Introdução
A construção de narrativas na era digital desempenha um papel fundamental na transformação da educação bilíngue de surdos e na promoção da inclusão social. A tecnologia trouxe consigo uma revolução na forma como nos comunicamos, aprendemos e compartilhamos histórias. Essa mudança paradigmática é especialmente significativa para as comunidades marginalizadas – como os surdos, que historicamente enfrentam desafios significativos no que diz respeito ao acesso à informação e à representação adequada (Fernandes; Moreira, 2014; Fuchs, 2017; Manovich, 2020).
Manovich (2020) verifica a influência das mídias digitais na contemporaneidade, estimulando aprofundamentos sobre a construção identitária e das interações humanas. A construção de recursos digitais representa uma força predominante na organização e produção cultural. É por meio dele que são facilitadas a criação e a distribuição das mídias, promovendo modulações na própria estrutura desses produtos culturais. Considera-se que o acesso de grupos minoritários como a comunidade surda a esses recursos facilita a comunicação e a interação desses indivíduos, capacitando-os para se tornarem agentes ativos na construção de suas próprias narrativas. No entanto, apesar dos avanços significativos, ainda existem desafios a serem enfrentados, como a acessibilidade digital e a forma como esses instrumentos moldam as práticas sociais e as experiências culturais dos sujeitos.
A inacessibilidade continua sendo uma preocupação importante, limitando o acesso da comunidade surda a conteúdos online devido à falta de legendas e à interpretação em línguas de sinais precária ou inexistente (Grilo; Rodrigues; Silva, 2019). Além disso, destacam-se as janelas para tradutores e intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras), entre outras formas de suporte que promovem a igualdade de condições com relação às demais pessoas (Associação Brasileira de Normas Técnicas, 2005; Brasil, 2015), fora da padronização necessária ou em desacordo com a Norma Brasileira nº 15.290 e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI). As disparidades na infraestrutura tecnológica podem criar uma divisão digital entre aqueles que têm acesso aos dispositivos e às conexões de alta velocidade e aqueles que não possuem.
Nesta era de rápida evolução tecnológica, é essencial continuar explorando maneiras de fortalecer e expandir a construção de narrativas sobre a educação bilíngue de surdos, o que envolve não apenas garantir a acessibilidade digital e a representação adequada, mas também promover uma cultura de inclusão e respeito mútuo na busca pelo resgate das experiências, perdidas nos tempos de interação em “telas” (Fernandes; Moreira, 2014). De acordo com Stiegler (2019), a existência dos dispositivos digitais, como os tablets, smartphones e computadores, tem reconfigurado a relação entre tempo, espaço e conhecimento, implicando na perda da experiência autêntica e do engajamento com a vida prática. Dessa maneira, cabe debates sobre a forma como essas narrativas são construídas e veiculadas nas diferentes mídias.
O objetivo deste ensaio é analisar a utilização de recursos online pela comunidade surda, debatendo a importância do avanço tecnológico para a composição das redes virtuais. As questões de pesquisa visam compreender quais os impactos das tecnologias digitais na comunicação de pessoas surdas? Qual o potencial da construção de redes online para a desconstrução de preconceitos e estigmas relacionados à surdez? Parte-se de um ensaio teórico, com uma revisão bibliográfica sobre a temática, de natureza qualitativa (Gil, 2008). As reflexões foram pautadas nas contribuições de autores que debatem o avanço no uso de recursos tecnológicos (Castells, 2015; Fuchs, 2017; Manovich, 2020; Stiegler, 2019), enfatizando a forma como a comunidade surda pode ser inserida nas redes virtuais em prol de maior reconhecimento e valorização social de sua língua e cultura.
