Introdução
A palavra vocação tem sido utilizada cada vez menos no mundo moderno. Falamos em profissão. Contemporaneamente, uma profissão marcada pela flexibilidade, eficácia, competência - termos que caracterizam os valores econômicos predominantes. Voltada aos valores individuais, a sociedade privilegia ideias que remetem às vantagens/desvantagens que uma profissão pode ter, como ser bem remunerada, se tal leva a pessoa a uma vida bem-sucedida etc. Insiste-se, por isso, em buscar as aptidões ou os talentos individuais. Investe-se nesses talentos como investimos em uma mercadoria que nos trará um retorno futuro. É como se a lógica do empreendedorismo fosse a base lógica de cálculo ao se pensar no trabalho. Daí uma primeira explicação de a palavra vocação parecer não ter muito sentido em nossa era: ela nos leva a pensar em uma dedicação a um trabalho disciplinado e pouco flexível, pois a vocação em algo restringe a capacidade empreendedora do indivíduo diante da flutuação do mercado.
A ideia de vocação parece ressoar uma outra época em que não nos reconhecemos mais. Pensar o trabalho do professor, por exemplo, como uma vocação soa um contrassenso em um discurso predominantemente profissionalizante. Assim como a palavra vocação está em desuso, o termo ofício também nos remete a um período que não parece se adequar à realidade da dinâmica dos valores neoliberais. Por que, então, alguns pensadores como Jan Masschelein, Maarten Simons e Jorge Larrosa resgatam esse termo para pensarem a relação entre vocação e escola? Teria algo que teríamos perdido ao silenciarmos a potencialidade dessa relação?
O objetivo de Larrosa (2018), por exemplo, ao resgatar o termo vocação em Esperando não se sabe o quê é:
Na verdade, o que pretendia nesse começo do curso era construir certa sonoridade para a palavra “vocação”, tratar de lhe restaurar alguma dignidade perdida e sugerir apenas algumas de suas possibilidades para um pensamento da escola (e da educação, e do ofício do professor) que se afaste um pouco das doxas do presente. Ou, dito de outra forma, que é o que as pessoas dizem sobre nós (de que somos e do que acontece conosco, do que já não somos, do que talvez houvéssemos ter podido ser), o fato certo e irreversível de que a palavra “vocação” já seja impronunciável. O que pretendia, portanto, não era recuperar uma palavra morta, mas fazê-la soar por um instante para provar que o seu aparente anacronismo pode ter, talvez, algum efeito intempestivo, ou in-atual, ou extemporâneo. Se você a faz soar, mesmo por um instante, removendo-a do dicionário de palavras mortas e antes de voltar a enterrá-la definitivamente, você pode contribuir para certa des-familiarização ou des-naturalização do presente (Larrosa, 2018, p. 40).
No intuito de fazer ressoar a potencialidade do termo vocação, iremos retomar o que ele ainda pode nos fazer pensar (tal como a escola como um dos lugares do descobrimento da vocação; a natureza específica da vocação do professor), recorrendo a obras que conversam com a argumentação de Larrosa, como o livro O artífice, de Richard Sennett (2009), Proust e os signos, de Gilles Deleuze (1970), entre outros. Utilizaremos de uma metodologia de investigação bibliográfica crítica-interpretativa em torno da concepção de vocação e ofício dialogando com o pensamento de Larrosa.
A vocação como chamado
O termo vocação é muito marcado na nossa tradição pelo espírito do capitalismo como apresenta Max Weber (2001), em A ética protestante e o Espírito do Capitalismo. Weber (2001) evidencia que era preciso uma mudança de “espírito” para que o capitalismo florescesse. Por exemplo, é preciso que uma pessoa trabalhe não para receber o que precisa para se sustentar, mas que trabalhe por trabalhar, “[...] como um fim absoluto por si mesmo - como uma ‘vocação’” (Weber, 2001, p. 48) para que o capitalismo viesse à tona.
O termo Beruf (em alemão) que se refere à vocação enquanto um chamado (como plano de vida em relação ao trabalho) aparece na tradução de Lutero da Bíblia. Trata-se, portanto, de um produto da Reforma Protestante. Uma ideia que valoriza o cumprimento do dever dentro da profissão ligada a uma atividade moral. Ou seja, nessa maneira de viver há uma relação ao “[...] cumprimento das tarefas do século, imposta ao indivíduo pela sua posição no mundo. Nisso é que está a sua vocação” (Weber, 2001, p. 64).
A ética protestante teria trazido a ideia de vocação para o trabalho secular como um mandamento de Deus, em que todos devem trabalhar em sua vocação, sem exceção. Assim, deve-se cumprir as tarefas seculares, pois isso satisfaria Deus; na verdade, toda vocação lícita teria valor perante Deus. Com a atividade, o trabalho está de acordo com Deus, mas não com o usufruto dos bens. O trabalho se refere ao trabalho em si (e, consequentemente, ao acúmulo de capital). Contra as tentações da carne, impera-se a ideia de trabalhar a vocação - sendo o próprio trabalho a finalidade da vida. Mas essa vocação não é “natural” - não é algo que “[...] nascemos com”. Daí porque a vocação está correlaciona em Weber com a educação: essa vocação pode ser provocada como “[...] produto de um longo e árduo processo de educação” (Weber, 2001, p. 49).
Apesar de o termo vocação ter esse peso na tradição, esse não é o único sentido que herdamos dele. Enquanto chamado e enquanto algo que não é natural, Weber (2001) já nos aponta um caminho. Entretanto, Larrosa (2018) se volta também a uma pequena passagem de Gilles Deleuze em que ele se utiliza da palavra vocação para explicar o que é a aprendizagem para Proust. Trata-se de uma passagem curta, mas fundamental para Larrosa (2018):
Aprender concerne essencialmente aos signos. Os signos são o objeto de uma aprendizagem temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, primeiramente, considerar uma matéria, um objeto, um ser como se ele emanasse os signos a decifrar, a interpretar. Não há aprendiz que não seja “egiptólogo” de algo. Não se torna carpinteiro senão se fazendo sensível aos signos da madeira, ou médico, sensível aos signos da doença. A vocação é sempre predestinação em relação aos signos (Deleuze, 1970, p. 8, tradução nossa).
Isso pressupõe que as coisas do mundo emanam signos que podem ser apreendidos, se interpretados. A obra de Proust, segundo Deleuze (1970), seria uma pesquisa sobre a aprendizagem de signos: uma busca pela verdade que estão nos signos e que só se aprende por decifração e interpretação.
