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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8392 

Práticas Pedagógicas e Processos Educativos em Educação Estatística

Literacia estatística crítica versus as comunicações nas mídias sociais

Critical statistical literacy versus social media communications

Igor Gabriel Santos de Sousa, concepção, planejamento da ideia para o artigo, redação e elaboração do texto1 
http://orcid.org/0000-0002-7612-7505

Leandro de Oliveira Souza, orientador da pesquisa, revisão intelectual crítica de todas as etapas, provação da versão final deste artigo para a publicação1 
http://orcid.org/0000-0003-1626-0766

1Universidade Federal de Uberlândia, Departamento de Pós-Graduação, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática. Uberlândia, MG, Brasil.


Resumo

Estudos relacionados à educação estatística mostram que a aprendizagem voltada para o conteúdo de estatística necessita de uma abordagem que vá além dos cálculos procedimentais. É preciso que haja reflexões e um preparo perceptivo a partir de contextos reais para a formação cidadã. Partindo desse pressuposto, neste recorte de pesquisa de mestrado teve-se por objetivo analisar as contribuições acerca da literacia estatística crítica, com base em uma atividade pedagógica construída a partir de dados divulgados nas mídias sociais e realizada em ambiente escolar com alunos do terceiro ano do Ensino Médio. A pesquisa tem característica de observação participante, na qual o primeiro autor deste artigo cumpriu o papel de professor e pesquisador. Como fundamentação, o estudo pautou-se no quadro teórico acerca da literacia estatística crítica. Para a investigação, foi exposto aos estudantes o trecho de uma narrativa publicada em um canal do Youtube® por um conhecido jornalista brasileiro. No vídeo, o jornalista comparava o número de óbitos no Brasil entre os anos de 2019 e 2020. Dados foram coletados por videogravação, diário de bordo e pelos textos elaborados por esses alunos ao final da investigação. A análise dos dados indica que o trabalho na perspectiva da literacia estatística crítica desenvolve criticidade acerca de assuntos que permeiam o cotidiano dos estudantes e auxilia-os a construir suas percepções acerca da responsabilidade de atuação em sociedade.

Palavras-chave Análise de informação; Investigação estatística; Letramento estatístico; Pensamento crítico; Sala de aula

Abstract

Studies related to statistical education show that learning focused on the content of statistics requires an approach that goes beyond just procedural calculations. There needs to be reflections and perceptive preparation based on real contexts for citizenship education. Based on this assumption, in this master’s research section, the objective was to analyze what are the contributions regarding critical statistical literacy, when a pedagogical activity is built from data published on social media and carried out in a school environment with third-grade students of a high school year. The research has a characteristic of participant observation, in which the first author fulfilled the role of professor and researcher. The investigation was based on the theoretical framework of critical statistical literacy. An excerpt from a narrative published on a YouTube channel by a well-known Brazilian journalist was exposed to the students. In the video, the journalist compared the number of deaths in Brazil between the years 2019 and 2020. Data were collected by video recording, logbook and texts prepared by these students at the end of the investigation. Data analysis indicates that work from the perspective of critical statistical literacy develops critical thinking about issues that permeate the students’ daily lives, and helps to build their perceptions about the responsibility of acting in society.

Keywords Information analysis; Statistical research; Statistical literacy; Critical thinking; Classroom

Introdução

A estatística encontra-se presente em várias situações de comunicação e investigação relacionadas às atividades do dia a dia das pessoas. Quando se fala no ensino, observa-se o uso da estatística tanto na literatura quanto nos documentos curriculares (Brasil, 2018; Gal, 2002) e em orientações para o desenvolvimento de habilidades e competências referentes à tomada de decisões a partir de informações presentes nos contextos socioculturais e que contribuem para a formação dos estudantes enquanto cidadãos.

Ao olhar para estudos sobre educação estatística, pesquisadores (Ben-Zvi; Garfield, 2004; Weiland, 2017) enfatizam que o desenvolvimento e a formação escolar não devem ficar somente no ensino de conteúdos matemáticos, pois entendem que há, sim, a necessidade de desenvolver um letramento estatístico, com enfoque no raciocínio e no pensamento, para fins de reflexão e propósitos para além das matérias escolares, de modo que o aluno seja capaz de refletir sobre questões de equidade e justiça social por uma perspectiva crítica de ensino.

Abordagens tradicionais de ensino de estatística, que se concentram em habilidades de procedimentos e cálculos, não levam os alunos a raciocinarem ou a pensarem estatisticamente, de acordo com Ben-Zvi e Garfield (2004). Nesse sentido, “[...] é importante refletir sobre os conhecimentos que os professores precisam articular para ensinar Estatística” (Rodrigues; Ponte, 2020, p. 2). Além do olhar para a aprendizagem dos conceitos, deve-se haver uma preocupação sobre como os educadores irão conectar esses conteúdos, de modo que a estimular o desenvolvimento de competências éticas, democráticas e inclusivas.

Nos documentos norteadores da educação básica, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), observa-se uma grande presença dos temas de estatística dentro da disciplina de matemática e uma forte tendência da aprendizagem juntamente com o desenvolvimento do letramento estatístico na perspectiva crítica (Brasil, 2018). Contudo, a falta de orientações de ordem prática sobre como os professores poderiam alcançar essas habilidades prejudica tanto a formação quanto o próprio trabalho docente.

Uma mudança pedagógica que estivesse de acordo com as orientações para a construção de competências éticas, democráticas e inclusivas, exigiria dar oportunidades aos educandos para que eles desenvolvessem a capacidade de refletir sobre assuntos importantes, tais como política e cidadania, para que, então, fossem delineadas possíveis tomadas de decisões para problemas que permeiam a vida deles. Um exemplo dessa perspectiva pode ser visto em Souza, Lopes e Fitzallen (2020), que relatam o trabalho realizado em apoio a dois estudantes do ensino básico para a produção de informação e atuação política sobre um problema fundamentado no contexto social e cultural deles.

Numa perspectiva parecida, neste artigo, apresenta-se o recorte de uma pesquisa em nível de mestrado que teve por objetivo estudar uma atividade realizada com alunos do Ensino Médio de uma escola pública a partir da leitura de pressupostos teóricos da literacia estatística crítica. Procurou-se compreender, com a construção de dados empíricos, a partir de uma proposta pedagógica, quais seriam as contribuições dessa concepção para o ensino e a aprendizagem de estatística. A motivação surgiu do questionamento sobre como atividades problematizadoras poderiam contribuir para o ensino de estatística a partir de informações estatísticas veiculadas nas mídias sociais.

