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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023  Epub 06-Dez-2023

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a7462 

Artigos

Estudo sobre as características da formação continuada de professores alinhada à Base Nacional Comum Curricular

Study on the characteristics of teachers’ Continuing Education aligned to the National Common Curricular Base

Renata Helena Pin Pucci1 
http://orcid.org/0000-0002-8880-4243

Joyce Amador da Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-8286-6710

Thiago Antunes-Souza3 
http://orcid.org/0000-0002-5881-8855

1 Universidade Metodista de Piracicaba, Programa de Pós-graduação em Educação. Piracicaba, SP, Brasil.

2 Universidade Metodista de Piracicaba, Ciências da Saúde, Educação Física. Piracicaba, SP, Brasil.

3 Universidade Federal de São Paulo, Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas. São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

Com a implementação da Base Nacional Comum Curricular, diferentes políticas de formação docente têm sido formuladas visando à instituição de uma base igualmente comum para a formação docente. Assim, este estudo objetiva investigar as características da formação continuada, no âmbito da implementação da Base Nacional Comum Curricular, manifestadas nos documentos oficiais. Para tanto, foi desenvolvido: (1) o levantamento dos documentos oficiais relativos à formação continuada; (2) o levantamento da literatura sobre formação continuada; (3) a análise dos documentos oficiais em um diálogo com a literatura levantada. A perspectiva teórica que embasa o texto discute tanto as concepções e a racionalidade que compõem essas políticas educacionais na atualidade quanto a formação e atuação docente, para além do que os documentos deixam aparentar. As análises permitem caracterizar a atual proposta de formação continuada como: padronizadora, em alinhamento com as políticas neoliberais e que tende a valorizar a responsabilização e a instrumentação do docente. Conclui-se que essas políticas se distanciam de práticas formativas coletivas, sendo limitadoras da autonomia e tendo, na perspectiva do professor como um cumpridor de tarefas e metas, um aporte para consumar um projeto padronizado e reducionista de educação.

Palavras-chaves: Formação docente; Políticas de formação profissional; Revisão da literatura

Abstract:

Implementing the Common National Curricular Base has led to formulation of various teachers’ education policies with a view to establishing an equally common Base for Teacher Education. Thus, this study aims to investigate the characteristics of Continuing Education in implementing the Common National Curricular Base, as manifested in official documents. For this purpose, it was developed: (1) the survey of official documents related to Continuing Education; (2) the literature review on Continuing Education; (3) the analysis of official documents in dialogue with the literature surveyed. The theoretical perspective that supports the text discusses the conceptions and the rationality that make up these educational policies regarding the formation and performance of teachers, beyond what the documents let appear. The analyses allow us to characterize the current proposal of continuing education as standardizing, in alignment with neoliberal policies, and that tends to value the accountability and the instrumentation of the teacher. We conclude that these policies are far from collective practices, limiting autonomy and having in the teachers the perspective of a task- and goal-fulfiller and contributing to consummate a standardized and reductionist educational project.

Keywords: Teacher Education; Professional training policies; Literature review

Introdução

É consenso na literatura da área de formação docente a concepção de que a formação do professor se desenvolve como continuum. Em outras palavras, entende-se que a constituição de um profissional docente não começa e tampouco termina na primeira graduação, mas extrapola-a e é forjada por questões: (1) contextuais mais imediatas de seu ambiente de trabalho; (2) mais amplas da esfera política, econômica, cultural e social; (3) das relações que imbricam a história de vida dos sujeitos e seu percurso profissional; entre outros aspectos (Alvarado-Prado; Freitas; Freitas, 2010; Cunha, 2013; Nóvoa, 2022).

A formação continuada, nesse sentido, acontece durante todo o tempo de ofício dos professores e deveria ser mobilizada para compreensão mais ampla do próprio lugar (a instituição de ensino) em que se produz enquanto profissão (Cunha, 2013). Ao longo dos anos, várias concepções e práticas de formação continuada têm sido criadas e recriadas; contudo, ainda são bastante comuns as características identificadas há anos pela literatura:

[...] de suprir as lacunas existentes na formação ‘inicial’ docente; de sanar dificuldades escolares que acontecem no cotidiano escolar; de implantar políticas, programas, projetos, campanhas, principalmente governamentais; de adquirir certificados (créditos) para ascender na carreira e/ou obter benefícios salariais; de satisfazer interesses ou necessidades de conhecimentos específicos, ou seja, cursos de curta duração que contribuem apenas para cumprir uma exigência social (Alvarado-Prado; Freitas; Freitas, 2010, p. 371).

Atreladas aos fins da formação, figuram também as críticas em relação às recentes políticas de formação docente, emergentes no âmbito da implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017b), como a ausência de diálogo com a comunidade escolar e acadêmica na constituição dessas diretrizes (Freitas, 2020), a intenção expressa de afastar as universidades das ações de formação continuada de professores (Pucci; Antunes-Souza, 2021) e o avanço das relações público-privadas na educação, que ocorre também através do fomento às iniciativas de formação continuada por instituições/associações/órgãos privados, com o estreitamento das relações de empresas e grandes conglomerados do campo da educação em parcerias com estados e municípios (Costa; Faria; Souza, 2019).

