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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023  Epub 30-Fev-2024

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8562 

Artigos

Trajetórias acadêmicas de diplomadas(os) em Ciências da Educação

Academic trajectories of graduates in Education Sciences

Miguel Correia1  , conceitualização teórica, metodologia, escrita e formatação
http://orcid.org/0000-0002-6663-3789

Henrique Vaz2  , conceitualização teórica, metodologia, supervisão
http://orcid.org/0000-0002-9061-0878

1Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Centro de Investigação e Intervenção Educativas. Porto, Portugal.

2Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Centro de Investigação e Intervenção Educativas. Porto, Portugal.


Resumo

A presente pesquisa, alicerçada no conhecimento produzido em torno da profissionalidade em Ciências da Educação, teve por objetivo explorar as trajetórias acadêmicas de ex-estudantes do curso de Ciências da Educação com uma experiência profissional superior a 7 anos. Para tal, construíram-se 21 retratos sociológicos com o propósito de captar as trajetórias acadêmicas e os caminhos profissionais destas pessoas. A partir destes retratos, procedeu-se à tipificação das trajetórias acadêmicas por meio da construção de ideais-tipo: lineares, de especialização, de reformulação e de reconstrução. Numa perspetiva ampla, as trajetórias acadêmicas surgem imbricadas com os percursos profissionais, suscitando reflexões profundas em torno da profissionalidade em Ciências da Educação.

Palavras-chave: Ciências da Educação; Ensino Superior; Relação Educação-Trabalho

Abstract

The present research is grounded in the knowledge produced around the work in Education Sciences and aimed to explore the academic trajectories of former students of Education Sciences with a professional experience of more than 7 years. To this end, 21 sociological portraits were built to capture the academic trajectories and professional paths of these individuals. We proceeded to typify academic trajectories by constructing ideal-types from these portraits: linear, specialization, reformulation, and reconstruction. From a broad perspective, academic trajectories appear intertwined with professional paths, giving rise to profound reflections about the work in the field of Education Sciences.

Keywords: Education Sciences; Higher Education; Education-Work Relationship

Introdução

O ensino superior remonta, no ocidente, aos séculos XI e XII, com o propósito de agregar o pensamento intelectual e cultural da época. Nos séculos XVI e XVII, as instituições de ensino superior reconfiguraram-se sob a égide da corrente renascentista, que centrou a formação superior na comunhão entre educação e profissionalização. No século XX, as universidades entraram numa crise hegemónica, no sentido em que se questiona o seu papel enquanto reprodutoras do pensamento intelectual da elite, exigindo-se a sua adaptação às demandas socioprofissionais do período industrial, nomeadamente, na qualificação de profissionais para integrar o mercado laboral. Na atualidade, a crise vigente alicerça-se na relação entre processos de globalização, avanço científico-tecnológico e o desfasamento entre as aprendizagens no ensino superior e as exigências do mercado de trabalho (Lima, 2019).

Por conseguinte, no contexto europeu, uma forma de responder a esta crise passou pela instauração do Processo de Bolonha, em 1999, que visava unificar o ensino superior com o propósito de se tornar uma força competitiva no espaço académico mundial, de atualizar e homogeneizar os currículos académicos e de promover uma maior empregabilidade e mobilidade profissional no seio da União Europeia (UE). Neste sentido, esta reconfiguração traduziu-se num ensino superior dirigido para o aprender a pensar, a fazer, a viver em comunidade/sociedade e a ser (Delors, 2010), assim como num sistema educativo superior assente em três ciclos de estudo: uma licenciatura composta por 3 anos de formação generalista, um mestrado construído em torno de 2 anos de formação profissionalizante e um doutoramento com base em 3 anos de formação para a investigação, genericamente falando. Numa perspectiva ampla, onde outrora se denotava uma fragmentação da formação superior no espaço europeu (e.g., em termos do currículo e das metodologias de ensino), observa-se agora uma estrutura assente num sistema de créditos mais robusto, num encurtamento dos diferentes ciclos de estudo (e.g., licenciatura de 5 anos para 3 anos de formação e, consequentemente, uma restruturação curricular significativa) e num esforço para aumentar a comparabilidade dos cursos entre diferentes países, onde o suplemento ao diploma surge como instrumento chave (Macedo, 2017).

No contexto português e no caso particular da formação superior em Ciências da Educação, o Processo de Bolonha traduziu-se em reconfigurações significativas. O curso em Ciências da Educação (CE) apresenta a sua gênese, na Universidade do Porto, no ano letivo de 1987/1988, enquanto formação superior complementar no ramo da educação da criança, sendo maioritariamente frequentado por profissionais das áreas da educação (e.g., educadores/as de infância e professores/as do ensino básico), saúde (e.g., enfermeiros/as) e ação social (e.g., assistentes sociais). Tal tendência manteve-se até o ano letivo de 2003/2004, ano em que a formação superior em CE se reconfigura: de formação complementar para formação inicial. Na sequência deste evento, observa-se o aumento da diversificação de lugares sociais, educativos e profissionais no curso em CE: alunos que finalizaram o 12º ano (limite da escolaridade obrigatória em Portugal a partir do ano letivo de 2009/2010), do setor administrativo e do trabalho técnico não educativo, do trabalho educativo auxiliar, da animação socioeducativa e cultural, do trabalho psicossocial, da atividade comercial, trabalhadores/as independentes e ainda uma panóplia de profissionais oriundos de uma vasta gama de cursos profissionais e superiores (e.g., análises laboratoriais, radiologia e turismo) (Vaz, 2019).

Do ponto de vista curricular, também se sucederam alterações ao longo dos anos, nomeadamente, na procura por corresponder aos desafios socioeducativos e profissionais destes diferentes grupos que passaram a integrar a formação superior em CE e, em 2007/2008, para levar a cabo as reconfigurações curriculares exigidas pelo Processo de Bolonha (Rocha; Nogueira, 2007).