Com isso, foram realizadas duas atividades com estudantes do Ensino Médio. Neste texto, será exposto o primeiro estudo, intitulado “Número de óbitos no Brasil durante os anos de 2019 e 2020”. Para conduzir essa atividade, foi desenvolvido um processo investigativo sobre os dados informados por um jornalista em seu canal do Youtube® acerca do contexto vivenciado pela humanidade durante a pandemia de Covid-19.

Inicialmente, discutiu-se sobre o letramento estatístico e a perspectiva da educação crítica. Depois, foi apresentado o contexto da pesquisa e a proposta investigativa a ser realizada. Para finalizar, os resultados obtidos dentro deste estudo foram analisados e finalizou-se com uma reflexão da viabilidade do entrelace dessas perspectivas (literacia estatística e criticidade) ao se pensar no processo de ensino e aprendizagem da estatística.

O letramento estatístico como caminho para a criticidade2

As perspectivas teóricas assumidas na pesquisa estimulam a utilização de situações reais nas atividades escolares, que façam parte do cotidiano dos educandos, para que esses as observem, a partir dos dados e das representações dos cenários nos quais estão inseridos, e, assim, reflitam sobre possíveis formas de atuar em relação a questões que causam injustiça social.

Numa sociedade na qual diariamente as pessoas são bombardeadas por dados que remetem a contextos nos quais estão inseridas, o desenvolvimento do letramento estatístico vem se tornando uma temática presente e frequente nos estudos relacionados à educação (Ben-Zvi; Garfield, 2004; Gal, 2002; Lopes; Souza, 2016; Wallman, 1993).

É possível entender o letramento estatístico como sendo a capacidade de “[...] compreender e avaliar criticamente os resultados estatísticos que permeiam nosso cotidiano – aliado à capacidade de apreciar as contribuições que o pensamento estatístico pode dar nas decisões públicas e privadas, profissionais e pessoais” (Wallman, 1993, p. 1, tradução nossa)3. Assim, autores afirmam que um dos principais argumentos para essa aprendizagem é “[...] que os indivíduos sejam alfabetizados para seus papéis como cidadãos dentro de sua sociedade” (Weiland, 2017, p. 34, tradução nossa)4.

Ao se pensar sobre o alcance dessa formação, Wild e Pfannkuch (1999), em seus estudos acerca dos processos envolvidos na resolução de problemas estatísticos, elaboraram um quadro teórico para o pensamento estatístico, do qual emerge um ciclo investigativo que descreve ações necessárias para o ensino de estatística: a Problematização, o Planejamento, a Coleta de dados, a Análise e a Conclusão (PPDAC). Segundo os pesquisadores, ao adentrar no ciclo do PPDAC, o estudante deverá se preocupar em abstrair e resolver um problema real maior. De acordo com Lopes e Souza (2016), essa discussão diz respeito à forma como se age e se pensa durante uma investigação estatística.

Assim, para Wild e Pfannkuch (1999), a investigação estatística é usada para expandir um corpo de conhecimento do “contexto”, e o objetivo final dessa investigação é o aprendizado na esfera desse contexto. Aprender vai além de coletar informações; envolve sintetizar novas ideias e conhecimentos existentes para uma melhor compreensão sobre o cenário explorado.

Na perspectiva de Wild, Utts e Horton (2018), é possível preparar os estudantes para que façam pesquisas, produzam e analisem dados, tornando-se cidadãos críticos por meio da educação estatística. Gal (2002) expandiu a ideia de aprendizagem investigativa, denominando-a literacia estatística. Desse modo, o autor define esse letramento como sendo:

(a) a capacidade das pessoas de interpretar e avaliar criticamente informações estatísticas, argumentos relacionados a dados ou fenômenos estocásticos, que podem encontrar em diversos contextos, e quando relevante (b) sua capacidade de discutir ou comunicar suas reações a tais informações estatísticas, tais como sua compreensão do significado das informações, suas opiniões sobre as implicações dessas informações ou suas preocupações com a aceitabilidade de determinadas conclusões (Gal, 2002, p. 2, tradução nossa)5.

O pesquisador enfatiza que essa ideia de literacia tem foco na aprendizagem em situações típicas, que as pessoas encontram em suas vidas diariamente, além da base de conhecimento e de elementos e contextos que serão cruciais para que ocorra esse tipo de letramento. Dessa forma, observa-se que uma aprendizagem estatística demanda a proposição de um cenário investigativo em que dados de contextos cotidianos façam parte do processo, de modo que essas informações contribuam para a compreensão e possíveis decisões do estudante no papel de cidadão.

Na última década, houve um apelo para que a educação estatística tivesse um foco maior no letramento estatístico, no raciocínio e no pensamento, segundo Ben-Zvi e Garfield (2004). Entre os argumentos apresentados para essa conduta, observa-se que as abordagens tradicionais de ensino se concentravam no desenvolvimento de habilidades, procedimentos e cálculos que não levavam os estudantes a raciocinarem e/ou pensarem estatisticamente. Ainda, de acordo com os autores acima, o estudo das estatísticas tem o potencial de fornecer ferramentas para que cidadãos informados possam reagir de forma inteligente às informações quantitativas que encontra ao seu redor. Porém, para eles, indicativos mostram que jovens e adultos na sociedade atual não conseguem pensar estatisticamente sobre pontos importantes que afetam diretamente suas vidas.

Nesse sentido, Weiland (2017) propõe um quadro teórico no seu estudo, que denomina de literacia estatística crítica. Esse quadro parte de pressupostos anteriores (Ben-zvi; Garfield, 2004; Gal, 2002; Wallman, 1993; Wild; Utts; Horton, 2018), os quais abordam questões que colocam, em um primeiro plano, a leitura e a escrita para a compreensão das estatísticas, porém com um significado para a criticidade, de modo a destacar a importância de que contextos sociopolíticos sejam considerados dentro desse letramento.

Para Weiland (2017), a perspectiva de literacia para a estatística crítica deve contribuir para um letramento que vá além de apenas ler, escrever e compreender as palavras e representações escritas. Em sua ótica, é preciso proporcionar uma formação aos estudantes para também ler e escrever o mundo por meio de uma nova lente. Seu quadro teórico toma por base os estudos de Freire (1996) e Skovsmose (2008) sobre educação crítica.