Tendo em vista essas críticas que abordam a formação docente, em especial a formação continuada, considera-se oportuno e premente reunir as peculiaridades dessa formação visando ao seu entendimento e angariando argumentos para a discussão dessa questão na área da formação de professores no atual cenário.

Nesse sentido, este artigo, de natureza teórica, tem por objetivo investigar quais são as características da formação continuada, no âmbito da implementação da BNCC, manifestadas nos documentos oficiais - neste caso, às resoluções do Conselho Nacional de Educação concernentes à BNCC e à formação de professores no contexto de sua implementação. Compõem, ainda, o conjunto de textos em análise nesta pesquisa, artigos acadêmico-científicos e manifestos de associações nacionais da área de formação de professores referentes ao tema.

Nesses termos, o referencial crítico que subjaz as discussões deste estudo é baseado em escritos de autores que se debruçaram sobre a temática das recentes mudanças e reformas curriculares brasileiras, como Diniz-Pereira (2021), Hypolito (2021) e Dourado e Siqueira (2019). Esses estudiosos apresentam as concepções e a racionalidade que compõem as políticas educacionais de formação de professores na atualidade e ampliam a perspectiva quanto à formação e atuação docente, para além do que os documentos deixam aparentar.

Procedimentos Metodológicos

Para construir o caminho da pesquisa e alcançar o objetivo proposto, foi desenvolvido: (1) o levantamento de documentos oficiais relativos à formação continuada a partir da implementação da BNCC; (2) o levantamento da literatura (artigos e manifestos publicados) sobre a formação continuada nesse contexto; (3) a análise dos documentos oficiais encontrados em um diálogo com a literatura levantada, a partir de estudos críticos da área.

O levantamento bibliográfico como etapa de mapeamento da temática (Vosgerau; Romanowski, 2014) considerou os documentos oficiais relativos à formação continuada, publicados a partir de 2017 (implementação da BNCC) no site do Ministério da Educação (MEC)4 e em outros sites de consultas referentes à Legislação da Educação. No Quadro 1 estão elencados os documentos considerados neste estudo.

Quadro 1. Documentos oficiais selecionados. 

Ano Nome Descrição
2017 Resolução nº1, de 9 de agosto de 2017. Altera o art. 22 da Resolução CNE/CP nº2, de 1º de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados e de segunda licenciatura) e para a formação continuada.
2017 Resolução n°2, de 22 de dezembro de 2017. Resolução CNE/CP n°2 de 22 de dezembro de 2017, que define a educação como direito de todos, estabelece o dever do estado garantindo a educação, e uma comunicação entre estado, distrito federal e municípios para que possa existir uma base comum curricular em todo o Brasil.
2018 Resolução n°3, de 3 de outubro de 2018. Altera o art. 22 da Resolução CNE/CP nº2, de 1º de julho de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados e de segunda licenciatura) e para a formação continuada.
2018 Resolução n°4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base Nacional Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da educação básica, nos termos do art. 35 da LDB, completando o conjunto constituído pela BNCC da educação infantil e do ensino fundamental, com base na Resolução CNE/CP nº2/2017, fundamentada no Parecer CNE/CP nº15/2017.
2019 Resolução n°1, de 2 de junho de 2019. Altera o art. 22 da Resolução CNE/CP nº2, de 1º de julho de 2015, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados e de segunda licenciatura) e para a formação continuada.
2019 Resolução n°2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores para a educação básica e institui a Base Nacional Comum para a formação inicial de professores da educação básica (BNC-Formação).
2020 Resolução n°1, de 27 de outubro de 2020. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação continuada de professores da educação básica e institui a Base Nacional Comum para a formação continuada de professores da educação básica (BNC-Formação Continuada).

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

A busca de artigos sobre a formação continuada na BNCC foi realizada no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e no Google Acadêmico, em março de 2022, com os descritores “formação continuada” and BNCC, com o período delimitado a partir de 2017.

A partir dos critérios de inclusão de textos - ou seja, aqueles que traziam os descritores BNCC e “formação continuada” no título, resumo ou palavras-chave e que tratassem do tema do estudo -, chegou-se a 13 investigações. Foram excluídos textos que traziam outros assuntos no âmbito da BNCC e aqueles que não estavam disponíveis na íntegra ou não puderam ser localizados. Entre os textos excluídos estão aqueles que abordavam temas como o ensino de disciplinas específicas (geografia, matemática, língua portuguesa etc.) e BNCC, educação especial, educação infantil, entre outros estudos que não se encaixavam na proposta. Dessa seleção, foram obtidos os textos apresentados no Quadro 2.

Quadro 2. Artigos selecionados. 