Assente nas alterações curriculares acima referidas, importa dizer que a primeira licenciatura (entre 1987 e 2002) credibilizava o saber experiencial enquanto mote para uma qualificação acrescida e a segunda licenciatura (desde 2002 até ao presente, com os devidos ajustes inerentes ao Processo de Bolonha) visa traduzir as qualificações em competências, nomeadamente, de leitura sobre a realidade sociohumana e de interpretação desta a partir de uma lente ampla com o propósito de construir um espírito crítico-reflexivo que venha a ser mobilizado para intervir junto das comunidades. Neste sentido, esta transformação curricular traduz uma transformação na lógica da educação/formação superior em Ciências da Educação - de um pensamento orientado para a emancipação da pessoa/do profissional para uma lógica assente na instrumentalização da educação sob os trâmites do mercado laboral (Vaz, 2019). Por outras palavras, a primeira licenciatura procurava enriquecer o exercício profissional e a segunda licenciatura visava uma transição bem-sucedida do contexto de formação para o contexto laboral.

Numa perspetiva ampla, a formação em CE revela, por um lado, conhecimentos e competências para o mercado de trabalho e, por outro lado, conhecimentos sobre si no contexto social e humano. Como tal, a identidade de campo (ligada aos percursos académicos) e a identidade de profissão (ligada aos percursos profissionais) surgem, genericamente falando, como duas construções que podem (ou não) unificar-se num projeto de vida mais amplo (Vaz, 2019). Por outras palavras, nem sempre a identidade de campo que se constrói corresponderá de forma harmoniosa com a identidade de profissão que efetivamente se desenvolve ao longo do tempo. A este título, Licínio Lima (2019, p. 143), reportando-se ao Processo de Bolonha, refere que, tendo o mesmo insistido “na necessidade de assegurar competências no final do 1º Ciclo, este foi, contraditoriamente, reduzido para três anos, tornando o 2º Ciclo quase uma exigência, seja em termos de formação, seja em termos de vantagens comparativas no mercado de trabalho”, parecendo reforçar-se o pressuposto de uma formação inicial de nível superior, cuja harmonização, em termos europeus (desejada, senão mesmo imposta pelo Processo de Bolonha), só é suscetível de ser efetuada a partir de bitolas mínimas e de uma desagregação de processos formativos longos, que, por um lado, permitem a construção de percursos universitários cuja composição é mais variável, e, por outro lado, remetem às pessoas uma responsabilidade acrescida na construção das trajetórias acadêmicas sob a égide das características que as tornam empregáveis (e.g., soft skills) (Vaz, 2020).

Neste sentido, a responsabilidade das instituições de ensino superior na construção das trajetórias acadêmicas parece surgir mais diluída, refocando a essencialidade do seu investimento na “[...] razão técnica e modernizadora de uma reforma que foi acompanhada por uma reconfiguração das funções do Estado, por políticas de subfinanciamento, financiamento competitivo, apelo ao mercado e aos contratos, maior responsabilização dos estudantes e de suas famílias” (Lima, 2019, p. 145).

Assente nesta esteira, desenvolve-se a reflexão proposta com recurso ao conceito de trajetória, isto é, uma linha particular de eventos na vida de uma pessoa que variam em proporção (e.g., ser detentor de uma licenciatura ou de uma licenciatura e um mestrado), grau (e.g., trabalhar numa escola ou trabalhar numa instituição de solidariedade social) e direção (e.g., realizar a licenciatura em Ciências da Educação ou em Psicologia) (Sánchez et al., 2022), aqui esboçada sobre os percursos académicos em CE.

Procedimentos Metodológicos

Em termos ontológicos, o posicionamento pós-estruturalista (Pereira, 2010) orientou a pesquisa, na medida em que se procurou ir além da estrutura social por via da identificação de diferentes formas de ser e de engajar no mundo inerentes aos momentos de tomada de decisão, destacando-se as (des)continuidades intimamente ligadas à realidade social contemporânea. Ao nível epistemológico, o posicionamento construtivista (Boavida; Amado, 2008) guiou a reflexão, na medida em que as perceções humanas e a experiência social constituíram a base para a construção do conhecimento.

Assente nesta esteira, a pesquisa visou sistematizar e compreender as trajetórias acadêmicas, as trajetórias profissionais e a relação entre estes percursos no seio das Ciências da Educação no contexto português, nomeadamente, na Universidade do Porto. O presente artigo dá conta da reflexão crítica em torno das trajetórias acadêmicas de graduados em Ciências da Educação (licenciatura, mestrado e doutoramento).

Com vista a este objetivo, entrevistaram-se antigos/as estudantes que tivessem concluído a licenciatura há 7 ou mais anos, estimando-se que esta temporalidade permitisse já uma relativa estabilização dos percursos académicos e profissionais (foram contactados, de forma aleatória, ex-estudantes que terminaram a licenciatura entre o ano letivo 2003/2004 e o ano letivo 2011/2012, o que revela trajetórias pós-licenciatura compreendidas entre os 7 e os 15 anos). As pessoas que participaram no estudo foram aquelas que mostraram disponibilidade para a entrevista, tendo sido obtido o consentimento informado em linha com o parecer da comissão de ética.

Assim, foram entrevistados/as 21 ex-estudantes, 19 pessoas do sexo feminino e 2 pessoas do sexo masculino, em linha com a representatividade dos sexos na licenciatura. A idade destas pessoas encontrava-se compreendida entre os 27 e os 37 anos, à data da pesquisa.

Ao nível do percurso académico, 21 pessoas apresentam o grau de licenciado (em CE, sendo que uma pessoa é também licenciada em ciências da comunicação), cumulativamente, 14 pessoas são detentoras do grau de mestre (10 destas na área das ciências da educação, 1 na área da gestão de serviços, 1 na área da intervenção social na infância e juventude em risco de exclusão social, 1 na área da formação, trabalho e recursos humanos, e 1 na área da psicologia do desenvolvimento e da educação da criança) e 2 pessoas acumulam ainda o grau de doutor (na área das CE). No interior da área das Ciências da Educação, a educação/formação superior destas pessoas atravessa os campos do desenvolvimento local, formação/educação de adultos, educação, cultura e património, e intervenção comunitária.

