Introdução
A primeira parte do século XXI tem sido marcada pelo crescimento e adesão às plataformas digitais, um movimento que mostra sua força na modelagem das interações e os comportamentos dos sujeitos em diferentes tempos e espaços. Acessar um amigo ou colega através de aplicativos de mensagem instantânea ou das redes sociais e obter prontamente um retorno para sua necessidade passou a ser uma expectativa naturalizada nas relações a tal ponto que a lógica da satisfação imediata parece imbricada nas interações. Ações humanas que requerem paciência e persistência, como por exemplo a própria pesquisa acadêmica, vão sendo submetidas à expectativa do retorno instantâneo, ao ponto que pululam na internet estratégias milagrosas se apresentando como atalhos, quiçá descaminhos, para estudar/investigar/escrever sem esforço e/ou alcançar resultados satisfatórios com economia de tempo. Poucas esferas da ação humana resistem à sedução de uma gramática de vida pautada na hiperconexão planetária e nos efeitos quase imediatos, como se a narrativa fosse sustentada em crenças como: “expresso na mesma velocidade em que penso para testar minha importância no mundo”, “ter minhas ideias repercutidas pelo outro é uma prova de que digo a verdade”, “quem questiona ou refuta o que penso está errado”. Nesse horizonte compreensivo, no qual os algoritmos configuram as práticas sociais e, por sua vez, são reorganizados a partir delas num ciclo (Poell; Nieborg; Van Dijck, 2020), engajar-se em uma atividade offline ou fora da lógica do algoritmo tornou-se um desafio, uma atitude de resistência da subjetividade diante de uma coletividade virtualizada, quase holográfica. Ironicamente, tem se tornado um hábito cada vez mais comum afirmar nas redes sociais o quão desconectado você está e o que tem feito, numa busca por aproximar as narrativas das urgências da vida cotidiana às narrativas virtuais. Na tentativa de narrar o que nos acontece e justificar nossa necessidade de participar das plataformas digitais, “o tempo é reduzido a uma faixa estreita de coisas atuais. Falta-lhe amplitude e profundidade temporais. A compulsão pela atualização desestabiliza a vida” (Han, 2023, p. 40). Corromper as fronteiras entre o mundo físico e o ciberespaço, assim como diluir a percepção de passado, presente e futuro são atitudes de uma consciência anacrônica, que se projeta fora das exigências do espaço e do tempo e, assim, só consegue narrar sua trajetória de sobrevivência, jamais seu itinerário de experiência.
Essa expectativa de hiperestesia do presente e negligência à história, quando reproduzida nas relações educativas, causa ainda mais dissonâncias e desconexão entre os meios e os fins da ação. Memória, pertencimento e linguagem são a matéria-prima da formação humana, ampliam e entrelaçam as narrativas sobre o sentido da existência. Quando a crise temporal que nos atravessa dita os ritmos e as jornadas escolares e percebemos a ubiquidade da lógica das plataformas na educação, já não há tempo para a experiência – a dormência da parestesia não permite ao tempo um ritmo ordenador (Han, 2016). Tampouco permite a criação de um futuro possível, de modo que as esferas da vida humana assumem um caráter transitório, quase obstacular, em uma busca incessante por desnarrativização do mundo: “Nada promete duração e subsistência. Frente a essa falta do Ser surgem nervosismos e inquietações” (Han, 2016, p. 26). Esse contexto forma um ciclo pernicioso no qual as iniciativas que buscam tensionar os ritmos e tempos da vida escolar esbarram, por sua vez, em sujeitos hiperativos e acelerados pelas tecnologias da vida cotidiana. Na tentativa de engajar esses sujeitos às rotinas e aos processos educativos escolares, o gesto docente muitas vezes espelha o ritmo do algoritmo, abrindo mão de pactos pedagógicos basilares para manter no horizonte objetivos educativos, ou seja, há de se encontrar pontos de toque entre os ritmos desse novo sujeito do século XXI e as disposições humanas do ensinar e do aprender. Nesse cenário de economia da atenção, parece não haver espaço nem tempo para estudos longitudinais ou para o cultivo da sensibilidade e a experiência vai ficando cada vez mais escassa.
Percebemos uma agudização de tal cenário nos últimos anos e diversos pesquisadores já alertavam para os sistemas de governança que a plataformização vinha estabelecendo (Jin, 2013; Poell; Nieborg; Van Dijck, 2020) e para a maneira pela qual as dimensões institucionais das plataformas já se ramificaram para moldar as práticas educativas (Hypolito, 2021; Noronha, 2024). Com a pandemia de COVID-19, esse cotidiano já organizado pelo imperialismo de plataforma (Jin, 2013) se alastrou e ditou de forma ainda mais profunda a criação e difusão da cultura, as relações de trabalho e de poder e, de igual modo, as práticas educativas. Um exemplo do avanço das plataformas é a recente notícia veiculada pelo Sinprocampinas (22 abr. 2024) de que o governo de São Paulo estaria desenvolvendo um projeto piloto no qual a plataforma ChatGPT seria utilizada para a preparação de aulas para os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e para os do Ensino Médio2. O projeto recebeu duras críticas da sociedade, apontando para um desejo subjacente da gestão pública de substituição de professores curriculistas, responsáveis pela criação de planos de aulas para essas etapas da Educação Básica. Essa iniciativa de plataformizar o planejamento pedagógico torna visível e, uma vez submetido à linguagem de programação, controlável externamente um âmbito da docência que, antes de ser organizado por conteúdos e metas, está sustentado na relação subjetiva e epistemológica que professores e alunos estabelecem no contexto de aprendizagem construído. Subjaz a iniciativas como essa a lógica de que o professor é uma mera ferramenta que precisa proporcionar resultados, é apenas um instrumento para que determinados fins sejam alcançados. As métricas são diversas: testes padronizados, aprovações em exames nacionais, aumento no número de matrículas no setor privado entre outras. Em meio a esse mar revolto de informações e narrativas efêmeras (pouco justificadas no contexto histórico e social dos sujeitos da educação), as reivindicações sociais por inclusão das tecnologias digitais na educação são cooptadas para fortalecer o movimento de plataformização. Já as narrativas que dão sentido à experiência vão naufragando e restando nas profundezas oceânicas da memória pedagógica, de difícil acesso e compreensão diante da aparente urgência dos avisos de novas mensagens recebidas.