Título Autor(es) Meio e ano de publicação
Análise de um Programa de Formação Continuada com Ênfase na BNCC: Avaliação e Participação Docente. Vanessa de Cassia Pistóia Mariani; Lenira Maria Nunes Sepel. Revista Temas em Educação, 2019.
A Formação Continuada de Professores e a Elevação da Qualidade da Educação Básica. Regina Magna Bonifácio de Araujo; Maria Manuela Franco Esteves. EccoS: Revista Científica, 2019.
O discurso curricular da proposta para BNC da formação de professores da educação básica. Isabel Maria Sabino de Farias. Retratos da Escola, 2019.
Dialogando sobre a BNCC, o Currículo e a sua Interferência para a Formação de Professores. Sawana Araújo Lopes de Souza; Maraiane Pinto de Sousa; Wilson Honorato Aragão. Revista on line de Política e Gestão Educacional, 2020.
A Resolução CNE/CP nº2/2019 e os retrocessos na formação de professores. Suzane da Rocha Vieira Gonçalves; Maria Renata Alonso Mota; Simone Barreto Anadon Formação em Movimento, 2020.
BNC para formação docente: um avanço às políticas neoliberais de currículo. Manuella de Aragão Pires; Lívia de Rezende Cardoso. Série-Estudos, 2020.
A didática nas Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação de Professores da Educação Básica: impasses, desafios e resistências. Cristina d’Ávila. Revista Cocar, edição especial, 2020.
BNC-Formação e a Formação Continuada de Professores. Adrinelly Lemes Nogueira; Maria Célia Borges. Revista on line de Política e Gestão Educacional, 2021.
Implicações da BNC-formação para a universidade pública e formação docente. Eliane Miranda Costa; Cleide Carvalho de Mattos; Vivianne Nunes da Silva Caetano. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 2021.
Política curricular de formação de professores/as da educação infantil e do ensino fundamental: uma análise crítica da BNC das Licenciaturas. Adriana Regina de Jesus Santos; Angélica Lyra de Araújo; João Fernando de Araújo. Cadernos Cajuína, 2021.
Recentes Imposições à Formação de Professores e seus Falsos Pretextos: as BNC Formação Inicial e Continuada para Controle e Padronização da Docência. Larissa Zancan Rodrigues; Beatriz Pereira, Adriana Mohr. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, 2021.
Base Nacional Comum para formação de professores da educação básica: em foco os jogos políticos e a responsabilização docente. Débora Raquel Alves Barreiros; Rosalva de Cássia Rita Drummond. Currículo sem Fronteiras, 2021.
Formação e trabalho docente: intencionalidades da BNC-Formação Continuada. Eliane Miranda Costa; Cleide Carvalho de Matos; Vivianne Nunes da Silva Caetano. Currículo sem Fronteiras, 2021.

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Também foi realizado um levantamento de manifestos que abordam a formação continuada através de consulta às páginas oficiais de associações nacionais como Anfope, Anpae, ANPEd5, entre outras, e os seguintes documentos referiam-se à temática e foram selecionados: 1. Manifesto contra a desqualificação da formação dos professores da educação básica ANPED; e 2. Publicação no site da Executiva Nacional de Estudantes de Pedagogia: “BNC da Formação Continuada é elaborada a portas fechadas”6. Os manifestos e notas de associações nacionais da área da Educação são relevantes, pois apontam para as discussões de um coletivo mediante as ações tomadas em instâncias oficiais que afetam a todos os envolvidos no trabalho docente.

A aproximação e análise dos dados foram baseadas na análise de conteúdo temática, de acordo com Gomes (2016). A trajetória sugerida pelo autor compreende, inicialmente, a leitura compreensiva do material selecionado, visando:

a) ter uma visão de conjunto; b) apreender as particularidades do conjunto do material a ser analisado; c) elaborar pressupostos iniciais que servirão de baliza para a análise e interpretação do material; d) escolher formas de classificação inicial; e) determinar os conceitos teóricos que orientarão a análise (Gomes, 2016, p. 83).

Neste caso, o conjunto do material a ser analisado, constituído pelos documentos oficiais, manifestos e artigos levantados da literatura, foi lido e estudado a partir de um olhar crítico para as políticas educacionais contemporâneas, de cunho neoliberal, e, em uma classificação inicial, buscou-se entender como os textos dos documentos oficiais poderiam ser lidos a partir das lentes desse referencial crítico (Diniz-Pereira, 2021; Hypolito, 2021; Dourado; Siqueira, 2019) e dos textos levantados.

Em seguida, trechos e fragmentos dos textos selecionados na classificação inicial foram recuperados e outra leitura compreensiva do material foi realizada, estabelecendo um diálogo entre o conjunto do material, os trechos selecionados e a perspectiva crítica, e elaboraram, assim, os núcleos de sentidos ou eixos de sistematização da análise. As discussões foram distribuídas nos seguintes eixos: I. documentos oficiais - BNCC e BNC Formação, através do qual se buscou conhecer esses documentos e dialogar com eles; e II. Delimitando as características da formação continuada na BNCC, no qual as principais convergências sobre os traços constitutivos da política de formação continuada alinhada à BNCC foram organizadas.

Resultados e discussão

Os documentos oficiais: BNCC e BNC Formação

As recomendações para a formação continuada encontradas no âmbito da BNCC são, primordialmente, o aperfeiçoamento do docente e novas experiências e práticas que ainda precisam ser dominadas, sendo o docente já formado ou não. No ano de 2017, na primeira regulamentação destacada, tem-se o art. 1º, que altera o previsto no art. 22 da Resolução CNE/CP n 2, de 1º de julho de 2015, que passa a ter a seguinte redação: “Art. 22. Os cursos de formação de professores que se encontram em funcionamento deverão se adaptar a esta Resolução no prazo de 3 (três) anos, a contar da data de sua publicação” (Brasil, 2017a). O art. 2º da mesma resolução diz que o documento entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Assim inicia-se a alteração da Resolução CNE/CP nº2, de 1º de julho de 2015 que, até então, definia as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados e de segunda licenciatura) e para a formação continuada.