No que respeita ao percurso profissional, à data da pesquisa, estas pessoas desenvolvem a sua atividade enquanto diplomados em CE numa pluralidade de contextos laborais: gestão de programas de formação e desenvolvimento de recursos humanos no seio de uma empresa; docência ao nível do ensino superior (3 pessoas); docência no âmbito de um centro de estudos (2 pessoas); auxiliar da ação educativa no âmbito escolar; formação e mediação de conflitos no ramo bancário e empresarial (3 pessoas); no âmbito de um gabinete de apoio ao aluno em contexto escolar; na gestão de multimédia numa editora gráfica; enquanto técnica superior de educação no âmbito de um pelouro educativo municipal; no escopo das funções de um Centro Qualifica (contextos educativos/formativos dirigidos a pessoas adultas com percursos de educação e formação incompletos com o objetivo de melhorar os seus níveis de qualificação, bem como a sua empregabilidade); numa empresa multinacional (2 pessoas); numa casa de acolhimento residencial para jovens em risco; num hipermercado; numa instituição socioeducativa para crianças com perturbação do espetro do autismo; e no escopo de uma residência geriátrica. Uma pessoa encontra-se desempregada.

Posto isto, o recurso ao retrato sociológico estruturou-se a partir das disposições das pessoas, considerando para o efeito que estas disposições “[n]ão são observáveis enquanto tais, […] mas é suposto estarem na origem das práticas observadas” (Lahire, 2003, p. 70); no caso presente, na origem do discurso sobre as práticas, impondo a submissão do retrato ao parecer do/a entrevistado/a para sua posterior validação.

Nesta lógica, reconhece-se, na esteira de Miguel Montagner (2007, p. 251), que “[...] esta construção [e os seus sentidos] é realizada a posteriori pelo indivíduo ou pelo pesquisador no momento em que produz um relato oral, uma narrativa”, na medida em que a circunstância criada pela relação de entrevista é, ela mesma, propiciadora desta dimensão reflexiva.

Assente em todo o trabalho investigativo levado a cabo, a análise dos dados foi alavancada por uma leitura do corpus documental (21 entrevistas/retratos sociológicos). A seguir, os dados foram agregados em 9 categorias previamente estabelecidas de acordo com o guião da entrevista: mobilidade para estudar, trajetória acadêmica (em CE e/ou outros cursos), trajetória profissional, qualificação do valor da formação (na área e em geral), origens sociais, constituição de família própria, sociabilidades e redes, projetos de futuro, outros aspetos. A análise de conteúdo (Amado, 2017) permitiu realizar inferências interpretativas a partir do processo de categorização, levando em conta as condições de produção dos dados e perspetivas teóricas mais amplas, sendo que a etapa de discussão apoiar-se-á neste trabalho de análise e categorização. Importa referir que, embora a identificação dos/as entrevistados/as esteja codificada, numa ou noutra citação poderá aparecer um nome, o qual, por questões de confidencialidade e anonimato, é fictício. A ocorrência, aqui e ali, de citações referenciadas na 3ª pessoa decorre das caraterísticas próprias à estrutura dos retratos sociológicos.

A este respeito, importa diferenciar conhecimento de primeira ordem (as passagens das pessoas inscritas nas transcrições das entrevistas) e conhecimento de segunda ordem (as reflexões inscritas nos retratos sociológicos sobre as entrevistas), sendo que o retrato sociológico se posiciona como uma reflexão sobre as práticas e não tanto como um relato das práticas, como é o caso das entrevistas. Por conseguinte, para os retratos sociológicos, realizou-se uma análise da reflexão levada a cabo sobre as práticas das pessoas entrevistadas e para as entrevistas uma reflexão acerca das práticas relatadas pelas pessoas entrevistadas.

Como tal, interpretar as unidades de análise (787 no total) tratou-se de um processo de justificação lógica das relações entre fenômenos complexos por via de um processo de indução analítica (Amado, 2017). Por outras palavras, construíram-se progressivamente as compreensões acerca dos fenômenos em estudo numa íntima relação entre análise, categorização, interpretação e teorização, sendo a partir desta sequência de ações investigativas que emergiu o conhecimento que se retira desta pesquisa.

Numa perspetiva ampla, este processo permitiu elaborar uma narrativa que salienta as singularidades dos percursos, numa organização de aparente linearidade e continuidade, não deixando, por isso, de acentuar o realce das disposições acionadas pelas pessoas nas distintas passagens do seu relato. Ao investigador competiu, no processo de construção do retrato, a sua reconstrução “[...] na base da descrição (ou da reconstrução das práticas), da descrição (ou da reconstrução) das situações nas quais essas práticas se desenvolveram, e da reconstrução dos elementos julgados importantes da história (itinerário, biografia, trajetória etc.) do praticante” (Lahire, 2003, p. 70).

Assente na informação contida nestas categorias, com um olhar mais atento sobre aquela que diz respeito às trajetórias acadêmicas, desenvolveu-se um conjunto de ideais-tipo (Weber, 1983), que ajudam a tipificar diferentes percursos suscetíveis de serem construídos no contexto académico. Na linha de Max Weber (1983, p. 226), procura-se caraterizar uma modelação de trajetórias mais favorecidas, a qual, “embora não seja uma hipótese, pretende indicar o caminho para a formação de hipóteses. Embora não seja um enunciado do real, pretende conferir a esse enunciado meios expressivos unívocos”.