Como pesquisadoras e professoras formadoras de professores em uma universidade pública do sul do Brasil, vivenciamos intensamente esses percalços, acompanhando sujeitos em formação para a docência durante a pandemia de COVID-19. Fomos convocadas logo nos primeiros meses de 2020 a encontrar formas de, inicialmente, acompanhar as necessidades e desafios vividos pelos estudantes no contexto de catástrofe global implantado pelo vírus e, logo no momento seguinte, encontrar formas para continuar o processo de formação daqueles futuros professores. Mesmo cientes de que a pervasividade das plataformas digitais poderia moldar o espaço-tempo da formação de maneira mais perene, nosso desafio naquele momento era manter a relação formativa como um compromisso ético-estético que nutria o sentido da nossa existência ameaçada. Neste ensaio teórico, implementamos uma abordagem hermenêutica e reconstrutiva dessa experiência, atravessadas agora pela distância temporal com o vivido, tendo como objetivo entender os desafios narrativos que a formação docente enfrenta a partir do movimento de plataformização da prática educativa, repercutindo a ancoragem que persiste no espaço-tempo da formação diante das exigências da linguagem que sustenta o ambiente digital. Nestes últimos anos, temos nos debatido entre recuperar o ritmo formativo vivido antes da pandemia, materializando as ações do presente pedagógico, e manter ativadas certas habilidades e agilidades que as plataformas digitais de aprendizagem permitem. Neste artigo, voltamos o nosso olhar para a experiência de formação docente vivida nesses tempos extremos, perguntando sobre o quanto é possível manter em diálogo estas diferentes matrizes formativas sem desnarrativizar a experiência do tempo presente.
Nesta era nominada por Han (2023) como pós-narrativa, é necessário buscarmos âncoras narrativas que possam nos sustentar em meio às intempéries e proporcionar a construção de um futuro. Para navegarmos em meio a esse mar revolto em que materialidades e virtualidades são exploradas ao ritmo da satisfação imediata de um eu difuso, a abordagem hermenêutica e reconstrutiva contribui para compreendermos o quanto a figura do dialético, lembrada por Benjamin (2006, p. 515), ainda produz sentido enfrentarmos as tempestades da formação e da educação hoje:
Para o dialético, o que importa é ter o vento da história universal [Weltgeschichte] em suas velas. Pensar significa para ele: içar velas. O que é decisivo é como elas são posicionadas. As palavras são suas velas. O modo como são dispostas transforma-se em conceitos. [...] Ser dialético significa ter o vento da história nas velas. As velas são os conceitos. Porém, não basta dispor das velas. O decisivo é a arte de posicioná-las.
Em tempos extremos, de crise global e ameaça à vida, vamos parafrasear Benjamin (2006) neste ensaio e defender a ideia de que para fazer formação humana e de professores não basta apenas encontrar algumas âncoras narrativas que engajem os sujeitos. É necessário saber posicionar as velas do barco em meio a tempestade, de modo que os sujeitos possam se reconhecer e se responsabilizar pelas palavras ditas e pelos conceitos estudados. Isso significa que não podemos nem nos render diante das plataformas e das soluções reducionistas desse retorno do tecnicismo (Hypolito, 2021), tampouco abdicar por completo de seus usos em nome de salvaguardar a tradição pedagógica. Como navegante experiente, cabe ao professor encontrar a justa medida de uso desses instrumentos conforme o contexto particular para que possa melhor navegar em meio às intempéries atuais.
Este ensaio organiza-se em duas partes, de maneira que na primeira abordamos o potencial formativo da narrativa, assim como os modos que o narrar ancora na linguagem retratos da existência humana, convidando-nos à experiência em um tempo de espera e de cultivo da interioridade. Na segunda parte, discutimos os desafios enfrentados no atual tempo-espaço da formação, em que as extremidades mudam os cenários sociais e naturais e as narrativas da educação são impactadas pelo ritmo programado no interior das plataformas digitais.
A narrativa, o tempo e a cura
Para o pensamento materialista-dialético, a falta de sentido na vida não está dissociada das condições materiais da existência. Assim, qualquer narrativa orientada para justificar e renovar a ação humana esvai-se diante dos desejos pueris de sobrevivência se não estiver ancorada na força interior de pertencimento. Desde a Modernidade, a existência ganhou uma nova forma de desconexão do seu sentido humano mais profundo, nas palavras de Benjamin (1987, p. 114): “Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica”. A multiplicação e sofisticação das ferramentas utilizadas para preservar e melhorar a ação humana aparecem cada vez mais como justificativas da dessensibilização e desresponsabilização sobre o que acontece no contexto cotidiano da vida coletiva. Paradoxalmente, o envolvimento com as rotinas exigidas pela técnica deixou o ser humano sem tempo para responder sobre o que lhe move: você faz o que faz para quê? Aquilo que você faz tem uma finalidade maior, do ponto individual e coletivo ao mesmo tempo?
