agressão entre estudantes denominado de bullying, em que a violência infligida retira de sua vítima qualquer possibilidade de reagir e através da qual quem pratica tal violência parece sentir prazer em humilhar e tentar retirar da vítima a sua dignidade, relaciona-se com a reificação das relações, pois aquele que sofre bullying não é passível de ser identificado por seu agressor como um outro ser humano, sendo tratado como um objeto desprezível e descartável.

Um estudo realizado em escolas de Portugal sobre bullying indicou significância estatística de preditores relacionados ao lugar ocupado no grupo e não significância da associação com caracteres biologizantes, como ser do sexo feminino ou masculino. Naquele estudo, tendiam a ser vítimas de bullying estudantes que obtiveram baixo escore em uma escala que visa medir a confiança, e a “alienação” do estudante no sentido de um isolamento frente aos colegas também foi identificada como fator preditivo. Não houve correlação significativa entre ser praticante de bullying e a necessidade de pertencer a grupos (Dias; Rocha; Mota, 2019). Ainda que concentrados somente nos relatos de estudantes que sofreram violência escolar, a correlação entre ser praticante e/ou vítima de formas de violência escolar e o lugar ocupado diante dos pares é discutida também no estudo de Santos et al. (2013). Eles verificaram que aqueles/as que são alvos de bullying podem também ser autores/as. Naquele estudo não foi verificada a correlação entre bullying e baixo rendimento escolar por não se tratar de um estudo longitudinal; ou seja, não foi constatado o baixo rendimento como uma das consequências da violência escolar, aferição essa que difere da que observa que essas categorias de baixo e alto rendimento escolar fomentam relações de poder e dominação entre os estudantes.

As pesquisas de Luna et al. (2020) e Silva et al. (2020) verificaram o perfil dos/as alunos que são identificados/as como agressores/as, vítimas e observadores/as da violência escolar pelos docentes e também a menção ao desempenho escolar desses/as estudantes. No estudo de Luna e colaboradores (2020), ainda que questões extraescolares sejam mencionadas por docentes entrevistados/as, como, por exemplo, problemas com a família, fica evidenciada a prevalência de caracteres que têm relação com o desempenho escolar, como bom e mau aluno, e do lugar diante do grupo escolar em que os estudantes estão inseridos/as. Estudantes que atuam como observadores/as da violência entre pares não foram mencionados/as por docentes entrevistados/as. Já Silva e colaboradores (2020), comparando dados de entrevistas com docentes a partir de questionários aplicados a estudantes, observaram uma convergência da identificação daqueles que praticam a violência escolar, sobretudo o bullying, indicados por ambos os segmentos como estudantes com baixo rendimento escolar e que são reconhecidos/as como populares. Nos dois estudos há a constatação da hierarquização dos indivíduos, tanto a referente ao desempenho nas matérias escolares, quanto aquela que diz respeito ao desempenho físico, e que essas hierarquizações estão relacionadas com ser alvo ou praticante de violência escolar.

Contudo, não é a mesma coisa hierarquizar conhecimentos, algo organizado e legitimado coletivamente, e hierarquizar a partir da força física, o que denotaria muito mais uma condição de dominação ao prescindir da racionalidade. Adorno (1995b, p. 111) identifica que o nazismo “[...] explorou essa dupla hierarquia inclusive fora da escola, na medida em que incitou a segunda contra a primeira [...]”. Disso decorre que a classificação de estudantes em melhores e piores e, sobretudo, a sobreposição da hierarquia não oficial à oficial na escola, denota a valorização da violência sob a forma de ressentimento pelo conhecimento sobre a formação do intelecto e da sensibilidade, o que leva à hipótese geral de que haveria alguma relação entre o lugar ocupado pelo/a estudante nas hierarquias e a sua participação (ou não) como agressor/a ou vítima da violência entre pares.

Assim, o objetivo geral desta pesquisa foi averiguar se há relação entre o desempenho nas hierarquias escolares e a participação de estudantes na violência entre pares, e como objetivos específicos, busca-se verificar se: 1) há relação entre o desempenho escolar (hierarquia oficial) e ser vítima de maus tratos; 2) há relação entre o desempenho escolar (hierarquia oficial) e praticar maus tratos; 3) há relação entre o desempenho em Educação Física, a popularidade (hierarquia não oficial) e ser vítima de maus tratos; 4) há relação entre o desempenho em Educação Física, a popularidade (hierarquia não oficial) e a prática de maus tratos colegas. O quinto objetivo parte da hipótese de que a ocorrência de duas hierarquias distintas no ambiente escolar não necessariamente faz com que os/as estudantes pertençam exclusivamente a uma ou outra delas e leva à questão: caso os/as estudantes participem simultaneamente de ambas, de que modo isso ocorre? Assim, buscou-se também 5) verificar se há uma tendência de que estudantes que se destacam na hierarquia oficial também se ocupem o topo da hierarquia não oficial (correlação positiva); se, ao contrário, aqueles que se destacam em uma hierarquia tendem a ocupar a base na outra (correlação negativa) ou se não há relação entre o papel desempenhado em uma e outra hierarquia (ausência de correlação).