Ler o mundo através de uma lente estatística crítica inclui identificar e interrogar estruturas e discursos sociais que moldam e são reforçados por argumentos baseados em dados. Os argumentos estatísticos não são feitos a partir de uma realidade objetiva e independente. Eles são feitos por indivíduos de uma multiplicidade de subjetividades. Nesse sentido, os argumentos estatísticos podem servir para perpetuar os discursos. É importante que os indivíduos leiam os argumentos, interroguem quais discursos estão sendo criados e determinem se devem aceitá-los ou rejeitá-los, estando cientes de suas inconsistências e as estruturas sociais que perpetuam. Esse aspecto está ligado a escrever o mundo com estatísticas, o que inclui o uso de investigações para comunicar informações e argumentos estatísticos em um esforço para desestabilizar e remodelar estruturas de injustiça. Assim como as investigações e argumentos estatísticos perpetuam certos discursos e estruturas na sociedade, do ponto de vista crítico, também podem ser usados para causar rupturas e descontinuidades neles

(Weiland, 2017, p. 42, tradução nossa)6.

Na sociedade contemporânea, há uma riqueza sem precedentes de dados públicos disponíveis, sendo eles: demográficos, sistema de justiça, educacionais, sociais e outros que podem ser encontrados no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas e em outras bases de dados. Todos são suficientes para a análise de questões sociopolíticas, como racismo sistêmico, sexismo, classicismo e outros contextos de desigualdades. Desse modo, de acordo com Weiland (2017), as investigações estatísticas podem ser usadas não somente para desestabilizar fenômenos que causam injustiças ou desigualdades, mas também para produzir novas composições e discursos que possam resolver ou modificar situações que envolvem injustiças sociopolíticas. Para ele, existe a necessidade de considerar a localização social, subjetiva e os contextos políticos relacionados à leitura desse letramento, de forma a compreender como isso influencia a interpretação da informação quando lida, ao criticar e avaliar argumentos que envolvem a estatística.

Em relação à escrita em uma perspectiva crítica da literacia estatística, isso inclui compreender e navegar pelas tensões dialéticas existentes na sociedade ao formular questões estatísticas, ao coletar dados e ao aplicar métodos de análises, de modo a enxergar e refletir sobre como as variáveis são operacionalizadas e como, a depender dos contextos, podem ser utilizadas para gerar categorias sociais e produzir discursos que desfavorecem indivíduos e grupos já fragilizados (Weiland, 2017). Isso mostra que é importante que a literacia entrelace a leitura, a escrita e as reflexões críticas sobre as formas como a estatística é apresentada e feita.

O estudo de Weiland (2017), sobre o desenvolvimento da criticidade dos alunos durante a investigação estatística, apoia-se na teoria da educação matemática crítica, desenvolvida por Skovsmose (2008). Essa teoria tem por objetivo discutir o engajamento crítico e participativo dos estudantes, de modo que os sujeitos sejam capazes de exercer sua cidadania com competência crítica e reflexiva; com compreensão das tecnologias que os cercam, mediante a leitura do mundo que a alfabetização matemática pode proporcionar, sendo que o autor chama essa alfabetização de “matemacia”.

A educação matemática crítica entende que a alfabetização matemática – ou matemacia – deve proporcionar condições para que o sujeito consiga aplicar os conhecimentos em diversos contextos, a fim de reconhecer e agir como cidadão crítico. Nessa perspectiva, o conhecimento das habilidades matemáticas, das tecnologias e a compreensão reflexiva tornam-se fundamentais para a aplicação da matemática numa perspectiva sociopolítica (Skovsmose, 2008).

Embora Weiland (2017) entenda que essa perspectiva da educação matemática traga contribuições e implicações positivas acerca da literacia estatística crítica, ele ressalta que existem barreiras para a implementação dessa abordagem no ambiente escolar. De acordo com o autor, um dos obstáculos está ligado ao currículo escolar, que não traz recursos que os professores de matemática possam colocar em prática. A falta de um currículo coerente e coeso para o ensino de matemática, que estude os contextos socioculturais, sócio-históricos e sociopolíticos, traz consigo tópicos fragmentados entrelaçados a contextos/problemas neutros, artificiais ou triviais. Esses conteúdos acabam sendo atribuídos às atividades direcionadas à estatística, empobrecendo o repertório.

Outra barreira apontada está ligada à questão de que a criação de aulas para o ensino de matemática na perspectiva da educação crítica consome muito tempo. Visto dessa forma, o desenvolvimento de competências se resume à veiculação de uma lista de conteúdos em que habilidades são acessadas de forma rápida e direta. No Brasil, isso se torna contraditório, pois as próprias prescrições curriculares se pautam em ideais de democracia. Weiland (2017) relata que essa questão é ainda mais preocupante porque se soma à realidade de que muitos professores de matemática possuem pouca ou nenhuma experiência no aprendizado ou no uso da estatística para fundamentarem suas aulas.

É possível refletir que estudar estatística toma tempo quando se olha para o documento norteador da educação brasileira, a BNCC (Brasil, 2018). Ao analisar as habilidades e as competências relacionadas ao ensino de estatística, verifica-se que é necessário que os estudantes aprendam a planejar e construir relatórios de pesquisas estatísticas descritivas que incluam medidas de tendência central e, ainda, tabelas e diversos tipos de gráficos, de forma que apresentem pontos relevantes e questões sobre a população a ser pesquisada. O intuito é que o estudo não foque somente em que os alunos saibam interpretar as informações estatísticas divulgadas na mídia, mas, sobretudo, que eles possam elaborar ensaios próprios.

Observa-se que a prescrição dessas habilidades voltadas para a análise, a interpretação, o planejamento e a investigação estatística vem ao encontro do quadro teórico proposto por Weiland (2017) para a literacia estatística crítica. Contudo, ressalta-se que, apesar de nortear as habilidades e as competências a serem desenvolvidas durante os ciclos do ensino básico, a BNCC não faz uma discussão pedagógica e não apresenta exemplos de como um professor poderia alcançar esses resultados com os estudantes. Dessa forma, a falta de recursos para os educadores pode acarretar uma alta probabilidade de educandos se tornarem consumidores de dados ao invés de pesquisadores. Assim, raramente terão a oportunidade de coletar ou analisar dados como adultos, de levantar críticas e perguntas reflexivas sobre os argumentos que se referem à estatística ou a dados veiculados em seu cotidiano, de desenvolver habilidades relacionadas à escrita e à comunicação para que possam efetivamente discutir, interpretar e questionar os dados e os argumentos baseados em modelos estatísticos (Garfield; Gal, 1999).