Ressaltando essa pobreza de experiência, Benjamin (1987) analisa as figuras cadavéricas criadas pelo artista belga James Ensor (1860-1949), cujas obras ficaram conhecidas por questionar as contradições dos sujeitos da sua época – frequentemente mascarados em ocasiões festivas ou então como esqueletos em decomposição. Na macabra sátira elaborada pelo pintor, ele tece um comentário social sobre a hipocrisia, criando cenas que convocam o observador a revisitar sua condição humana e a qualidade do seu ser e estar no mundo. Em seu autorretrato de 1891, James Ensor está em meio a uma multidão com seu rosto pálido voltado para o observador, sendo comprimido por seres mascarados. Embora o contexto carnavalesco possa suscitar festividade e alegria, a fisionomia dessas figuras é ao mesmo tempo burlesca e ameaçadora. São poucos os rostos humanos nas telas, já que uma grande parte delas apresenta uma composição de máscaras e esqueletos, o que sugere sua percepção sobre a sociedade de seu tempo. Apesar da rebuscada crítica de Ensor à confiança sem limites do renascentismo nas técnicas – que surgiam à época –, Benjamin (1987) retoma a questão central exposta pelo pintor sobre o sentido humano e cultural de tamanha criação artística para sujeitos com poucas condições para manejar suas construções e que já se desvincularam do patrimônio cultural como um valor comum: “essa pobreza não é apenas pobreza em experiências privadas, mas em experiências da humanidade em geral. Surge assim uma nova barbárie” (Benjamin, 1987, p. 115).
Benjamin (1987, p. 116) afirma que, assim como os carros que respondem aos comandos do motor e do seu motorista, “a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras”. Destacando o aspecto fantasmagórico dos seres de Ensor, Benjamin convoca o leitor a atentar para a ausência de espírito nas figuras do pintor, para aquilo que permanece quando a máscara cai – nada além da materialidade do esqueleto:
Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequeno-burgueses com fantasias carnavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?
(Benjamin, 1987, p. 115).
Essa figura esquelética e mascarada das telas de Ensor representa aquele pequeno burguês que projeta no progresso e na inovação uma possibilidade de reconstruir a cultura e as práticas sociais, criando estratégias cada vez mais arbitrárias para narrar o mundo. Desvinculadas de um sentido social de preservação da vida, as narrativas sobre essa nova técnica carregam esperanças ilusórias de renovação, uma vez que não estão ancoradas em um horizonte de vida coletiva e de valores partilhados. São as narrativas do burguês prepotente e sisudo, cujo trânsito pela vida está recheado de uma resignação apática e de uma total falta de sentido. Anonimamente usa a sua máscara como forma de ser apenas mais um em meio à multidão, recorrendo a coletividade para eximir-se de seu testemunho como sujeito. Pode racionalizar sua forma de transitar no mundo a partir de argumentos como: “Todos são/agem/preferem assim”, numa tentativa de explicar o porquê se permite ser levado pela maré. Esse sujeito deseja sobreviver em um ambiente virtual que supostamente é melhor que o ambiente real e luta diariamente para postar e ser interessante, sem compreender que o que diz produz danos e não está ancorado em conceitos verdadeiros e reconhecidos pelos acordos coletivos de justiça e bem comum. Esse movimento de produção de opinião pública, por diversas vezes, gera narrativas falsas e produz “conteúdos virtuais” baseados em “fatos alternativos” ou visões particulares. Tem sido identificado de forma massiva e sistemática desde a administração de Donald Trump nos Estados Unidos que usava as ferramentas de mídia social para a disseminação de fake news e, assim, manter sua popularidade, prescindindo de um compromisso ético com a coletividade.
Neste cenário de perturbação da opinião pública diante da disputa para ser o influenciador da vez, retomamos a metáfora de Benjamin para pensarmos na complexidade que envolve posicionar as velas – os conceitos-âncoras – do processo formativo e da educação. Assim como o carro responde aos movimentos daquele que o dirige, um barco em meio a um temporal depende das instruções de seu comandante para enfrentá-lo. Quem é esse sujeito na proa com as cordas nas mãos? Em que medida ele não espelha as figuras de Ensor, um sujeito mascarado que do interior resta apenas um esqueleto em decomposição sendo levado pela maré? Se este for o caso, quais as condições que esse marinheiro esqueleto dispõe para navegar em meio à tormenta que o acomete? Com a mesma potência que menospreza valores humanos e culturais, projeta sua pobreza de experiência, adequando palavras e conceitos (as velas) para construir uma explicação privada de um acontecimento – “é o que meus olhos veem”, dizem – sem considerar os ventos da história e as teorias que permitem a estes conceitos uma navegação orientada por objetivos comuns. Palavras soltas ao vento causam perturbações na opinião pública e alimentam no coletivo as múltiplas formas de barbárie, inclusive contra aquele que as professam, podendo este ser, facilmente, um esqueleto lançado aos rochedos ou um náufrago à deriva de sua incapacidade de pertencer e reconhecer-se em sociedade.