O texto está organizado da seguinte maneira: inicialmente, foi realizado um percurso histórico sobre a forma como o estigma perante a comunidade surda é construído. Em seguida, foram debatidos os processos contemporâneos a partir dos quais o avanço tecnológico se descortina favorecendo as transformações culturais vigentes. Após, essas mesmas plataformas são problematizadas com o intuito de discutir a inserção da comunidade surda e das narrativas digitais na expansão do acesso social pelas vias tecnológicas. Por sua vez, as contribuições da era digital para a construção de modelos de inclusão e representação do eu foram ressaltadas, reforçando as articulações possíveis sobre os autores utilizados. Finalizamos nossa argumentação com breves reflexões sobre a temática em foco.
Surdez, identidade e cultura: um percurso histórico
A surdez é uma condição que acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. No entanto, ao longo da história, ela foi muito mal compreendida e marginalizada pela sociedade dominante. A criação de um estigma relacionado à surdez levou a comunidade à organização de movimentos de resistência e afirmação da identidade surda, com a visibilidade de uma cultura própria que se diferencia, entre outros elementos, pela língua desses indivíduos – as línguas de sinais – assumindo-se, assim, a diferença (Perlin; Strobel, 2014). A presente seção traça um percurso histórico da surdez, examinando como as noções de identidade e cultura surda evoluíram.
Atualmente, a surdez é reconhecida como uma identidade e uma cultura distintas, que merecem respeito e valorização (Brasil, 2002, 2005). No Brasil, a Libras é reconhecida como a primeira língua desses sujeitos, elemento essencial de sua cultura (Brasil, 2002). Avanços significativos foram alcançados, mas a luta por seus direitos continua, com vistas à promoção da inclusão e da igualdade de oportunidades. A educação bilíngue de surdos indica a concomitância da Libras e da língua portuguesa escrita nos processos educacionais (Brasil, 2021), representando uma expectativa pela inclusão desse público não apenas na esfera educacional, mas em todos os âmbitos sociais.
A formação de uma cultura e identidade surda no Brasil é um processo complexo e multifacetado que envolve questões históricas, sociais, políticas e linguísticas. A partir do breve percurso histórico trilhado neste texto, entende-se que a história da comunidade surda no Brasil está diretamente ligada à disseminação da Libras e à luta por reconhecimento e direitos, que se dá principalmente nas décadas de 1990 e seguintes (Perlin; Strobel, 2014). A formação e o compartilhamento da cultura surda têm sido marcados por encontros, eventos e manifestações culturais que celebram a riqueza de sua diversidade.
Em geral, algumas atividades coletivas podem ser destacadas, como os festivais de teatro, as exposições de arte, as conferências e os encontros esportivos, que são algumas das formas pelas quais a cultura surda tem se expressado e se fortalecido. Essa formação identitária também tem sido influenciada por movimentos sociais e políticos que buscam garantir a inclusão e o respeito às diferenças. Organizações como a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) e o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) têm sido importantes na luta por políticas públicas que promovam a inclusão e a igualdade de oportunidades para esses sujeitos. Em função disso, a socialização dessa comunidade com diferentes correntes, seja de forma presencial ou online, favorece a luta pelos direitos outorgados a esse público.
Digitalidade e transformação cultural
A transição para o mundo digital marcou uma revolução nas formas de produção, consumo e interação com a informação. Porém essas mudanças não se limitam apenas ao âmbito tecnológico, permeando profundamente a cultura e as relações sociais. Manovich (2020) ressalta que a digitalidade provocou uma reconfiguração profunda na própria essência da cultura, transformando-a em um fenômeno mais fluido, fragmentado e acessível. A cultura digital é marcada pela prática da remixagem, interatividade e participação ativa do público, aspectos que diferem consideravelmente dos métodos de produção cultural tradicionais.
A abordagem descentralizada e colaborativa sobre as referências culturais dos indivíduos, reflete uma mudança fundamental na maneira como as pessoas criam, consomem e compartilham conteúdos na atualidade. Essa transformação é evidente na proliferação de comunidades online dedicadas à criação colaborativa, como os fóruns de discussão, wikis e plataformas de compartilhamento de conteúdo, entre outras. Nessas plataformas, os usuários não apenas consomem passivamente a cultura, mas também contribuem ativamente para sua produção e circulação, remixando e reinterpretando o material existente de acordo com suas próprias necessidades e interesses (Manovich, 2020).