Deleuze (1970) destaca como essa interpretação se dá de forma violenta - como se o signo nos forçasse a interpretá-lo. Assim, não é a partir de uma boa vontade que se busca a verdade, mas como um resultado de uma violência no pensamento. E, isso, vem do acaso, de um encontro (e não de um método, por exemplo): “A verdade depende de um encontro com algo que nos força a pensar, a buscar a verdade. O acaso de encontros, a pressão de constrangimentos são os dois temas fundamentais de Proust” (Deleuze, 1970, p. 23, tradução nossa). Como algo fortuito e inevitável, nós nos deparamos com signos que nos forçam a pensar. Pensar aqui é interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o sentido do signo:
O leitmotiv do Tempo reencontrado é a palavra forçar: as impressões que nos forçam a olhar, os reencontros que nos forçam a interpretar, as expressões que forçam a pensar. [...] O que força pensar é o signo. O signo é o objeto de um reencontro; mas é precisamente a contingência do reencontro que garante a necessidade do que ela dá a pensar. O ato de pensar não emana de uma simples possibilidade natural. Ele é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no pensamento ele mesmo. Ora, essa gênese implica algo que faz violência ao pensamento, que desarraiga de seu estupor natural as suas possibilidades somente abstratas. Pensar é sempre interpretar, quer dizer, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo (Deleuze, 1970, p. 188, tradução nossa).
Ter vocação, nesse caso, seria se deparar com signos que nos forçam a pensar. A vocação teria, então, um sentido de dom, à medida em que haja um encontro que desperte uma violência. É nesse ponto que se volta Larrosa (2018). A vocação seria essa violência; uma espécie de “chamado” do mundo que exige uma interpretação. Daí porque a escola seria um lugar que poderia abrir a possibilidade, ao apresentar o mundo, de cada um descobrir a quais signos se está predestinado. Seria preciso aprender a ouvir os signos do mundo:
A partir daí, o sentido da vocação como um chamado pode ser esclarecido. A vocação seria algo como um chamado do mundo, como algo do mundo, dos signos do mundo, que nos atraem, que nos chamam, que nos reclamam. Isso que chamam ou que solicitam é, antes de tudo, nossa atenção (Larrosa, 2018, p. 62).
A argumentação de Larrosa (2018) desconstrói uma ideia de talento individual - algo que seria do sujeito e que, por isso, deveria ser desenvolvido. Ao contrário, o dom estaria em saber ouvir algo que vem dos signos do mundo. Assim, seria necessário se abrir a esses signos; aprender a interpretá-los; se deixar violentar por eles. Seríamos, portanto, afetados, chamados a fazer algo: “Descobrir uma vocação é sentir-se chamado a interpretar, a ler, mas também a fazer (fazer uma peça de mobília, curar uma pessoa doente, escrever)” (Larrosa, 2018, p. 62). E essa vocação nos exige um trabalho do pensamento; exige de nós esforço.
Para se pensar a vocação, Larrosa (2018) também nos traz, entre outras coisas, uma reflexão de um livro de John Williams (2014). Stoner foi publicado em 1965. Trata-se da história de John Williams (desde sua infância na fazenda até sua carreira docente) - um professor universitário no interior dos Estados Unidos da América no começo do século XX. A infância e adolescência de Stoner é marcada pela sua vida na fazenda, ajudando o pai no trabalho da terra. Sua vida parece predestinada a continuar o trabalho do pai. Entretanto, sem esperar, o pai lhe oferece que estude Ciências Agrárias para que consiga ter melhores resultados no campo. Indo para a faculdade, ele se depara com um curso obrigatório de Língua Inglesa, no segundo ano. A matéria lhe parece estranha; os autores, como Shakespeare, não parecem lhe dizer nada. Ele percebe que não podia lidar com esse curso da mesma forma que os outros, pois não compreendia o que lia por mais que relesse. Contudo, essa matéria o convoca, desafia-o, força-o a pensar a tal ponto que desiste das Ciências Agrárias e começa o curso de Literatura, mesmo sabendo dos conflitos que isso poderia trazer com seus pais. Sua vida é árdua, mas o estudo dá um sentido à sua vida - os personagens parecem mais reais e mais próximos dele do que as pessoas ao seu redor.
O livro relata a paixão de Stoner ao ser desafiado pela literatura, os conflitos (internos e externos) que ele se depara para seguir sua vocação, o senso de propósito que ele encontra do “para quê” ele teria “sido feito”. Antes de se formar em Literatura, o mesmo professor que o havia marcado naquele curso introdutório o chama para passar em sua sala para conversarem. A conversa era sobre os planos futuros de Stoner - algo que ele não tinha parado para pensar muito. O professor, Sloane, elogia seu histórico acadêmico e ressalta sua decisão de mudança de curso; sugere que estenda mais um ano na faculdade para preparar um mestrado. Sugere também que ele poderia lecionar, enquanto trabalha para um futuro doutorado. Stoner fica surpreso/perplexo:
‘Mas você não entendeu, Sr. Stoner?’, Sloane perguntou. ‘Você ainda não entendeu mesmo? Você vai ser um professor.’
De repente Sloane pareceu muito distante, e as paredes do escritório pareceram recuar. Stoner teve a sensação de estar em pleno ar, e ouviu a sua voz perguntar: ‘O senhor tem certeza?’
‘Tenho’, Sloane disse suavemente.
‘Como o senhor sabe? Como pode ter certeza?’
‘É amor’, Sloane disse animado. ‘Você se apaixonou. É só isso’ (Williams, 2014, p. 27).