Procedimentos Metodológicos

Participaram da pesquisa 223 estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental de escolas públicas de uma cidade da Grande São Paulo, sendo que 50% eram do sexo masculino4 e que, segundo o critério da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (2008), 65,4% pertenciam às classes B2 e C1.

Os instrumentos utilizados foram: (a) Questionário contendo dados de identificação, como idade, sexo, nível de escolaridade dos pais, religião e nível socioeconômico; (b) Escala de Identificação das Hierarquias Escolares e (c) Autoindicação de Violência Escolar.

A Escala de Identificação das Hierarquias Escolares, instrumento já aplicado e validado em pesquisas anteriores (Crochík, 2016; Crochík et al., 2018) com base em estudos que já identificavam a existência de classificações hierárquicas entre alunos/as (Antunes; Zuin, 2008; Garandeau; Lee; Salmivalli, 2014), foi feita a partir de questões que buscavam caracterizar os/as participantes de acordo com seus próprios desempenhos, bem como os de seus colegas. Foi solicitado que os participantes identificassem os três melhores e os três piores estudantes em disciplinas da sala de aula e nas aulas de Educação Física e três estudantes considerados mais populares e três mais impopulares. Os/as estudantes poderiam identificar um/a mesmo/a colega em mais de um dos itens, bem como se autoidentificar. Cada aluno/a identificado/a como “melhor em sala de aula” recebia um ponto e aquele/a que não era identificado/a não recebia ponto. Os totais obtidos foram somados e divididos pelo número de participantes daquela sala obtendo, assim, a média. O mesmo procedimento foi adotado para os itens “pior em sala de aula”, “popular”, impopular”, “melhor em educação física” e “pior em educação física”.

A Autoindicação de Violência Escolar constou de dez itens: xingar, ameaçar bater, bater, espalhar boatos, excluir/rejeitar, dar apelidos ofensivos, estragar material ou roupa, acariciar sem permissão, pegar dinheiro ou material sem consentimento e outros. As mesmas agressões foram propostas tanto na forma de agressor (xingou?) como na de vítima (xingaram você?) apresentando dois quadros com alternativas de respostas. Além de assinalar se ocorreu ou não a agressão, os/as participantes indicaram com que frequência aconteciam os atos (todos os dias, uma a quatro vezes por semana, uma a três vezes por mês, uma a duas vezes por semestre ou nunca). Para cada agressão foram atribuídos de zero a quatro pontos dependendo da frequência, sendo zero para “nunca” e quatro para “todos os dias”. Foi feito um escore para cada participante a partir da soma dessas pontuações. Esse procedimento também foi adotado nas pesquisas de Carloni et al. (2020) e Galluch et al. (2020).

Os dados foram coletados em cinco escolas da Grande São Paulo, mediante assinatura de termo de anuência de diretores, termo de consentimento dos pais e/ou responsáveis e termo de assentimento dos/as estudantes. A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo sob o nº 75003417.7.0000.5505, parecer nº 2.362.025.

O preenchimento dos instrumentos foi realizado em sala de aula, com a presença de pesquisadores e docentes da escola. Os resultados foram tabulados em uma planilha no programa de computador Excel. Como o nível de mensuração das variáveis era intervalar e a amostra era grande (N=223), a distribuição tende a ser considerada normal, o que permitiu que fosse utilizada a correlação de Pearson. Foram calculadas correlações parciais entre os diversos tipos de desempenho aferidos para averiguar a relação existente entre eles. O nível de significância adotado foi igual ou menor que 0,05 (p≥0,138), e, em alguns casos, obtivemos foram obtidas correlações significativas até mesmo adotando o valor igual ou menor que 0,01 (p≥0,181). Os cálculos foram feitos por meio do programa de computador Excel® versão 14.0.0.