Essa prática de “cultura participativa”, como Manovich (2020) descreve, democratiza o processo criativo, permitindo que uma gama mais ampla de vozes e perspectivas sejam representadas na esfera cultural. A digitalidade diversificou os meios de expressão cultural, modificando, fundamentalmente, nossa compreensão de autoria e propriedade intelectual. Com a facilidade de reprodução e distribuição de conteúdos, as noções tradicionais de autoria singular e originalidade são desafiadas, dando lugar a uma cultura de “autoria distribuída”, a partir da qual a criação é frequentemente coletiva e interativa. Nesse contexto, a propriedade intelectual torna-se menos uma questão de controle exclusivo sobre o conteúdo e mais de reconhecimento e atribuição adequada aos contribuidores.
Stiegler (2019) aborda a questão da transformação cultural sob a perspectiva da tecnologia como uma extensão do ser humano, argumentando que as tecnologias digitais não são apenas ferramentas neutras, mas moldam ativamente nossas percepções, comportamentos e relações sociais. Assim, a digitalidade altera a forma como se consome cultura e como essa influencia nossa identidade e compreensão da realidade. A tecnologia não é apenas um meio para alcançar um fim, mas desencadeia um processo de mediação entre o sujeito e o mundo, moldando nossas experiências e perspectivas de maneiras complexas e, muitas vezes, imprevisíveis.
Em continuidade, Stiegler (2019) adverte sobre os perigos da “proletarização digital”, a partir da qual os indivíduos se tornam cada vez mais alienados e despossuídos devido à dependência excessiva de tecnologias proprietárias e plataformas centralizadas. A digitalidade, longe de ser um mero facilitador da liberdade e da expressão individual, pode servir como um mecanismo de controle e dominação por parte das corporações e do Estado. Assim, propõe-se uma abordagem mais crítica e reflexiva em relação ao uso das tecnologias, enfatizando a importância de uma educação digital que promova a autonomia, a criatividade e a consciência crítica. Quando as implicações sociais, políticas e culturais das tecnologias digitais são compreendidas, pode-se tomar decisões mais informadas e assertivas sobre seu uso e desenvolvimento.
Fuchs (2017) complementa essa análise ao destacar os aspectos políticos e econômicos da digitalização, discorrendo que as tecnologias digitais transformam a cultura e redefinem as relações de poder e a distribuição de recursos. A concentração de poder nas mãos de poucas empresas de tecnologia, por exemplo, tem impactos significativos na diversidade cultural e na liberdade de expressão online. A digitalidade não é apenas uma mudança técnica, constituindo-se em uma transformação cultural profunda que levanta questões essenciais sobre democracia, justiça e igualdade de acesso à informação e à cultura. A lógica do capitalismo digital tende a promover a exploração e a desigualdade, reforçando, assim, as disparidades sociais e econômicas.
Nessa perspectiva crítica de Fuchs (2017), destaca-se a importância de uma abordagem mais holística e socialmente engajada em relação à digitalidade, que leve em consideração os aspectos técnicos e os impactos sociais, políticos e econômicos das tecnologias digitais, enfatizando a necessidade de regulamentação e a construção de políticas públicas que protejam os direitos dos cidadãos na era digital a fim de que se promova uma sociedade mais justa e igualitária.
Narrativas digitais na educação de surdos
As narrativas digitais desempenham um papel crucial na educação bilíngue de surdos, permitindo que esses indivíduos compartilhem suas experiências, perspectivas e desafios de maneira acessível e significativa. Williams (2011) ressalta que elas têm um papel revolucionário na democratização do acesso à educação e à informação, especialmente para grupos historicamente marginalizados, como os surdos, enfatizando que as tecnologias digitais oferecem ferramentas como vídeos em línguas de sinais e aplicativos educacionais que podem tornar o aprendizado mais acessível e envolvente. Essas ferramentas, conforme Costa (2020), podem auxiliar em projetos que visam a diminuição das barreiras comunicativas, favorecendo uma experiência de aprendizado mais significativa e inclusiva e permitindo que os surdos participem mais ativamente da sociedade.