Para Kleine (2020), a atenção do trabalho pedagógico com relação aos conteúdos de estatística, na maior parte das vezes, concentra-se na capacidade técnica de lidar com as informações, desconsiderando a forma como elas foram coletadas ou como deveriam ser comunicadas. Opor-se a essa forma de educação exige assumir uma insubmissão às próprias crenças e realizar investigações nos ambientes de sala de aula, com o intuito de dar maior ênfase ao processo e não somente ao produto; é preciso discutir os processos de estudo sem submetê-los a um tratamento puramente do ponto de vista matemático sobre a estatística.

É necessário considerar que a perspectiva da educação estatística à luz da equidade e da justiça social requer investir em investigações, realizar descobertas e avaliar situações vividas e/ou estudadas com o intuito de adquirir novas compreensões. Nesse sentido, Lopes (2021) considera que, por meio de análises estatísticas, os educandos devem ser formados para projetarem novas maneiras de ler as suas realidades, de redimensionar suas identidades nos contextos em que estão inseridos, mediante a estatística como uma ciência viva, que lhes permita analisar os movimentos que ocorrem na sociedade.

Assim, quando se pensa na literacia estatística numa perspectiva crítica, foca-se na busca de uma aprendizagem com significado para os estudantes, de modo que eles desenvolvam habilidades de escrita e leitura, acompanhadas de reflexões, produção de argumentos e tomada de decisões acerca de contextos que fazem parte do seu dia a dia. Uma educação capaz de se reinventar e opor-se às imposições sociopolíticas que causam injustiças.

Neste texto, apresenta-se uma proposta de atividade realizada sobre a concepção da literacia estatística crítica com olhar para as contribuições acerca do trabalho dessa vertente para a educação estatística. Na seção a seguir, será detalhado como foi realizada esta investigação e a proposta didática elaborada será contextualizada.

Percurso Metodológico

O contexto da pesquisa

Este artigo emergiu de uma pesquisa que tem como intuito compreender como atividades problematizadoras/investigativas atreladas às informações presentes nas mídias sociais podem contribuir para o ensino de estatística. Assim, assumiu-se a definição de Torres (2009), que afirma que as mídias sociais são sites na internet onde ocorrem a criação e o compartilhamento de informações e conteúdos pelas pessoas e para as pessoas, em que os consumidores são, ao mesmo tempo, produtores e consumidores da informação.

O ensaio dessa problemática surgiu no meio do período pandêmico, durante o qual o primeiro autor deste artigo ingressou no programa de pós-graduação. Foi ao observar a constante presença do uso da estatística nas informações veiculadas em mídias sociais sobre a situação da pandemia ocasionada pela Covid-19 no país e no mundo e ao participar como voluntário de outro trabalho que discutia a temática da desinformação e a educação matemática que esta pesquisa tomou forma.

A metodologia adotada foi a observação participante, porque esse procedimento tem como intuito proceder, dentro das realidades observadas, à elaboração de estudos exploratórios, descritivos e que visam a generalização de teorias interpretativas. De modo não intrusivo, os pesquisadores são levados a partilhar papéis e hábitos dos grupos observados e situam-se em condições favoráveis para observar situações, fatos e comportamentos que dificilmente ocorreriam ou que seriam reprimidos ou mesmo adulterados na presença de desconhecidos (Mônico et al., 2017). Essa técnica se aplicou no lócus do trabalho do primeiro autor, que leciona matemática em uma instituição de ensino público estadual do município de Campinas (SP). O projeto foi elaborado e enviado para análise ética no Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de Uberlândia, e foi aprovado sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética – CAAE: 52542821.8.0000.5152, parecer nº 5.102.300.

A pesquisa contou com a participação de 12 alunos do terceiro ano do Ensino Médio. No caso dos participantes da pesquisa, 10 dos 12 estudantes já tinham completado 18 anos de idade. Nesse sentido, os estudantes realizavam suas aulas do Ensino Médio regular no período matutino e, devido às atividades extracurriculares, grande parte deles continuava no ambiente escolar no período vespertino.

Os participantes do estudo foram convidados pelo pesquisador, que apresentou a finalidade e os objetivos do trabalho. O convite para a investigação foi realizado nas três turmas nas quais esse educador lecionava, e 12 alunos aceitaram participar.

Assim, foi realizado um encontro prévio com esses estudantes para prestar outros esclarecimentos, como, por exemplo, informar as condições de participação de acordo com o estabelecido nos termos de consentimento e assentimento. Foi assegurada aos participantes a confidencialidade da identidade deles por meio de nomes fictícios.

A pesquisa foi realizada como uma atividade de extensão no laboratório de informática da instituição de ensino em que eles estudavam. Teve início na terceira semana de outubro e foi finalizada na segunda semana de novembro do ano de 2022, com encontros semanais, totalizando quatro reuniões. Todos os encontros foram realizados presencialmente por escolha do pesquisador e dos participantes, já que muitos afirmaram que, devido ao fato de não terem equipamentos e acesso à internet em suas residências para a participação de forma remota, a execução do estudo seria mais fácil se acontecesse na instituição.

A atividade descrita neste texto foi aplicada durante o primeiro encontro com os participantes. Cada encontro teve duração de três horas, com duas horas para a investigação dos dados apresentados e uma hora para discussão coletiva e interação. A escolha do professor/pesquisador de realizar a investigação juntamente com os estudantes foi motivada por duas razões: primeiro, pelo convívio direto que ele tinha com os discentes, e, segundo, devido a esse ter sido o primeiro contato dos participantes com esse tipo de abordagem. Também foi considerado que não era um momento oportuno para que os educandos realizassem a atividade sem acompanhamento, já que a proposta trazia consigo um conteúdo sensível para os que perderam familiares durante a pandemia.

A proposta investigativa

A atividade tinha como título “Número de óbitos no Brasil durante os anos de 2019 e 2020”. Essa proposta tem por base os estudos de Souza e Araújo (2022) relacionados ao fenômeno das fake news e à formação de crenças sob a ótica pragmática.