Foi possível atribuir escores a cada um/a dos/as participantes para a prática e o sofrimento de maus tratos autoatribuídos e para a prática e sofrimento de maus tratos identificados pelos/as colegas, bem como posicioná-los quanto ao desempenho na hierarquia oficial e na não oficial, criando, assim, variáveis numéricas intervalares. Quanto ao desempenho na hierarquia oficial, foram considerados os escores obtidos a partir dos itens “melhores nas disciplinas” e “piores nas disciplinas”. Já a hierarquia não oficial foi examinada a partir dos itens “popular” e “melhores em educação física” e também dos itens “impopular” e “piores em educação física”.

Resultados e Discussão

Todos os escores foram separados inicialmente entre os sexos. A prova t de Student, com o nível de significância de 0,01 e entre 1 e 221 graus de liberdade, não indicou valores significantes para o nível adotado, permitindo analisar os resultados em conjunto. Foram calculados os escores obtidos em cada uma das cinco escolas para a Escala de Identificação das Hierarquias Escolares (a) e o teste t de Student (t=1,15; 3 g.l.; p=0,05) e também a Autoindicação da violência escolar (b) (t=1,24; 3 g.l.; p=0,05) foram aplicados aos alunos. Todos os resultados indicaram a inexistência de diferenças significantes entre as respostas dadas em cada escola. Assim, foi possível trabalhar com a amostra total de 223 estudantes para o cálculo das correlações.

Por se tratar de um desenho de pesquisa em que os dados quantitativos foram analisados qualitativamente e cuja amostra era significativa (N=223), optou-se por não classificar as correlações de acordo com seu grau, posto que em se tratando da ocorrência de violência no ambiente escolar, mesmo se uma correlação for considerada “fraca” – em uma faixa limite com nível de significância de 0,05 –, ainda assim ela será significante.

A Tabela 1 exibe o cálculo da correlação entre ser vítima de agressões e o desempenho acadêmico em disciplinas ministradas em sala de aula (que estão relacionadas à hierarquia oficial) a partir da própria indicação e da de colegas.

Tabela 1 Desempenho na hierarquia oficial e ser vítima de maus tratos. 

Variáveis Vítima: Indicação pelos/as colegas Vítima: Autoindicação
Melhores nas disciplinas 0,03 -0,05
Piores nas disciplinas 0,20** -0,04

Nota:

**p<0,01.

Fonte: Elaborada pelos autores (2018).

De acordo com a percepção dos estudantes, houve correlação entre ser vítima e não ter bom desempenho em disciplinas acadêmicas, dado corroborado pelas pesquisas de Menezes et al. (2020) e Galuch et al. (2020). Ressalta-se que estudantes que não se destacam nessa hierarquia (piores nas disciplinas), embora sejam identificados pelos colegas como vítimas de maus tratos, não tendem a se autoindicar dessa forma. Esse dado pode apontar para uma dupla chave de compreensão, a saber: (a) o grupo identifica a agressão sofrida por colegas que não se sobressaem em disciplinas acadêmicas, e (b) a ausência de correlação entre considerar-se vítima e sair-se pior nas disciplinas talvez indique que esses/as próprios/as alunos/as não se sintam vítimas ou mesmo que se sintam envergonhados/as de se reconhecer dessa forma (Freire et al., 2018). A primeira proposição parece contradizer a segunda, já que a violência observada pelos/as colegas não seria identificada pelo próprio indivíduo. Assim, na medida em que os pares identificam o fenômeno – premissa importante para o seu combate –, estudantes agredidos/as, ao não o fazerem, demonstram que se encontram adaptados/as não somente à hierarquia, como também à norma social vigente.

Também é importante considerar a possibilidade de identificação da vítima com o/a agressor/a (Horkheimer; Adorno, 1973), o que inibe a possibilidade tanto de a vítima se reconhecer como estando nessa posição, como também faz com que ela não reconheça o/a agressor/a dessa forma, o que contribui para a formação de indivíduos dominados, presos à sua posição e, consequentemente, adaptados à violência como forma de relação entre pares, de modo a não mais identificá-la. Ao constatar que há correlação entre ser vítima das agressões e pertencer à base dessa hierarquia (se sair mal nas disciplinas de sala de aula), também torna-se possível evidenciar que o mal desempenho escolar, o chamado “fracasso escolar”, apresenta fortes indícios de estar relacionado com a manutenção desse/a aluno/a na posição de vítima da violência (Patto, 2015).