O livro de Williams (2014) descreve uma vocação do personagem para ser professor; uma vocação que se apresenta em forma de amor. A literatura teria chamado Stoner - teria atingido-o com violência, forçando-o a mudar de curso -, como um destino. Assim, a história nos convoca a pensar o ofício do professor como uma vocação. Vocação enquanto chamamento, segundo Larrosa (2018). E isso em quatro sentidos: o professor responde ao chamado do mundo; à transmissão do mundo; à renovação do mundo; à comunização do mundo (tornar comum). São essas respostas que o tornam professor, de acordo com Larrosa (2018), e complementa:
Isso do que o professor se ocupa e com o que se preocupa, isso que ama, isso a cujos signos é sensível e do qual é intérprete, isso que o chama e lhe acena, isso que o interpela e o obriga, isso que o faz pensar, isso ao que responde e com o que está em correspondência, isso com o que está afinado, acordado ou ajustado, isso em que compromete suas mãos e seus gestos, isso que entrega e ao que se entrega, que faz e para o que está feito, isso que elabora e reelabora, que cuida, isso com que se luta e que se resiste, isso que o atrai e é subtraído dele, que o interessa e ao qual atende, isso que lhe concerne e ao que é receptivo, isso com que se engendrar colocando toda a sua habilidade e todo o seu engenho, seu saber e seu não saber, isso com que está implicado e complicado, isso que lhe compromete e de que se faz responsável, isso em que acredita, isso que o faz esperar e desesperar, isso que o afeta, isso que tem ou sustenta entre as mãos, em que dá voltas, isso que toca e que o toca, que o absorve, no que se centra e se concentra, isso com que mede suas forças, isso, seu assunto, sua coisa, sua matéria, não é outra coisa que a transmissão/renovação/comunicação do mundo. E é isso, só isso, o que podemos chamar de educação (Larrosa, 2018, p. 230).
Contrapondo-se a essa vocação, o discurso predominante neoliberal nas escolas volta-se à motivação do talento individual (como se cada indivíduo tivesse um talento natural). Assim, a escola teria como função motivar esse talento para que, individualmente, a pessoa o desenvolva, independentemente de qualquer interesse pelo mundo. Com a ideia de talento, o que interessa é a esfera subjetiva do indivíduo - por isso se torna uma questão motivá-lo. Há aqui também uma espera por uma satisfação subjetiva, individual, como se essa fosse “a medida” para uma escolha: a satisfação do “eu”. Nesse sentido, desenvolver um talento estaria ligado a uma satisfação pessoal, em que se tem em vista fazer o que se gosta (o que se escolhe por boa vontade), o que vale a pena (que traz benefício financeiro pessoal, recompensa, por exemplo) etc. O estímulo externo, portanto, não é o mundo, mas um suposto futuro benefício econômico e/ou narcísico.
A noção de vocação, por outro lado, volta-se a assumir um modo de vida; de responsabilizar-se por algo; por uma convicção de se ter um destino: a necessidade de se fazer algo por fazer. Não um destino “natural”, mas construído, que exige esforços disciplinados que preparam o terreno para uma forma de experiência. Daí porque a vocação se relaciona com a ideia de ofício, pois envolve também um caráter corporal: exige a precisão nos gestos; disciplina; atenção à matéria; o uso de ferramentas certas. Desse ponto de vista, ter vocação é “descobrir para que nossas mãos são feitas”.
No caso do ofício do professor, Stoner, personagem de Williams, ouve o chamado da literatura; essa é a matéria a ser trabalhada por suas mãos; esse é o seu destino, seu modo de ser. Larrosa (2018) insiste, por isso, que há uma mudança que se caracteriza do ofício à profissionalização:
[...] poderíamos dizer que o ofício do professor não é mais um ofício artesanal (ou está deixando de sê-lo) e, talvez por isso, fala-se constantemente dos conhecimentos, das competências, da eficácia ou da qualidade do professor, mas não mais de suas mãos, seus gestos, ou suas maneiras. Talvez seja por isso que se fale sobre sua profissionalização, mas não sobre sua vocação. A suspeita, no entanto, é que o que existiu é uma gigantesca expropriação. O ofício de professor, como a maioria dos ofícios, tem sido quase completamente desqualificado. Era necessário converter o trabalho do professor, aquilo que agora é chamado de práticas docentes, qual seja a obra de suas mãos e de suas maneiras, em procedimentos estereotipados, objetiváveis e avaliáveis. Seria preciso converter os professores em profissionais intercambiáveis, reduzidos a ser uma função de uma máquina escolar que pretende ser eficaz e, acima de tudo, controlada e controlável (Larrosa, 2018, p. 41).
Podemos pensar que essa redução a uma máquina escolar é uma redução do ofício do professor a um trabalho flexível que se adequa ao tempo/dinheiro disponível; que tem necessidade de uma formação permanente, pois durante todo tempo de trabalho ele deve se adequar ao mercado, deve “aprender a aprender”. Assim, a singularidade do trabalhador se perde nessa adequação. Na verdade, essa flexibilidade impossibilita qualquer singularidade; impossibilita pensarmos em um amor ao que se faz, de se responsabilizar pelo mundo; simplesmente se adequa à situação. Larrosa (2018) nos lembra, aliás, de uma descrição de Elias Canetti quando relembra de seus professores. Canetti (1987) nos descreve como a escola era viva para ele; como os professores, na singularidade de cada um, o marcou, seja em sua voz, sua fala, seus gestos, sua forma de andar, de pensar, de convocar, de ler, de apontar um problema, de corrigir etc. Essa multiplicidade dos professores para Canetti (1987) era o que o surpreendia (contrariando uma ideia de padronização da profissão) - essa multiplicidade seria a primeira diversidade que uma pessoa se depara conscientemente na vida. Complementa:
Agora, quando os faço desfilar diante de mim [os professores], admiro-me da diversidade, da peculiaridade, da riqueza de meus professores de Zurique. De muitos deles aprendi tudo aquilo que correspondia às suas intenções, e a gratidão que por eles sinto após cinquenta anos, por estranho que possa parecer, se torna maior a cada dia que passa. Mas também aqueles de quem pouco aprendi estão tão nitidamente à minha frente como pessoas ou como figuras, que só por isso me sinto em dívida com eles. São os primeiros representantes daquilo que mais tarde constituiu para mim a essência do mundo, a sua população. São inconfundíveis, uma das qualidades supremas; que eles, concomitantemente, se tornassem figuras, nada lhes tira de sua personalidade. A interpretação da fluidez que existe entre indivíduos e tipos é, verdadeiramente, uma das tarefas do escritor (Canetti, 1987, p. 172).
A ideia de homogeneização dos professores apaga essa possibilidade de aprendizagem: a singularidade de cada professor, sua forma de lidar com a matéria, com os alunos, sua forma de exercer seu ofício. Larrosa (2018) defende, pensando em relação ao ofício do professor, que esse deve ser livre, ter as mãos soltas para trabalhar sua matéria: “O professor não coloca sua matéria a serviço da sociedade, nem da economia, nem da velha geração, mas a liberta e, nesse mesmo gesto, se liberta. Digamos que o professor precisa ter as mãos livres para poder exercer seu ofício, para poder fazer o que tem que fazer” (Larrosa, 2018, p. 47).