Resultados e Discussão

Trajetórias acadêmicas em Ciências da Educação

O tema das trajetórias acadêmicas de estudantes do ensino superior é um tema pouco investigado no plano científico mais amplo. Não obstante, a (não) passagem pelo ensino superior apresenta-se como um evento significativo na vida das pessoas, em particular, enquanto uma fase importante no desenvolvimento humano (Haas; Hadjar, 2019). No entanto, a evolução global do acesso à educação (em geral, não só a superior), em termos da sua expansão, diversificação e heterogeneização, veio alimentar esta linha de investigação em termos das possibilidades de estudo (Piotto; Alves, 2016), nomeadamente se se considerar, na sequência da procura da harmonização das formações superiores a nível europeu, a diversidade de percursos que hoje o/a estudante pode construir (Haas; Hadjar, 2019).

Nesta linha de pensamento, importa referir que, em termos de análise, este artigo dá conta das trajetórias acadêmicas relatadas pelas pessoas entrevistadas até o momento da entrevista, tendo como início o processo de ingresso no ensino superior (um concurso nacional que tem por base uma avaliação da média das notas escolares dos últimos três anos do ensino secundário português e das notas conseguidas nos exames nacionais portugueses) e como término o último evento relatado respeitante à passagem pelo ensino superior. Importa notar que as trajetórias acadêmicas observadas não terminaram necessariamente com a conclusão de um ciclo de estudos (nomeadamente, o de licenciatura), mas revelaram-se cada vez mais alternadas (e mesmo suscitadas) com e pelas situações de trabalho.

Posto isto, a análise realizada neste bloco procura agregar as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas de uma forma holística, na medida em que se revelam caracterizadas por um tempo (o dedicado à educação/formação) e espaço (o do ensino superior) próprios, mesmo que em situações e cenários de vida diferentes (e.g., enquanto estudante e trabalhador-estudante), onde a ligação com os restantes contextos de vida (e.g., a família e o trabalho) se concretiza de forma diferenciada entre as pessoas entrevistadas, alavancando processos de tomada de decisão distintos e particularmente influenciados pela construção de uma trajetória acadêmica, tanto pela valorização desta construção, como pela sua desvalorização (Haas; Hadjar, 2019).

Nesta lógica, os ideais-tipo pensados para caracterizar as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas encontram-se elencados na Tabela 1.

Tabela 1 -  Ideais-tipo relativos às trajetórias acadêmicas. 

Ideal-tipo (Total) Cursos (Total)
Linear (4) Licenciatura em Ciências da Educação (4)
Especialização (9) Mestrado em Ciências da Educação (7)
Doutoramento em Ciências da Educação (2)
Reformulação (3) Licenciatura em Ciências do Desporto (1)
Licenciatura em Filosofia (1)
Licenciatura em Psicologia (1)
Reconstrução (5) Licenciatura em Ciências da Comunicação (1)
Mestrado em Gestão de Serviços (1)
Mestrado em Intervenção Social na Infância e Juventude em Risco de Exclusão Social (1)
Mestrado em Temas de Psicologia [Psicologia do Desenvolvimento e de Educação da Criança] (1)
Pós-graduação em Gestão da Qualidade (1)
Total de trajetórias 21

Fonte: Elaboração dos autores a partir dos dados da pesquisa (2022).

Como tal, apresenta-se importante clarificar os termos que orientaram a construção destas trajetórias acadêmicas, em particular, o que se entende por trajetória acadêmica, por transição no seio académico e por estado da trajetória acadêmica. O primeiro termo refere-se a uma linha particular de eventos na vida acadêmica de uma pessoa, que variam em proporção (e.g., ser detentor de uma licenciatura ou de uma licenciatura e um mestrado), grau (e.g., estudar a tempo parcial ou a tempo inteiro) e direção (e.g., realizar a licenciatura em CE ou realizar a licenciatura em Psicologia). Já o segundo conceito aplica-se a mudanças de posição e de situação que sucedem ao longo do percurso académico das pessoas (e.g., de estudante da licenciatura para do mestrado). E o terceiro termo articula o(s) evento(s) que sucede(m) entre o que se entende por trajetória acadêmica e por transição no ensino superior, sendo uma unidade de análise num dado momento do percurso académico (e.g., número de unidades curriculares ou de créditos realizados) (Sánchez et al., 2022).

Não obstante a estas ideias, importa notar que os diferentes tipos de trajetórias acadêmicas aqui pensados apresentam elementos comuns em algumas situações e elementos diferentes noutras, sendo que a procura por as agregar em ideais-tipo leva a que se tenha em maior conta aquilo que são os grandes elementos em comum e em menor consideração aquilo que são os pequenos pontos que as distanciam.

Trajetórias lineares

Para compreender as ideias em que assentam este tipo de trajetórias, há que notar que a definição deste conceito (seja em termos académicos ou de outra índole) passa por refletir acerca daquilo que são os percursos comuns e generalizados em termos socioculturais que sucedem no seio da questão a estudar. Ora no ensino superior português um percurso comum e generalizado é demarcado pela passagem direta do ensino secundário para o processo de ingresso no ensino superior (o concurso nacional de acesso ao ensino superior) e pela inscrição num dado curso de licenciatura (com cerca de três anos), sendo este cursado numa média de três a quatro anos. Atualmente, existe uma tendência crescente em aprofundar os estudos superiores por via do prosseguimento direto para um curso de mestrado (Pordata, 2021a, 2021b).

Com estas ideias em mente, o tipo ideal descrito neste bloco procura agregar as trajetórias acadêmicas das pessoas que se enquadram neste referencial sociocultural, sendo esta trajetória caracterizada pela realização de um curso de licenciatura (neste caso em Ciências da Educação), numa média de três a quatro anos. No fundo, estas trajetórias acadêmicas são designadas de lineares porque se caracterizam por um percurso universitário que, por razões diversas, como fatores económicos e sociais, culmina na conclusão, comummente sem interrupções, da licenciatura, neste caso em particular, todas as pessoas concluíram a licenciatura em Ciências da Educação.