Também de 2017, a Resolução CNE/CP n° 2, de 22 de dezembro de 2017, institui a Base Nacional Comum Curricular e destaca o que será o novo modelo da grade comum curricular, estabelecendo uma comunicação entre estado, distrito federal e municípios para que exista uma base comum curricular em todos os lugares do Brasil. O texto da lei apoia-se no da LDB (Brasil, 1996), entre outros, que, em seu art. 26, na redação dada pela Lei nº 12.796/2013, estipula que:

[...] os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (Brasil, 1996, online).

No capítulo I, art. 1º desse documento, tem-se a descrição do caráter normativo da proposta:

Art. 1º A presente Resolução e seu Anexo instituem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), como documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais como direito das crianças, jovens e adultos no âmbito da Educação Básica escolar, e orientam sua implementação pelos sistemas de ensino das diferentes instâncias federativas, bem como pelas instituições ou redes escolares (Brasil, 2017b, p. 4).

Quanto à formação continuada, o documento pontua, no art.17, parágrafo 1º, que “a adequação dos cursos e programas destinados à formação continuada de professores pode ter início a partir da publicação da BNCC” (Brasil, 2017b, p. 11). No art. 2º há a indicação de que a formação deve ser propiciada através do desenvolvimento de ferramentas tecnológicas elaboradas em colaboração com os sistemas de ensino. Há, conforme visto, além da tentativa de padronização da formação continuada, também a de controle por parte dos sistemas de ensino, retirando de cada escola, de cada coletivo, a prerrogativa da formação de seus professores. Sobre a BNCC e os documentos que dela derivam, Dourado e Siqueira (2019, p. 291) preveem que sua “[...] materialização e concretude poderá implicar em retrocessos na gestão democrática e na autonomia dos sistemas e instituições educativas, nas dinâmicas curriculares, nos processos formativos e na autonomia docente”, perspectiva enfatizada também por Diniz-Pereira (2021, p. 69), que discute que a busca da congruência entre a uniformização dos currículos da educação básica proposta pela BNCC e a formação de professores promove um “enorme retrocesso em termos do que vinha se construindo no Brasil nas últimas décadas”, na formação inicial e continuada.

Na Resolução CNE/CP nº 3, de 3 de outubro de 2018, fica revogada a Resolução CNE/CP nº 1, de 9 de agosto de 2017, e um novo prazo é estipulado para a adequação dos cursos de formação de professores. O art.1º determina: “Os cursos de formação de professores que se encontram em funcionamento deverão se adaptar a esta Resolução no prazo improrrogável de 4 (quatro) anos, a contar da data de sua publicação” (Brasil, 2018a, online).

A Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018 (Brasil, 2018b), institui a Base Nacional Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM). Essa etapa teve, portanto, sua base desenvolvida posteriormente às etapas da educação infantil e do ensino fundamental e está alinhada à Resolução CNE/CEB nº 3/2018, que atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; ou seja, a partir dela, os currículos do ensino médio devem ser compostos, indissociavelmente, por formação geral básica e por itinerários formativos. As disposições gerais desse documento confluem às da resolução que institui a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017b).

O texto da Resolução CNE/CP nº 1, de 2 de julho de 2019, revoga a Resolução CNE/CP nº 3, de 3 de outubro de 2018 e muda, uma vez mais, o prazo para os cursos de formação de professores se adaptarem à BNCC:

Os cursos de formação de professores, que se encontram em funcionamento, deverão se adaptar a esta Resolução no prazo máximo de 2 (dois) anos, contados da publicação da Base Nacional Comum Curricular, instituída pela Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017, publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 22 de dezembro de 2017 (Brasil, 2019a, online).

A Resolução CNE/CP nº2, de 20 de dezembro de 2019, define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Segundo estudiosos das políticas educacionais, essa resolução foi bastante criticada por instituições e organizações acadêmicas e universitárias, pela ausência de discussão durante seu processo de constituição. Ressalta-se que a Resolução CNE/CP nº2/2019, revoga a Resolução nº2/2015 (Brasil, 2015) e, com isso, segundo Rodrigues, Albino e Honorato (2021), há a descaracterização da formação, que é cindida em formação inicial e continuada, e o silenciamento da discussão de uma política de valorização do magistério brasileiro.

A Resolução CNE/CP nº 2/2015 foi bastante celebrada no meio acadêmico “por ter sido um documento construído a partir de um amplo debate realizado com as entidades acadêmicas, universidades, sindicatos, e professores da Educação Básica” e também por “[...] contemplar em seu texto concepções historicamente defendidas por entidades da área” (Gonçalves; Mota; Anadon, 2020, p. 364).

