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Revista de Educação PUC-Campinas

versão impressa ISSN 1519-3993versão On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.28  Campinas  2023

https://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8357 

Práticas Pedagógicas e Processos Educativos em Educação Estatística

Insubordinação criativa na implementação de práticas pedagógicas no contexto da Educação Estatística

Creative Insubordination in the implementation of pedagogical practices in the context of Statistical Education

Ana Paula Gonçalves Pita, concepção da pesquisa, análise dos dados, interpretação1 
http://orcid.org/0000-0003-2139-0194

Andrea Pavan Perin, redação do texto do artigo, revisão, aprovação da versão final do artigo2 
http://orcid.org/0000-0002-2791-7682

Celso Ribeiro Campos, redação do texto do artigo, revisão, aprovação da versão final do artigo3 
http://orcid.org/0000-0001-7371-2437

1Universidade Metropolitana de Santos, Faculdade de Educação. Santos, SP, Brasil.

2Faculdade de Tecnologia de Itapetininga. Itapetininga, SP, Brasil.

3Pontifícia Universidade Católica São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.


Resumo

O objetivo deste artigo é destacar aspectos referentes à Insubordinação Criativa diante do desenvolvimento de práticas pedagógicas no contexto da Educação Estatística Crítica após uma formação continuada. Para tanto, foram analisadas narrativas de professores que ensinam Matemática nas seguintes modalidades: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos. Durante a formação, os docentes participantes tiveram como proposta atividades voltadas para um ensino crítico, reflexivo e dialógico por meio de discussões sobre temas como perspectivas da modelagem Matemática enquanto abordagem pedagógica, definição das competências da Educação Estatística e perspectivas da Educação Crítica. Além disso, foram oportunizados, durante os encontros, momentos para que os professores formulassem, aplicassem, discutissem, reformulassem e voltassem a discutir projetos. Optou-se por utilizar narrativas para a geração de dados, para reflexão e formação docente e como produto sobre acontecimentos relacionados à Educação Estatística Crítica. Compreende-se que, ao propor ações voltadas para essa vertente, provavelmente o professor cria possibilidades para o desenvolvimento da competência crítica, que é importante para todos, por valorizar o diálogo e as reais necessidades dos sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Após analisar as narrativas, foi possível perceber a importância do ensino e da aprendizagem em uma vertente crítica e participativa do professor e da teoria refletida na ação e entre os docentes.

Palavras-chave Educação Básica; Educação Crítica; Educação Estatística Crítica; Formação; Narrativas

Abstract

The purpose of this paper is to highlight aspects related to Creative Insubordination in face of the development of pedagogical practices in the context of Critical Statistical Education after an extended professor training. For that, we emphasized the narratives of professors who teach Mathematics in the following modalities: Early Childhood Education, Elementary Education, High School and Youth and Adult Education. During the training, the participating professors faced activities geared towards a critical, reflective and dialogical teaching. Therefore, discussions were made on topics such as perspectives of mathematical modeling as a pedagogical approach, definition of the competences of Statistical Education and perspectives of Critical Education. Moreover, during the meetings, moments were provided for professors to formulate, apply, discuss, reformulate and discuss projects. It was decided to use narratives to generate data, for reflection and teacher training as a product about events related to Critical Statistical Education. We understand that, by proposing actions aimed at this aspect, professors tend to create possibilities for the development of critical competence, which is important for everyone, as it values dialogue and the real needs of the subjects involved in the teaching and learning process. After analyzing the narratives, it was possible to perceive the importance of teaching and learning in a professors’ critical and participative perspective. It was also important to perceive the theory reflected in action and the exchange of experiences among professors.

Keywords Basic education; Critical Education; Critical Statistical Education; Training; Narratives

Introdução

Compreende-se que a formação continuada não deve ser caracterizada somente pela atuação ou capacitação técnica do professor. Bem além disso, tem o compromisso de fomentar os processos de produção de saber docente a partir de sua prática e de sua formação. Libâneo (2002) pontua que o cerne da reflexividade está nas possíveis relações entre o pensar e o fazer, e, foi partindo dessa perspectiva (reflexão e ação) que os encontros com professores foram projetados. Para tanto, a formação continuada realizada pelos pesquisadores foi constituída de 40 horas, sendo 24 horas presenciais, com estudos voltados à Educação Estatística, e 16 horas à distância, dedicadas ao desenvolvimento das ações nas unidades escolares.

Para delinear como a formação continuada poderia ser oferecida aos professores, iniciou-se com os seguintes questionamentos: o que, como, quem, quando e com o que essa oferta seria feita? No entanto, uma coisa era certa: seria um espaço de diálogo, de dar voz aos docentes e de unir práticas e teorias, uma vez que, de acordo com algumas experiências na formação docente, sempre foi perceptível que os professores gostam de falar, contar casos e expor suas práticas.

Dessa forma, ao pensar nas proposituras de uma formação continuada sobre Educação Estatística Crítica, antes de tudo, os pesquisadores já tinham em mente que levariam uma proposta na qual o professor pudesse falar o tempo todo. Assim, o “como” já estava estabelecido.

Por compreenderem que a atitude crítica, a princípio emergida do “ser professor”, é importante para todos, pois liberta, valoriza o diálogo, cria pontes e traz ao entendimento o apreço, a solidariedade e o valor das vozes, os pesquisadores já estavam, dessa maneira, definindo o “o que”. Portanto, os encontros com os docentes seriam pautados em algumas teorias que envolvessem a Educação Estatística Crítica, a qual é compreendida como a convergência entre Educação Estatística e Educação Crítica, pois reside na ideia de promover ações pedagógicas de forma que o estudante entenda os problemas de maneira global e reflita sobre as questões emergidas diante de conjecturas, estimulando a argumentação e a criatividade (Campos; Wodewotzki; Jacobini, 2013).

Diante disso, abriu-se o leque sobre os temas e os conceitos que estavam atrelados à Educação Estatística Crítica, e as seguintes temáticas foram eleitas para os encontros: Educação Matemática Crítica, Modelagem Matemática e Educação Crítica. Dessa maneira, na ementa dessa formação continuada, objetivou-se unir uma prática pedagógica de reflexão que culminasse em ações criativamente subversivas e que libertasse os professores de gaiolas epistemológicas4 ou de currículos pré-estabelecidos. Além do mais, pretendia-se que os professores entendessem as competências estatísticas, incorporassem estratégias para ensinar de forma crítica e desenvolvessem ações nas unidades escolares de maneira que essas ações permitissem que seus alunos aplicassem os conhecimentos adquiridos em situações reais, nas quais precisassem fazer estatística para aprender Estatística (Smith, 1998).

Sobre o “quem” faria parte dessa formação, pensou-se, a priori, que seriam professores que ministravam aulas na educação de jovens e adultos (EJA), pois acreditava-se que essa era uma modalidade e um público que carecia de metodologias e práticas diferenciadas tanto no ensinar quanto no aprender. Dessa forma, ficou definido que o “quem” seriam docentes da EJA, e a divulgação do curso de formação continuada foi feita dessa forma. Entretanto, esse público, para surpresa dos pesquisadores, foi modificado, pois quando verificaram a lista de inscritos, eles se depararam com professores de todas as modalidades — da educação infantil até o ensino médio. Ficou decidido que o “quando” seria no segundo semestre do ano, entre os meses de agosto e outubro, para não atrapalhar os professores no fechamento do ano letivo.