A Tabela 1 também indica que estudantes apontados/as como aqueles que se destacam nas disciplinas acadêmicas não foram identificados/as como vítimas de agressões. Sabe-se que não necessariamente aquele/a que é considerado pelos pares como alguém que se sai melhor nas disciplinas em sala de aula é identificado/a com o estereótipo do nerd. Contudo, entende-se que as expressões “bom aluno”, “cdf” e mesmo “nerd” podem estar fortemente associadas ao bom desempenho nas matérias. Nesse sentido, ampliando a análise, traz-se para o debate a ponderação de que talvez a associação do/a aluno/a considerado com bom desempenho (associado aos estereótipos do nerd, do “cdf” etc.) como alvo preferencial das agressões de colegas, verificada em pesquisas mais antigas como, por exemplo, nas de Levandoski e Cardoso (2013), Maciel e Freitas (2011) e Sposito e Galvão (2004), possa ser repensada, uma vez que esse fato não encontrou respaldo nesta investigação. O fato de o “bom aluno” não ser mais identificado como vítima de maus tratos também foi observado em pesquisas mais recentes, como, por exemplo, nas de Coelho e Da Silva (2019), de Luna et al. (2020) e de Meneses et al. (2020). Esse fato pode indicar uma mudança no próprio papel daquele que se sai bem na dinâmica escolar e também em seu papel social, uma vez que a representação de um adulto/a nerd ou “cdf” como alguém que se torna bem sucedido/a também passou a ser veiculada em anos mais recentes (Oliveira, 2016).

A Tabela 2 busca verificar se há relação entre o desempenho escolar (hierarquia oficial) e ser praticante de maus tratos a partir da própria indicação e da indicação de colegas.

Tabela 2 Desempenho na hierarquia oficial e a prática de maus tratos. 

Variáveis Agressor: Indicação pelos/as colegas Agressor: Autoindicação
Melhores nas disciplinas -0,09 -0,06
Piores nas disciplinas 0,42** 0,11

Nota:

**p<0,01.

Fonte: Elaborada pelos autores (2018).

A indicação dos/as colegas aponta para uma correlação importante entre ter um mau desempenho nas disciplinas e a prática de maus tratos entre pares. A violência sob a forma de agressão aos/às colegas pode indicar tanto uma tentativa de ruptura com a “claustrofobia da sociedade administrada” (Adorno, 1995c, p. 123) como também um ataque contra determinados alvos, uma vez que os que se saem pior nas disciplinas são identificados/as tanto como sendo vítimas (Tabela 1) quanto como agressores/as, o que pode indicar que a violência é dirigida aos/às mesmos/as alunos/as que a praticam.

O desprezo à civilização, identificado por Freud (2011) como um traço da humanidade na luta entre a satisfação de impulsos individuais em oposição à construção de seguranças coletivas, também é um aspecto a ser analisado a partir da correlação obtida. Talvez aquele que é considerado pelos colegas como o que se sai pior nas disciplinas expresse um ressentimento em relação à renúncia à satisfação direta e individual que é exigida para participar da marcha civilizatória sob a promessa de que o adiamento dessa satisfação será recompensado.

A constatação de que há correlação entre sair-se mal nas disciplinas escolares e ser tanto vítima como agressor/a evidencia que a adoção de normas voltadas ao desempenho, como notas, trabalhos e tarefas, tem relação direta com a ocorrência da violência entre pares. A ausência de correlação entre estudantes considerados melhores nas disciplinas e a participação desses na violência escolar indica que não necessariamente é preciso se destacar positivamente nessa hierarquia para não participar da violência, mas que não ser considerado um mau aluno nas disciplinas em sala de aula parece consistir em uma medida protetiva. Dessa forma, também as escolas exercem um papel ao cunhar o estigma de pior em sala de aula. É necessário atentar-se ao estabelecer parâmetros de bom e mau aluno: a ênfase no desempenho individual, na competitividade e no ranqueamento é uma prática que pode ajudar a estigmatizar e, portanto, fomentar a manutenção de certos/as estudantes nos papéis de vítimas e de agressores.

Na Tabela 3 são apresentados os cálculos para verificar se há relação entre o desempenho em Educação Física, a popularidade (hierarquia não oficial) e ser vítima de maus tratos a partir da própria indicação e da indicação de colegas.

Tabela 3 Desempenho na hierarquia não oficial e ser vítima de maus tratos. 

Variáveis Vítima: Indicação pelos/as colegas Vítima: Autoindicação
Melhores na Educação Física -0,02 0,10
Populares -0,08 0,18*
Piores na Educação Física 0,40** 0,18*
Impopulares 0,40** 0,09

Nota:

*p<0,05,

**p<0,01.

Fonte: Elaborada pelos autores (2018).