Diferente das figuras de Ensor, a perspectiva materialista-dialética exige um marinheiro de carne, osso e espírito, que esteja presente na inteireza do seu ser e, conectado ao sentido ético da vida, possa observar os sinais do tempo e reconhecer os perigos das extremidades, içando as velas da embarcação em conformidade com os ventos e com o destino da navegação. Não são apenas as postagens ou dispositivos digitais que podem salvar vidas em águas revoltas – como se o domínio sobre as técnicas extinguisse a perspectiva da morte –, assim como não se trata somente do aparelhamento digital das instituições educativas para tornar a aprendizagem mais eficaz ou com economia de tempo e esforço. Entender a morte como uma possibilidade real ajuda o marinheiro a traçar uma rota de preservação da vida, do mesmo modo que incita a narração do que dá sentido à existência, tal como faz o moribundo que se encontra com a inexorável força do tempo e tudo o que pode agora é narrar o que lhe é inesquecível: “Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (Benjamin, 1987, p. 207). Trata-se da arte de compor uma memória formativa da ação humana, evidenciando uma trajetória de pertencimento na linguagem. Esse marinheiro de carne, osso e espírito consegue enredar narrativas do vivido e desejos projetados para a próxima viagem, distendendo o tempo à procura de novos vestígios de si mesmo. Diz Benjamin (1987, p. 204) que o tédio, como ponto mais alto da distensão psíquica, “é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”. Podemos dizer, então, que a narrativa resguarda à formação humana – e ao processo educativo – lições de experiência que exigem tempo para se consolidar em interioridade. A narrativa, a cada vez, convida o tempo para entrar e compor uma história, oferecendo condições a todos de acolhimento, reconhecimento e liberdade de ser.
Em vez de passar (vertreibem) o tempo, é preciso convidá-lo (einladen) para entrar. Passar o tempo ou matar, expulsar (austreiben) o tempo: o jogador. O tempo jorra-lhe dos poros. - Carregar-se (laden) de tempo como uma bateria armazena (lädt) energia: o flâneur. Finalmente, o terceiro tipo: aquele que espera. Ele carrega-se (lädt) de tempo e o devolve sob uma outra forma - aquela da espera
(Benjamin, 2006, p. 148).
Imprimir a experiência na linguagem torna-se, portanto, uma forma de ancorar a existência em um tempo histórico e contextualizado, no qual o jogador, o flâneur e aquele que espera se encontram e (re)configuram sua trajetória no limiar entre interioridade e exterioridade. Essa ancoragem narrativa sincretiza as dimensões ético-estéticas e políticas da existência, compondo grandes matrizes que orientam o sentir, o pensar e o agir humano. O sujeito não é um ser à deriva entre o nascimento e a morte, é sua ancoragem na linguagem que lhe permite sentir os efeitos do tempo sem submergir ao momento. Podemos notar a busca por um sentido à existência em diferentes lições trazidas pela catástrofe climática do Rio Grande do Sul em 2024, quando vida e morte se colocaram frente a frente. A falha na mitigação dessa catástrofe pode ser localizada em diferentes frentes – na engenharia dos mecanismos de contenção das águas, nas construções irregulares, na destruição da natureza, na flexibilização do código ambiental, etc. Para além dessa compreensão, fomos convocados a narrar o quanto nossas trajetórias privadas e coletivas contribuíram ou foram impactadas por esse fenômeno extremo. Se a destruição vem “da onde ninguém imagina // demolirá toda certeza vã // não sobrará pedra sobre pedra”, como diz a canção de Lulu Santos (A cura, 1988), o poema também anuncia que em todo porto tremula a bandeira da vida. Essa bandeira orienta a navegação e convida todos os navegantes a enfrentarem juntos as tempestades, disponibilizando suas mais altas habilidades em prol da manutenção da vida. Dentre os tantos exemplos de compaixão e auxílio durante essa catástrofe do Rio Grande do Sul, há atletas que, impossibilitados de treinar em Porto Alegre/RS para as competições pré-olímpicas, decidiram abandonar os sonhos pessoais de participar das Olimpíadas de Paris em 2024 e dedicarem-se ao coletivo, resgatando pessoas em perigo durante as inundações3. Enfim, em um tempo extremo, como este, há os que aplacam as necessidades e emergências vitais, esperando que tudo passe logo; há os que são companhia para as vivências subjetivas da tragédia, sendo apoio para que a vida ainda tenha sentido; há os que avaliam como um episódio de múltiplas causas e complexas consequências, pontuando as possibilidades e limites da ação humana e utilização dos recursos naturais. Todos percebem e narram os acontecimentos conforme suas experiências, deixando inscrito no tempo histórico formas de viver a humanidade e curar sua conexão com o coletivo e a natureza.
Reconhecer a si mesmo e compartilhar a responsabilidade sobre a vida no coletivo são qualidades humanas desenvolvidas na relação formativa que acontece desde a infância. Identificamos essas qualidades da experiência nas memórias de infância de Benjamin. O autor narra episódios nos quais adoecia e sua mãe lhe oferecia cuidados e carinhos como forma de refazimento físico. Ela o orientava a esperar o desenvolvimento da doença pacientemente e a sustentar o período necessário para que tal processo se desse. Essas experiências levam Benjamin a perceber “a necessidade de olhar para o futuro apoiado no tempo de espera, como um doente espera, apoiado nas almofadas que tem nas costas” (Benjamin, 1987, p. 107). Nesses momentos, o autor era convidado a viver o tempo, sentindo sua ação no corpo, na mente e no espírito, sem pressa ou distração. É preciso esperar que o corpo reaja e cure-se. É interessante observar a capacidade da mente de pensar os próprios pensamentos. É no ínfimo de um instante qualquer que a consciência se dá conta da força orgânica e vital que lhe sustenta e gera o impulso criativo. Enfim, compreender as memórias benjaminianas é uma oportunidade de espelhar as atividades mentais que nos convocam ao engajamento no cotidiano. Benjamin (1987) afirma que talvez a virtude que alguns chamam de paciência tenha sido construída por ele nesses momentos – aqueles que os aproximavam do tempo da experiência, resistindo ao trabalho sem reflexão, às conversas sem propósito, à desvalia do outro por regras sociais, à normalização dos vencedores e da guerra.