A proposta foi submetida, como oficina, ao projeto SOMA, intitulada “Educação Estatística num ambiente de modelagem matemática: um olhar a partir da perspectiva da Educação Matemática Crítica”. Assim, um ponto do “com o que” foi definido, era necessário que os encontros fossem realizados em um espaço de fácil acesso e que estivesse disponível para que os encontros acontecessem aos sábados. Além disso, buscava-se um local que não criasse qualquer tipo de constrangimento, para que os professores falassem sobre suas práticas, angústias e críticas, entre outros assuntos. Outra questão que fez parte da discussão do “com o que” foi como seriam feitos os registros, durante o processo de formação, pois entendia-se que instrumentos de filmagem e gravação (câmeras, celulares etc) poderiam inibir a espontaneidade de algumas discussões, e, portanto, optou-se por anotações feitas por um observador. Dessa maneira, a formação foi oferecida a professores da educação básica que ensinavam a disciplina de Matemática, com o seguinte conteúdo programático: definições e perspectivas da modelagem Matemática enquanto abordagem pedagógica; definição das competências da Educação Estatística; perspectivas da Educação Crítica e aspectos trabalhados na Educação Estatística com a interface com a Educação Crítica.

A estratégia utilizada no decorrer da formação foi orientar e desenvolver, junto com os professores, projetos que envolvessem conteúdos de Estatística, além da realização de uma análise crítica de uma situação real e pertinente aos estudantes.

Refletindo sobre a formação continuada no contexto da Educação Estatística, foi possível entender, da mesma forma que Lopes (2013), que nem todos os professores que ensinam Matemática são professores de Estatística, pois nas formações iniciais ainda não há uma predisposição especial para o ensino dessa ciência. Segundo Lopes (2013, p. 905), “para ensinar Estatística, não é suficiente entender a teoria matemática e os procedimentos estatísticos; (mas) fornecer ilustrações reais aos estudantes e saber como usá-las para (envolvê-los) no desenvolvimento de seu juízo crítico”.

Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013) defendem que há uma grande preocupação em relacionar o ensino de Estatística com o cotidiano dos alunos, ressaltando que as atividades escolares desconectadas do dia a dia acabam gerando dificuldades aos estudantes. Concorda-se com os autores quando esses dizem que o ensino de Estatística deve sempre vir acompanhado de criticidade e que o aluno deve ser o protagonista das atividades e dos projetos, sendo criadas possibilidades para que o ensino cumpra sua função de educar para a formação de cidadãos críticos e participativos em uma sociedade democrática. Diante disso, pensando na formação continuada dos professores que ensinam Estatística nas escolas, foi proposta uma formação que contemplasse não apenas objetos de conhecimento, mas também a importância de traduzir o resultado de experiências em ações concretas.

Além do mais, depreende-se que a reflexão crítica dos professores sobre a prática deles e sobre algumas teorias favorece os trabalhos voltados para uma educação libertadora e de qualidade. Consequentemente, é possível que surja, a partir dessa reflexão, uma atitude pedagogicamente insubordinada e que colabora para que os docentes se libertem de amarras construídas pelo sistema de ensino, pela rede e/ou por ele mesmo, isso porque entende-se que o professor, ao se libertar, começa a ter um olhar diferenciado sobre metodologias ou estratégias que fazem bem não somente ao aluno, mas a ele também.

Para D’Ambrosio e Lopes (2015), o processo reflexivo pode ser considerado o precursor da insubordinação criativa, pois o incômodo decorre da leitura crítica sobre: as diretrizes estabelecidas pelas políticas públicas; a desprofissionalização do professor; o confronto com os dilemas e as dificuldades dos alunos; e os contextos diferenciados e diversos das salas de aula. As autoras consideram que a insubordinação criativa na ação pedagógica se dá quando o docente atreve-se a criar e a ousar, ao se contrapor a alguma diretriz. A intenção foi de “diluir os efeitos desumanizantes destas regras, protegendo as decisões profissionais dos professores, as quais foram baseadas no melhor interesse de seus alunos” (Lopes; D’ambrosio; Côrrea, 2016, p. 288).

Infelizmente, em na prática formativa e no entremeio da pesquisa, é possível perceber que os professores se deparam com restrições instituídas ora pela rotina escolar, ora pelas configurações das redes educacionais nas quais estão inseridos. Eles estão tão imbricados com as regras dos sistemas, que acabam não querendo romper com as estruturas que, às vezes, já naturalizaram. Portanto, ainda que busquem formações continuadas, não quebram alguns paradigmas ou não criam situações para o rompimento de barreiras, questionando regras e propondo ações significativas a seus alunos. Desse modo, compreende-se que provavelmente essas formações não darão resultados positivos e transformadores que culminem no favorecimento da aprendizagem e em uma formação crítica.

Educação Estatística Crítica

Para Frankenstein (2005), o conhecimento sobre Estatística é parte importante e considerável do real avanço democrático da estrutura econômica, social e política da sociedade. Segundo a autora, esse conhecimento é uma forma de libertação, pois, por meio dele, a classe dominante pode obscurecer realidades econômicas e sociais.

Além disso, a Estatística está presente no mundo atual e na realidade dos cidadãos, o que conduz à necessidade de ensiná-la a um número de pessoas cada vez maior. Para Lopes (2010), esta ciência (Estatística) configura-se com duplo papel na sociedade, pois permite a compreensão de características complexas de um mundo globalizado e facilita a tomada de decisões em um cotidiano no qual estão presentes a variabilidade e a incerteza.

Sobre a Educação Estatística, Frankenstein (2005) defende que o conhecimento crítico desses conteúdos é vital para a transformação da sociedade e, ainda, é importante no desenvolvimento da consciência crítica dos sujeitos. Nesse contexto, a autora entende que o legado freiriano fortalece as concepções sobre a humanização dos conteúdos da Matemática, conduzindo a Educação Estatística ao foco “sobre os inter-relacionamentos entre nossa prática de ensino diária concreta e contexto ideológico e estrutural mais amplo” (Frankenstein, 2005, p.117).

Nesse sentido, pode-se perceber que existe uma convergência entre as concepções do educador Paulo Freire sobre uma educação crítica e libertadora, que busca relacionar a educação com a mudança social para o desenvolvimento de uma consciência crítica, e o ensino dos conteúdos de Estatística, com temas pertinentes aos educandos. Assim, a dialética e a educação dialógica clareiam a natureza crítica e apontam conexões entre conhecimento crítico e mudança social emancipadora, uma vez que, em uma aula voltada à educação crítica, por exemplo, os docentes podem criar possibilidades para que os estudantes levantem questões sobre os problemas que enfrentam, as atividades que lhes interessam ou os temas que gostariam de conhecer, unindo a reflexão na aprendizagem de conteúdos estatísticos com ações para uma mudança social.

Portanto, a Educação Crítica “[...] valoriza os questionamentos sobre a importância do que está sendo estudado” (Campos; Wodewotzki; Jacobini, 2013, p. 61) e, da mesma forma, a Educação Estatística deve começar com um problema e terminar com uma opinião fundamentada. As opiniões dos estudantes não devem ser caracterizadas como certas ou erradas, mas analisadas “quanto à qualidade de seu raciocínio, adequação e métodos empregados para fundamentar as evidências” (Campos; Wodewotzki; Jacobini, 2013, p. 61), valorizando o aspecto crítico e não falso-verdadeiro. Assim, há evidências de características comuns entre a Educação Estatística e a Educação Crítica, como os princípios da aleatoriedade, que afastam o aspecto determinístico da Matemática; porém, isso a disciplina aproxima da ideologia crítica do falso-verdadeiro, necessário para a reflexão. Outro aspecto é a associação de modelos matemáticos nos quais o estudante identifica e escolhe quais ferramentas usar para solucionar uma questão descrevendo e interpretando fatos, o que é fundamental para o desenvolvimento da competência crítica.