Na verdade, Masschelein e Simons (2013) já haviam destacado no livro Em defesa da escola - Uma questão pública que o ofício do professor é uma arte incorporada, uma maneira de vida; alguém que ouve um chamado: o ofício do professor “É uma arte incorporada e, assim, uma arte que corresponde a uma maneira de vida - algo ao qual se pode referir como um ‘chamado’, uma palavra usada também por artistas ou mesmo políticos” (Masschelein; Simons, 2013, p. 135). E, não por acaso, insistem que o professor não pode ser domado - isso o neutralizaria. Se assim fosse, sua relação com a matéria não seria mais de amor, mas de obediência - tal como alguém que se submete ao que a situação o exige (tornar-se flexível seria, nessa perspectiva, um modo de dizer que “se adequa obedientemente ao mercado”).
Na verdade, a tecnocracia ocupa, hoje, o lugar dessas amarras: é responsável por atar as mãos dos professores, dando metas, especificando como dar aulas, qual conteúdo a ser apresentado, a finalidade do estudo, exigir que se preste contas, exigir competências (anulando sua singularidade), padronizando, flexibilizando, incentivando-o a ser calculista etc. Esse é o ponto que Larrosa (2018) se contrapõe e insiste que não se trata de uma nostalgia. Ao contrário, insiste na potencialidade de pensarmos de outra forma:
[...] a introdução da palavra “vocação” (essa palavra em desuso) não necessariamente tem a ver com a construção de uma história de acordo com um antes e depois (do professor vocacional ao professor profissional) para fazer com relação a ela uma lista de ganhos e perdas, mas que tem a ver com provocar um efeito intempestivo ou inatural que, na aula, elaborei no estilo benjaminiano, esse que tenta procurar no passado não algo que tenha sido superado mas algo que tenha sido destruído, vencido, humilhado ou descartado. Não para sugerir sua reintegração, mas para ver de que modo pode nos ajudar a identificar duas coisas: a primeira, quais poderiam ser as possibilidades não realizadas do passado; a segunda, quais são as forças destrutivas do presente (Larrosa, 2018, p. 53).
Complementando essa ideia, enquanto uma potencialidade ainda por vir, como uma arte incorporada, como um ofício, Masschelein e Simons (2014) associam o ofício do professor a um arranjo estético. Quer dizer, uma forma de lidar com a matéria que implica arquitetura e design (e isso nos gestos, nas palavras, nas composições). Seria também uma arte disciplinada; além do que, uma arte que oferece uma abertura de mundo ao apresentá-lo de forma comum e “[...] que coloca os estudantes no silêncio do início e oferece a experiência de potencialidade na frente de alguma coisa” (Masschelein; Simons, 2014, p. 167).
Esse ofício, tal como no artesanato, exige um saber-fazer com as mãos: trabalhar a matéria que temos em mãos. Daí a importância dos gestos para Larrosa (2018): os gestos mostram uma sintonia com as coisas, um estar afinado com algo. Como um modo de vida, o professor está junto à matéria:
Os gestos constituem (ou constituíam) e, simultaneamente, expressam a relação entre um saber-fazer, um saber-viver e um saber-viver-juntos que vai mais além da funcionalidade porque ocorre em formas (em formas-de-fazer e em fomas-de-viver) e, portanto, em beleza (Larrosa, 2018, p. 75).
Esse “saber-viver-juntos” mostra uma correspondência das mãos com a matéria. Assim, não basta ouvir o chamado dos signos; é preciso saber trabalhar, interpretar esses signos. Ter uma vocação, na verdade, descobrir uma vocação, é descobrir para que gestos nossas mãos foram feitas - como se nossas mãos descobrissem qual matéria em particular deve trabalhar. E, como afirma Larrosa (2018, p. 76), “Quando isso acontece, diz Flusser, as mãos são felizes”.
Essa referência a Flusser não é somente alusiva. Nos faz pensar. Vilém Flusser (2014) escreve um livro que se chama exatamente Gestos. Dentre muitas de suas reflexões, Flusser destaca que o artífice, como o pintor, só vive quando está pintando; quando segura o pincel; quando encara a tela. Nesse momento, ele, o pintor, é ele mesmo - um pintor singular. Flusser (2014) destaca a vocação nesse caso ao destacar um “ouvir”; uma resposta a um chamado:
Se perguntarmos por que escolheu pintar ou por que escolheu este pincel, dará respostas inconvincentes, porque a pergunta é reversível. Por que foi escolhido para pintar com este pincel? O “pintor” não escolheu pintar no sentido metafísico de ele ter tido, antes do gesto, várias opções; porque, antes do gesto de pintar, não há “pintor” que possa escolher algo. E a pintura é sua “vocação” no sentido metafísico de uma voz qualquer que partiu do pincel para chamá-lo antes do gesto, porque, antes do gesto, não há pincel que possa clamar por pintor. Isto são maneiras metafóricas de falar, não observações concretas. O fato é simples (como o é, aliás, todo fato concreto): o gesto de pintar é a realidade, e o pintor e o pincel são aspectos de tal realidade (Flusser, 2014, p. 67).
Se se trata de uma maneira metafórica ou não de falar, o fato é que são as mãos que fazem, que conferem valor ao mundo; são elas que sabem se tal objeto é ou não objeto para elas. Ter vocação seria esse se mover ao encontro de objetos que sejam para essas mãos, “Em constante busca sempre mais desesperada do objeto no qual possam realizar-se” (Flusser, 2014, p. 90). Ou seja, mãos que encontram sua vocação. Com o pincel, no caso do pintor, há um gesto criativo; gesto de fazer; que dá valor ao mundo ao criar. Assim, as mãos aprendem, compreendem, entendem, produzem, informam, manufaturam, criam e realizam sua vocação - elas fazem. Henri Focillon (1955, p. 99), em seu O elogio da mão, partilha dessa concepção: “A mão é ação: ela agarra, ela cria, e, às vezes, dir-se-ia que ela pensa”. Quanto aos artistas, continua, “[...] os grandes artistas prestaram uma atenção extrema ao estudo das mãos. Eles sentiram a virtude potente pelo que, melhor que os outros homens, vivem por elas” (Focillon, 1955, p. 100).