Os quatro casos que se enquadram aqui caracterizam-se por motivações diferentes no que concerne à entrada no ensino superior. Por um lado, temos pessoas que procuram explorar a licenciatura em CE: “Não conhecia muito bem o curso, e afirma que o iniciou às escuras, mas com o desenrolar do mesmo apaixonou-se pelo curso e por tudo aquilo que este representa” (RS_S2). E, por outro lado, temos pessoas com um foco particular aquando do ingresso neste curso: “…a paixão pela formação de adultos levou-a a pesquisar mais sobre o que [as Ciências da Educação] lhe podiam oferecer e acabou por ingressar” (RS_C). Não obstante, estas pessoas encontraram-se ligadas pelo desejo comum em permanecerem no curso e em explorarem a área das CE, culminando no término da licenciatura e com a aquisição do grau de licenciado.

Note-se que variações distintas existem (e.g., pessoas que vivenciaram o curso de acordo com o plano curricular pré-bolonha ou pós-bolonha), mas que não se revelaram significativas no que respeita à influência da trajetória acadêmica das pessoas entrevistadas para este bloco. Não obstante, constatou-se que as alterações curriculares realizadas devido ao processo de uniformização do ensino superior europeu - o Processo de Bolonha -, se revelaram promotoras de oportunidades singulares que alavancaram tomadas de decisão significativas para as trajetórias acadêmicas de algumas pessoas entrevistadas: “Bolonha entrou no ano seguinte que permitiu realizar mestrado com equivalências de cadeiras do terceiro e quarto ano” (RS_L).

Trajetórias de especialização

Este tipo ideal procura agregar as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas que focaram o seu percurso no ensino superior, após a licenciatura em CE, pelo ingresso num nível de aprofundamento ainda dentro da área científica das CE. No fundo, estas trajetórias acadêmicas são designadas de especialização porque as pessoas procuraram especializar-se, no seio do curso de mestrado e/ou de doutoramento em CE, em dado tema com o objetivo particular de exercerem uma ação profissional muito próxima do mesmo. Em larga medida, procuram consolidar o percurso académico, sendo este um traço distintivo deste tipo de trajetórias.

Os nove casos que se encontram neste bloco apresentam uma linha de eventos particular que caracterizam as suas trajetórias acadêmicas em termos da passagem pela licenciatura, o mestrado e/ou doutoramento em CE. No que respeita à passagem pelo curso de mestrado, esta é marcada por um desejo de explorar uma área de interesse para uma futura ação profissional: “Começa a perceber [ao longo da licenciatura] que gostava de trabalhar no âmbito do poder local e das autarquias, e decide enveredar por essa área [ao nível do mestrado]” (RS_L) -; por aprofundar conhecimentos acerca de um tema relacionado com a profissionalidade desempenhada em dado local:

O meu foco era muito mais a área da formação até com o objetivo de ter uma formação acadêmica um bocadinho mais abrangente, ou seja, durante a licenciatura eu já tinha trabalhado as questões da escola, das aprendizagens formais e não formais, se calhar informais em alguns pontos, mas não com adultos, … porque é isso realmente que eu quero. … Portanto o objetivo ao ir para o mestrado foi mais aprofundar conhecimentos da área da formação de adultos (RS_V).

É ainda acentuada a ideia de que o estágio curricular, formulação que não existe na licenciatura, se revela uma oportunidade para explorar de forma profunda o mundo do trabalho: “No estágio curricular é que me identifiquei com a minha profissão realmente” (RS_S3) -, e para criar sinergias no contexto laboral: “Considerando que a experiência profissional que se retira da formação é a do estágio, decidiu seguir para mestrado após a conclusão da sua licenciatura” (RS_B). Nesta parte da trajetória acadêmica das pessoas entrevistadas, evidenciam-se atrasos ao nível do término do estágio curricular e/ou da entrega da dissertação ou relatório de estágio, motivados pelos constrangimentos inerentes às pessoas que trabalham e estudam em simultâneo: “Entretanto acabou o projeto [no trabalho] e começou a realizar a tese sobre assessoria educativa no ensino superior” (RS_L).

Nesta esteira, há que destacar que o processo de estágio curricular é perspetivado como uma oportunidade educativa/formativa que alavanca o percurso profissional e contribui para uma compreensão holística daquilo que efetivamente é o trabalho de um profissional em CE: “Durante o percurso académico participou em vários projetos e estágios inseridos no domínio do curso, que acredita terem sido fundamentais para perceber o trabalho das Ciências da Educação” (RS_S3).

No caso da passagem pelo curso de doutoramento, destaca-se que os dois casos aqui incluídos evidenciam um desejo por se especializarem em dado tema já entrelaçado com a sua vida profissional: “Comecei a ter vontade outra vez de estudar e de construir um projeto de acordo com os meus interesses e poder explorar algo que estava já a fazer” (RS_M). Nesta parte da trajetória acadêmica destas pessoas destaca-se que, num dos casos, existiram diversas interrupções motivadas por momentos de instabilidade financeira e que, no outro caso, se evidenciou um percurso doutoral sem interrupção e atrasos.

Nesta linha discursiva, apresenta-se pertinente referir que a licenciatura em CE, ao nível da sua estrutura curricular e pedagógica, permite construir dinâmicas de relação humana e de relação com o conhecimento que fomentam o interesse por esta área particular do saber, sendo este um fator influente para a permanência das pessoas neste curso e para uma abertura ao seguimento dos estudos superiores ao nível do mestrado e do doutoramento:

(A)s CE escolheram-na e convenceram-na a ficar … pela capacidade de a educação poder mudar, de transformar as pessoas, de provocar mudança, a capacidade de reflexão e o poder que tem no mundo, no dia-a-dia, … apaixonando-se pelo curso e por tudo aquilo que este representa, tendo realizado o mestrado no mesmo âmbito. Não descarta a possibilidade de vir a realizar o doutoramento em Ciências da Educação (RS_MC1).