A harmonia entre Educação Estatística e Educação Crítica reside na ideia de promover ações pedagógicas de forma que o estudante entenda os problemas de modo global, reflita sobre as questões, argumente, relacione esses problemas a uma mudança social e, então, desenvolva uma consciência crítica. Os estudantes devem ser incentivados a participarem da elaboração de temas que, de certa forma, sejam relevantes para suas vidas, como estudantes ou como profissionais. Dessa maneira, o ensino cumprirá sua função de educar para a formação de cidadãos críticos e participativos de uma sociedade democrática.

De acordo com Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013), os aspectos trabalhados na Educação Estatística com a interface com a Educação Crítica devem problematizar o ensino por meio de projetos, favorecer e incentivar debates e diálogos nas aulas, evidenciar o currículo oculto, entre outros.

É importante que o aluno reflita sobre sua vida e crie dados para fundamentar suas argumentações. Dessa forma, uma educação com função social se consolida, favorecendo a aprendizagem e uma formação crítica.

Insubordinação criativa

Conforme D’Ambrosio e Lopes (2015), o conceito de insubordinação criativa surgiu em 1981, ao ser publicado um relatório sobre um estudo etnográfico realizado com 16 diretores de escolas de Chicago/EUA. O documento evidenciou uma discussão a respeito das ações de insubordinação criativa desses 16 diretores como um recurso diante da burocracia educacional revelou, ainda, que esses gestores acabaram, por vezes, tomando decisões que não atenderam às expectativas de diretrizes superiores, pois eles perceberam a necessidade de desobedecer às ordens em prol da melhoria e do bem-estar da comunidade educacional, de modo a preservar princípios éticos, morais e de justiça social.

A insubordinação criativa na ação pedagógica se dá quando o docente se atreve a criar e a ousar, ao se contrapor a alguma diretriz em benefício dos estudantes. Em conformidade com Lopes, D’Ambrosio e Côrrea (2016), o termo surgiu diante da necessidade de subverter regras institucionais para preservar princípios éticos e morais. A intenção foi de “[...] diluir os efeitos desumanizantes destas regras, protegendo as decisões profissionais dos professores, as quais foram baseadas no melhor interesse de seus alunos” (Lopes; D’ambrosio; Côrrea, 2016, p. 288).

Diante desse breve esclarecimento, entende-se que atitudes insubordinadamente criativas são momentos em que professores optam por romper barreiras, regras e/ou leis em prol do ensino e da aprendizagem de seus estudantes.

Reflexão crítica na formação continuada e a insubordinação criativa

De acordo com Lopes, D’Ambrosio e Corrêa (2016), cada professor é único e, possivelmente, é por meio de sua personalidade, seus sentimentos, suas crenças e suas expectativas que cada um traça sua meta e desenvolve suas atividades. Dessa forma, para as autoras, quando os professores são “[...] movidos para melhorar a aprendizagem dos alunos e investir na melhoria das condições em que essa aprendizagem ocorre, os professores criam e colocam padrões de movimento e procedimentos” (Lopes; D’ambrosio; Corrêa, 2016, p. 288) e caminham alinhados com a sua identidade profissional. Assim, essas atitudes são responsavelmente subversivas e resultam em atos de insubordinação criativa.

Nessa mesma direção, para Corrêa (2019), o desenvolvimento do processo argumentativo na sala de aula está estreitamente ligado à insubordinação criativa, uma vez que é por meio de discussões desafiadoras que se pode fazer com que os estudantes desenvolvam a postura de questionar. Para a pesquisadora, quando o professor propõe ações pedagógicas, ele já mostra indícios de insubordinação criativa, pois, de certa forma, os estudantes começam a refletir sobre o que foi dito, levantam dúvidas e argumentam sobre a resolução de situações-problemas.

Além disso, é importante que os estudantes não apenas pensem sobre o conteúdo e a prática da comunicação crítica, mas também reconheçam a importância de traduzir o resultado dessas experiências em ações concretas. Por exemplo, é ineficiente envolver os estudantes em tópicos de desigualdade econômica e social no mundo mais amplo e ignorar a realidade da comunidade em que vivem.

Nesse cenário, entende-se que os indivíduos envolvidos na educação, estudantes e professores, estão em um processo de humanização, de forma que fatores exógenos influenciam em seus modos de pensar, pois, de maneira dialética e dialógica, eles constroem suas condições internas. Para Von Zuben (2003), as relações com a realidade, com os outros, com o saber e as experiências dos outros, com o grupo social e consigo mesmo são fatores externos que influenciam diretamente os indivíduos e sua formação.

No que se refere ao ensino de Matemática, Gutiérrez (2013) afirma que as insubordinações criativas dos professores manifestam-se por meio de atos, como: a criação de argumentações alternativas para explicar as diferenças de aproveitamento dos alunos, o rompimento da generalização normalmente presente nos discursos de análise dos resultados deles, no questionamento sobre das formas como a Matemática é apresentada na escola, na ênfase na humanidade e na incerteza da disciplina de Matemática; e no posicionamento dos alunos, como autores da Matemática, em desafiar os discursos discriminatórios sobre eles.

Para D’Ambrosio e Lopes (2015), o profissional da educação que busca formar estudantes éticos e solidários deve ter sensibilidade para perceber e respeitar o processo de desenvolvimento intelectual e emocional dos alunos. Assim, o educador não deve conceber o ensino como a transmissão de conceitos já elaborados e construídos, não limitando sua prática docente apenas aos objetivos previamente determinados sem considerar o contexto no qual seu aluno está inserido. Dessa forma, cabe ao docente adotar uma postura flexível diante das críticas e de aprendiz diante dos repensares, com um perfil “[...] participante, ativo, crítico e responsável, disposto a colaborar com seus pares e a buscar, coletivamente, soluções para os problemas educacionais que emergem em seus espaços pedagógicos” (D’ambrosio; Lopes, 2015, p. 5).

Além do mais, na visão das autoras, exercer a autonomia é envolver-se em um processo contínuo de descobertas e transformações das diferenças entre a prática cotidiana e as aspirações sociais de igualdade, justiça e democracia, e de compreensão dos fatores que dificultam não apenas as alterações das condições sociais e institucionais do ensino, mas também da própria consciência.

Quando nos defrontamos com a complexidade da sala de aula e do fazer do pesquisador, emergem dilemas e conflitos. Muitas vezes, diante deles, desenvolvemos nossas próprias estratégias e tomamos decisões que dão origem a práticas pedagógicas e investigativas, as quais podem possibilitar a toda e qualquer pessoa uma apropriação mais significativa e compreensível sobre as Matemáticas utilizadas nas diferentes instâncias da vida humana. Essa ação seria, então, caracterizada como um ato de insubordinação criativa, pois os educadores matemáticos assumiriam a imprevisibilidade presente no processo de construção de conhecimento e se dedicariam a ouvir o seu aluno, o seu sujeito, os seus colegas, ao invés de dar ouvido às diretrizes pré-estabelecidas pelas instituições

(D’ambrosio; Lopes, 2015, p.13).