Como vemos, a ideia de uma vocação vai contra uma ideia do professor como um profissional; ele está mais próximo de um amateur, um entusiasta. Ou seja, não está a serviço de cumprir uma meta, tarefa, mas faz o que faz porque essa é sua vocação, seu modo de vida. Tanto Masschelein e Simons (2013) como Larrosa (2018) voltam-se a Giorgio Agamben nessa reflexão. Por exemplo, em Meios sem fins - Notas sobre a política, Agamben (2010) define forma-de-vida como uma vida pela qual sua forma não pode ser separada de sua vida. E se pergunta: seria possível uma vida de potência - uma vida em que encontra em sua forma seu modo de ser?
Para Agamben (2010, p. 19), o pensamento cumpriria esse papel: “Denominamos pensamento a relação que constitui as formas de vida em um contexto inseparável em forma-de-vida”. O pensamento é entendido por Agamben (2010) como uma experiência que tem como objeto o caráter potencial da vida e da inteligência. Pensar não significa somente ser afetada por algo, mas afetado pela nossa própria receptividade. Nesse sentido, em cada afeto há uma experiência de uma potência de pensar. Não se trata também de uma potência individual, mas comum: a experiência do pensamento é comum ao homem e pode ser realizada: “[...] a intelectualidade, o pensamento não é uma forma de vida entre as outras que articula a vida e a produção social, mas elas são a potência unitária que constitui em forma-de-vida as múltiplas formas de vida” (Agamben, 2010, p. 22). Agamben está aqui pensando no conceito-guia e o centro unitário da política que vem. Interessa-nos a articulação dessa vida com seu corpo, com o pensamento: “O pensamento é forma-de-vida, vida indissociada de sua forma, e por toda parte onde se mostra a intimidade dessa vida inseparável, na materialidade dos processos corporais e dos modos de vida habituais, assim como na teoria, aí e somente aí há um pensamento” (Agamben, 2010, p. 22).
É nesse sentido que Larrosa (2018) se volta ao ofício do professor como uma forma de vida: uma vida que é inseparável de seus processos corporais, seus hábitos, sua forma de ser. Daí porque a concepção de um profissionalismo lhe é estranho: ser profissional da educação seria uma espécie de categoria que pode ou não ser predicada de um sujeito. Como categoria, apesar que seja necessário que seja ou não seja, ser professor seria apenas uma possibilidade atribuída a um sujeito: pode ser ou não ser. Para Larrosa (2018), não se trata de um predicado, mas uma forma de ser sem a qual o ser perde sua forma (o que não tem sentido: ele é sua forma de ser). O que se aproxima dessa forma de ser é a ideia de ofício.
O Artífice
O interesse pelo mundo nos abre para uma responsabilidade: ser responsável pelo mundo. Isso implica que a ação sobre o mundo seja de cuidado para que se faça as coisas benfeitas. Essa ação benfeita, paciente, bem trabalhada, leva-nos diretamente a pensar em um ofício.
No dicionário, o ofício é definido, em sua primeira acepção, como uma ocupação manual ou mecânica que exige da pessoa certa habilidade e que seu trabalho seja útil ou necessário para a sociedade. Ocupar-se com algo significa cuidar de algo com empenho, respeitando regras, exercícios que compõem uma habilidade de trabalhar a matéria para que o trabalho seja benfeito e que seja útil para as pessoas. É esse o sentido que se dá quando pensamos no ofício do professor, mas também na ideia de ofício em geral.
A ideia de ofício, como se vê, não parte de um suposto talento individual. Trata-se de aceitar a responsabilidade de cuidar de algo, exigindo técnicas específicas, exercícios, paciência, atenção. É assim uma qualidade expressiva do fazer humano, em que o homem se orgulha de seu trabalho, de seu compromisso com algo. Um compromisso que exige tempo de formação; tempo para trabalhar; um tempo que não pode ser medido, livre do tempo da eficácia e da produtividade. Como se poderia pensar em um trabalho flexível, como se exige o mercado contemporâneo, se levarmos a sério a ideia de vocação?
Pensemos no ofício do professor. Larrosa (2018) destaca que, ao pensar o que faz o professor, ele precisa pensar algo como as condições materiais do que ele realmente faz, como dar aula, prepará-la, fazer anotações etc. Larrosa (2018) se volta nesse ponto ao trabalho de Sennett (2009).
O Artífice, de Richard Sennett (2009), é um projeto ousado que busca mostrar como pensamento e sentimento estão contidos no processo do fazer - isto é, quando “mão e cabeça” andam juntas. Para enfrentar os problemas concretos do mundo, segundo Sennett, é preciso um materialismo cultural vigoroso; sua aposta é que, ao apreender como as coisas são feitas, apreendemos algo do próprio homem. Isso seria cultura material. Por isso a questão: o que o processo de “feitura” das coisas revela a nosso respeito?
A arte ou a habilidade artesanal é a capacidade de fazer bem as coisas segundo Sennett (2009). É estudando o artífice que aprenderemos mais sobre o homem, pois a habilidade artesanal mostra um impulso humano básico e permanente: o desejo de um trabalho benfeito. E isso em várias esferas da vida: Sennett (2009) entende essa habilidade artesanal como qualquer trabalho praticado de forma benfeita - seja por exemplo um artista ou um médico ou mesmo um programador de computação. Eis porque Sennett (2009, p. 164) escolhe a palavra artífice:
O artífice representa uma categoria mais abrangente que a do artesão; ele simboliza, em cada um de nós, o desejo de realizar bem um trabalho concretamente, pelo prazer da coisa benfeita. Os avanços da alta tecnologia refletem um antigo modelo de habilidade artesanal, mas a realidade concreta é que aqueles que aspiram ser bons artífices são desvalorizados, ignorados ou mal compreendidos pelas instituições sociais. Tudo isso é complicado porque poucas instituições querem sair por aí produzindo trabalhadores infelizes. Os indivíduos buscam refúgio na introspecção quando o envolvimento material revela-se vão; a antecipação mental é privilegiada em detrimento do contato concreto; os padrões de qualidade no trabalho separam a concepção da execução.
Sennett (2009) pensa o artífice na atualidade usando o exemplo de um técnico do programa de computador Linux. O sistema Linux, a seu ver, é um artesanato público, porque está disponível a todos, pode ser adaptado e utilizado por qualquer um: as pessoas podem aperfeiçoar o programa. Portanto, lidamos com uma comunidade de artífices, buscando melhorar o programa, confeccionando um bom trabalho. Isso mostra que a passagem de um programador a outro, de forma impessoal, faz com que o programa se aperfeiçoe - há detecção de problemas e suas soluções. Ou seja, não se trata somente da imagem do artífice em uma oficina, pois essa oficina pode ser um laboratório, uma sala de aula, um consultório médico etc.