A correlação significativa entre autoindicação como vítima de maus-tratos em estudantes apontados como populares também foi encontrada nas pesquisas de Carloni et al. (2020) e de Galuch et al. (2020). Em estudo anterior (Dias; Dadico; Casco, 2020) apontou-se que, por se tratar de uma autoavaliação, o estudante que se percebe como vítima não necessariamente será visto da mesma forma pelos colegas, uma vez que o grupo não percebe estudantes considerados/as populares como alvo de maus-tratos. A dissonância entre a percepção individual e a indicação de ser ou não vítima em uma situação grupal como a existente nas escolas não precisa ser encarada como “verdadeira “ ou “falsa”. Foi possível aprender com Freud (2011) que a realidade psíquica tem, para o indivíduo, contornos tão fortes quanto a realidade externa. Além disso, estar bem relacionado com os/as colegas no sentido da popularidade não necessariamente constitui-se em salvaguarda contra as agressões do grupo. Talvez, para ocupar o lugar de popularidade, esse estudante tenha passado pelos ritos de iniciação mencionados por Adorno (1995a) como forma de adaptação e pertencimento aos grupos. Nesse sentido, o grupo sequer identifica a violência que realizou, chamando-a de “costumes” ou mesmo de “divertimentos” (Adorno 1995a). No entanto, para aquele que almeja ocupar um lugar de popularidade, isso não ocorreu sem algum grau de sofrimento.

Já aqueles/as que são considerados/as como tendo pior desempenho em Educação Física são percebidos/as como vítimas tanto pelo grupo como por si próprios/as. Esse dado também foi encontrado nas pesquisas de Carloni et al. (2020), Galuch et al. (2020) e Silva et al. (2020). Aqui, a associação entre sair-se mal no desempenho da força física e ser vítima de agressões pode remeter à situação descrita por Adorno (1995a) em que aquele sobre o qual se projeta a fraqueza sofre as agressões como forma de humilhação e como o preço que se paga para fazer parte de um grupo. De outra parte, ser identificado/a como o que não tem destreza física pode também significar uma permissão para ser considerado como alguém de fora do grupo e que, por esse motivo, pode ser alvo de uma agressividade extrojetada. Essa conformação ocorre não apenas por conta daquilo que Freud (2011) descreveu como o “narcisismo das pequenas diferenças”, mas também pelo papel de autoridade do/da professor/professora, que, nesse tipo de atividade em grupo em que a ênfase recai nos atributos físicos, pode reforçar ou mesmo permitir que os mais fracos sejam alvo de chacotas e de outras formas de violência (Casco, 2007).

Estudantes que se saem mal nas disciplinas em sala de aula tendem a não se perceber como vítimas, mas são identificados/as dessa forma pelos/as colegas (Tabela 1) –assim como acontece com aqueles/as que são tidos como impopulares pelos pares. Novamente, eles/as mesmos não se veem como alguém que sofre maus tratos, embora seja assim que os/as colegas os percebam. Nas duas hierarquias (oficial e não oficial), aqueles/as que são considerados/as como os/as que não se saem bem sofrem a violência, mas parecem não se dar conta de que se encontram nessa condição, o que pode indicar que tanto a valorização do intelecto como a popularidade, na situação escolar, conduzem a uma pressão para a adaptação que faz com que aqueles/as que ocupam a base de ambas as hierarquias entendam que devem se conformar em sofrer agressões. Talvez a submissão aos maus tratos como forma de fazer parte de algum grupo – além da já mencionada identificação com o agressor, que tem como característica o fato de ser uma forma extrema de defesa psíquica contra um evento traumático (Freud, 1996) – aponte também para a presença de uma forma de satisfação psíquica mais regredida e direta, ainda que dotada de fortes traços masoquistas. Dito de outro modo, a adaptação à sociabilidade existente convocaria tanto a projeção da própria gratificação nas ações do agressor quanto um prazer (de sentir-se parte do grupo) obtido pelo sofrimento de ser agredido, o que é uma tendência da forma como os indivíduos têm sido formados pela sociedade contemporânea (Adorno, 1995a; Crochíck, 2019).

Na Tabela 4 verifica-se a relação entre o desempenho em Educação Física, a popularidade (hierarquia não oficial) e a prática de maus tratos.

Tabela 4 Desempenho na hierarquia não oficial e a prática de maus tratos. 