A investigação e a proposta para a sala de aula se debruçaram sobre a veiculação de um trecho de um vídeo divulgado pelo jornalista Alexandre Garcia em seu canal na plataforma Youtube® durante o período da pandemia de Covid-19, no ano de 2020. Para contextualizar o momento, vivia-se o ápice da pandemia na época da divulgação da narrativa em questão, e o canal contava com aproximadamente 1,84 milhões de inscritos (Souza; Araújo, 2022). A influência das narrativas desse repórter vai além dos seus vídeos nas mídias sociais; por ser um renomado jornalista, seus comentários são veiculados em outros meios de comunicação, como rádios e canais de TV, por exemplo. Por isso, as informações comentadas e divulgadas por ele atingem inúmeros ouvintes, telespectadores e usuários da internet.

O trecho estudado na atividade tem como apresentador o jornalista, que comenta e compara o número de mortes em 2019 e em 2020 no Brasil, e sua reflexão busca minimizar a quantidade de óbitos relacionados à Covid-19. O vídeo em questão não se encontra mais disponível na plataforma; contudo, os pesquisadores deste estudo, de posse do vídeo, disponibilizaram o acesso aos estudantes. Abaixo, apresenta-se a transcrição do fragmento do vídeo no qual Alexandre Garcia faz sua análise:

Dei uma olhada, você sabe disso toda vez que olho para a transparência do registro civil no site. Então, resolvi comparar as mortes diárias do ano passado e deste ano, e me surpreendi. No ano passado houve 4.889.000 mortes; este ano, em 186 dias, 2.000.336. Dividido pelo número de dias do ano passado (2019), 365 dias, tivemos 13.394 mortes diárias em média no Brasil no ano passado. Neste ano (2020), dividindo 2.000.336, até 5 de julho, 186 dias, temos 12.559 óbitos [por dia]. Estamos experimentando menos mortes diárias este ano do que no ano passado, 835 mortes a menos todos os dias se compararmos. Repito: mortes por dia no ano passado 13.394, mortes diárias este ano 12.559. Conforme (pausa e ênfase com mudança de tom na fala) o registro de óbito nos cartórios. De Brasília, Alexandre Garcia.

(Transcrição da fala publicada em 6 de julho de 2020. Recorte do trecho – dos 9 min 53 seg a 11 min 33 seg) (Souza; Araújo, 2022, p. 6).

A narrativa de Alexandre Garcia foi verificada por agências de checagem de apuração de notícias e contestada por elas. Segundo os autores, o relatório da Agência Lupa afirmava que, ao extrair os dados do Portal da Transparência – Registro Civil, Garcia não separou apenas os óbitos para sua análise, mas utilizou três tipos de registro relativos aos períodos analisados (Souza; Araújo, 2022). No momento da elaboração desta proposta, o número de óbitos de pessoas no Brasil no ano de 2019 era de 1.286.852, de acordo com o Portal da Transparência (Brasil, entre 2019 e 2022) um dado bem inferior ao que foi informado pelo jornalista.

Segundo o relatório da Agência Lupa, Alexandre utilizou os registros de nascimento, casamento e óbito, de modo que a média calculada distorcia a realidade. Além disso, o documento contestava a técnica utilizada pelo jornalista para realizar essa comparação: “[...] não é correto comparar a média de um ano inteiro com a média de apenas uma parte do ano seguinte, porque os eventos são afetados pela sazonalidade” (Souza; Araújo, 2022, p. 7).

Os autores Souza e Araújo (2022) destacam ainda que, até o dia 9/12/2020, o vídeo de Garcia havia recebido um total de 79 mil curtidas e havia sido visualizado cerca de 300 mil vezes. Para os pesquisadores, vídeos como esse, que acabam sendo divulgados em outras mídias sociais, como WhatsApp®, Twitter®, Facebook®, entre outros, são responsáveis por formar opiniões. Os autores analisam ainda como argumentos matemáticos utilizados em discursos podem dar credibilidade a notícias falsas e ser responsáveis por fixar crenças e construir opiniões (Souza; Araújo, 2022).

Essa análise vem ao encontro das ideias de Cazorla e Castro (2008), quando esses observam que as informações estatísticas, que permeiam os ambientes de comunicação do cotidiano dos cidadãos, podem muitas vezes influenciar as decisões deles. As autoras afirmam que é comum essas informações conterem armadilhas, de modo que as pessoas acabam sendo enganadas por elas por não possuírem os conhecimentos básicos de estatística. Elas argumentam que é difícil contestar esses elementos, pois os números passam a ideia de credibilidade, isenção e de uma suposta neutralidade. Questionar a veracidade dos dados exige ter um preparo para argumentar e contra-argumentar.

Nessa perspectiva, a proposta aplicada aos estudantes participantes tinha por objetivo investigar as informações apresentadas por Alexandre Garcia sobre o número de óbitos no Brasil durante os anos de 2019 e 2020 e refletir sobre o uso de dados estatísticos em informações de caráter noticiário. Em um primeiro momento, foi exibido para os alunos o trecho com a fala do jornalista sobre o tema em questão. Após o vídeo, houve uma discussão com o grupo a partir de cinco perguntas norteadoras: (a) “Vocês conhecem este jornalista?” (b) “Qual a percepção e opinião de vocês sobre o vídeo?” (c) “Qual o papel da matemática na informação?” (d) “Vocês acreditam que exista uma intencionalidade nessa informação? De que maneira?” e (e) “Vocês acreditam que as pessoas contestariam essas informações ou números?”

A partir das argumentações dos alunos, iniciou-se a proposta de investigar os dados apontados pelo jornalista. Com o auxílio de computadores com acesso à internet e utilizando uma planilha do programa Excel®, os estudantes, juntamente com o docente, analisaram as informações apresentadas pelo jornalista.

Para o início da investigação, foram anotados na planilha os dados relatados no vídeo, referentes ao total de mortes nos anos de 2019 e 2020 e às mortes diárias nesses períodos. Após o registro, os participantes foram indagados sobre se tinham ideia acerca de onde era possível encontrar os dados referentes aos óbitos no país. Com a discussão, o educador, juntamente com os estudantes, acessou o site do Portal da Transparência – Registro Civil. Os educandos foram informados sobre a existência desse portal, que é de livre acesso a qualquer cidadão. Foi solicitado que os alunos explorassem essa página de modo a observarem que, além do número de óbitos, era possível encontrar anotações referentes à quantidade de nascimentos e casamentos, além de informações sobre os cartórios implementados no país e o total de cadastros de pessoas físicas existentes.