Costa (2020) destaca que, quando conteúdos educacionais são disponibilizados em formatos acessíveis, as narrativas digitais capacitam os sujeitos surdos a aprenderem de maneira autônoma e independente, sem dependerem exclusivamente de intérpretes ou recursos impressos – ações que visam a promoção de autonomia e autoconfiança, ampliando as oportunidades de educação e desenvolvimento pessoal. As tecnologias digitais possibilitam a personalização das atividades, dos feedbacks imediatos e dos recursos multimídia, atendendo às diferentes necessidades e estilos de aprendizagem. Contudo, é preciso utilizar esses recursos com criticidade, de acordo com as necessidades dos estudantes – e a respeito disso, entende-se que as tecnologias ainda precisam avançar.
De acordo com Williams (2011), as narrativas digitais abrem novas portas para a educação bilíngue de surdos com a criação de um ambiente educacional mais equitativo, a partir do qual todos tenham acesso ao conhecimento e às oportunidades de aprendizado. Esses subsídios podem contribuir para a resistência a modelos opressores, como uma resposta às imposições culturais constantemente percebidas no atual cenário:
Aparentemente, a área de uma cultura é antes proporcional à área de uma língua do que ao âmbito de uma classe. Certo é poder a classe dominante controlar, em grande escala, a transmissão e a distribuição da herança comum; esse controle – onde existe – deve ser assinalado como um fato a anotar acerca daquela classe. Certo é, também, que uma tradição opera sempre seletivamente e que haverá sempre a tendência de relacionar e mesmo de subordinar esse processo de seleção aos interesses da classe dominante. Esses fatores tornam cabível admitir-se que haverá transformações qualitativas na cultura tradicional quando houver mudança de classe no poder, antes mesmo que a nova classe ascendente traga sua contribuição. Pontos como esses devem ser acentuados, mas a acentuação particular que se dá à cultura existente qualificando-a como burguesa é, sob muitos aspectos, enganadora
(Williams, 2011, p. 330).
Em concordância com esse ponto, Costa (2020) destaca que a representação na cultura digital é crucial para comunidades minoritárias, como os surdos. Essas narrativas podem desafiar estereótipos e amplificar vozes marginalizadas, oferecendo uma oportunidade de compartilhamento de histórias e experiências. Ao desafiar os estereótipos com o uso das narrativas digitais, os surdos podem reivindicar espaço e visibilidade na sociedade, o que promove maior compreensão e inserção social. Com o uso de plataformas digitais como mídias sociais, blogs e vídeos online, esse público pode criar e compartilhar conteúdos que reflitam suas experiências únicas e perspectivas individuais. Essa representação diversificada enriquece a cultura digital como um todo, combatendo a marginalização e o preconceito enfrentados pelos surdos na sociedade.
Hall (2018, p. 13) ressalta em sua obra como o sujeito moderno tem sido acometido por uma “crise de identidade” no cenário contemporâneo, uma vez que se percebe uma fragmentação de algo que antes era considerado unificado: a identidade,
A questão da ‘identidade’ está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
Dessa maneira, é possível pensar que essa fragmentação identitária indicada por Hall (2018) repercute na comunidade surda, sobretudo durante o acesso a espaços de discussão online. Para Grilo, Rodrigues e Silva (2019), nesses espaços é possível encontrar apoio mútuo, compartilhar recursos e formar redes de solidariedade. As conexões digitais também são importantes para os surdos no enfrentamento do isolamento social devido à barreira linguística e à falta de acesso a comunidades locais de surdos. Ao oferecer um espaço para que os surdos compartilhem suas histórias e perspectivas, a cultura digital pode ajudar a criar uma sociedade mais inclusiva e empática. A representação positiva e autêntica dos surdos na cultura digital desafia noções preconcebidas sobre surdez, promovendo uma cultura de aceitação e respeito à diversidade humana.