No entanto, o que, na maioria das vezes percebe-se nas unidades escolares é uma atitude de autoritarismo, tanto entre gestores e corpo docente quanto entre professores e estudantes. Assim, há um cenário de estrutura tradicional: alunos enfileirados ou em um grande semicírculo, sendo que ambas as disposições são marcadas por um relacionamento vertical. Assim, uma das formas de implementação da pedagogia crítica, de modo que se dissipem os efeitos autoritários na sala de aula, é o estímulo aos trabalhos em que o diálogo é valorizado e para que os papéis, de professor e de aluno determinem-se de forma horizontal.

Conforme as concepções de Paulo Freire, o diálogo é crucial para o processo de estabelecimento uma educação crítica, pois nesse ambiente ocorre um possível equilíbrio entre as normas de cooperação e de sociabilidade.

Cada sala de aula é diferente de outra, os alunos têm motivação diferenciada, e os professores deverão ter muita criatividade para lidar com situações que lhes são novas, muitas vezes nem imaginadas, e para o qual não foram preparados. Têm que ser muito criativos, mesmo que signifique insubordinação, no sentido de não seguir conteúdos e metodologias que lhes foram ensinados no curso de licenciatura. Devem ser insubordinados criativos

(D’Ambrosio, 2014, p. 12).

Para Zeichner (2003), não é inevitável que o empenho em estimular a reflexão do professor venha a reforçar sua situação subserviente — isso se essa reflexão não estiver vinculada à luta por mais justiça social e se contribuir de algum modo para estreitar a brecha na qualidade da educação à disposição dos alunos de diferentes estratos.

Outro ponto de vista a ser firmado é sobre como a formação continuada pode fazer emergir no docente uma perspectiva de intervenção na concepção e execução de materiais pedagógicos e na construção ativa do currículo e do projeto político pedagógico de suas unidades, garantindo o melhor para seus educandos. Portanto, entende-se que ações pedagógicas significativas e atitudes críticas do docente podem partir da reflexão sobre como, o que e para quem ele irá ministrar ou está ministrando suas aulas.

Diante do exposto, assume-se a posição de que a formação continuada é uma das possibilidades para que docentes – por meio de reflexões sobre suas práticas pedagógicas, teorias, o contexto social e a importância política de sua profissão – estabeleçam uma postura crítica em suas ações e para que essas ações sejam direcionadas ao bem-estar dos estudantes.

Narrativas, formação continuada, reflexão e ações insubordinadamente criativas no contexto da Educação Estatística

Entende-se que a narrativa estrutura um evento, encadeando, em uma unidade coerente, circunstâncias, causas, motivos e efeitos, pois a existência é construída dentro dessa estrutura narrativa. À vista disso, o relato narrativo é, portanto, uma forma específica de discurso organizado em torno de um enredo da história, com sequência temporal, personagem(s), uma situação e a descrição de um mundo que é dado e pode ser mostrado. A narração implica uma vinculação de enunciados, a qual pressupõe que o mundo humano é construído como um todo no curso de ações ou eventos.

Para Bolívar, Domingo e Fernández (2001), as narrativas funcionam como um prisma, que é atravessado por elementos aparentemente independentes e desconectados da existência do sujeito; porém, esses elementos são partes ligadas em um todo. As narrativas têm caráter dialógico e interativo, estão imersas em um mundo completo de outros discursos e são compostas por uma polifonia ou pluralidade de vozes.

Concernente a esta pesquisa com abordagem qualitativa, a entrevista narrativa foi utilizada como instrumento metodológico de geração e coleta de dados (Jovchelovitch; Bauer, 2015) e foi realizada com cinco professores que fizeram parte da formação continuada.

Dessa forma, ao término da formação, foi agendado um encontro com os professores entrevistados, para o qual foi levado um pequeno roteiro para auxiliar os pesquisadores durante a narração. Vale ressaltar que o informante (o professor) já sabia de antemão que iria relatar, na entrevista, como as ações pedagógicas ocorreram e como essas repercutiram em suas vidas como professores e no âmbito pessoal, e, além disso, como, após se apropriarem das teorias que envolvem a Educação Estatística, suas práticas ficaram ainda mais críticas e reflexivas. As entrevistas foram transcritas, devolvidas aos professores para que fizessem intervenções se houvesse necessidade, e, em seguida, fossem aprovadas por eles.

Além das entrevistas narrativas, durante os encontros tentou-se oportunizar aos professores momentos de discussão que gerassem narrativas orais. Para tanto, ressalta-se que, em todos os encontros, os pesquisadores optaram por ter um observador que anotasse todas as discussões em um “diário de bordo”, que, no decorrer dos encontros, teve a funcionalidade de rememorar as discussões e os assuntos discorridos por todos os participantes, auxiliando os pesquisadores no processo de coleta e análise de dados. Além disso, também contribuíram com esse processo, as discussões realizadas em um grupo no Whatsapp formado pelos professores que fizeram parte da formação continuada.

Através desse grupo percebeu-se que havia uma comunicação, com narrativas espontâneas, sobre os movimentos positivos que estavam ocorrendo no decorrer dos encontros. Portanto, foi possível compreender, como Jovchelovitch e Bauer (2015), que, por meio das narrativas, as comunidades ou grupos sociais contam suas histórias com palavras e sentidos que são específicos aos modos de vida e culturas. Dessa maneira, as narrativas dão autenticidade às particularidades.

Narrativas foram adotadas como objeto de autoformação docente, e os pesquisadores perceberam que deveriam levar em consideração as dimensões pessoais e profissionais de cada professor participante. No entanto, para este artigo, decidiram destacar somente aspectos referentes aos momentos de insubordinação criativa diante de práticas que envolveram a Educação Estatística Crítica. Para tanto, nesta seção, descrever-se-á como se deram algumas atividades desenvolvidas durante os encontros e as discussões/reflexões sobre possíveis ações no contexto da Educação Estatística Crítica.

Já nos encontros, a priori, os professores refletiram sobre suas vivências com a disciplina de Estatística na perspectiva de estudantes (ensino básico e superior), como professores desses conteúdos e sobre as diferenças entre o ensino de Estatística e a Educação Estatística. Ainda, no contexto da Educação Crítica, os pesquisadores solicitaram aos participantes que pensassem sobre qual a postura e o que se pode esperar de um aluno protagonista e crítico. Para esses questionamentos, tiveram como respostas, entre outras: “posturas que conduzam a levantar problemas de seu interesse”, “formulação de questões e de perguntas”, “proposta de hipóteses e coleta dos dados”, “escolha de métodos estatísticos apropriados”, “reflexão crítica”, “discussão e análise crítica dos resultados”.

Dessa forma, para cada resposta, foi proposto que os professores pensassem em atividades desenvolvidas em aula que colaborassem com um ou mais comportamentos dos mencionados no parágrafo acima. Infelizmente, os professores disseram que a dinâmica da escola dificulta ações que orientem os alunos a atitudes como essas.

Explicou-se aos professores que, de acordo com o tipo de ação no contexto da Educação Estatística, elas podem culminar e/ou estarem relacionadas ao desenvolvimento de certas competências estatísticas — pensamento, literacia e raciocínio —, conforme Campos, Wodewotzki, Jacobini (2013). Assim, após alguns esclarecimentos, foi solicitado aos docentes que refletissem sobre os conteúdos e as atividades ofertadas nos livros didáticos e em apostilas, no sentido de verificarem se eram suficientes para o desenvolvimento dessas competências.