Dando continuidade à investigação, o professor coletou os dados referentes aos óbitos nos anos de 2019 e 2020 e os estudantes registraram em suas planilhas. Nesse momento, os alunos foram indagados sobre como poderiam ser calculadas as mortes diárias desses anos. A partir das respostas dos educandos, foram realizados os cálculos sobre a média de mortes diárias, que constituía em dividir o número total de mortes do ano pelo número de dias do período analisado.

Efetivados os cálculos e registrados na planilha, o professor perguntou aos participantes se era possível analisar o número de mortes referentes aos meses dos anos de 2019 e 2020 e suas médias diárias para uma possível reflexão mês a mês em relação à taxa de mortes nesses períodos. Nessa perspectiva, foram coletados os dados referentes aos óbitos mês a mês dos anos em questão e, depois, foi realizado o cálculo da média diária de morte de cada mês em cada um dos anos analisados.

Após o registro dos cálculos, o professor questionou se era possível apresentar esses dados sobre o número de óbitos no Brasil durante os dois anos analisados de uma forma mais simples e objetiva. A partir da discussão, foi levantada a possibilidade de elaborar um gráfico para esses dados, pois visualmente seria melhor para a compreensão da situação. Nesse sentido, o docente mostrou aos alunos que o programa Excel® oferecia uma ferramenta de elaboração de gráficos a partir dos dados expostos. Desse modo, bastava que construíssem uma tabela, selecionassem as informações e clicassem na opção do gráfico desejado.

Feito isso, os discentes foram questionados sobre qual gráfico seria mais adequado para apresentar os dados abordados na questão. A partir das discussões e dúvidas levantadas pelos alunos, o professor optou por deixar que eles testassem os tipos de gráficos disponíveis e observassem qual seria mais objetivo e simples para compreender e analisar a situação. Com a execução dos esboços, dois educandos ponderaram que o gráfico de linhas era a melhor escolha para esses registros. Logo em seguida, confirmou-se que, como se tratava de uma análise temporal, esse tipo de gráfico seria o mais adequado para analisar a situação.

Com a finalização e os ajustes na elaboração do gráfico, foi solicitado que os participantes formassem grupos de, no máximo, três estudantes para a realização da proposta final. Assim, com base nos dados expostos pelo jornalista Alexandre Garcia no vídeo e na investigação realizada ao longo da aula, cada grupo deveria refletir sobre a situação e, como atividade final, redigir um texto comparando as informações sobre o número de óbitos no Brasil durante os anos de 2019 e 2020. Desse modo, as equipes deveriam realizar a escrita de uma forma crítica e utilizar os dados investigados para consolidar as argumentações apontadas pelo grupo.

A coleta de dados referente a esta investigação foi feita por meio de três instrumentos: gravação de vídeo, que ocorreu durante toda a aplicação e interação dos grupos na escrita do texto proposto; registros finais elaborados pelas equipes acerca da orientação apresentada e diário de bordo, redigido pelo professor/pesquisador, que contou com anotações feitas pelo educador sobre pontos que ele julgava serem pertinentes para a análise. Serão apresentados os resultados encontrados a partir da proposta investigativa de modo a ensejar uma reflexão sobre como a concepção da literacia estatística crítica é compreendida pelos pesquisadores.

Resultados e Discussão

A partir da apresentação da proposta, foram formados cinco grupos para a elaboração dos registros finais escritos, que deveriam refletir sobre o número de óbitos no Brasil durante os anos de 2019 e 2020 e compará-los com os dados apresentados pelo jornalista Alexandre Garcia no vídeo apresentado no início da investigação. Para exposição dos resultados apontados, serão utilizados nomes fictícios para identificar as falas individuais dos participantes, e os nomes serão acompanhados pela descrição G1, G2, G3, G4 ou G5, que se referem aos grupos nos quais os alunos estavam inseridos. Anotações gerais dos grupos serão identificadas apenas por G1, G2, G3, G4 e G5.

Com relação à discussão inicial sobre o vídeo apresentado, cabe destaque às respostas dadas pelos alunos Ricardo e Pedro à questão norteadora “Vocês acreditam que as pessoas contestariam essas informações ou números”?

Acredito que a maioria das pessoas não questionem essas informações, porque, por se tratar de uma pessoa influente e por ela apresentar dados, tendem a acreditar sem questionar

(Ricardo – G2, vídeo gravação, 18 out. 2022).

Eu acho também que por não ter a noção de como de fato é calculado esses dados, as pessoas acreditam nisso, ainda mais se for tratado em mídias famosas como essa

(Pedro – G4, vídeo gravação, 18 out. 2022).

Os estudantes refletiram a partir de uma crença de que as pessoas não contestariam as informações apresentadas por Alexandre Garcia. Justificaram que isso ocorre devido à influência dele como jornalista renomado e pelo fato dele apresentar dados quantitativos relacionados aos relatos expostos. Compreendem que os cidadãos não possuem conhecimentos sobre os procedimentos técnicos adotados nos cálculos desses dados e, por isso, acabam muitas vezes não questionando as informações exibidas nos meios de comunicação.

Essa questão também é evidenciada no texto apresentado pelo grupo G5 na atividade final, onde os alunos afirmam que, inicialmente, chegaram a acreditar nas informações expostas no vídeo apresentado no início da investigação.

[...] no início de nossa pesquisa chegamos a acreditar nos dados fornecidos por Alexandre pois poderia ter havido uma diminuição no óbito, dado que as pessoas estavam se mantendo em quarentena

(G5, texto atividade final, 18 out. 2022).

O grupo, durante essa reflexão, reforçou que a sociedade muitas vezes não questiona informações divulgadas nos veículos comunicativos, e, neste caso, com o vídeo apresentado no início da investigação, eles relacionaram a perspectiva dos dados apontados pelo jornalista com a vivência deles sobre aquele momento específico, pois durante o período pandêmico, como forma de combate à proliferação de casos relacionados à Covid-19 no país, foram adotadas medidas de isolamento social.

A proposta de trabalhar com contextos que façam parte da vida do estudante é relevante para uma aprendizagem significativa, de modo que ele reflita sobre as informações com as quais se depara no seu cotidiano e indague a veracidade dos dados divulgados nos veículos midiáticos. Essa discussão foi evidenciada por Garfield e Gal (1999) e Kleine (2020) em seus textos. Por sua vez, Weiland (2017) traz essa abordagem dentro do seu eixo de estruturação para a literacia estatística crítica, na parte de leitura, na qual aponta como identificar e interrogar as estruturas sociais que moldam e são reforçadas por argumentos baseados em dados.