Assim, as narrativas digitais na educação bilíngue de surdos não são apenas ferramentas pedagógicas, mas instrumentos poderosos de empoderamento e mudança social (Fernandes; Moreira, 2014). Ao fornecer uma plataforma para a expressão e representação dos surdos, a cultura digital pode desempenhar um papel fundamental na promoção da inclusão. Com base na leitura de Castells (2015), enfatiza-se o papel das redes digitais na formação de comunidades e identidades online. Essas plataformas oferecem um espaço essencial para a construção de laços sociais e culturais, possibilitando que os surdos se conectem, colaborem e compartilhem recursos educacionais em uma escala global.
Com base na leitura de Castells (2015), entende-se que essa capacidade de formar comunidades online fortalece a identidade surda e promove um senso de pertencimento em um mundo digitalmente conectado. Ao criarem e participarem de redes digitais, os surdos podem encontrar apoio, trocar experiências e compartilhar informações relevantes para sua educação e seu desenvolvimento pessoal. Essas redes digitais proporcionam um espaço seguro e inclusivo na qual os surdos podem se expressar livremente, sem as barreiras linguísticas que, muitas vezes, encontram na vida offline.
As redes digitais transcendem as fronteiras geográficas, permitindo que todos os sujeitos, em todo o mundo, se conectem entre si com a utilização de recursos (Castells, 2015), tornando-se especialmente importante para comunidades surdas em áreas remotas ou com poucos recursos. Essas comunidades podem se beneficiar significativamente do acesso à educação e às informações disponíveis. Ao promover a formação de comunidades online, as redes digitais ajudam a mitigar o isolamento social e a exclusão que muitos surdos enfrentam. Assim, as inúmeras plataformas digitais oferecem um espaço a partir do qual os surdos podem compartilhar suas experiências, encontrar suporte emocional e construir relacionamentos significativos com outros membros da comunidade surda, independentemente de sua localização física.
Inclusão e representação na era digital
A digitalidade oferece oportunidades sem precedentes para a inclusão e representação de surdos na sociedade, desempenhando um papel fundamental na construção de uma cultura mais diversificada e inclusiva. Por meio das narrativas digitais, esse grupo social tem a oportunidade de se ver refletido e valorizado, uma vez que se torna possível sua expressão. É possível utilizar a noção de representação do eu, de Goffman (2002), para compreender os mecanismos de interação social e construção identitária presentes no cotidiano dos indivíduos.
Para Goffman (2002), as interações humanas ocorrem a partir de performances, nas quais os sujeitos desempenham determinadas funções na busca pelo gerenciamento das impressões inscritas na comunicação, além de manipular a forma como são vistos. Dessa maneira, como seres humanos, desenvolvemos uma verdadeira “dramaturgia social”, considerando a construção identitária por meio de gestos, linguagem corporal, expressões faciais e demais maneiras de expressão não verbal. Em função disso, criamos uma “noção de eu”, como uma representação social, por meios sutis e, em muitos casos, inconscientes.
De acordo com Goffman (2002) sobre como construímos representações de nós mesmos, refletimos sobre como essas representações são desenvolvidas no espaço online, contexto não abordado em sua obra, mas discutido atualmente, em vista da expansão do uso da internet. No espaço digital, também estamos preocupados com a forma como somos interpretados. No caso dos surdos não é diferente. Em função disso, cabe compreender se as redes favorecem o empoderamento e a afirmação identitária ou se elas perpetuam as desigualdades e exclusões sociais. Dalmaso (2013) indica que a personalidade é flexível, modificando-se nos diferentes contextos a partir dos quais as interações se desenvolvem. Além disso, nas redes, as construções do eu são potencializadas, com o desempenho de diferentes papeis ao mesmo tempo.