Nesses processos de refazimento, Benjamin também discorre sobre o quanto a narrativa o auxiliava. Em outra passagem, o autor novamente narra um episódio de uma criança adoentada que encontra nos cuidados de sua mãe a cura para seus males: “a mãe a leva para cama e se senta ao lado. E então começa a lhe contar histórias” (Benjamin, 1987, p. 269). Talvez primeiramente pareça estranho que os cuidados prestados pela mãe sejam uma narrativa, no entanto o autor propõe que é a partir do primeiríssimo relato sobre a experiência e os sentimentos que a acompanham que o próprio processo curativo pode se iniciar. As mãos dessa mãe que narra e cura tinham movimentos “altamente expressivos. Contudo, não se poderia descrever sua expressão… Era como se contassem uma história. A cura através da narrativa” (Benjamin, 1987, p. 269). O autor pondera se não seria possível que muitas curas se dessem a partir do contexto favorável construído pela narrativa “e mesmo se não seriam todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe – até a foz – na correnteza da narração” (Benjamin, 1987, p. 269).
Podemos entender essa potencialidade de cura presente na narrativa como uma possível reconexão com diferentes dimensões do sujeito. Uma narrativa é capaz de retratar uma memória inscrita no seu tempo e, a cada narração, possibilitar o entendimento de outras camadas de sentido, num convite sempre renovado para reconfigurarmos nosso olhar diante da existência humana. No tempo-espaço da formação docente, talvez seja necessário observar a recomendação de Benjamin (1987), alimentando os silêncios e os gestos compassivos como forma de convidar a narrativa da vida docente para entrar e aguardar para que as palavras retornem como história e compreensão do que é ser professor nestes tempos extremos.
Aprendemos com Benjamin que ao narrar nossas experiências podemos criar oportunidades para entender o tempo presente, evidenciando as relações entre a linguagem, o tempo e a memória. Para ele, é necessário um distanciamento temporal daquele que narra – uma explosão de continuidade – para que de fato seja possível a atribuição de um significado potente às experiências. Rememorar um acontecimento é reconstruí-lo continuamente com os recursos linguísticos e de sentido do tempo presente, um exercício hermenêutico e crítico de si e do mundo. É nessa relação artesanal entre o narrador e o mundo da vida que compreendemos a possibilidade de tensionar significados e formas de ser e estar no mundo, quiçá ampliando o vocabulário disponível para narrar nossas experiências. Esse poder de cura da narrativa pode contribuir para que desnaturalizemos algumas das tendências de desnarrativização que temos atravessado nos últimos anos. É ainda possível resguardar essa potencialidade formativa das narrativas em tempos de plataformização da educação? Quais possibilidades tem a racionalidade pedagógica para narrar a experiência em tempos extremos, quando a presença está impedida ou já não é exigida?
O tempo-espaço da formação docente e as narrativas do presente
Atualmente, sabemos que o uso das plataformas nos contextos institucionais de educação não se restringe a função de ferramenta educativa e facilitadora da aprendizagem. Elas impõem um ritmo e uma estrutura para o desenvolvimento das relações pedagógicas que nenhum encontro presencial seria capaz de estabelecer. Ainda que alguns dispositivos permitam interações em tempo real entre os sujeitos, a linguagem matemática e a programação digital sustentam a atuação dos sujeitos nesses ambientes e fornecem elementos para avaliar a evolução da aprendizagem. Neste contexto, como as narrativas podem subverter a lógica programada das plataformas, que tenta transformar toda a postagem em informação? De que modo a arte de narrar poderia preservar suas múltiplas camadas de sentido?
As plataformas digitais de empresas como Apple, Google e Facebook detém um monopólio das nossas vidas virtuais na atualidade. Poell, Nieborg e Van Dijck (2020, p. 5) sinalizam para como nosso cotidiano acaba sendo moldado pelas dimensões institucionais das plataformas: “infraestruturas de dados, mercados e estruturas de governança com particularidades”, de modo que há uma retroalimentação entre as práticas culturais e as plataformas nas quais elas se dão. Isto é, as práticas sociais reorganizam as plataformas, que por sua vez, reconfiguram as práticas sociais. Os autores compreendem essas dimensões da plataformização como “processos interativos que envolvem uma ampla variedade de atores, mas que também são estruturados por relações de poder fundamentalmente desiguais” (Poell; Nieborg; Van Dijck, 2020, p. 6). É através da plataformização que as interações se codificam em dados e se organizam a partir de um algoritmo, que é capaz de moldar as relações de mercado, rastreando e monetizando a atenção dos sujeitos e o seu engajamento a partir de suas ações. Através desses instrumentos de governança, as plataformas determinam quais conteúdos estão ao alcance dos usuários ou não e reconfiguram as maneiras como estes podem interagir, de modo que compreender como as mudanças nessas três dimensões institucionais das plataformas estão interligadas e afetam as práticas culturais e as relações adquire caráter de urgência.