Assim, cada professor expôs seus comentários sobre as atividades trazidas e foi destacado que possivelmente não há o desenvolvimento das competências em conformidade com a Educação Estatística Crítica e “muito menos da competência crítica, pois não diz respeito à realidade dos alunos, acho que são exercícios estáticos” (professora Rosely). Dessa forma, os professores concordaram que as atividades, além de não contemplarem as competências estatísticas — pois os exercícios dos livros, em geral, são descontextualizados e desconectados da vida cotidiana dos estudantes — não conduzem a nenhuma reflexão ou análise sobre os temas. Essas conclusões ratificam a observação dos pesquisadores Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013) de que os livros-textos de Estatística continuam tratando o assunto abstratamente, propondo conceitos sem aplicação e valorizando aspectos matemáticos, e, assim, muitos professores seguem a mesma receita, em detrimento dos aspectos políticos, sociais e econômicos que também poderiam ser trabalhados nas aulas. Foi destacado por um professor que:

Para alcançar alguma meta no ensino de Estatística, os alunos devem aprender fazendo mesmo, têm que colocar a mão na massa e tirar suas próprias conclusões; porém, os livros e as apostilas trazem gráficos, tabelas e rol de dados já prontos e eles devem apenas realizar a análise

(professor Eduardo, 15/9/2018).

Compreende-se que os trabalhos desenvolvidos em na sala aula, norteados pela Educação Estatística Crítica, estabelecem “[...] condição básica para o trabalho pedagogicamente significativo, que é a contextualização dos dados” (Campos; Wodewotzki; Jacobini, 2013, p. 62), potencializando ações pedagógicas desenvolvidas na unidade escolar. Refletindo sobre essas ações, foi solicitado aos professores que planejassem uma proposta de atividade a ser desenvolvida com os alunos e que essa contemplasse as competências da Educação Estatística Crítica.

De acordo com Freire (2018), a teorização da educação deve ser atrelada à realidade, com contatos analíticos com o existente. Consequentemente, entende-se que o fazer educação de forma teórica e verbalizada tem convergência com as práticas; ou seja, que as teorias devem comtemplar as práticas e não se oporem a elas. Assim, que a educação seja, nas palavras de Freire (2018, p.123), “uma tentativa constante de mudança de atitude”.

Vale destacar ainda a importância das contribuições de todos os participantes nessas atividades, pois, a cada exposição, os demais colegas traziam colaborações pertinentes. Assim, ratifica-se o pensamento de Tardif (2014) sobre como os professores constroem seus saberes e assimilam novas competências para desenvolver novas práticas e estratégias de ação. Isso porque o pesquisador defende que é inerente à profissão docente um saber produzido socialmente, resultante de negociações de diversos grupos, pois o professor, em geral, não define sozinho o seu saber. Dessa forma, reitera-se que nesses momentos de discussões nos encontros foi possível compreender que os professores possivelmente desenvolveram competências críticas que levavam à reflexão sobre suas práticas.

Outra pauta levantada pelos professores foi sobre como eles acabam reproduzindo o tipo de ensino que tiveram em suas épocas de estudantes na educação básica; ou seja, o professor tenta reproduzir as mesmas condições aprendidas e experenciadas enquanto estudante. Portanto, entende-se que, quanto mais críticos, mais maturidade pedagógica os professores terão para tratar de questões emergentes em suas aulas, culminando em benefícios para a comunidade escolar. Para Freire (2018, p. 126), “[...] nossa cultura fixada na palavra corresponde à nossa inexperiência do diálogo, da investigação, da pesquisa, que, por sua vez, está intimamente ligada à criticidade, nota fundamental da mentalidade democrática”.

Houve, ainda, uma discussão sobre como, por vezes, faz-se necessária a insubordinação dos estudantes, além da pertinência da insubordinação criativa do professor. Alguns professores se diziam já insubordinados criativamente, uma vez que, para fazer algumas atividades que concebiam ser válidas para seus alunos, necessitavam planejá-las e executá-las “às escondidas”.

Após a escuta das discussões e narrativas sobre alguns casos de atitudes pedagogicamente insubordinadas, foi possível perceber o quanto ficou claro para os participantes que a “Insubordinação Criativa é ter consciência sobre quando, como e por que agir contra procedimentos ou diretrizes estabelecidas” (D’ambrosio; Lopes, 2015, p.19).

Nessa esfera, destaca-se que as ações pedagógicas no contexto da Educação Estatística Crítica já estavam sendo implementadas pelos professores em suas escolas. Dessa maneira, foi solicitado que eles apresentassem qualquer tipo de ação que já estavam desenvolvendo em suas aulas (discussões, rodas de conversa com os alunos, depoimentos, dados, portfólio, entre outros).

Foram oportunizados momentos para que todos os participantes narrassem experiências, falassem sobre as potencialidades e dificuldades encontradas no em desenvolvimento das propostas; porém, em todas as oportunidades certas intervenções foram realizadas para recordá-los sobre algumas teorias, ratificando as ideias de Barbosa (2001) de que a teoria e a reflexão são indispensáveis para evitar desarranjos perante a prática; ou seja, sem teoria, a prática possivelmente fica fragilizada pela dinâmica do cotidiano escolar.

Para tanto, os professores prepararam as apresentações utilizando meios tecnológicos e expuseram fotos, atividades de seus alunos e alunas em andamento, falas dos estudantes, de gestores e de outros professores da unidade que relatavam como toda essa ação estava sendo positiva. A todo o momento, os professores revelavam a produção de novos conhecimentos profissionais, colocando-se como protagonistas de suas aprendizagens e, por consequência, de seus próprios processos de desenvolvimento profissional. Em conformidade com Tardif (2014), deve-se considerar relevante nas formações continuadas o que os professores são, fazem, pensam e dizem nos espaços de trabalho cotidianos, oportunizando momentos para essas falas e reflexões.

Assim, por meio das declarações a respeito de cada projeto (temática, potencialidades, tensões, dúvidas, entre outras), os professores puderam, além de experienciar a vivência de cada colega, desenvolver conhecimentos ao externalizar suas ideias e suas práticas. Para Nacarato, Passos e Silva (2014), narrar vivências é uma prática que contribui com a autoformação docente, pois, possivelmente, este ato sobre suas próprias experiências e práticas, desenvolvidas na sala de aula, faz com que o professor reflita sobre suas ações. Além disso, as narrativas dessas experiências (supostamente) contribuem para a formação de outros professores.

Portanto, depreende-se que, ao dar voz aos professores, foi possível entender como vivem, pensam, sentem e lutam para dar conta do compromisso que firmam ao saírem das suas formações iniciais. Para Fiorentini (2012), é por meio dessa polifonia de vozes que podem ser conhecidas as singularidades e os anseios dos professores, criando possibilidades para que o pesquisador possa “[...] compreender as práticas educativas e o processo de desenvolvimento profissional do professor, a partir da perspectiva de quem vive a condição docente” (Fiorentini, 2012, p. 13).

Atitudes insubordinadamente criativas por meio de ações pedagógicas sobre Educação Estatística Crítica

Compreende-se que atitudes insubordinadamente criativas decorrem do desejo de promoção de uma aprendizagem a partir da qual os estudantes atribuam significados ao conhecimento; ou seja, o professor deve colocar a aprendizagem do aluno acima do cumprimento de currículos ou de qualquer forma de burocratização do ensino. Para Freire (1996), ensinar exige corporificação das palavras; assim, ao professor cabe o fazer e o pensar certo, pois não há como ensinar a criticidade e não ser criticamente responsável. Lopes (2010) no diz ser necessário que o docente tenha a consciência da ação política por trás de sua prática pedagógica. Nessa seção, são destacadas algumas atitudes criativamente insubordinadas dos professores diante do desenvolvimento de projetos e em suas aulas.