Na Resolução CNE/CP nº 2/2019, destacam-se a formação de professores e seus princípios, como: “[...] a formação docente para todas as etapas e modalidades da Educação Básica como compromisso de Estado’’; “[...] a valorização da profissão docente, que inclui o reconhecimento e o fortalecimento dos saberes e práticas específicas de tal profissão’’; “[...] a garantia de padrões de qualidade dos cursos de formação de docentes ofertados pelas instituições formadoras nas modalidades presencial e a distância’’ (Brasil, 2019b); entre outros. Já o texto da Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020, relata algumas considerações sobre a formação dos professores e considera dever do professor zelar pela aprendizagem dos alunos. O documento orienta sobre cursos e programas para a formação continuada de professores e traz a concepção de Formação ao Longo da Vida, em que as políticas “implementadas pelas escolas, redes escolares ou sistemas de ensino, por si ou em parcerias com outras instituições, devem ser desenvolvidas em alinhamento com as reais necessidades dos contextos e ambientes de atuação dos professores” (Brasil, 2020, p. 6).

Considera-se essas duas últimas resoluções (Brasil, 2019b, 2020) as mais relevantes para análise e, nesse sentido, elas serão mais bem discutidas na continuidade deste texto.

Conhecendo, assim, esses documentos, foi possível depreender dos estudos levantados que a concepção de formação em uma perspectiva de “originar reflexão, mudança, superação de dificuldades e considerar saberes que os docentes já possuem” contrasta com a referência trazida pela BNC-Formação, pois “[...] não bastam cursos rápidos, oferecidos em larga escala, simplesmente para certificação e cumprimento de apresentação legal junto às mantenedoras, para fins de comprovação e mudança de nível, junto aos planos de carreira” (Mariani; Sepel, 2019, p. 26). Ao ressaltarem a valorização dos saberes docentes e a relevância das práticas colaborativas, Mariani e Sepel (2019) evidenciam a importância das singularidades de um coletivo na formação continuada docente, em contradição às formações gerais e homogêneas. Ao discorrer sobre a padronização curricular e a da formação docente, Hypolito (2021, p. 7) pontua que a BNCC e a BNC-Formação são políticas articuladas e que se apoiam “[...] no discurso de que é necessário padronizar o currículo da escola básica e padronizar a formação docente”.

Na mesma direção dos autores acima citados, Araujo e Esteves (2019) compreendem a formação continuada como um processo que é realizado ao longo da carreira do professor, em um movimento que se deseja permanente e tem por característica, também desejada, a inclusão de modelos colaborativos e participativos.

Ressaltamos que a mesma [formação continuada] não se efetiva apenas em cursos e palestras que objetivam ‘capacitar’ o professor numa temática em específico, mas num processo regular, efetivo, construído a partir das demandas reais identificadas na prática docente, na parceria entre formadores e professores ou apenas entre professores, capaz de gerar conhecimento pedagógico a partir da reflexão teórica sobre essa mesma prática (Araujo; Esteves, 2019, p. 2).

As autoras criticam a racionalidade tecnocrática, amparada em uma ideologia neoliberal, à que tentam sujeitar a escola. Nesse esteio, a formação defendida pelas autoras não harmoniza com a racionalidade que referenda a BNCC, a qual foi edificada em um contexto educacional regido por políticas neoliberais.

Outros textos levantados também partem da premissa de que as políticas atuais de formação de professores estão fundadas em um contexto neoliberal: Gonçalves, Mota e Anadon (2020); Costa, Matos e Caetano (2021a); Pires e Cardoso (2020); D’ávila (2020). Na educação, o neoliberalismo associa-se a um modelo de gestão da educação pública que atrai o setor privado com benefícios e privilégios e, aos filhos da classe trabalhadora, impõe uma educação que atenda ao perfil do mercado, com habilidades e competências que os tornem servidores capazes (Antunes, 2018).

Costa, Matos e Caetano (2021a) situam a reflexão da Resolução CNE/CP nº 1/2020 sobre a formação continuada de professores em um:

[...] contexto de reestruturação produtiva pela qual o sistema capitalista neoliberal tem produzido novos arranjos no mercado de trabalho, os quais afetam diretamente a educação, os professores e sua formação inicial e continuada para adequar o trabalhador aos ditames do capital (Costa; Matos; Caetano, 2021a, p. 1190).

A análise de Nogueira e Borges (2021, p. 188) sobre as novas Diretrizes Curriculares para Formação Inicial de Professores da Educação Básica, que instituem a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), evidencia que a formação continuada de professores da educação básica “[...] tem sido negativamente impactada pela nova resolução, representando retrocessos para a formação nos aspectos teóricos-científicos e práticos e, ainda, com ganhos para os pressupostos do mercado educacional”. Outros autores também advogam nessa direção (Hypolito, 2021; Pucci; Antunes-Souza, 2021). De acordo com as autoras, a BNC-Formação, buscando a eficácia e o desenvolvimento de competências, impacta a formação continuada, podendo fazer dessa um espaço “[...] de preparação dos professores, de compensação da sua formação inicial, de separação teoria-prática, ou seja, torna a formação continuada algo supérfluo na formação docente” (Nogueira; Borges, 2021, p. 200).