Trajetórias de reformulação

O tipo ideal sobre o qual se reflete neste bloco procura agregar as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas que apresentam uma transição acadêmica em termos de uma mudança de curso numa fase inicial de uma outra licenciatura que não em Ciências da Educação (sem que tenham concluído à priori outro curso de educação/formação superior). No fundo, estas trajetórias acadêmicas são designadas de reformulação porque as pessoas procuraram reformular o seu percurso educativo/formativo através de uma alteração da área de estudos, ou seja, “voltar atrás e começar do zero” (RS_S4).

Os três casos que se encontram representados neste bloco apresentam uma linha de eventos particular, que caracterizam as suas trajetórias acadêmicas em termos do (re)início da mesma num curso de licenciatura diferente da área de estudos das Ciências da Educação: uma pessoa em Ciências do Desporto, outra em Filosofia e uma última em Psicologia.

As três pessoas passaram pela licenciatura em Ciências da Educação. E duas delas avançaram para o curso de mestrado na mesma área. Neste sentido, estas duas pessoas entrevistadas apresentam um percurso educativo/formativo marcado por motivações ligadas com o universo laboral: por um lado, uma salvaguarda profissional em caso de perder ou abandonar o trabalho atual: “…mesmo que numa hipótese muito remota, deixasse o banco, pensei que tenho sempre esta valência de poder fazer formação em qualquer lado” (RS_A), e por outro lado, uma decisão estratégica ao nível do que seria a sua inclusão no mercado de trabalho: “…acabou por achar que não havia coerência em ser licenciada em Ciências da Educação e mestre em ensino especial, optando, então, por se inscrever no mestrado em Ciências da Educação” (RS_S4).

No que concerne às transições, chegou o momento de colocar uma questão relevante: O que levou estas pessoas a mudarem de curso? Num dos casos, “a excessiva competitividade entre os colegas no meio académico, aliada a uma fase economicamente mais perturbada no seio familiar acabaram por contribuir para a desistência do curso” (RS_A). Noutro, o facto de no primeiro ano do curso em dez unidades curriculares apenas terminar três levou a pessoa entrevistada a “concluir que não poderia continuar a gastar dinheiro sem tirar proveito da sua formação” (RS_S4) e, aliado a uma vontade de estudar “algo relacionado com as escolas, crianças e jovens” (RS_S4), decidiu mudar de curso. E no último cenário, a pessoa entrevistada “não gostou do curso por ser de carácter muito teórico” (RS_F), culminando no abandono do mesmo.

Trajetórias de reconstrução

O tipo ideal que se procura descrever neste bloco agrega as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas que, após terminarem um curso (ou mais) de educação/formação superior na área de estudos em Ciências da Educação (licenciatura, mestrado e/ou doutoramento), ingressaram num curso de educação/formação superior (e.g., curso de licenciatura, curso de mestrado e curso de pós-graduação) cuja área de estudos de base difere das Ciências da Educação. No fundo, estas trajetórias acadêmicas são designadas de reconstrução porque as pessoas agrupadas neste bloco procuraram reconstruir (em detrimento de adicionar uma outra área de estudos ao seu portefólio académico de conhecimentos e competências) aquilo que consideram como “a sua área de especialidade” (RS_MC).

Os cinco casos que se encontram representados neste bloco apresentam uma linha de eventos particular, que caracterizam as suas trajetórias acadêmicas em termos da conclusão de um curso de educação/formação superior em CE e ingresso num curso de educação/formação superior cuja área de estudos de base difere das CE: uma pessoa em ciências da comunicação (jornalismo, assessoria e multimédia - licenciatura), outra em gestão de serviços (economia - mestrado), outra pessoa em intervenção social na infância e juventude em risco de exclusão social (serviço/ação social - mestrado), uma pessoa em psicologia do desenvolvimento e de educação da criança (psicologia - mestrado) e uma última em gestão da qualidade (economia e saúde - pós-graduação).

No que diz respeito à passagem pelo curso de licenciatura (de todas as pessoas pela licenciatura em Ciências da Educação e de uma pessoa também pela licenciatura em Ciências da Comunicação), este caracteriza-se por um percurso linear, isto é, sem interrupções. Já no que concerne à passagem por um curso de mestrado, as pessoas entrevistadas que ingressaram nas áreas de economia e de psicologia realizaram percursos sem interrupções, a pessoa que ingressou na área de serviço/ação social teve um percurso marcado por duas interrupções motivadas pela “dificuldade em conjugar os estudos com o trabalho” (RS_S) e, consequentemente, um atraso de dois anos no término do curso, e a pessoa entrevistada que ingressou no curso de mestrado em CE realizou um percurso sem interrupções, tendo um percurso semelhante na pós-graduação, que concluiu a seguir ao mestrado.

No que respeita às transições, há que colocar uma questão relevante: O que motivou as pessoas entrevistadas a decidirem seguir uma outra área de estudos enquanto aprofundamento da sua educação/formação superior após o seu percurso pela área das Ciências da Educação? No caso da pessoa que ingressou na área da economia, aliado ao desejo por prosseguir as aspirações acadêmicas do seu percurso pelo ensino secundário na área da contabilidade, persistiu a ideia de que “há que desfocar um pouco deste mundo mais aéreo e mais abrangente das ciências da educação e tentar virar para um mundo mais empresarial” (RS_J), não descorando que “o curso de Ciências da Educação influenciou a [sua] visão em relação às pessoas, aos comportamentos, ao funcionamento social, às questões de justiça social e de organização social” (RS_J).

Na situação da pessoa que ingressou na área da psicologia evidencia-se um desejo por “se especializar” (RS_MC) numa área do seu interesse, sem descorar o desenvolvimento académico fundamental que a área das Ciências da Educação lhe concedeu:

(T)er conseguido ficar a trabalhar como coordenadora do serviço prende-se com o facto de levar consigo os contributos daquilo que tinha estudado na licenciatura em Ciências da Educação e daquilo que estava a aprender durante o mestrado [em Psicologia], colocando em prática esses conhecimentos, sugerindo e refletindo na ação do serviço (RS_MC).