O tempo das plataformas digitais é diferente do tempo da formação humana e da educação. Notamos isso com toda a intensidade durante a pandemia de COVID-19, não apenas pelo cansaço sentido no corpo, como também pela ausência de sensibilidade, própria da linguagem de programação. Avisos insistentes sobre os prazos de postagem das tarefas, programação sobre tamanho e formato do arquivo, notificação de erros incertos no gerenciamento, falhas de transmissão de dados, todos esses problemas interferem na compreensão da narrativa pedagógica e vão configurando a ideia de que a experiência formativa nada mais é que um repasse de informações e somatório de tarefas postadas nos moldes programados. Os ritmos subjetivos e os acordos de sociabilidade, ética e sensibilidade, elos necessários para a construção de sentido, ficam deliberadamente fora das plataformas. Qual professor pede insistentemente a entrega da tarefa sabendo que seu aluno está doente ou necessitando suprir o que lhe é básico? Qual professor pede que o aluno olhe diretamente para ele de modo a garantir sua atenção? Quando transportadas para o ambiente virtual, essas estratégias bastante condicionadoras aconteciam, por exemplo, através de e-mails automáticos enviados à turma com a lembrança da data de postagens das tarefas ou das horas e dias de atraso; também com o solene pedido do professor, realizado no início de um encontro síncrono, para que todos mantivessem as câmeras ligadas. Certamente, para além dos inúmeros desconfortos de alunos e professores, esse movimento de plataformização da educação vivenciado desde 2020 fortaleceu a ilusão de que a interação via plataformas digitais estava atendendo os mesmos objetivos que sustentavam os encontros presenciais.
As plataformas, portanto, desempenham um papel singular nesses processos de microgerenciamento do trabalho, sendo possível usá-las para rastrear as ações dos usuários. Na docência, durante a pandemia de COVID-19, ferramentas como o Google Sala de Aula, o Google Meet e o Gmail foram amplamente adotadas pelas escolas e professores devido a usabilidade e maior familiaridade dos sujeitos com esses aplicativos. A popularidade de tais dispositivos facilitou o acesso aos alunos e crianças, sendo possível organizar turmas nos aplicativos, enviar e receber atividades com prazos determinados, comunicar-se com as famílias através de mensagens de texto ou áudio, etc. No entanto, essa amplitude de recursos disponíveis se alastrou no cotidiano de modo tão pervasivo que o trabalho docente foi ficando cada vez mais confundido com a competência no uso de ferramentas digitais. Esse reducionismo apresentado pelas plataformas é capaz de seduzir professores e gestores, levando-os, inadvertidamente em muitos casos, à reconstrução de práticas sociais que espelham a lógica do tecnicismo. Hypolito (2021) alerta para esse neo-tecnicismo de plataformas que se agudizou nos últimos anos e tem se ramificado na educação, já que, nesse paradigma, bastaria ao professor ter acesso às técnicas e às ferramentas mais modernas para que pudesse bem exercer seu trabalho docente.
Acompanhamos essa lógica sendo intensificada nas diferentes fases da pandemia. No trabalho remoto, esperava-se que o professor gerenciasse uma ampla gama de componentes estruturantes e subjetivos – as ferramentas digitais, os tempos, os conteúdos, as emoções, os comportamentos, as aprendizagens, entre outros. A expectativa era de que o professor fosse capaz de estabelecer uma relação pedagógica com os alunos, engajando-os em um processo de aprendizagem, apesar do impedimento do encontro físico. Tendo passado algum tempo dessa mudança de ambiente, é perceptível nos testemunhos de professores o sentimento de desconexão profunda, tanto dos alunos quanto do próprio sentido da docência nesse formato. No retorno à presencialidade, outro problema foi gerado, pois concomitante às aulas, reuniões e correções de trabalhos, o professor continuou a alimentação das plataformas digitais na tentativa de ampliar o acesso aos conteúdos dos alunos com dificuldade durante a pandemia.
Parece que pouco se pode fazer para que sua vida não seja sugada pelos algoritmos das plataformas que são configurados para cooptar a atenção dos sujeitos, mantendo-os interruptamente engajados de forma passiva (Noronha, 2024). Nesse cenário de envolvimento virtual contínuo, as marcas de início, meio e fim dos acontecimentos e das narrativas se diluem na enxurrada de informações que consome o sujeito, deixando-o à deriva, jogado ao mar aberto. As fronteiras entre o físico e o ciberespaço se misturam e a impressão é de compressão e, ao mesmo tempo, alargamento do tempo. Foi assim para os professores no período pandêmico: enfrentaram demandas inalcançáveis e uma sobrecarga de tarefas em dias sem fim, enquanto paradoxalmente todos os dias pareciam iguais – os finais de semana eram recheados de trabalho. As noções de passado, presente e futuro se diluíram em um eterno agora, de forma que tal estado de coisas pode parecer uma aceleração do tempo presente, entretanto, Han (2016, p. 6) descarta tal hipótese já que para ele este seria apenas um dos sintomas da crise temporal:
A presente crise remete para a dissincronia, que conduz a diversas alterações temporais e à parestesia. Falta ao tempo um ritmo ordenador. Daí, que perca o compasso. A dissincronia faz com que, por assim dizer, o tempo tropece. O sentimento de que a vida se acelera tem, na realidade, origem na percepção de que o tempo anda aos tropeços sem qualquer rumo.
Nessa dissincronia, não há acesso ao que é lento e não apressado – o sujeito pós-moderno é hiperneurótico e hiperativo (Han, 2015). É aquele sujeito que, à semelhança de um holograma, se encontra fora do tempo, sendo controlado pelo algoritmo que dita o andar de sua vida. Essa planificação do tempo intensifica a ostentação da pobreza interior, na ilusão de que esse tecnicismo de plataforma possa em alguma medida ser a inovação almejada por aquele burguês vivendo de sua própria miséria. Os incontáveis influenciadores figuram nas plataformas de mídia social como os novos marujos a conduzir os grandes navios digitais. No entanto, lembramos aqui, esta embarcação não suporta os ventos da história, nem mesmo intempéries mais brandas, pois suas velas não são feitas de narrativas e reflexões conceituais, mas sim de informações algorítmicas, que só um mestre de programação sabe manejar.