Sennett (2009) destaca como todo artífice sustenta um diálogo entre mão e cabeça ou entre práticas concretas e ideias. Para isso, se cria hábitos, ritmos entre solução de problemas e detecção de problemas que aparece em nossos afazeres em geral. Por exemplo: um arquiteto que se forme somente usando o computador, desconecta-se de suas mãos; perde uma capacidade essencial de todo artífice, tal como perceber a incompletude de toda obra. Ora, “O tátil, o relacional e o incompleto são experiências físicas que ocorrem no ato de desenhar” (Sennett, 2009, p. 55). Perde-se, então, a imaginação material ao se desvincular dessa experiência fundamental que exige repetição (que se desenhe novamente, por exemplo). Para além de usar o computador como uma tecnologia na arquitetura, o artífice, por usar também as mãos, consegue ter uma imaginação mais concreta do desenho. Daí essa conclusão de Sennett (2009, p. 56): “[...] ‘pensar como um artífice’ é mais que um estado de espírito: representa uma aguda posição crítica na sociedade”.
Pensar como um artífice é também ser detalhista, curioso; ao trabalhar com as mãos, busca-se sempre melhorar sua técnica, aprender com imprevistos:
Fazer um bom trabalho significa ser curioso, investigar e aprender com a incerteza. Como no caso dos programadores do Linux, o atendimento de enfermagem negocia uma zona fronteiriça entre a solução de problemas e a detecção de problemas; ouvindo o que o velho paciente tem a dizer, o enfermeiro pode colher, sobre seus problemas de saúde, pistas que talvez escapassem no momento do diagnóstico (Sennett, 2009, p. 60).
De um modo geral, as teses de Sennett (2009) nessa obra são duas:
Todas as habilidades, mesmo as mais abstratas, só têm início como práticas corporais; trata-se de um conhecimento adquirido primeiramente pela mão, pelo toque e movimento;
O entendimento técnico se desenvolve pela imaginação (desenvolve capacidades para reparar e improvisar); a linguagem direciona/orienta a habilidade corporal.
Assim, para trabalhar bem, o artífice precisa aprender com a experiência; é com ela que ele desenvolve seu processo imaginativo buscando fazer melhor. Com a experiência, cria maneiras próprias de utilizar ferramentas; sabe movimentar seu corpo de forma adequada com a matéria; seus gestos são direcionados; a habilidade progride e a pessoa se sintoniza melhor com os problemas que surgem. Trata-se de algo para além de uma atividade mecânica: “[...] as pessoas são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão fazendo quando o fazem bem. É no nível da mestria, como demonstrarei, que se manifestam os problemas éticos do artesanato” (Sennett, 2009, p. 30).
Mas, para se tornar um artífice, exige-se esforço, dedicação e, principalmente, disciplina e exercícios. Daí essa crítica de Sennett à educação contemporânea:
A educação moderna evita o aprendizado repetitivo, considerando que pode ser embotador. Temeroso de entediar as crianças, ávido por apresentar estímulos sempre diferentes, o professor esclarecido pode evitar a rotina, mas desse modo impede que as crianças tenham a experiência de estudar a própria prática e modulá-la de dentro para fora (Sennett, 2009, p. 49).
Com a repetição se incorpora um hábito, uma espécie de saber corporal. Incorporar um saber seria uma conversão de conhecimentos e práticas em conhecimento tácito. Ou seja, incorporar é como fazer parte da carne - o que podemos denominar hábito corporal. Nas palavras de Sennett (2009, p. 62):
Se uma pessoa tivesse de pensar em cada movimento para acordar de manhã, levaria uma hora para sair da cama. Quando falamos de fazer algo ‘instintivamente’, muitas vezes estamos nos referindo a comportamentos que de tal maneira entraram em nossa rotina que não mais precisamos pensar a respeito. Aprendendo uma capacitação, desenvolvemos um complicado repertório de procedimentos desse tipo. Nas etapas mais avançadas dessa capacitação, verifica-se uma constante interação entre o conhecimento tácito e a consciência presente, funcionando aquele como uma espécie de âncora, esta, como crítica e corretivo. A qualidade artesanal surge dessa etapa mais avançada, em julgamentos a respeito de suposições e hábitos tácitos.
Podermos reforçar essa ideia de Sennett (2009) se nos lembrarmos de Maurice Merleau-Ponty (2002), que se refere à consciência enquanto “eu posso”: uma potencialidade que se inscreve no corpo. Quer dizer, o fato de o sujeito poder responder a uma situação sem ter que pensar como agir - por exemplo, quando nos abaixamos para passar debaixo de um galho. Ora, o volume do corpo não é uma questão no momento de desviar de um obstáculo - simplesmente sabemos que é preciso abaixar e o quanto é preciso. Isso nos mostra como somos capazes de realizar um movimento sem ter plena consciência desse ato. O hábito estaria nessa esfera: de um saber sedimentado, habitual. O hábito seria uma aquisição de uma esfera primordial de significações na própria motricidade do corpo. Na verdade, o hábito indica uma esfera sedimentada das nossas condutas sempre presente em nossas ações, sem com isso determiná-las, pois há sempre uma abertura possível para novos atos.
O hábito teria, assim, a função de resposta imediata do corpo, sem que seja preciso nos perguntar como agir diante da situação, algo que Merleau-Ponty (2002) apontava em A estrutura do comportamento com essas linhas: “De fato, eu possuo as conclusões sem que as premissas sejam dadas em qualquer parte, eu executo a tarefa sem saber o que faço, do mesmo modo que os hábitos adquiridos por um grupo de músculos podem se transferir imediatamente a um outro [...]” (Merleau-Ponty, 2002, p. 30). Trata-se, então, de uma esfera constituída, já sabida, que pode ser retomada em toda situação parecida. Um saber, portanto, mas com novo estatuto, pois indica um saber do corpo, das mãos, dos olhos etc. Ou seja, o corpo compreenderia a situação sem que se precise tomar consciência explícita dela - o que demonstra uma potencialidade corporal da consciência.
Sennett (2009) se voltará a essa abertura de potencialidade a partir do hábito. Primeiramente, destaca que a ideia de artífice é ligada ao esforço, à disciplina, às regras e à tradição. O aprendizado segue regras, entre elas, estar submetido a uma autoridade - daquele que possui habilidades de mestre. Portanto, o aprendiz deve ser obediente, capaz de incorporar habilidades com paciência e atenção, seguindo as diretrizes do mestre.