No caso da pessoa que ingressou na área do serviço/ação social denota-se o surgimento de um sentimento de frustração por relação às dificuldades em se integrar no mercado de trabalho (mesmo após diversas tentativas): “Sofia realizou muitas outras entrevistas até ao seu corrente trabalho, tendo a maioria terminado sem o sucesso que pretendia” (RS_S) -, este evento levou a entrevistada a procurar aprofundar os seus conhecimentos e competências numa área de proximidade acadêmica em termos do seu percurso no ensino secundário na área do serviço/ação social: “Ao reconhecer que a sua licenciatura permanece como um obstáculo no ingresso para o mercado de trabalho optou por regressar aos estudos, agora para sair com o título de mestre” (RS_S), mas também não desvaloriza os conhecimentos adquiridos na licenciatura em Ciências da Educação como importantes para o seu desenvolvimento pessoal, académico e profissional.

Na situação da pessoa que ingressou numa outra licenciatura a seguir a concluir o curso de licenciatura em CE, nota-se um processo de desconexão gradual com o curso, oriundo de uma profunda reflexão acerca daquilo que eram as suas aspirações profissionais e interesses pessoais:

Não era exatamente a minha orientação vocacional, … achei muito pouco discutido a estratégia a nível empresarial e até acho que podia ser uma parte do curso que tivesse bastante interesse, por exemplo, como se monta um negócio de educação, como se explora um negócio de educação, como se reabilita um negócio de educação. E agora olhando para trás se tivesse tido essa parte mais de negócio talvez me tivesse cativado mais (RS_C1).

Por fim, a pessoa que realizou uma pós-graduação (um curso superior não conferente de grau com duração aproximada de um ano, com soma de créditos ao currículo académico e muito próximo daquilo que se intitula de um curso de especialização) na área da gestão da qualidade, após concluir a licenciatura e o mestrado em CE, refere que apresenta a intenção de iniciar um segundo curso de mestrado “mais concreto e mais específico para [essa] área” (RS_G). Importa, neste sentido, realçar que esta trajetória acadêmica se enquadraria numa trajetória linear, mas, dadas as motivações pessoais e os significados individuais das decisões tomadas face à sua trajetória acadêmica, há que reconhecer a vontade de reconstruir a sua trajetória numa outra área que não a das Ciências da Educação, daí o enquadramento desta trajetória neste bloco particular desta análise. Não obstante, esta pessoa entrevistada não desvaloriza o aporte científico em termos de conhecimentos e competências que a base de estudo em CE lhe ofereceu, embora relate que a sua relação com o curso de mestrado tenha contribuído para a decisão de reconstruir a sua trajetória acadêmica: “Eu detestei o mestrado em ciências da educação! … Voltei a ter as mesmas cadeiras que na licenciatura e voltei a dar a mesma coisa que na licenciatura” (RS_G).

Em nota retrospetiva, as trajetórias acadêmicas dos/as diplomados/as em CE apresentam-se marcadas pela experiência educativa/formativa vivida ao longo da licenciatura, do mestrado e do doutoramento nesta área específica do saber, mas também se cruzam com outras experiências acadêmicas relativas ao prosseguimento dos estudos superiores em outras áreas. Em larga medida, as trajetórias acadêmicas lineares e de especialização evidenciam uma relação próxima com os contextos de trabalho, estabelecida após o curso de licenciatura ou de mestrado ou ainda pela consolidação de um percurso doutoral direcionado para o trabalho académico, sobre a forma de uma entrada direta no mercado laboral ou de um aprofundamento dos conhecimentos e competências aplicados em dado local de trabalho. No que respeita às trajetórias acadêmicas de reformulação e de reconstrução, destaca-se uma relação complexa com os contextos laborais, onde, por um lado, o contexto de trabalho suscita estes tipos de trajetórias acadêmicas, pela noção de que a formação cursada até ao momento não se revela capaz de corresponder às necessidades técnicas do contexto laboral em que se inserem, e, por outro lado, as motivações pessoais das pessoas alavancam esta mudança assente na ideia de maiores (maior diversidade de lugares de trabalho) e melhores (trabalhar em algo que se gosta) oportunidades laborais aquando da conclusão do curso.

Assente nesta esteira, estes cenários realçam, para uma parte significativa das pessoas, uma trajetória híbrida marcada pela transferência, adaptação e utilização da bagagem cultural e científica adquirida na área das CE nos mais diversos contextos laborais, e, para outra parte, uma trajetória acadêmica interpolada com a construção permanente e gradual de uma identidade profissional em constante adaptação ao mundo socioeducativo, sendo esta caraterística adaptativa e híbrida um dos elementos mais significativos e definidores da área das Ciências da Educação.

Por último, assente nesta perspetiva híbrida e adaptativa, revela-se incontornável notar o descontentamento da comunidade estudantil e profissional por relação à falta de uma nomenclatura universalizada e reconhecida social, científica e politicamente relativa à ação profissional levada a cabo pelos/as diplomados/as em Ciências da Educação:

Eu sei que muita gente também está desempregada, mas as pessoas que estão desempregadas pelo menos têm uma designação, elas têm um nome e o que me irrita é que o nosso curso ainda continua sem uma designação. … A gente luta pela profissão sem nome (RS_S).

Não obstante, ao longo dos anos tem-se verificado a existência de diversas nomenclaturas: mediadores socioeducativos, técnicos/as superiores de educação/formação, pedagogos/as, educólogos/as, formadores/as, interventores sociais, animadores socioculturais, cientistas em educação, entre outras designações que, em larga medida, se revelam adaptadas à diversidade de contextos laborais em que os/as diplomados/as em CE concretizam a sua ação profissional.

Por último, surge relevante referir que a pesquisa teria beneficiado de dois aspetos: um alargamento do grupo de pessoas entrevistadas para incluir diplomados/as de outras zonas/universidades do país e a exploração do caso particular dos/as trabalhadores/as-estudantes.