Castells (2015) discorre a respeito da relevância das tecnologias digitais como facilitadoras da promoção da diversidade e da construção de identidades culturais multifacetadas. Em sua abordagem, ele sustenta que as redes digitais desempenham um papel fundamental, oferecendo um espaço para a expressão cultural e o intercâmbio de ideias entre uma ampla gama de grupos sociais, incluindo os surdos. Com a disponibilização de uma plataforma para que os surdos compartilhem suas narrativas, vivências e pontos de vista únicos, as narrativas digitais contribuem de forma significativa para a riqueza do tecido cultural da sociedade contemporânea. Esse processo de intercâmbio cultural enriquece as experiências individuais e promove maior entendimento e respeito pela diversidade cultural, fomentando uma atmosfera de inclusão e aceitação mútua.
Nessas análises, as tecnologias digitais emergem como ferramentas poderosas para a construção de uma sociedade mais coesa e solidária, na qual as diferenças são celebradas e valorizadas como componentes essenciais da identidade humana. A visão de Manovich (2020) expande essa análise, ao ressaltar a importância do acesso aos recursos digitais na promoção da inclusão e da diversidade na sociedade contemporânea. A democratização do acesso à tecnologia é um elemento fundamental para assegurar que todos os grupos sociais, incluindo os surdos, possam participar de forma plena e significativa na esfera pública digital e em igualdade de condições.
Com base em Manovich (2020), enfatiza-se a urgência do desenvolvimento de ferramentas e recursos digitais acessíveis para a comunidade surda, destacando a importância da adaptabilidade dessas soluções e indicando que as necessidades e preferências dentro da comunidade surda podem variar significativamente. Portanto, é essencial que as ferramentas digitais sejam flexíveis o suficiente para atender essa diversidade. Isso pode envolver a disponibilização de opções de customização, como configurações de acessibilidade ajustáveis e suporte para diferentes formas de comunicação, incluindo as línguas de sinais e o texto escrito em língua portuguesa, por exemplo.
A criação de plataformas digitais inclusivas não se resume apenas à acessibilidade técnica, mas também se faz necessário considerar aspectos culturais e sociais para garantir que os surdos se sintam verdadeiramente integrados e representados nas redes. Isso pode incluir a promoção de conteúdos que reflitam as experiências e perspectivas da comunidade surda, bem como a facilitação de interações significativas entre membros dessa comunidade com a utilização de recursos como fóruns de discussão, grupos de interesses específicos e eventos online (Costa, 2020; Grilo; Rodrigues; Silva, 2019).
Com base no pensamento de Manovich (2020), entende-se que a criação de plataformas digitais inclusivas é uma etapa fundamental para assegurar que os surdos não apenas tenham acesso ao cenário digital, mas também que possam participar plenamente e se beneficiar de todas as oportunidades que essa mídia oferece. Ao investir na acessibilidade e adaptabilidade das ferramentas digitais e ao promover uma representação autêntica e inclusiva da comunidade surda, pode-se construir um ambiente online mais diversificado, equitativo e enriquecedor para todos os usuários.
Andrade (2022) acrescenta à discussão sobre os desafios e oportunidades na educação bilíngue de surdos na era digital ao ressaltar a importância de uma representação autêntica e inclusiva das experiências surdas nas mídias digitais. A diversidade de narrativas e perspectivas dentro da comunidade surda deve ser retratada de maneira precisa e respeitosa nos meios de comunicação digitais. Isso promove uma compreensão mais ampla e empática da cultura surda, desafiando estereótipos e preconceitos que possam existir. Ao garantir uma representação autêntica e inclusiva nas mídias digitais, está sendo oferecida aos surdos uma plataforma para compartilhamento de suas histórias, experiências e visões de mundo de maneira genuína e fiel à sua realidade, fortalecendo a identidade cultural surda e contribuindo para uma sociedade mais inclusiva e informada.