Percebamos, aliás, que o antônimo de autoridade é autonomia (ser autossuficiente) - este último, um valor neoliberal por excelência. No artesanato, é fundamental que haja um mestre, em carne e osso, que treine, que estabeleça padrões (uma autoridade encarnada - uma referência). Mas que se entenda que a ideia de autoridade não é, necessariamente, de coerção; trata-se da autoridade de ser aquele que é responsável por mostrar o mundo para uma nova geração; autoridade em saber o que merece atenção, por exemplo.
Há um capítulo de Sennett (2009) que nos interessa mais diretamente nessa reflexão sobre o artífice: sobre as mãos. Se invocamos Sennett (2009) aqui, em especial, refere-se à concepção de que as mãos encontram uma matéria para ser trabalhada, como vocação. Sennett (2009) insiste que manualidade e pensamento caminham juntos. O autor nos lembra que a evolução da espécie se relaciona à mão: uma mão inteligente, capaz de pinçar; suster; pegar; trabalhar as coisas; tocar - o que estimula o pensar/faz pensar. Com a preensão das mãos, com o pegar algo, antecipamos seu significado. Ao pegar um copo, por exemplo, antecipamos, pelo contato, a ação; temos uma cognição linguística; uma possível reflexão sobre o que fazemos/fizemos - valores desenvolvidos por mãos capacitadas. Poderíamos mesmo nos voltar ao desenvolvimento de um bebê, por exemplo, para destacar o papel das mãos.
Há toda uma gama de virtudes manuais na ponta dos dedos. Ao tocar um instrumento musical, por exemplo, vivemos uma experimentação de erro, prática, tentativas, acertos etc. Na verdade, o ouvido trabalha com as mãos; por isso, a necessidade de técnicas para desenvolver habilidades. Quanto à questão do erro, o exercício com as mãos nos é exemplar:
Como intérprete, faço na ponta dos dedos a experiência do erro - um erro que procurarei corrigir. Tenho um padrão de referência que me diz o que estou buscando, mas meu compromisso com a verdade reside no simples reconhecimento do que cometo erros. No debate científico, às vezes, esse reconhecimento é reduzido ao clichê ‘aprender com os próprios erros’. A técnica musical mostra que a questão não é tão simples. Devo dispor-me a cometer erros, tocar notas erradas, para eventualmente acertar (Sennett, 2009, p. 180).
Dispor-se a cometer erros - isso significa que a prática deixa de ser pensada como mera repetição, pois se transforma em uma narrativa que impregna o corpo de experiência. Uma narrativa, porque faz parte de nossa história:
Diminuir o medo de cometer erros é de vital importância em nossa arte, pois o músico no palco não pode interromper-se, paralisado, se cometer um erro. A confiança na capacidade de superar um erro durante uma apresentação não é um traço de personalidade, mas uma capacitação que se aprende. A técnica desenvolve-se, assim, numa dialética entre a maneira correta de fazer algo e a disposição de experimentar através do erro. Os dois lados não podem ser separados. Se o jovem músico aprende apenas a maneira correta, estará às voltas com uma falsa sensação de segurança. Se se deleitar na curiosidade, entregando-se ao fluxo do objeto transicional, não poderá aprimorar-se (Sennett, 2009, p. 181).
Saber conviver com o erro é de suma importância no processo de criação. Em um ofício, segundo Sennett (2009), convivemos temporariamente com certa “bagunça”, com passos falsos, sem saída em um primeiro momento. A prática nos ensina a conviver com esses momentos difíceis, nos ensina a lidar com a insegurança. Mais além, nos diz Sennett (2009, p. 181), essa “bagunça” se torna desejável: “Na verdade, na tecnologia como na arte, o artífice que sonda não se limita a conviver com a bagunça, criando-a para entender os procedimentos de trabalho”. Isso nos torna capazes de avançarmos ou recuarmos; de sabermos parar e meditar nos obstáculos que criamos ou nos deparamos. Um ensinamento difícil: temos que aceitar e mesmo desejar permanecer um tempo na “bagunça” para compreendermos o erro: “Preparar, conviver com os erros e recuperar a forma” (Sennett, 2009, p. 182).
Obter habilidades com as mãos exige também coordenação e cooperação entre os dedos; eles precisam de treinamento para adquirir uma habilidade, como para tocar um instrumento. Nesse caso, os dedos devem agir de forma independente e, ao mesmo tempo, de forma harmônica. Mãos que agem com precisão e independência, realizando uma harmonização de desigualdades entre os dedos. Na culinária, por exemplo, o uso da faca deve ser preciso: saber usar uma força adequada, mínima, no corte preciso de alimentos (para não o danificar); aprender a soltar, como na tecla de piano, no uso da faca no corte etc. Cria-se, com exercícios e hábitos, um controle do movimento. No fundo, um autocontrole. Para isso, toda uma lógica de disciplina é exigida. Para se obter concentração, por exemplo, por longos períodos, seguindo regras baseadas na prática, na repetição.
Essa prática, essa disciplina, não é aquela de docilização dos corpos como descreve Foucault (1975), em Vigiar e Punir - O nascimento da prisão, mas uma disciplina própria ao artesão. Podemos pensar o mesmo na educação de uma forma geral: uma disciplina própria e necessária ao estudo - algo que se aprende com esforço, pois a criança e o jovem não se concentram “naturalmente”. A repetição está na mesma lógica; não aquela repetição do trabalho industrial (rotineiro e maquinal), mas aquela que nos faz desenvolver habilidades manuais sofisticadas. Ao fazer algo repetidas vezes é estimulante fazer de novo: “Encravado nas contrações do coração humano, o ritmo foi estendido pelo artífice especializado à mão e ao olho” (Sennett, 2009, p. 196). Assim, se aprende a se concentrar de maneira que nos abre a algo novo, como um músico que antecipa a mudança de um ritmo ou antecipa o andamento, a velocidade, o acento na batida (por exemplo, o regente sempre está um passo na frente; se fosse simultâneo, não conduziria a orquestra). As repetições são, portanto, estabilizadoras; não se torna rotineira, mas celebra algo que está por acontecer, como nos rituais religiosos: sentimo-nos alerta ao desenvolvermos a capacidade de antecipação. Ao incorporar essas técnicas, não se pensa mais no que se está fazendo, pois nos concentramos, por exemplo, de uma forma que elas já estão impregnadas em nosso corpo (como um saber corporal nos termos de Merleau-Ponty (2002).