Ao olhar para os textos apresentados pelos alunos na atividade final, observa-se uma percepção dos estudantes sobre a influência do jornalista e o que isso significa com relação à informação apresentada inicialmente:

[...] pesquisamos sobre o jornalista e vimos muitas posições que normalmente desagrada o público que se interessa pela pesquisa, sendo elas como apresentações de dados sem fontes, posicionamentos ruins sem uma certeza e fontes de sua inutilidade (sendo o principal seu posicionamento anti-vacina na época da alta do Covid-19 e falas de que os jovens não tinham que se prevenir a doença), suas várias mentiras desmentidas por outras plataformas jornalísticas que apresentaram suas fontes e dados de pesquisa

(G3, texto atividade final, 18 out. 2022).

[...] fazendo então a comparação entre os dados coletados pelo meu grupo e os dados apontados pelo jornalista, podemos perceber que claramente ele teve a intenção de diminuir a magnitude dos danos causados pela Covid -19, alegando que em vez de estar ocorrendo uma alta na quantidade de óbitos, esse número estava diminuindo, o que não é verdade pois em 2020 o número de pessoas hospitalizadas que estavam morrendo cresceu e continuou crescendo até o final do ano

(G4, texto atividade final, 18 out. 2022).

O relatório de Renan Calheiros, lido na CPI da pandemia oferece um longo e rico apanhado da atuação de canais bolsonaristas propagadores de fake news nas redes sociais. Dentre eles Alexandre Garcia é citado da seguinte forma “O jornalista foi um dos mais empenhados em mudar a imagem do governo federal durante o combate a pandemia. Fez vídeos, textos e publicações em suas redes sociais divulgando o tratamento precoce, questionando número de mortes na pandemia. Fez críticas ao uso de máscaras e ao isolamento social”, diz o relatório

(G5, texto atividade final, 18 out. 2022).

Os estudantes, depois de analisarem as informações estatísticas, relataram entender que a intencionalidade por trás da informação trazida pelo jornalista era tendenciosa. Para eles, a influência de Garcia no ramo comunicativo faz com que muitos cidadãos admitam que os números apresentados são verídicos, levando-os a acreditar que o problema não era tão grave.

Essa influência também é evidenciada durante a discussão inicial acerca do vídeo apresentado, nas respostas dadas às questões “Vocês conhecem esse jornalista?”, “Qual a sua percepção e opinião sobre o vídeo?” e “Você acredita que exista uma intencionalidade mediante a informação”?

Eu conheço ele. Ele já apresentou o Jornal Nacional

(Juliana – G5, vídeo gravação, 18 out. 2022).

Ele está informando que diminuiu o número de mortes comparado esses dois anos, mas quem não se atenta não percebe que ele usou algo desproporcional porque de 2020 ele só usou dados até a metade ano, então ele tinha como intenção mostrar que em 2020 estava tendo menos mortes do que comparado a 2019

(Ricardo – G2, vídeo gravação, 18 out. 2022).

Ele quis amenizar uma informação que não estava amenizada, porque eu me lembro que nessa época foi quando começou a ter as polêmicas de vacinas, Covid, se precisava ficar em casa ou não, quarentena

(Bruno – G3, vídeo gravação, 18 out. 2022).

Ele meio que mascarou os dados

(Ricardo – G2, vídeo gravação, 18 out. 2022).

É importante que se entenda que os argumentos estatísticos não são obtidos por meio de uma realidade objetiva e independente; eles são elaborados por indivíduos a partir de uma multiplicidade de subjetividades. Para Weiland (2017), há a necessidade de se abordar esse aspecto ao longo do processo de ensino e aprendizagem na perspectiva da literacia estatística crítica. É preciso aprender a avaliar a fonte, a forma como os dados são coletados e o modo como são expostas estas informações estatísticas e como elas são influenciadas pela posição social do autor e pelas lentes sociopolíticas e históricas.

Em relação aos textos escritos durante a atividade final, verificou-se ainda que os grupos G1 e G5 refletiram também sobre os gráficos construídos por eles durante a investigação. Com o objetivo de expor a coleta dos dados elaborada pelos estudantes durante a investigação, a Tabela 1 apresenta os números descritos pelos alunos do grupo G1 no programa Excel® ao longo da atividade, referentes às informações trazidas pelo jornalista Alexandre Garcia durante o vídeo inicial e aos registros feitos após consulta ao site do Portal da Transparência, além dos cálculos referentes às mortes diárias no primeiro semestre dos anos em questão.

Tabela 1 Registros elaborados pelos estudantes do grupo G1 acerca dos dados apresentados e investigados. 

Dados apresentados por Alexandre Garcia
Ano Mortes totais   Mortes diárias
  2019 4.889.000   13.394
  2020 2.000.336   12.559
Dados reais
Ano Mortes totais   Mortes diárias
  2019 1.289.000   3.532
  2020 1.483.024   4.063
Dados reais (mortes por mês)
Mês 2019 2020 Mortes diárias 2019 Mortes diárias 2020
  Janeiro 111.076 113.495 3.584 3.661
  Fevereiro 094.291 94.904 3.367 3.272
  Março 099.630 108.779 3.214 3.509
  Abril 107.428 116.092 3.580 3.869
  Maio 114.882 134.352 3.705 4.333
  Junho 107.318 138.530 3.578 4.617

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

A Figura 1, apresenta o gráfico elaborado pelo grupo G5 referente aos dados coletados durante a investigação no Portal da Transparência, relativos ao número de óbitos no Brasil no primeiro semestre dos anos de 2019 e 2020.

Fonte: Elaborado pelos autores (2022).

Figura 1 Gráfico elaborado pelo grupo G5 sobre o número de óbitos no Brasil referentes ao primeiro semestre dos anos de 2019 e 2020. 

Sobre o grupo G1, a equipe ainda acrescenta em seu texto, antes da apresentação do gráfico na atividade final:

Para dar veracidade aos dados fomos em sites de confiança e construímos um gráfico que mostra a real comparação de óbitos dos mesmos anos

(G1, texto atividade final, 18 out. 2022).

Os estudantes, além de aprenderem a construir gráficos e tabelas, utilizaram essas elaborações para informar sobre o contexto investigado. Além disso, todos os grupos refletiram e fizeram planejamentos para confeccionar um registro final sobre a idoneidade da informação estatística. Essas ações vêm ao encontro das orientações da BNCC acerca do ensino e da aprendizagem dos conteúdos de estatística (Brasil, 2018). O documento enfatiza que é necessário que os educandos saibam planejar e construir relatórios descritivos, incluindo o uso de gráficos e tabelas, de modo que não foquem somente em saber interpretar essas informações, mas que a eles sejam dadas oportunidades para construí-los.