Nas palavras de Andrade (2022, p. 229):
Quando produções midiáticas são criadas com pautas que envolvem a língua de sinais e a surdez, por mais que os participantes tenham críticas para fazer, encontram nos afetos do uso de sua língua e nos conteúdos apresentados, pontos positivos para a disseminação dele à comunidade surda e consequentemente veem positivamente a presença da Libras a partir desses dispositivos.
As reconfigurações identitárias na comunidade surda podem ser entendidas a partir das considerações de Hall (2018), que argumenta que a identidade não é algo fixo e permanente, mas fluido e em constante processo de construção e negociação. Na comunidade surda, a identidade é frequentemente construída em relação à língua e à cultura, elementos essenciais da identidade desses indivíduos. As línguas de sinais são fundamentais para a comunicação e a expressão da comunidade surda, e é por meio delas que são construídas as relações e as narrativas e que as experiências são compartilhadas. É importante salientar que as reconfigurações identitárias também podem ser influenciadas por mudanças sociais, políticas e tecnológicas (Andrade, 2022; Fernandes; Moreira, 2014).
As discussões em torno da surdez e da identidade surda são influenciadas por questões de poder e representação. O movimento surdo busca afirmar a identidade surda como uma identidade cultural e não apenas uma deficiência, reivindicando espaço, visibilidade e reconhecimento. As reconfigurações identitárias refletem a complexidade e a diversidade das identidades contemporâneas, bem como a importância de se reconhecer e respeitar as diferenças e singularidades de cada sujeito. Ao adotar uma abordagem fluida e dinâmica de identidade, a comunidade surda pode continuar a se reinventar, afirmando-se em um mundo em constantes transformações (Andrade, 2022; Grilo; Rodrigues; Silva, 2019).
A representação autêntica e inclusiva nas mídias digitais não é apenas uma questão de responsabilidade social, pois impacta na autoestima e no bem-estar dos surdos. Ao verem suas experiências e identidades representadas de forma positiva e respeitosa, eles podem se sentir mais reconhecidos e valorizados (Andrade, 2020). Em função disso, é essencial fortalecer as comunidades surdas online como parte integrante do panorama digital contemporâneo. A necessidade premente de criar espaços virtuais de diálogo e colaboração facilita a troca de conhecimentos e experiências entre os membros da comunidade surda. Essas comunidades online desempenham um papel crucial na promoção da inclusão e da igualdade de oportunidades para os surdos na era digital.
As comunidades surdas online oferecem um ambiente acolhedor no qual os surdos podem se conectar, compartilhar suas experiências e apoiar seus pares. Os espaços virtuais servem como plataformas para o desenvolvimento pessoal, favorecendo a troca de informações e o ativismo social (Grilo; Rodrigues; Silva, 2019). Além disso, as comunidades surdas online têm o potencial de ampliar o alcance e a influência da comunidade surda como um todo, ao reunir indivíduos de diferentes partes do mundo. Algumas plataformas comunicativas que se destacam são: o Festival de Folclore Surdo2, os Palhaços Surdos3, as interações realizadas por comediantes youtubers com a temática surda4, a promoção de lives que tematizam a surdez, como o Centro de Integração da Arte e Cultura dos Surdos (CIACS)5, o Librascast6, entre outros. Essas plataformas podem fomentar redes de apoio global e fortalecer a voz coletiva desses indivíduos em questões que afetam suas vidas.
As narrativas desempenham um papel fundamental na maneira como as pessoas compreendem a realidade e se conectam. Na era digital, a presença de diferentes dispositivos de mídia digital favorece a comunicação entre os sujeitos em diferentes partes do mundo, ampliando vozes que anteriormente eram marginalizadas (Andrade, 2022). No contexto da educação bilíngue de surdos, as narrativas digitais desempenham um papel crucial na representação e inclusão dos surdos na sociedade. Por meio de plataformas como as redes sociais e aplicativos de mensagens, os surdos têm a oportunidade de compartilhar suas histórias e experiências de forma acessível e significativa. Isso ajuda a dar visibilidade às suas causas e promove maior compreensão e empatia, em relação à comunidade surda.