Compreende-se que as experiências (reflexão teórica, discussões, narrativas) possivelmente implicaram na forma como os professores passaram a olhar seus alunos, seus projetos e sua escola. Acredita-se que foram oportunizados o tempo e o espaço para que eles pudessem agir como protagonistas no planejamento de suas práticas durante a formação continuada, agregando teorias, práticas, escutas, reflexões e questionamentos e tornando-se sujeitos do conhecimento (Tardif, 2014).

Os professores passaram a se posicionar e a defender a implementação de ações pedagógicas que envolvam a Educação Estatística Crítica, pois foram conquistando espaços e tendo consciência do poder de transformação que eles têm. Eles se conscientizaram, também, sobre a importância de compreender e relacionar teoria e prática; ou seja, indiciou-se que as discussões foram uma forma de empoderamento desses indivíduos. Como consequência desse empoderamento e da visão libertária adquirida por esses professores, surge uma postura de autorreflexão sobre seus tempos, seus espaços, suas experiências, suas vozes e suas vidas.

Esse movimento firmou, nos participantes uma compreensão de que a atitude crítica é essencial no desenvolvimento de atividades individuais ou sociais, pois cria possibilidades para a transformação humana e, ainda, para que os sujeitos se reinventem e reinventem a sociedade em que vivem. Nesse viés, percebeu-se que, possivelmente, a formação continuada oferecida colaborou com a edificação de uma postura consciente desses professores, e, por meio da narração das experiências de vida deles, os pesquisadores também foram transformados. Assim, percebeu-se, nos trechos narrativos transcritos a seguir, o empoderamento desses professores e como eles se sentiram à vontade para falar sobre o diálogo e sobre atitude crítica:

Acho que os alunos não entenderam que, o que faziam ali naquele momento era Matemática; para eles Matemática são somente números, mas bem sei que nunca esquecerão o que é um gráfico de barras [...] acho que a educação é para isso, tornar as pessoas autônomas, que analisem os contextos, para que tenham uma opinião crítica. Até as questões políticas, porque os gráficos são distorcidos. Minhas crianças, quando observarem um gráfico, irão entender o que está acontecendo. Percebi que a Educação Estatística liberta. O dia que o professor for tratar mais a fundo estas questões de estatística, tenho certeza que meus alunos lembrarão que viram; ou melhor, elas não viram, elas montaram os gráficos. Os gráficos construídos foram com a realidade delas. Comecei a fazer com que eles fizessem sempre gráficos. Então percebi que, como Paulo Freire fez, se a gente começar a pegar coisas da realidade, que fazem sentido para as crianças, elas aprendem e relacionam o que aprendem

(Professora Roseli, São Vicente/SP, 24/05/2019).

Já para a professora Eliane, as discussões sobre Educação Estatística Crítica e Educação Crítica serviram para tirar uma “venda dos olhos” dela. Acredita-se que, a partir dessa leitura crítica das práticas pedagógicas, essa professora não será mais a mesma.

[...] foi bom ler Paulo Freire, sobre educação crítica, sobre olhar o mundo de forma crítica e não o que os outros passam para você. O conhecimento melhora tudo (pausa) é como se colocasse óculos e conseguíssemos enxergar melhor sobre o que está acontecendo ao seu redor. Mas tem professores que leem e acham que Paulo Freire está falando somente para trabalhar com o cotidiano, acham que é somente para enxergar o cotidiano. Mas, entendi que não é, é para enxergar o que está por trás daquele cotidiano

(Professora Eliane, Guarujá/SP, 17/5/2019).

A professora Ribeiro compreendeu a importância dos diálogos em sala de aula, sendo essa atitude primordial para a criação de um ambiente crítico e democrático:

O que fez com que os alunos entendessem a aproximação de conteúdos com fatos e coisas do cotidiano deles ou não [...]. Essas aulas do curso, nossas discussões, fez com que abrisse minha cabeça e me despertasse para coisas diferentes em sala de aula. O diálogo é essencial!

(Professora Ribeiro, Cubatão/SP, 1/7/2019).

O posicionamento dos pesquisadores é o de que a inferência dos educadores, por meio de suas aulas e da postura adotada por eles, possivelmente, cria nos educandos atitudes crítico-participativas. Dessa forma, entende-se, assim como o educador Paulo Freire, que a ação de conscientizar-se é dinâmica e está sempre desvelando a realidade, transportando os indivíduos de uma posição ingênua para uma posição crítica.

Para Jacobini e Wodewotzki (2006), a Educação Crítica insere-se e se desenvolve dentro de um contexto democrático, com diálogos entre os participantes nas salas de aula, nas quais há ausência de estruturas de poder e de preconceitos de qualquer natureza. Contudo, o que se observa é a forte presença de questionamentos e reflexões relacionadas a problemas sociais que objetivam transformações nas estruturas sociais, políticas, econômicas e éticas da sociedade. Nesse sentido, foi possível perceber que, segundo a fala dos professores, os alunos compreenderam a importância dos trabalhos de campo e gostaram das ações pedagógicas desenvolvidas por meio de discussões e da existência de um ambiente democrático e crítico de ensino, no qual os professores aprenderam com seus alunos.

Comecei a pensar, por que trabalhar com papel? Quero trabalhar a cabeça, o pensar dos meus alunos. Depois da coleta de dados, voltamos à sala e eles, em grupos, tinham que organizar as informações. Fiz uma pesquisa com eles fazendo outra coleta de dados, foram a campo pela escola para saber quem comia ou não merenda. Eles coletaram os dados e organizaram. Fizeram os gráficos por sala [...] Falamos sobre alimentação. E estimulou para que eles comessem merenda. Assim fizeram e analisaram qual era a sala que comia mais e fizeram a comparação com a deles. Fiz a atividade pensando em um objetivo e acabei atingindo vários. Não sei se eles comentaram essa atividade com os pais. Eles comentaram a atividade do kiwi com os pais, pois eles falaram que pediram para as mães comprarem. Também com a atividade do kiwi trabalhei a linguagem. Queria que eles aprendessem uma palavra com K, porque, às vezes, para se trabalhar com estas letras tem professor que trabalha com nome próprio, mas não está contextualizado. Pelo menos o kiwi eles pegaram. Alguns disseram que a mãe comprava na feira e não gostava, mas comeu na sala. O kiwi concretizou a letra K, eles vivenciaram a letra. Então trabalhei estatística, modelagem e linguagem

(Professora Roseli, São Vicente/SP, 24/05/2019).

A narrativa da Professora Roseli fez com que os pesquisadores percebessem que os alunos mais novos também podem ser inseridos em atividades de estatística e terem, inclusive, os hábitos alimentares transformados. A partir das atividades desenvolvidas pela professora, os alunos passaram a gostar da fruta kiwi e, por terem vivenciado situações significativas que envolveram relações com a letra K, eles conseguiram fazer as abstrações necessárias à aprendizagem.

Da mesma forma, a professora Lidiane percebeu que seus alunos do ensino fundamental (anos finais) de uma escola particular de Cubatão, de classe média, passaram a dar mais valor para coisas que passavam despercebidas para eles. Eles começaram a ter interesses por questões sociais e políticas de suas cidades, como, por exemplo, investigar onde estão as comunidades mais carentes da cidade e como poderiam contribuir com a questão da alimentação, com cestas básicas.