Sennett (2009) destaca também capacidades que nos permitem sustentar a frustração; e, para além, de torná-la constitutiva no ofício, pois pode promover um salto na imaginação. Por exemplo, quando nos frustramos, podemos aprender a nos forçar a reconfigurar um problema. Frustrando, aprendemos também a ter paciência, a persistir no trabalho frustrante: “[...] a paciência em forma de concentração persistente é uma capacidade adquirida que pode expandir-se com o tempo” (Sennett, 2009, p. 246). Quer dizer, técnicas que devem ser aprendidas. Como frustração, podemos aprender a identificar as resistências, cuidar dos detalhes, ao invés de sempre imaginar que se resolve um problema primeiramente lidando com grandes dificuldades: “As capacitações para trabalhar bem com a resistência são, em suma, reconfigurar o problema em outros termos, reajustar o próprio comportamento se ele persiste por mais tempo que o esperado e identificar-se com seu elemento mais indulgente” (Sennett, 2009, p. 247). Na verdade, o artesão deseja alguma resistência; é ela que nos fazem avançar, repensar, refazer, ver de outro modo: “Em todo artesanato, queremos seguir o impulso do urbanismo no sentido de trabalhar com a resistência em condições fronteiriças. Desenvolvemos habilidades nesse limiar vivo” (Sennett, 2009, p. 255). Questões próprias de quem busca fazer algo benfeito.
Enfim, Sennett (2009) lista o que considera ser próprio de um bom artesão: (1) Dar importância ao esboço; (2) Dar um valor positivo à contingência e às limitações; (3) Evitar uma busca inflexível de uma solução; saber isolar e a tornar autossuficiente; (4) Evitar o perfeccionismo; e (5) Saber o momento de parar. Quer dizer, desde o esboço até o momento de parar, um bom artífice sabe trabalhar a matéria.
Considerações Finais
Enquanto uma vocação, segundo Sennett (2009), ouve-se um chamado em que a pessoa deve se empenhar com seus esforços, de forma disciplinar, formando-se, decidido por sua escolha. Mas em nossa sociedade, o que se chama “sociedade de capacitação”, atropela-se essa possibilidade de carreira. O incentivo à flexibilidade, por exemplo, impede que haja uma convicção de que se escolha um caminho, um destino.
Se se escolhe esse destino, não estamos lidando com “talentos” inatos para alguns “escolhidos”. Sennett (2009) insiste que se trata de uma formação que pode ser trilhada por qualquer um. Assim, aprender técnicas é mais importante do que o talento: a capacidade do homem trabalhar bem é bastante equivalente e se manifesta desde os jogos e as brincadeiras infantis - ali já encontramos as capacidades de trabalho. O problema é adquirir o hábito de atenção e persistência em algo para se trabalhar bem. As técnicas, disciplinas, práticas são possíveis de serem aprendidas, porque estão próximas de nossas experiências.
A reflexão de Sennett (2009) tem, como se vê, um caráter social. Vai de encontro com a concepção do trabalho flexível, na busca por talentos, na valorização do individualismo. Um bom artífice socializa seus saberes; esforçou-se, disciplinou, seguiu práticas, soube respeitar seus mestres. Sua tese geral é trazer à tona o valor da experiência entendida como ofício. Um ofício da experiência, entendendo a experiência como uma ação ou relação que volta a pessoa “para fora” (para o mundo). Isso implica empenho em formas e procedimentos, em técnicas de experiência. Trata-se de uma reflexão pragmática, que persiste no envolvimento com as atividades humanas comuns, plurais e construtivas.
Reparemos, aliás, que Sennett (2009) afirma que, praticamente, não usa o termo criatividade no livro - algo que nos levaria a pensar em um talento individual ou na existência de gênios. As pessoas comuns devem ser motivadas ao ofício da experiência. Assim, Sennett (2009) aproxima o artesanato da arte, pois as técnicas incorporam expressões. Isso se aplica em todos os trabalhos que se visa fazer algo benfeito, no qual nos empenhamos com disciplina e persistência. Como se trata de um esforço, empenho, espera-se que haja orgulho pelo próprio trabalho - esse seria o cerne da habilidade artesanal como recompensa de perícia e empenho.
É nesse sentido que resgatamos Sennett (2009) para pensarmos no ofício do professor. Entretanto, os artefatos do professor são específicos. É isso que nos traz Larrosa (2018). Os artefatos do professor são as suas ferramentas, os instrumentos na sala de aula, seus livros, o quadro, o projetor, mas também seus gestos, sua fala, seu modo de indicar o que é importante, a forma como conduz o pensamento, como indica o que se deve ter atenção. Nesse ofício, cada professor tem sua singularidade - uma forma própria de falar, de conduzir, de apontar, de selecionar o material, de apresentar e dialogar com os alunos. Os professores se tornam inesquecíveis, como destaca Canetti (1987), devido sua presença única, sua forma de ser. Na atualidade, ao se insistir na ideia de profissionalização, evidenciar-se-ia como a educação foi colonizada, homogeneizada e padronizada - como se os professores fossem substituíveis; como se não houvesse nenhuma singularidade na forma de dar aula, de pensar, de conduzir uma aula.
Larrosa (2018) destaca ainda, como os gestos do professor, suas mãos que o que iluminam, trazem à presença, apresentam o mundo. São elas que chamam a atenção para o material estudado, que mostram, indicam, assinalam, destacam, convocam o olhar. Chamar a atenção e despertar o interesse em algo são complementares para o autor.
A ideia de vocação está, como se vê, imbricada com a ideia de ofício. A proposta de Larrosa (2018) em retomar a potencialidade da concepção de vocação é, portanto, um resgate crítico. A concepção de empreendedorismo vem colonizando todas os nossos domínios de vida, inclusive na escola. Ao lado de Larrosa (2018), encontramos pensadores como Christian Laval (2019) que, em sua obra A escola não é uma empresa - O neoliberalismo em ataque ao ensino público, destaca como a introdução do neoliberalismo foi responsável por uma degradação, a seu ver, das condições de trabalho e de vida, assim como deteriorou as instituições educacionais, universitárias e científicas ao reduzir a educação ao modelo empresarial. É nesse viés que a crítica de Larrosa (2018) ganha sentido: repensar o trabalho do professor como um ofício, como uma resposta a um chamado, como uma forma de vida. Enquanto forma de vida, contra uma ideia de profissionalização, Larrosa (2018) nos lembra que o ofício do professor faz parte do ser do professor.