Quanto aos manifestos encontrados sobre a BNCC e a formação continuada, dois podem ser destacados: o primeiro, publicado no site da Executiva Nacional de Estudantes de Pedagogia, denominado “BNC da Formação Continuada é elaborada a portas fechadas”, comenta o Parecer CNE/CP n°14/2020 e aborda o tema de forma bastante crítica, principalmente no que se refere ao governo, apontando para a propensão desse no estabelecimento de parcerias com empresas, ensejando uma formação de professores padronizada. Segundo o manifesto, da maneira como o ensino aparece organizado, pautado nos métodos ativos e na didática de resolução de problemas, o que se prevê, ao longo do tempo, é que os professores passarão a ser mediadores e organizadores de atividade, e não os responsáveis por transmitir o conhecimento científico e prático. Foi observado que as políticas de formação com base na BNCC possuem interesse em implantar uma formação de professores dentro da lógica empresarial, na qual os professores seriam responsáveis por procurar sua formação individual, responsabilizados pelo sucesso ou fracasso educacional dos seus alunos e da educação, destituindo a educação continuada dos professores enquanto direito.

No manifesto contra a desqualificação da formação dos professores da educação básica elaborado pela Anfope, Anped, Anpae e Forumdir, a nota de repúdio é para a Resolução CNE/CP n⁰01/2020 e o Parecer CNE/CP n⁰14/2020, compreendendo-os como desmonte e desqualificação da formação de professores no Brasil, com vistas à formação continuada. O documento pontua que vários manifestos, pesquisas e debates sobre o tema foram realizados pelas entidades educacionais, porém não foram considerados na aprovação dessas políticas de formação docente. Assim, os documentos oficiais relativos à formação docente têm caráter autoritário, pois o processo de elaboração deles não contou com a publicização da pauta e com a participação de entidades acadêmicas, científicas, sindicais, fóruns estaduais e representantes das instituições de ensino. No manifesto são levantados vários pontos relativos aos documentos supracitados que precisariam de discussão e problematização, como, por exemplo, a apresentação da formação inicial e continuada de forma fragmentada, tomando essa como complementaridade e correção da formação inicial. Nesse sentido, as entidades autoras do manifesto se posicionaram pela revogação desses documentos oficiais e pelo restabelecimento do debate público com as instituições de formação de professores, pesquisadores do campo e representantes dos movimentos educacionais, sociais e sindicais.

Conforme depreendido dos textos lidos e discutidos, há um consenso de que é necessário se debruçar sobre as políticas atuais de formação docente e compreender o que elas carregam consigo que fere a amplitude da formação de professores e que contribui para uma formação tecnicista que pouco incide na melhoria da aprendizagem dos alunos, em uma perspectiva autônoma e crítica, além de acentuar a responsabilidade docente sem mencionar quaisquer garantias de condições de trabalho.

Delimitando as características da formação continuada na BNCC

Para tecer as características da formação continuada na BNCC, seguiu-se em diálogo com os documentos oficiais e a literatura levantada sobre o tema. Os documentos analisados e discutidos são, prioritariamente, a Resolução n° 2, de 20 de dezembro de 2019, e a Resolução n° 1, de 27 de outubro de 2020. As características mais evidentes observadas são descritas a seguir:

Primeira característica: padronização da formação docente

Ao estipular documentos minuciosos, amparados nas competências e habilidades indicadas na BNCC, é imposta a padronização da formação docente. No art. 3º da Resolução CNE/CP n° 02/2019:

Art. 3º Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes.

Parágrafo único. As competências gerais docentes, bem como as competências específicas e as habilidades correspondentes a elas, indicadas no Anexo que integra esta Resolução, compõem a BNC-Formação (Brasil, 2019b).

Costa, Matos e Caetano (2021a, p. 1197) explanam que as referidas resoluções têm a intenção de “[...] padronizar a formação à revelia de competências previamente determinadas”, o que faz do professor um cumpridor de tarefas e metas.

Nessa direção, Gonçalves, Mota e Anadon (2020) destacam que, estabelecendo a forma como a carga horária deve ser distribuída, não apenas em termos de horas, mas também em conteúdos e anos do currículo, a Resolução CNE/CP n°02/2019 não só padroniza como também engessa os cursos de formação de professores. “A organização descrita em detalhes limita a autonomia das universidades na organização curricular dos cursos” (Gonçalves; Mota; Anadon, 2020, p. 368).

É importante salientar que a literatura aponta para a verticalidade da elaboração e imposição dessas políticas de formação; ou seja, de cima para baixo e sem a participação ampla de entidades e profissionais da educação. De acordo com Rodrigues, Pereira e Mohr (2021, p. 32), ocorre “[...] uma tentativa de apagamento, por parte dos reformadores empresariais, daquilo que estava sendo paulatinamente construído pela área de pesquisa em Formação de Professores (mediante atuação de associações profissionais e científicas)” em prol da padronização curricular que se inicia na educação básica, com a BNCC, e se estende até a pós-graduação, através da BNC-Formação e BNC-Formação Continuada.