Essa perspectiva é reforçada no quadro teórico proposto por Weiland (2017) sobre a estrutura de uma literacia estatística crítica. No referido quadro, para o desenvolvimento da parte escrita, deve-se usar investigações estatísticas e comunicar informações estatísticas e argumentos em um esforço para desestabilizar e remodelar estruturas de injustiça na sociedade. Quando analisado um trecho do texto apresentado pelo grupo G5 sobre a reflexão ensejada pela investigação, percebe-se que os estudantes realizaram pesquisas para além dos portais solicitados para a coleta dos dados da proposta.

De acordo com a Lei n 9.554 de 2018 art.287- A divulgar informação ou notícia que sabe ser falsa e que possa modificar ou desvirtuar a verdade com relação à saúde, segurança pública, economia ou processo eleitoral ou que afetem interesse público é crime sob pena de detenção de um à três anos, e multa se o fato não constitui crime mais grave. Depreende-se, portanto, a necessidade de se combater esses obstáculos. Para isso é imprescindível que o poder executivo, por intermédio da execução dessa lei de modo que possamos confiar nas notícias que vemos, a fim de diminuir esses acontecimentos. Assim se consolidará uma sociedade mais verdadeira onde o estado desempenha o seu ‘contrato social’ tal como John Locke

(G5, texto atividade final, 18 out. 2022).

Além da investigação e elaboração da escrita, a equipe buscou argumentos que contribuíssem com a reflexão trazida por eles, justificando o quanto essas informações não verídicas podem prejudicar a sociedade e, por isso, levantaram a necessidade de se combater esse tipo de desinformação. De modo geral, pressupõe-se que os estudantes, por meio da investigação, compreenderam que mesmo que as informações sejam trazidas por veículos midiáticos, é necessário refletir sobre o parecer apresentado, pois pode acontecer desses dados não serem verídicos ou serem manipulados.

Considerações Finais

A elaboração e implementação de propostas investigativas com ênfase na literacia estatística crítica apresenta contribuições para o processo de ensino e aprendizagem estudantes do ensino básico. Por meio da atividade elaborada, verificou-se que essa perspectiva pode proporcionar experiências de reflexões que auxiliam os estudantes em sua formação como futuros cidadãos, além de seu desenvolvimento acerca da leitura e escrita de aspectos voltados para a estatística.

Assumiu-se a perspectiva de que é necessário um novo olhar para o ensino e a aprendizagem de estatística, de modo a identificar e interrogar estruturas e discursos sociais que moldam a sociedade e que são reforçados por argumentos baseados em dados. Nesse sentido, analisando os registros referentes às falas dos estudantes e os textos finais apresentados pelos grupos após a atividade, observou-se que houve uma mudança no olhar dos participantes no que diz respeito à leitura e compreensão de informações relacionadas a dados estatísticos veiculadas em mídias sociais, não somente com relação à identificação desses elementos, mas também à averiguação da veridicidade deles.

Além disso, concorda-se com o autor mencionado sobre a necessidade de se debruçar com os estudantes nos contextos presentes no meio social em que eles estão inseridos. O implemento desse elemento nesta atividade foi essencial para a interação do processo de investigação, pois observou-se que, devido ao conhecimento e à vivência no assunto temático em questão, os estudantes participaram ativamente do estudo.

Contudo, é importante ressaltar que realizar esse tipo de proposta continuamente em sala de aula não é um trabalho fácil. Concorda-se que uma das barreiras para essa implementação é a questão do currículo e do tempo, pois esse tipo de planejamento demanda horas de execução e elaboração, além da falta de exemplos nos documentos orientadores sobre como desenvolver atividades em sala de aula dentro dessa concepção.

Ressalta-se que o trabalho a partir da perspectiva da literacia estatística crítica apresenta contribuições para o processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos de estatística de modo a auxiliar não somente na aprendizagem de leitura e escrita de conteúdos voltados à temática, mas também na aquisição de um olhar crítico voltado às informações presentes no contexto desses futuros cidadãos, de forma a colaborar com as lutas contra as injustiças e desigualdades que permeiam a vida desses indivíduos.

Desse modo, são necessários mais estudos acerca dessa perspectiva, com enfoque em sua implementação em sala de aula, para que docentes e pesquisadores tenham subsídios para aplicar, de forma efetiva, essas abordagens em ambientes educacionais.

2Neste artigo utilizamos os termos literacia estatística e letramento estatístico como sinônimos.

3No original: “understand and critically evaluate statistical results that permeate our daily lives-coupled with the ability to appreciate the contributions that statistical thinking can make in public and private, professional and personal decisions”.

4No original: “for individuals to be literate for their roles as citizens within their Society”.

5No original: (a) people’s ability to interpret and critically evaluate statistical information, data-related arguments, or stochastic phenomena, which they may encounter in diverse contexts, and When relevant (b) their ability to discuss or communicate their reactions to such statistical information, such as their understanding of the meaning of the information, their opinions about the implications of this information,or their concerns regarding the acceptabilityof given conclusions.

6No original: Reading the world through a critical statistical lens includes identifying and interrogating social structures and discourses that shape and are reinforced by data based arguments. Statistical arguments are not made from an objective independent reality. They are made by individuals from a multitude of subjectivities. In this sense statistical arguments can serve to perpetuate discourses. It is important for individuals to read into arguments, to interrogate what discourses are creating them, and to determine whether to accept them, while being aware of their inconsistencies, or to reject them, and the social structures they perpetuate. This aspect is tied to writing the world with statistics, which includes using statistical investigations to communicate statistical information and arguments in an effort to destabilize and reshape structures of injustice. Just as statistical investigations and arguments perpetuate certain discourses and structures in society, from a critical perspective they can also be used to point out ruptures and discontinuities in them.

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Sousa, I. G. S.; Souza, L. O. Literacia estatística crítica versus as comunicações nas mídias sociais. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 28, e238392, 2023. https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8392

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Recebido: 18 de Abril de 2023; Revisado: 05 de Julho de 2023; Aceito: 06 de Julho de 2023

Editora responsável: Celi Espasandin Lopes.

Conflitos de interesse: não há.

Correspondência para/Correspondence to: I. G. S. SOUSA. E-mail: igorgabriel_sousa@outlook.com.

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