[...] eles comentam o trabalho de estatística. Falam sobre os salários, relacionam com os valores, os aumentos. Eles ainda são meus alunos. Esse trabalho com certeza marcou eles. Tive um relato de aluno, no qual ele dizia ter entendido o valor das coisas, pois ao ir ao mercado com a mãe (que sempre lhe deixava a vontade para pegar o que queria), esse aluno disse para a mãe: “vou pegar um pacote de bolacha, tem muita gente que não tem o que comer, não posso desperdiçar”. São relatos como esse que fazem a gente fazer toda essa loucura. [...] Continuo aplicando e falando sobre estatística dessa forma para que eles entendam. Fiz depois disso um trabalho voltado para os próprios gastos dos alunos. Eles montaram tabelas, fizeram porcentagens, gráficos

(Professora Lidiane, Cubatão/SP, 1/6/2019).

Esses discursos convergem para as ideias propostas por Skovsmose (2013) sobre a Educação Matemática Crítica, segundo as quais o conhecimento ensinado pelos professores deve ter uma razão de ser e precisa focar a busca por atender aos anseios sociais e humanos da comunidade.

Nesse mesmo sentido, Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013) afirmam que ações pedagógicas desenvolvidas em um ambiente de discussões sobre fatos reais e pertinentes aos estudantes, em consonância com a Educação Estatística, são relevantes por incentivarem e contribuírem para o desenvolvimento das competências de literacia, pensamento e raciocínio estatísticos. Dessa forma, compreende-se que esses professores se conscientizaram de que a abordagem de conteúdos estatísticos numa perspectiva crítica impulsiona o ambiente democrático. Assim, entende-se que o ensino e a aprendizagem no contexto da Educação Estatística Crítica promovem discussões ricas e de interesse dos alunos, pois desenvolvem um cenário de reflexão e valorização, no qual há uma consciência crítica, desenvolvida por meio de diálogos.

As aulas do Professor Eduardo, desenvolvidas num cenário crítico sobre estatística, resultaram na transformação comportamental de seus alunos do ensino fundamental. Nas aulas, eles tinham que, por meio de personagens de um livro de literatura, analisar suas próprias características, e isso permitiu que o professor e os estudantes, após terem se desvelado, construíssem um relacionamento de maior cumplicidade.

[...] além da estatística, eu tinha que trabalhar com Excel. Mas criou muita motivação, pois os alunos pensaram sobre suas posturas na sala de aula. Nossa ação pedagógica foi sobre aspectos comportamentais com os alunos, então o aluno tinha que se autodefinir e comparar suas características com o comportamento escolar. Eles começaram a ver que o comportamento deles refletia em suas notas, que eram mais baixas ou mais altas, e começamos a perceber as coincidências com alguns alunos e que alguns comportamentos estavam proporcionando notas mais altas. Interessante que eu tinha uma aluna que ela era muito bagunceira e fazia questão de extrapolar mesmo, mas era uma menina muito doce. Agora, passado um ano, mas ela não é mais minha aluna, a mudança de comportamento dela foi muito marcante, ela chegou e disse que melhorou. Os alunos levantaram dados e fizeram comparativos com as notas. No caso dessa menina, a Ana, ela falou assim: “opa dá para melhorar”. se foi fruto ou não da ação pedagógica, não sei, mas fiquei com uma pontinha de satisfação querendo imaginar que possa ter contribuído

(Professor Eduardo, Santos/SP, 24/7/2019).

Assim, por meio das narrativas desses professores, compreendeu-se que o professor é o principal agente transformador de suas práticas, pois promove seu aprendizado por meio de reflexões e constrói seus saberes quando se compromete a desenvolver uma aprendizagem cooperativa e colaborativa. Nesse sentido, Fiorentini (2008, p. 60) explicita que o docente deve “[...] saber desenvolver e aplicar estratégias de sala de aula cognitivamente profundas, emocionalmente envolvidas e socialmente ricas”.

Fiorentini et al. (2002) consideram que a formação continuada se estabelece quando o professor se torna mais reflexivo em sua prática e busca melhores condições profissionais, desenvolvendo situações didáticas que geram novas práticas. Dessa forma, assinalou-se que, ao propor atividades no âmbito da Educação Estatística Crítica, os professores puderam refletir, planejar, revisar e transcender suas práticas docentes e, assim, possivelmente romperam, de alguma forma, ora com currículos pré-estabelecidos, ora com seus próprios preconceitos sobre algo ou alguém.

Para D’Ambrosio (2014), o trabalho em sala de aula vai além do conhecimento da matéria, haja vista que é importante conhecer os alunos e suas expectativas, ligando a Matemática escolar ao cotidiano e fazendo com que os discentes reflitam sobre questões sociais e de cidadania. Consequentemente, é fundamental preparar o professor para ter uma percepção geral de vários campos de conhecimento para sua atuação em sala de aula. É necessário que o docente realize uma reflexão dialógica sobre as ações pedagógicas, pois, assim, analisa as características e os procedimentos que desenvolve em sala e, a partir dessa análise, direciona suas práticas a uma educação crítica e que é de real interesse dos alunos; ou seja, “[...] é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (Freire, 1996, p. 43).

Uma turma de EJA que ninguém queria, todos os professores achavam eles horrorosos (risos). Os alunos eram desmotivados, pois ninguém acreditava neles. Foi quando fiz o curso de formação e discutimos sobre os processos de ensino e aprendizagem por meio de ambientes diferenciados e de diálogo. Lembro que em uma das rodas de conversa no curso quando discutíamos cenários diferentes com alunos, uma professora deu a sugestão de trabalhar Estatística com jornais, e tive a ideia também com as tabelas de futebol e campeonatos para trabalhar Estatística, o que fez com que os alunos entendessem a aproximação de conteúdos com fatos e coisas do cotidiano deles ou não [...] Trabalhei com eles a fábula da cotovia e seus filhotes. Eles amaram e participaram muito desta aula. Fez com que eles tivessem uma reflexão sobre assuntos pertinentes à vida do bairro onde moramos. Assim, trabalhando desta forma, consegui conhecer melhor meus alunos e eles contaram suas histórias por meio da fábula. [...] Uma das dificuldades que tinha com eles no começo era que minhas aulas eram na sexta-feira a noite e já sabe, poucos iam. Quando comecei a trabalhar de forma diferenciada, isso mudou. Eles começaram a frequentar

(Professora Ribeiro, Cubatão/SP, 1/7/2019).

Essa narrativa da Professora Ribeiro fez os pesquisadores pensarem o quanto é importante a colaboração do professor para que o educando reflita sobre o conteúdo ensinado. Assim, o professor consegue trabalhar novas situações de forma participativa e crítica. Para tanto, ele deve estar numa constante ação/reflexão/ação, que permite o sucesso do processo de ensino. Essa professora fez com que seus alunos da EJA que, de certa forma, eram discriminados pelos próprios professores, voltassem a frequentar as aulas às sextas-feiras e se tornassem conscientes da importância do ensino e da aprendizagem em suas vidas. Porém, para que essa transformação ocorresse nas posturas dos alunos, primeiramente, a professora, de forma resoluta, mudou suas ações pedagógicas e se percebeu importante também nesse processo. Nesse sentido, Tardif (2014) considera que, para que professores tornem-se “[...] sujeitos do conhecimento, precisaremos dar-lhes tempo e espaço para que possam agir como atores autônomos de suas próprias práticas e como sujeitos competentes de sua própria profissão” (Tardif, 2014, p. 243).