Variáveis Agressor: Indicação pelos colegas Agressor: Autoindicação
Melhores na Educação Física 0,28** 0,23**
Populares 0,31** 0,23**
Piores na Educação Física -0,07 0,03
Impopulares -0,06 0,00

Nota:

**p<0,01.

Fonte: Elaborada pelos autores (2018).

Há correlação entre sair-se bem em Educação Física e praticar maus-tratos, o que também foi verificado por Hurley (2009) (ver também Pequeno da Silva et al., 2019). Nota-se que há tanto uma percepção entre os pares, verificada igualmente nos estudos de Luna et al. (2020) e Carloni et al. (2020), como na autodeclaração – dado também encontrado na pesquisa de Carloni et al. (2020) –, de modo que o/a próprio/a agressor/a que se destaca na hierarquia não oficial reconhece praticar maus tratos – o que sugere, entre outros elementos, uma posição de afirmação de sua dominação e de seu poder decorrente da força física. O fato do/a próprio/a estudante reconhecer e informar em um instrumento de pesquisa que pratica violência contra colegas indica que ele/a se sente à vontade para externalizar o fato dentro da própria instituição escolar, o que, por sua vez pode denotar, no mínimo, uma forma de conivência da escola e, no pior dos casos, uma anuência para que essas agressões ocorram apenas contra determinados estudantes.

Os resultados ainda indicam uma correlação significativa entre estudantes considerados/as populares e a prática de maus tratos, tanto na autoavaliação como na avaliação entre pares. Considerando que os/as alunos/as populares são aqueles/as reconhecidos/as e destacados/as, é possível pensar que esses/as alunos/as participam de um certo acordo tácito, já que para pertencer ao topo de uma hierarquia escolar é necessário compartilhar as normas de conduta que regem as relações e destacar-se como modelo dessas normas. Adorno (1995c) diagnosticou que na sociedade vigente há um impedimento para o indivíduo viver de acordo com as suas autodeterminações, uma vez que o caráter heterônomo dessa sociedade impõe obstáculos à possibilidade de emancipação e, sobretudo, na medida em que as pessoas são formadas “[...] mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência” (Adorno, 1995c, p. 181). Se a cultura vigente determina posições dentro de hierarquias e se a proposição de Adorno (1995a) a respeito do enquadramento cego em coletivos ainda pode ser observada, o pertencimento dos/as estudantes considerados/as populares a uma estrutura que os/as reconhece dessa forma implicaria em ser considerado/a (e considerar-se) alguém que representa e conserva os valores de um determinado grupo. Esses valores, por serem centrados na força e no domínio, buscam ocultar a lembrança de qualquer traço de fragilidade humana.

As correlações também chamaram a atenção para a possibilidade de que a escola esteja oferecendo uma autorização para que os/as estudantes considerados/as mais fortes e populares exerçam a violência entre os pares, uma vez que há uma nítida identificação, pelos colegas e pelo/a próprio/a estudante, de quem é ou não popular e destacado em Educação Física. Obviamente não se trata apenas de uma questão escolar; trata-se de todo um movimento da cultura em que o “fino véu” da civilidade é facilmente rompido (Adorno, 1986). De outra parte, a identificação desses papéis na estrutura escolar também indica a possibilidade de enfrentamento da questão, uma vez que não apenas a instituição escolar sabe quem são os/as agressores/as, mas, sobretudo, a função que alguns/mas desempenham nas hierarquias entre estudantes (Dias; Dadico; Casco, 2020).

A Tabela 5 aponta para algo que é gerado e cultivado na própria estrutura escolar: a relação entre sair-se bem, seja na sala de aula e/ou nas atividades físicas, ser popular e ter mau desempenho em ambas as atividades e ser impopular.

Tabela 5 Correlaçôes entre o topo da hierarquia oficial e da hierarquia não oficial e entre a base dessas hierarquias. 

Variáveis Melhores nas disciplinas Melhores em EF Piores nas disciplinas Piores em EF
Populares 0,20 0,35    
Melhores nas disciplinas 1,0 0,09    
Impopulares     0,10 0,42**
Piores nas disciplinas     1,0 0,12**

Nota:

**p<0,01. EF: Educação Física.

Fonte: Elaborada pelos autores (2018).