Segunda característica: formação alinhada às políticas neoliberais

Conforme já constatado neste texto, as pesquisas nas quais a discussão sobre as políticas de formação se ampara, em especial a formação continuada no âmbito da BNCC, afirmam que essas são de cunho neoliberal e, a partir dessa constatação, há uma abertura para a entrada do setor privado na educação brasileira. Compreendendo esse contexto, Michetti (2020) explica que:

Atualmente, um dos agentes que tomam parte nessas disputas são organizações sem fins lucrativos ligadas ao universo corporativo. Elas atuam de diversas maneiras, como em parcerias com secretarias municipais e estaduais de educação, na formação de ‘líderes’, em premiações de ‘boas práticas’, no financiamento de pesquisas na área de educação e na formação de ‘coalizões’ para a consecução de políticas educacionais de amplo escopo, como a criação da chamada ‘Base Nacional Comum Curricular’ (BNCC) (Michetti, 2020, p. 1).

Essas organizações privadas que influenciam na educação, em última instância, são grupos empresariais que atuam no mercado; assim, o produto desse empreendimento é uma forma de lucro - e qual seria esse produto com o qual essas iniciativas poderiam lucrar? Segundo Campos e Durli (2020, p. 253), uma justificativa para a participação protagonista dessas instituições em uma Base Comum Curricular seria “[...] a formação de um novo tipo de trabalhador mais adequado às demandas atuais do capital”.

Para Costa, Matos e Caetano (2021a), a Resolução CNE/CP nº 1/2020, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada):

[...] integra o pacote de dispositivos aprovados com o intuito de materializar a Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC) referente às etapas da Educação Infantil e Ensino Fundamental (Resolução CNE/CP nº 2/2017) e o Ensino Médio (Resolução CNE/CP nº 04/2018). A BNCC é o eixo e a principal escala estruturante de um projeto societal, que ancorada no capital neoliberal e suas faces meritocrática, excludente e neofacista, tem por perspectiva a padronização, homogeneização e elitização da educação pública brasileira (Costa; Matos; Caetano, 2021a, p. 1189).

Na visão das autoras, a própria reformulação da política para a formação de professores vem referendar a reestruturação produtiva que o sistema capitalista exige, com ‘novos’ arranjos de trabalho que requerem que a educação forme esses ‘novos’ trabalhadores; por isso, ‘novos’ paradigmas e ‘novos’ modelos formativos para os professores realizarem essa tarefa ganham destaque (Costa; Matos; Caetano, 2021a).

A avaliação é uma característica das políticas de cunho neoliberal, como as aqui abordadas, que visam ao controle dos processos. Dito isso, devem-se destacar que a Resolução nº2/2019 tem um capítulo para tratar de processo avaliativo interno e externo. Gonçalves, Mota e Anadon (2020, p. 369) pontuam que há uma “[...] tendência assumida nas atuais Diretrizes de padronizar o currículo para ter parâmetros para avaliar, assim o que está a luz da nova proposta curricular não é a qualificação da formação docente, mas a avaliação”.

Terceira característica: responsabilização docente

A responsabilização docente pelo próprio desempenho e estudo, ou sua autorresponsabilização, sem menção às condições de trabalho que ele precisa ter para que isso ocorra, pode ser evidenciada na perspectiva da Aprendizagem ao Longo da Vida, constante nas resoluções e que responsabiliza o sujeito por sua formação e o adequa ao trabalho desejado.

A autorresponsabilização docente é trazida na Resolução CNE/CP nº2/2019, compondo uma das dimensões centrais da prática docente, o “engajamento profissional”. Nesse documento também são encontradas competências que são esperadas do docente, como “capacidade de abertura ao novo”, “amabilidade”, “autogestão”, “engajamento com os outros” e “resiliência emocional”. Segundo Pires e Cardoso (2020, p. 84-85), essas “competências compreendem também estratégias de governamento, mais especificamente, trata-se da tecnologia de autogoverno, ou seja, do governo de si”, assim, conforme o documento, é de responsabilidade dos docentes desenvolvê-las para realizar seu trabalho. Sobre essas competências, a Resolução CNE/CP nº 2/2019, pontua:

[...] o desenvolvimento delas promove avanços no aprendizado dos estudantes e impactam suas vidas no momento atual e no futuro, estas deixam de ser ocasionalmente promovidas por docentes bem-intencionados e passam a configurar como prática pedagógica altamente relevante, intencional e, no bojo da BNCC, obrigatórias (Brasil, 2019b, p. 16).

Importa destacar que as chamadas competências socioemocionais, que aparecem nas competências elencadas na BNCC, não apresentam respaldo teórico ou conceitual nos documentos alinhados à Base. Lemos e Macedo (2019, p. 60), nesse interim, pontuam que “[...] o debate acerca de competências socioemocionais se encontra na encruzilhada de muitos outros debates no contexto das relações entre educação e economia”. Nesse esteio, uma conjectura possível é que essas competências e habilidades visam à formação de sujeitos adaptáveis às demandas do capitalismo, às exigências do mercado.

Na Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica, art. 5º, também os professores são responsabilizados pelo êxito ou insucesso dos alunos. Consta no documento: “[...] reconhecimento e valorização dos docentes como os responsáveis prioritários pelo desenvolvimento cognitivo, acadêmico e social dos alunos, a partir de uma formação sólida que leve em conta o conhecimento profissional; a prática profissional; e o engajamento profissional” (Brasil, 2020, p. 3).

Barreiros e Drummond (2021) enfatizam que é explícita a ação política pautada na autorregulação e na performance, que é voltada à formação de professores e de currículo. “Objetivos de controle que se enunciam nos textos das políticas curriculares para a formação docente buscam a autorregulação desses profissionais no cumprimento de metas de resultados em relação ao desempenho dos estudantes, da escola e dos professores [...]” (Dias; Ponce, 2015, p. 612).