Afirma Benjamin que a narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (Benjamin, 1987, p. 205), de modo que ela carrega as marcas da subjetividade de quem narra. Nesse mar plácido e contínuo das plataformas, ocorre uma notável mudança na forma de perceber a formação ou educação, pois com a suspensão do tempo, que planifica passado, presente e futuro para evitar intercorrências na interação com o mundo real, toda narrativa ali postada dissolve-se na linguagem de programação digital. Mergulhada no oceano do algoritmo, ela se transforma em nada além de mera informação, sem potencial para deixar no narrador suas marcas ou recarregá-lo com o tempo da espera.
Entendemos, assim, a exaustão sentida na educação. Vivemos um tempo no contexto da formação e outra pulsação no interior das plataformas. Aquela expectativa de inovação que a implantação das tecnologias na escola carregava mostra-se ilusória. Algumas modificações significativas na relação entre sujeito e trabalho foram identificadas por Goodson (2019) nos últimos anos, a partir da análise de narrativas pessoais e profissionais – um certo afastamento de propósitos comuns em favorecimento de objetivos individuais e de consumo privado. Os sujeitos, não encontrando mais sentido e propósito no trabalho, se veem em contextos que os impelem a procurar conexão em profundidade em outros âmbitos da vida, de modo que acabam sendo usurpados pelo consumismo e pela lógica do comércio. Enquanto se dá essa dissolução de laços e propósitos comunitários, há uma reconstrução de significados relacionados aos conceitos de trabalho, amor e sujeito, por exemplo. Isso ressalta a intensidade da crise de legitimação que atravessamos, uma vez que as narrativas que ancoravam o sentido ético de pertencimento e vida partilhada fragmentaram-se em informações passageiras e necessidades de sobrevivência. É possível perceber essas forças na docência de forma cada vez mais forte através das reformas educacionais que:
[...] buscam articular novas visões e novos objetivos em associação a estruturas e padrões de prestação de contas. Nos serviços públicos, o microgerenciamento desses padrões determina os esforços de reforma, e frequentemente, alcança um nível de detalhe e definição que é complexo e, por vezes, infinitesimal. Um paradoxo no coração da nova ordem mundial do “mercado livre” é que, enquanto os negócios são cada vez menos regulados, o setor público se torna microgerenciado nos mínimos detalhes e no nível de autoridade
(Goodson, 2019, p. 221).
O neotecnicismo reativado nesse movimento de plataformização apoia-se na crença de que bastaria uma instrumentalização de professores e alunos para instantaneamente melhorar a qualidade do ensino. Com seus argumentos de inovação didática, novas ferramentas e modernas metodologias, ele tem inadvertidamente esvaziado a formação dos aspectos críticos que devem orientá-la. Esse entendimento de que a educação é um campo altamente gerenciável – e as plataformas exercem um papel importante nisso –, precariza tanto o trabalho docente, quanto a formação inicial. As licenciaturas, em geral, já requerem um investimento menor para a criação e manutenção dos cursos, uma vez que não contemplam a construção de laboratórios e a aquisição de ferramentas específicas para viabilizar a formação. Esse horizonte interessa às instituições privadas que almejam altos lucros, o que é visível no Censo da Educação Superior de 2022 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2024). Foram oferecidas um total de 790.877 vagas em cursos de Pedagogia em instituições privadas na modalidade EaD e 193.732 no formato presencial; no mesmo período, as instituições públicas disponibilizaram 16.380 e 34.786, respectivamente. Esse número expressivo de vagas em instituições privadas é um recorte de uma migração já previamente sinalizada por pesquisadores da área, que questionam essa expansão e a qualidade da oferta de ensino uma vez que a formação de professores em instituições privadas tem apresentado “problemas ligados não só à forma de utilização das tecnologias e os modelos de implementação, mas, também quanto aos conteúdos, tutorias e avaliações” (Gatti et al., 2019, p. 93).