Na Tabela 5 é possível verificar a correlação entre popularidade e o destaque nas disciplinas acadêmicas, bem como entre popularidade e o bom desempenho em Educação Física – o que pode sugerir que a popularidade seja um atributo tanto daqueles/as alunos/as que se destacam na hierarquia oficial quanto na não oficial. É importante observar que os/as indicados/as como melhores em Educação Física também são aqueles/as a quem se atribui popularidade, o que consolidaria a presença de uma hierarquia não oficial, assim como descrito por Adorno (1995b), em que ter força física associa-se a ser reconhecido pelos/as colegas como alguém popular e com poder. Aquele que é popular e se sai bem nas atividades físicas poderia ser valorizado/a pelo grupo por demonstrar destreza e apreço pelo corpo dentro de uma proposta escolar na qual a Educação Física valorizasse os jogos cooperativos e o reconhecimento das diferenças corporais. Porém, o mais provável é que esse estudante seja considerado/a popular por sair-se bem em atividades competitivas nas quais “vence o melhor”; ou seja, aquele que tem mais força ou agilidade. O fato de haver correlação entre o bom desempenho em Educação Física e a prática de maus tratos (Tabela 4) faz com que essa seja a hipótese mais provável.

As correlações positivas apontam que as categorias escolares incidem sobre um modo de vinculação e de afetividade entre estudantes – nesse caso, ser um/a colega bem quisto/a. Considerando que a popularidade refere-se a uma posição ideal, relacionada ao ideal de Eu, em um grupo de estudantes que estão ligados entre si não somente pela circunstância grupo-classe, mas por uma afetividade que por eles circula e que os coloca na busca por amor e proteção (Freud, 2011), o pertencimento passa a ser a tentativa de obter sucesso nas classificações possíveis da escola. Ter bom desempenho nas disciplinas e nos esportes é algo bem visto pelos colegas, que os tornam modelos ideais dentro de um grupo ao qual todos anseiam pertencer.

A ausência de correlação entre os/as que são melhores nas disciplinas de sala de aula e aqueles/as que se destacam em Educação Física indica que aqueles/as considerados/as populares e “bons alunos” não são os/as mesmos/as considerados/as populares e “bons em Educação Física”. Dessa forma, pode-se perguntar se a popularidade dos/as melhores nas disciplinas acadêmicas e dos/as melhores em Educação Física denotaria uma contradição entre o apreço pela intelectualidade e pela força física. Os dados permitem a formulação de uma hipótese de que atualmente o bom desempenho em sala de aula não necessariamente represente o apuro do intelecto e não se configure uma oposição tão clara ao valor dado aos atributos físicos. Quanto àquele que se destaca nas disciplinas de sala de aula e é popular, tem-se duas hipóteses: ou demonstra conhecimento acadêmico sobre as matérias e isso é valorizado (saber bem Português, Matemática etc.), ou demonstra habilidade em resolver tarefas e responder ao que é demandado pela instituição dentro de uma rotina escolar já conhecida, e daí vem a sua popularidade. No segundo caso, o aspecto técnico se sobressai como algo a ser valorizado em si mesmo, assim como denunciado por Horkheimer e Adorno (1985) como sendo a marca da ideologia vigente na sociedade atual. De todo modo, é importante lembrar que, de acordo com as Tabelas 1 e 2, os estudantes que se destacam nas disciplinas não são nem vítimas, nem agressores.

Ainda na Tabela 5, é possível verificar as correlações entre ser considerado pior na hierarquia oficial e na não oficial, indicando que há correlação entre impopularidade e mau desempenho em Educação Física. Já se sabe que essas posições na hierarquia escolar trazem consequências quanto ao papel a ser ocupado na violência escolar, uma vez que a Tabela 3 indica que os/as impopulares e com mau desempenho em Educação Física tendem a ser vítimas de maus tratos. Assim, a popularidade e a impopularidade estão muito ligadas ao modo como esses estudantes são avaliados/as pela escola e a como eles/as respondem (se positiva ou negativamente) àquilo que a instituição escolar espera deles/as, o que os/as coloca em uma situação da qual fica difícil escapar.

Considerações Finais

A impopularidade parece estar relacionada ao mau desempenho corporal, e esse, por sua vez, é um fator diretamente ligado aos maus tratos entre pares. Aquele que é considerado com baixo desempenho nas atividades físicas é considerado/a impopular e é identificado como vítima das agressões. É identificado duplamente – como vítima e agressor – aquele que se sai mal nas disciplinas de sala de aula. Quem se destaca nas práticas corporais é indicado como popular e também é identificado/a como agressor/a (e reconhece isso), assim como também é identificado/a como popular quem se destaca nas atividades acadêmicas, mas não parece estar envolvido/a na violência entre pares. Essas conclusões indicam que a posição do/a estudante na hierarquia não oficial tem papel importante na definição de quem será vítima e quem será agressor nos maus tratos entre colegas.