Quanto à atenção dos professores a respeito das tratativas de conteúdos estatísticos, foi possível verificar, por meio das narrativas, que eles passaram a valorizar ambientes mais democráticos e os conteúdos começaram a ser trabalhados por meio de temas geradores. Para Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013, p. 12), um dos principais objetivos da Educação Estatística é valorizar uma postura investigativa, reflexiva e crítica do aluno, que vive em uma sociedade globalizada, marcada pelo acúmulo de informações e pela necessidade de tomada de decisões em situações de incerteza.

Nesse sentido, percebeu-se que os docentes começaram a valorizar essa postura crítica de seus alunos apenas depois de compreenderem a importância das ações voltadas para esse fim. A esse respeito, a professora Eliane, da cidade de Guarujá/SP, desvelou: “Enfim, ampliar para o despertar! Para a criticidade, para a política, politizada, mas sem defender um partido ou uma pessoa”.

Freire (2016) compreende que a conscientização é mais do que uma simples tomada de consciência; ela é a inserção crítica dos sujeitos em uma sociedade desmitificada. Portanto, entende-se que o papel fundamental do educador não é simplesmente aquele de promover ações para fabricar ideias libertadoras, mas o de convidar os educandos a refletirem sobre as verdades de sua realidade. “Não se pode chegar à consciência crítica unicamente pelo esforço intelectual, mas, sim, pela práxis” (Freire, 2016, p. 149). A Educação Crítica faz com que os sujeitos entendam-se como pessoas em constante transformação, capazes de se superar e de perceber que a estagnação é um risco fatal.

Já a professora Ribeiro, também de Cubatão/SP, mencionou que: “Essas aulas do curso, nossas discussões, fez com que abrisse minha cabeça e me despertasse para coisas diferentes em sala de aula. O diálogo é essencial!” Entendeu-se que, agregada à qualidade da educação, tem-se a qualidade sociocultural, socioambiental e sociocrítica, cabendo aos docentes constantes reflexões sobre as questões referentes às ações pedagógicas. Desse modo, a convergência desses fatores sociais com as ações docentes resulta em uma educação crítica, solidária e consciente, haja vista que a educação deve ser discutida como desenvolvimento, pois não somente alunos e professores ganham, mas também a sociedade, porque a qualidade da educação direcionasse para a qualidade política e econômica.

Dessa forma, compreende-se que alguns objetivos relativos à prática aplicada ao cotidiano desses professores foram atingidos, por meio de propostas pedagógicas voltadas às situações-problema, que eram relacionadas ao contexto dos estudantes e tinham a intencionalidade de que fossem alcançadas as consciências social e crítica. Para Campos, Wodewotzki e Jacobini (2013), essas práticas são indissociáveis ao ensino, uma vez que os princípios da Educação Estatística estão focados na investigação e na reflexão.

O intuito dos pesquisadores era promover uma formação que proporcionasse aos participantes uma visão sobre as relações da Educação Crítica imbricada com a Educação Estatística e que, dessa forma, ela contribuísse com o pensar dos docentes sobre suas próprias experiências. Assim, buscou-se contribuir, de alguma forma, para que os professores que ensinam Matemática possam transcender os currículos pré-estabelecidos e desenvolver práticas criativas, ousadas e diferenciadas das formas que experimentaram quando eram estudantes (D’ambrosio; Lopes, 2015).

Considerações Finais

Diante da discussão, aqui tecida, foi possível perceber que a formação continuada sobre Educação Estatística Crítica colaborou com atitudes insubordinadamente criativas, e os pesquisadores compreenderam que cada professor trouxe impresso, em suas narrativas, evidências de que, por meio de suas ações pedagógicas, possivelmente desenvolveram competências críticas. Para D’Ambrosio e Lopes (2015), o processo reflexivo pode ser considerado como precursor da insubordinação criativa, pois o incômodo decorre de uma leitura crítica sobre as políticas públicas e as necessidades reais dos estudantes.

Durante as análises das narrativas, foi possível perceber e sentir a importância do ensino e da aprendizagem em uma vertente crítica e participativa do professor, e, ainda mais, a importância da teoria refletida na ação e nas trocas de experiências por meio das narrativas de suas vivências durante e após a formação. Lopes (2014) destaca que as narrativas podem contribuir positivamente e ampliar o conhecimento profissional dos professores. Assim, é por meio das narrativas que os professores, além de organizarem as ideias e sistematizarem experiências — pois atribuem significados a elas, ensinam. Dessa forma, percebeu-se que a formação continuada oferecida aos professores, buscou favorecer a fala deles para possibilitar “[..] ao professor refletir sobre teoria e prática a partir da análise de suas experiências” (Lopes, 2014, p. 842).

Além disso, após os encontros de formação sobre Educação Estatística Crítica, observou-se que os participantes compreenderam a principal característica de uma escola: ser desafiadora. Nesse sentido, como defendido por Freire (2016), a escola deve criar possibilidades para que os estudantes façam perguntas. Portanto, a partir do entendimento de algumas teorias, os professores passaram a examinar a importância de criar condições para que os alunos saibam perguntar e questionar, entendendo que esse é um possível caminho para um ensino de qualidade e de uma educação crítica.

Para Freire (1996), é refletindo criticamente sobre a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. Consequentemente, para ter o discurso teórico, é necessário que haja uma reflexão crítica de modo que essa quase se confunda com a prática, pois “O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (Freire, 1996, p. 43).

Assim, entende-se que além do compromisso docente de ministrar aulas voltadas para práticas verdadeiramente libertadoras, os professores passaram a buscar formas de respeitar a si mesmo e as reais necessidades dos estudantes; ou seja, quanto mais se assume como está sendo e percebe a ou as razões de mudar, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica, mais o docente busca centrar esforços para atingir necessidades reais. Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar (Freire, 1996).

Como palavras finais, expõe-se que, nesse processo, fica claro que o aluno também educa o professor, considerando que em cada experiência e saber, o docente produz conhecimento — não somente intelectual e social, mas também de forma emotiva e moral, por meio de suas vivências. Para isso, talvez, seja necessário conhecer e pensar sobre a realidade educativa e da produção científica desde sua complexidade, tomando decisões e desenvolvendo ações que, muitas vezes, serão subversivas, mas deverão ser realizadas com criatividade e responsabilidade.

4Expressão utilizada de acordo com o educador Ubiratan D’Ambrosio (palestra na Universidade Anhanguera de São Paulo/SP sobre Tendências em Educação Matemática em abril de 2014), que fez uma analogia entre amarras na educação e pássaros presos em gaiolas, pois esses vivem e alimentam-se de ideias que encontram na gaiola, voam só no espaço da gaiola, procriam e repetem-se, comunicam-se por códigos e por uma linguagem conhecida apenas por eles e não conseguem ver além do que as grades permitem.

Como citar este artigo/How to cite this article

Pita, A. P. G.; Perin, A. P.; Campos, C. R. Insubordinação criativa na implementação de práticas pedagógicas no contexto da Educação Estatística. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 28, e238357, 2023. http://doi.org/10.24220/2318-0870v28e2023a8357.

Artigo elaborado a partir da dissertação de A. P. G. PITA, intitulada “Um caminho, um olhar, um novo fazer: narrativas de professores após formação continuada sobre Educação Estatística Crítica”. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2020.

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Recebido: 17 de Abril de 2023; Revisado: 17 de Maio de 2023; Aceito: 06 de Julho de 2023

Correspondencia a/Correspondence to: A. P. G. PITA. E-mail: ana.pita@unimes.br.

Editora Assistente: Celi Aparecida Spasandin Lopes

Conflito de interesses: não há.

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