Como professoras e formadoras de professores, enfrentamos um cenário de calendário remoto na universidade pública, tendo que negociar caminhos com as ferramentas e as plataformas para viabilizar uma formação dos sujeitos em tempos de virtualidade. Navegamos esse cenário pétreo com o objetivo de manter firmes os sentimentos de encorajamento e pertencimento diante do contexto extremo, entendendo que todo diálogo ou trabalho realizado poderiam impactar o exercício da docência e acabar construindo barreiras invisíveis à conexão e à participação dos sujeitos. Entendíamos que a relação primordial ainda era entre as formadoras e as alunas, por isso, antes de qualquer interação com a plataforma, foi firmado um compromisso ético-estético e político de tornar o tempo da espera exigido pela pandemia um tempo de narração sobre o que acontecia no nosso corpo subjetivo e no corpo docente do contexto local. Assim, a plataforma disposta pela universidade serviu como depositário de todas as narrativas recolhidas. Além disso, as plataformas de mídia social e de criação de blogs mais acessadas, os canais de videoconferência e os aplicativos de mensagens instantâneas foram usados pelo grupo para a recolha de dados e comunicação com a rede de escolas. Interessávamos por narrar e documentar as diversas orientações que sobrevinham às instituições para crianças de 0 a 5 anos de idade, assim como acompanhar a tessitura dos argumentos em prol de um retorno às aulas, especialmente, em um período sem vacinas. Era notório que, ao contrário de argumentos científicos e pedagógicos, os interesses privados e do capitalismo continuavam ali a sustentar as escolas de Educação Infantil como dispositivos para a liberação das famílias do trabalho doméstico para as ocupações empregatícias. Foi o compromisso coletivo com o tempo da formação que nos impeliu a persistir em meio às tempestades da pandemia de COVID-19 – a falta de vacinas, a ameaça do vírus, os discursos de ódio, o aumento irrefreável do número de mortes, etc. As plataformas digitais mostraram-se como a via mais segura para sobreviver à ameaça mais premente do momento: o vírus. É exatamente nesse mundo que anda aos tropeços e que, depois de ouvir muitos relatos, vamos aprendendo que há perigos se embarcarmos apenas na lógica da sobrevivência, sendo importante “que o sujeito se diferencie por aquilo que é próprio do ser humano: raciocínio complexo, reflexão, empatia, criatividade” (Noronha, 2024, p. 5). Conservando o espírito, o sujeito pode se imunizar e quiçá venha a não espelhar o marinheiro esqueleto navegando na tempestade. Sabemos que não basta apenas escolher algumas âncoras narrativas e tratá-las como verdades incontestáveis, pois assim, facilmente, estaríamos correndo o risco de retomar a percepção da história tradicional na qual os vencedores relatam seus feitos e constroem as narrativas oficiais ou ainda poderíamos acabar sucumbindo ao perigo da história única, forjada nas certezas a partir da diluição dos tempos, nos quais passado, presente e futuro pouco significam. É necessário saber posicionar-se em tempos extremos, criando condições para o reconhecimento no tempo da experiência narrativa.
Considerações Finais
Neste ensaio, tivemos como objetivo entender os desafios narrativos que a formação docente enfrenta a partir do movimento de plataformização da prática educativa, repercutindo a ancoragem que persiste no espaço-tempo da formação diante das exigências da linguagem que sustenta o ambiente digital. Entendemos que a pandemia de COVID-19 foi um tempo extremo, que testou nossa humanidade e as narrativas construídas até esse momento para ancorar as formas de existir e interagir. A formação humana e a educação, como âncoras narrativas de nossa organização social desde a Modernidade, foram colocadas à prova na medida em que precisaram buscar estratégias para seguir seu processo mesmo tendo o impedimento da interação presencial. O uso das plataformas digitais para prosseguir o processo educativo em curso era notável desde o início da pandemia, fortalecendo o movimento de plataformização do campo que já vinha ocorrendo, embora sob protesto de diferentes correntes da sociedade civil e das instituições de ensino.
Passado algum tempo, notamos que o uso das tecnologias no processo pedagógico, assim como a integração com as plataformas digitais, não só impõe um novo ritmo para a compreensão do conteúdo, como também modela uma perspectiva sobre a experiência formativa e o tempo vivido. Podemos, então, repercutir algumas compreensões sobre o quanto é possível manter em diálogo estas diferentes matrizes formativas sem desnarrativizar a experiência do tempo presente. Se as extremidades têm modificado cenários naturais e sociedades, a racionalidade docente se percebe também em movimento, pois é seu papel encontrar formas de pertencer e tornar possível o reconhecimento de todos num tempo de mudança.
Na medida em que o tempo da formação acontece, oportunidades de sensibilizar-se com as demandas coletivas vão fortalecendo esses dispositivos e tornando a experiência humana a própria força que guia a navegação e a vida. Desse modo, a dessensibilização e desconexão com a vida e suas demandas éticas são barreiras para a experiência. Ao contrário disso, cultivar a sensibilidade e a conexão com a existência e as intempéries do tempo, requer ouvir a voz do espírito, aquela que fala a todos os sujeitos durante a juventude, como lembra Benjamin (2002), é uma forma de abastecer-se de memórias em um tempo de espera, em que o inexorável elo entre passado, presente e futuro revela o sentido de quem se é no agora. Para isso, o sujeito há de se permitir acessar suas camadas mais profundas, reconhecendo e negociando seus desejos internos com as exigências éticas e teorias que estão em vigor e resguardam o indivíduo da sociedade, assim como o coletivo das forças egóicas daquele, uma negociação prismática de diferentes tempos, espaços e consciências.
Neste caminho compreensivo, entendemos que negar os artefatos digitais é igualmente fechar-se ao tempo da experiência, pois a linguagem das plataformas interage conosco todos os dias. Ainda assim, sabemos dos perigos escondidos na narrativa da sobrevivência, que corrompe o gesto mais humano e compassivo ao sabor de suas urgências privadas para esconder, muitas vezes, o desejo de aceitação e de legitimação de uma pobreza de experiências.
Compreendemos que essa abertura para a experiência, para a reconstrução das narrativas internas que são recontadas no dia a dia, é uma das características relevantes para que o sujeito se afaste da imagem dos esqueletos mascarados de James Ensor. No entanto, essa abertura não espelha aquela empolgação pueril com a técnica e suas inovações desvinculadas daquilo que distingue o ser humano. É, ao contrário, um movimento de resistência aos encantamentos da superficialidade, às novas construções que aspiram um futuro iniciado a partir de uma tábula rasa que abdica dos valores humanos. Numa mirada hermenêutica e reconstrutiva da figura do dialético, é preciso que não nos prendamos a essa falsa ideia de renovação sob o risco de acabarmos ratificando a nossa própria pobreza. É preciso estar conectado na sua inteireza ao tempo presente, sendo capaz de olhar para o passado e ainda assim projetá-lo para o futuro. Assim, convidamos o tempo para entrar e, comprometendo-se com ele, vamos imprimindo na linguagem os ritmos da vida que produzimos e das extremidades que testemunhamos.