Embora se tratem de duas hierarquias distintas, uma que privilegia o desempenho em sala de aula e outra ligada à força e a atributos físicos, é preciso notar que as hierarquias se alimentam mutuamente, pois são duas formas de classificação que, operando em conjunto na escola, mantêm e conservam os papéis dos indivíduos nos grupos.

Quanto à hierarquia oficial, a partir do diagnóstico da sociedade contemporânea de tendência à administração total da vida o próprio modelo daquilo que é considerado conhecimento tornou-se pura adaptação à dominação. O conhecimento acadêmico não escapa a essa condição e está presente na escola como uma forma de adaptação às regras, o que explicaria a popularidade do/a bom/a aluno/a e uma certa proteção que essa posição garante contra a violência entre colegas. Essa proteção viria, talvez, do fato de ser alguém a quem os demais colegas podem vir a recorrer para cumprir com as próprias tarefas, alguém de quem se pode emprestar o caderno ou em cujo grupo teria o nome incluído em uma atividade sem ter de fato participado de sua execução.

A popularidade apresentou-se como o vértice que une dois princípios: o da força física e o do bom desempenho acadêmico. Os estudantes populares são tanto os identificados como bons nas disciplinas como também aqueles/as bons em educação física, sem, contudo, serem os/as mesmos/as estudantes (uma vez que não houve correlação entre sair-se bem nas disciplinas e sair-se bem em Educação Física). Ser bem visto e bem quisto pelos colegas relaciona-se com um apreço tanto por aquilo que formalmente a escola utiliza como critério de sucesso, como também o que é valorizado como habilidade e destreza corporal. Ambas formas de apreço parecem decorrer de uma pressão social exercida sobre a criança desde o estabelecimento de seus vínculos primários para que ela passe a admirar – não apenas, mas também – comportamentos e figuras violentas. Popular, nesse sentido, é ser visto como bem sucedido nas métricas apresentadas pela educação escolar; refere-se a uma valoração que é constituída na escola e por ela segue sendo endossada. No entanto, é dramática a constatação de que essa separação também tem como decorrências, no caso da força física, a licença para agredir, para dominar o outro.

Como limites dessa investigação, aponta-se para a necessidade de compreender melhor quais atributos os/as estudantes consideram para identificar alguém como bom ou mau aluno em sala de aula. Esta investigação pediu apenas para que os participantes identificassem aqueles que “se saem bem” e os que “são piores” nas matérias de sala de aula, mas seria importante aprofundar se se tratam de aspectos mais relacionados ao intelecto, à capacidade de compreender e produzir conhecimentos ou a aspectos mais afeitos à obediência sem questionamentos e à entrega de atividades dentro do prazo estipulado. Futuras investigações também se beneficiarão de uma amostra mais ampla e que leve em conta eventuais diferenças nas respostas relacionadas ao gênero dos participantes.

De todo modo, os elementos apresentados podem indicar às escolas caminhos para a prevenção da violência entre colegas a partir de uma atenção redobrada às estigmatizações decorrentes das classificações e ranqueamentos. O combate à violência escolar passa pelo questionamento das estruturas hierárquicas escolares e da valorização de relações mais horizontais entre estudantes, em que aspectos colaborativos e de identificação com fragilidades e erros possam ser valorizados no sentido de uma formação comprometida com a recusa e o repúdio a quaisquer formas de dominação entre os seres humanos.

4A pesquisa ‘Violência Escolar: discriminação, bullying e responsabilidade nas escolas de Guarulhos’ fez parte de uma investigação mais ampla, coordenada pelo prof. Dr. José Leon Crochick, financiada pelo CNPq e realizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Cultura, Diversidade e Educação, que realizou a coleta dos dados.

Como citar este artigo/How to cite this article

Dias, M. Á. L.; Andrade, P. F.; Carreira, J. L. C. As hierarquias escolares e a violência entre estudantes. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 28, e236059, 2023. https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a6059

Apoio/Support: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo nº 442702/2016-7)

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Recebido: 27 de Junho de 2022; Revisado: 24 de Janeiro de 2023; Aceito: 17 de Fevereiro de 2023

Editor responsável: José Carlos Bernardino de Carvalho Morgado.

Conflito de interesse: não há.

Correspondência para/Correspondence to: M. Á. L. DIAS. E-mail: marian.dias@unifesp.br.

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