Quarta característica: formação de caráter pragmático

Costa, Matos e Caetano (2021a, p. 1198) inferem que a formação continuada proposta nas resoluções desconsidera a dialética entre teoria e prática, o “[...] que reduz os processos formativos a transmissão de conteúdos relacionados ao desenvolvimento de competências e habilidades pautadas no saber fazer”.

No art. 5º da Resolução CNE/CP nº 1/2020, tem-se a evidência da diretriz para um professor que saiba “acompanhar” as aprendizagens essenciais, como segue:

II - Reconhecimento e valorização, no âmbito da Educação Básica, das instituições de ensino - com seu arcabouço próprio de gestão, e condicionada às autoridades pertinentes - como estrutura preferencial para o compartilhamento e a transmissão do conhecimento acumulado pela humanidade, promovendo o desenvolvimento de habilidades cognitivas - para assimilá-lo, transformá-lo e fazê-lo progredir - e a aquisição de competências sociais e emocionais - para fruí-lo plenamente (Brasil, 2020, p. 3).

Para Gonçalves, Mota e Anadon (2020, p. 370), a Resolução nº 2/2019, com a ideia de que a formação do docente é voltada ao desenvolvimento de determinados saberes em seus alunos, deixa claro que o trabalho docente se resume em “[...] traduzir e ter os atributos necessários para colocar em prática o que já está definido na BNCC. Ademais, ao analisar as competências indicadas na BNC-Formação estas estão centradas no saber fazer”.

Pires e Cardoso (2020, p. 85), que analisaram desde a proposta inicial da BNC-Formação, afirmam que os documentos indicam uma tendência que “[...] restringe a aprender habilidades e competências numa preocupação no ‘saber-fazer’, o que transforma o docente em um técnico e reprodutor de pacotes pedagógicos e de práticas estabelecidas em contextos específicos” e, nesse sentido, minimizam a relevância da formação teórico-reflexiva na concepção de docência.

Em uma perspectiva de controle e regulação, como a das resoluções discutidas, Costa, Matos e Caetano (2021b) enfatizam que há, ainda, uma violação da autonomia docente, pois existe uma limitação das possibilidades do trabalho docente em uma perspectiva reflexiva e crítica. “O trabalho docente é, na verdade, secundarizado e pautado em resultados que deverão ser demonstrados pelos alunos nas avaliações padronizadas” (Costa; Matos; Caetano, 2021b, p. 906). As autoras fazem coro com outros estudiosos das políticas educacionais que afirmam que esse modelo formativo alude à educação tecnicista, já ultrapassada, que enfatizava a técnica em detrimento das concepções teóricas e humanas.

Considerações Finais

Com o objetivo de compreender as características da formação continuada a partir da implementação da BNCC, foi realizado o um levantamento dos documentos oficiais e da literatura (artigos e manifestos publicados) sobre o assunto, e bem como uma análise dos documentos oficiais no em diálogo com a literatura da área.

As análises apontaram para a relevância das Resoluções CNE/CP nº2/2019 e CNE/CP nº1/2020 que, de fato, direcionam a formação continuada em âmbito nacional na atualidade, as quais permitiram que os autores caracterizassem a formação continuada no âmbito da BNCC como: padronizadora, em alinhamento com as políticas neoliberais e que tende a valorizar a responsabilização e a instrumentação do docente. Conclui-se, referenciando estudiosos da área, que as políticas atuais de formação continuada são limitadoras da prática e da autonomia docente e têm, na perspectiva do professor como um cumpridor de tarefas e metas, um aporte para consumar um projeto padronizado, reducionista e neoliberal de educação.

Desse modo, é notório um movimento de retrocesso e desconsideração das propostas de formação continuada há anos apresentadas pela literatura educacional, que se distanciam do isolamento e da responsabilização do professor e vão em direção às práticas coletivas para o desenvolvimento profissional e a ressignificação de compreensões acerca do seu objeto (o ensino) e seu lugar de trabalho (a escola).

Nesse sentido, refletiu-se juntamente com os autores aqui estudados que, diante da imposição de políticas de formação tecnicistas, que remetem a um tempo que se pretendia ultrapassado na educação e na formação docente, é imprescindível a manutenção dos debates sobre as políticas de formação impostas com o propósito de questioná-las, desvendá-las e, oxalá, superá-las.

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5 Anfope: Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação; ANPAE: Associação Nacional de Política e Administração da Educação; ANPEd: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.

7Editor responsável: Samuel Mendonça

Como citar este artigo/How to cite this article Pucci, R. H. P.; Silva, J. A.; Antunes-Souza, T. Estudo sobre as características da formação continuada de professores alinhada à Base Nacional Comum Curricular. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 28, e237462, 2023. https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a7462.

Recebido: 16 de Fevereiro de 2023; Revisado: 21 de Julho de 2023; Aceito: 01 de Agosto de 2023

Correspondência para/Correspondence to: R. H. P. PUCCI. E-mail: <renata_pucci@hotmail.com>.

Conflito de interesse: Não há

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