No entanto, existem desafios a serem enfrentados em relação à acessibilidade digital para os surdos. Questões como a indisponibilidade de legendas em vídeos, a falta de intérpretes de língua de sinais em plataformas de comunicação e a escassez de recursos educacionais adaptados, podem dificultar o acesso dos surdos ao mundo digital (Andrade, 2020). É essencial que haja um esforço contínuo para superar essas barreiras e garantir que a educação bilíngue de surdos seja verdadeiramente inclusiva e representativa.
A criação de espaços seguros e acolhedores para que os surdos possam compartilhar suas histórias, trocar informações e se conectarem com outros membros da comunidade mostra-se cada vez mais fundamental porque essa troca leva-os ao fortalecimento do senso de identidade e pertencimento e promove maior conscientização sobre as questões que os afetam. Conforme apontado neste ensaio, os benefícios da participação da comunidade surda na esfera online são inúmeros. Há, por outro lado, que se priorizar a forma como esses diferentes usos serão conduzidos, tendo em vista a inclusão democrática e a justiça social para esse grupo minoritário e tão estigmatizado.
Considerações Finais
À medida que navegamos nas águas turbulentas da era digital, é imperativo reconhecer os desafios e as oportunidades que se apresentam no horizonte da educação bilíngue de surdos. Para colher os frutos desse potencial transformador é essencial enfrentar os desafios e abraçar estratégias inovadoras e inclusivas. Os autores aqui revisados oferecem uma visão multifacetada das complexidades envolvidas na construção de um ambiente digital verdadeiramente inclusivo para os surdos. Reforça-se a importância do desenvolvimento de ferramentas digitais acessíveis e adaptáveis, com a construção de representações autênticas e inclusivas nas mídias digitais. Assim, ressalta-se o valor das comunidades surdas online na criação de espaços de diálogo, colaboração e empoderamento.
A partir do percurso empreendido nesta argumentação, verifica-se que o avanço tecnológico é uma realidade indiscutível, mas nossa sociedade ainda não se encontra em um ponto crítico, capaz de antever as dificuldades e os desafios envolvidos no acesso tecnológico. A construção de algoritmos favorece a inserção de mais indivíduos em diferentes espaços. Em vista disso, é perceptível que houve um avanço tecnológico, mas esse avanço não dialoga com as necessidades da comunidade surda em integralidade. Softwares para potencializar a comunicação têm sido desenvolvidos, mas ainda com poucos avanços efetivos. Como consequência, é preciso acompanhar as manifestações da comunidade surda online visando compreender as diferentes (re)configurações identitárias que essa relação homem-tecnológica pode promover.
Diante dessas considerações, indica-se que o caminho à frente requer um compromisso contínuo com a acessibilidade, representação e participação plena dos surdos na era digital. Isso implica não apenas superar barreiras técnicas, mas também abordar questões mais profundas de diversidade cultural, igualdade de acesso e justiça social. Somente por meio de um esforço conjunto e colaborativo que envolva governos, instituições educacionais, empresas privadas e a sociedade civil será possível construir um futuro digital mais inclusivo e equitativo para todos.
Nos despedimos desse mergulho nas águas da representação do eu no espaço online com as diferentes formas a partir das quais as pessoas surdas podem se expressar nos ambientes virtuais. É crucial lembrar que nosso trabalho está longe de terminar. Os desafios enfrentados são complexos e multifacetados, mas nos remetem às oportunidades de crescimento, aprendizado e inovação. Com determinação e compromisso, é possível criar um mundo a partir do qual cada voz seja ouvida, cada história seja valorizada e cada pessoa tenha a oportunidade de prosperar plenamente na sociedade digital do século XXI.