Considerações Finais

A investigação levada a cabo, em particular, a reflexão que se esboçou em torno das trajetórias acadêmicas em Ciências da Educação constitui uma proposta para refletir em torno do lugar académico e profissional que abarca este campo científico. Numa perspetiva ampla, a pesquisa permitiu evidenciar que as pessoas entrevistadas estão em constante interação com diferentes dimensões e elementos caracterizadores da sua condição simultânea enquanto estudantes/profissionais e seres humanos. Por outras palavras, notamos estudantes enquanto agentes que investem na educação/formação superior, tendo em conta o equilíbrio entre os custos e os benefícios das suas decisões por relação à sua trajetória acadêmica, mas também evidenciam-se estudantes como atores racionais cuja capacidade de tomada de decisão se encontrava nebulada pelas propensões incertas em relação à sua inclusão no mercado de trabalho, situações que não parecem encontrar eco num resguardo de responsabilidade partilhada e socialmente considerada, mas antes em recursos pessoais que podem ser mais ou menos agilizados.

Por conseguinte, a formação em CE adquire um destaque central na qual a licenciatura em Ciências da Educação constituiu a etapa inicial. Por um lado, denota-se uma certa perceção funcional naquilo que é uma formação - o seu sentido utilitário aplicado a dado contexto laboral. Como tal, as trajetórias acadêmicas das pessoas entrevistadas permitem problematizar uma determinada temporalidade sequencial, entre o aprender e o executar, para recolocar a questão privilegiadamente em termos de disposições intrínsecas (da pessoa) e requisitos extrínsecos (à pessoa), termos que coabitam, quer nos espaços educativos/formativos, quer nos espaços de trabalho, deslocando-se a interrogação sobre a ideia da aplicabilidade dos saberes, quer no que respeita à sua complexidade e abrangência, quer no que concerne à sua identidade disciplinar, para a sua forte imbricação com saberes e terrenos profissionais.

Assente nesta linha, estes atributos definem o campo das Ciências da Educação, sendo amplamente abordados pelas pessoas entrevistadas no que se refere ao reconhecimento e valor social da formação, designadamente quanto à identificação de saídas profissionais e por relação à ausência de uma designação profissional clara. Com base nos dados e retomando as ideias iniciais, emerge a conflitualidade entre uma identidade de campo e uma identidade de profissão. Numa perspetiva ampla, não estamos a falar estritamente de um problema identitário - de uma descoincidência entre uma identidade de campo, por um lado, e uma identidade de profissão, por outro -, mas de um problema de visibilidade social e, sobretudo profissional, da área das Ciências da Educação. Em larga medida, de um certo distanciamento entre aquilo que se aprende em contexto académico e aquilo que são as solicitações dos contextos laborais, onde a diversidade de saberes ao longo do percurso académico, embora apelativa, tende a gerar dúvidas quanto à sua aplicabilidade no contexto profissional. Em certa medida, estamos perante um processo no qual é o próprio contexto profissional que confere pertinência aos saberes académicos.

Como consequência, a responsabilidade das instituições de ensino superior na construção das trajetórias acadêmicas surge aqui mais diluída, onde se destaca uma maior responsabilização da pessoa nos traços do seu próprio percurso (académico e profissional). Nesta linha e a partir do discurso das pessoas entrevistadas, a dimensão dos conhecimentos sobre si no contexto social e humano, onde dimensões de alteridade por relação ao modo de ser e estar, primeiro enquanto estudante e depois como profissional, revelam-se praxiologicamente fundadas no reconhecimento da insuficiência da qualificação conferida por um curso de licenciatura (escopo amplo - ensino superior em geral) e na complementaridade que outras áreas de formação podem trazer a uma formação inicial em Ciências da Educação (escopo particular - o das CE). Em todo o caso, o valor da formação em CE revela-se incontestável nos diversos testemunhos, sobretudo no âmbito de uma formação que acompanha o exercício profissional, particularmente quando se considera a representatividade das trajetórias acadêmicas de especialização e de reconstrução.

Não obstante, face a um percurso formativo que parece problematizar as questões da construção identitária, particularmente expressas pela relação formação-trabalho, observa-se um número significativo de entrevistados/as que, em última análise, identifica-se no seu percurso - reconhecendo desse modo as valências de uma formação em Ciências da Educação - mais como uma identidade de campo do que com uma identidade de profissão -, onde, segundo as trajetórias lineares e de reformulação, esta ambiguidade pode ser entendida como estruturante destes percursos académicos.

Assente nesta esteira, importa ainda dizer que a reflexão levada a cabo permite notar que os cursos de ensino superior em Ciências da Educação, inicialmente alicerçados na formação de professores, trilhando posteriormente caminhos em torno de novas profissionalidades em Educação e Formação (e.g., mediação socioeducativa e cultural, e técnico superior de educação), foram gradualmente, a partir destes novos rumos, tecendo a malha que atualmente constitui a profissionalidade em Ciências da Educação e, por consequência, o trabalho dos educólogos e das educólogas (educação + logos - conhecimento; termo que capta com alguma precisão o escopo de ação dos/as diplomados/as em CE). Numa perspetiva ampla, a singularidade destes profissionais assenta no olhar único sobre a relação entre o eu, as outras pessoas e o mundo que nos envolve, na medida em que a partir de uma bagagem multirreferencial e interdisciplinar se ocupam de investigar (conhecer) e intervir (contribuir) em torno dos conflitos sociohumanos que maioritariamente contrapõem equidade com desigualdade, justiça com injustiça e bem-estar com sofrimento, por meio de um trabalho educativo que é também, por natureza, um trabalho social, desocultando os fenômenos socioeducativos silenciados pela azáfama do desenvolvimento da humanidade.

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Recebido: 06 de Maio de 2023; Aceito: 01 de Outubro de 2023

Correspondência para/Correspondence to: Henrique Vaz. E-mail: <henrique@fpce.up.pt>.

Editora:

Andreza Barbosa

Conflito de interesses:

Os autores declaram não existir conflito de interesses associado à produção deste artigo.

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