Introdução
A pós-graduação caracteriza-se pela pesquisa e produção de conhecimento e sua principal tarefa é formar pesquisadores. Diante de tal compromisso, ela exige dos pós-graduandos o domínio de referenciais teórico-metodológicos cuja construção é uma das demandas mais meticulosas do processo investigativo. A exigência é acentuada na pesquisa em educação, pois se trata de um território de fronteira que se edifica no diálogo permanente com outras áreas do conhecimento humano. Assim, ao permitir exceder os emaranhados da racionalidade centralizada em favor de múltiplas perspectivas, a formação do sujeito pesquisador da educação coloca-se na responsabilidade de evitar o imediatismo descontrolado das interpretações, o que exige, portanto, rigorosidade conceitual e bibliográfica, independente da perspectiva da pesquisa - teórica ou empírica. Ou seja, ao se deparar com desafio de múltiplas possiblidades de produção de conhecimento, o pesquisador do campo precisa dar conta da produção de conhecimento confiável, já que está envolto no risco permanente do relativismo teórico e da falta de adequabilidade conceitual.
A Filosofia da Educação, que é um dos núcleos da pesquisa educacional, tem contribuído de maneira significativa para a discussão sobre a adequabilidade dos saberes da área. Tal contribuição encontra-se documentada pelo trabalho de mais de duas décadas do GT 17 - Filosofia da Educação, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e pelos recentes congressos organizados pela jovem Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação (SOFIE)3. No âmbito específico da pesquisa educacional, torna-se notória pela sua busca em esclarecer as condições teóricas e conceituais do trabalho investigativo. E, ao fazê-lo, vê-se imediatamente enredada com questões hermenêuticas, sobretudo, com aquelas relacionadas à interpretação do texto e, por conseguinte, com a condição interpretante do sujeito pesquisador. A Filosofia da Educação parte do pressuposto de que só pode haver produção de conhecimento confiável quando a investigação estiver ancorada na pesquisa bibliográfica adequada, o que exige critérios de interpretação de texto, portanto. Tal seria a contribuição da hermenêutica ao oferecer princípios orientadores de compreensão e interpretação para a especificidade da pesquisa no campo. Uma vez superada a unicidade metodológica experimental em favor das múltiplas possibilidades teórico-metodológicas, a hermenêutica coloca-se como um modo de interpretar comprometido com a linguagem e a historicidade, que contribuem de modo especial com singularidade da produção dos saberes na área.
Isto é o que nos propomos problematizar nesse ensaio - a formação do sujeito pesquisador no âmbito da pesquisa educacional, com a utilização da perspectiva hermenêutica. Para tanto, tomamos como fonte de inspiração os textos de Gadamer, especialmente Verdade e Método I e II (Gadamer, 1999a, 1999b). O ensaio está dividido em três momentos. No primeiro, procuramos recuperar, o sentido etimológico da palavra hermenêutica, e concentrar-nos em elementos esclarecedores para pesquisa bibliográfica enquanto exigência de interpretação confiável. No segundo momento, tratamos da dificuldade epistemológica própria à pesquisa educacional diante da necessidade de se defrontar com a historicidade do ser humano, a qual define sua condição de agente, falante e pensante, sem cair no relativismo. No terceiro e último momento, o mais importante do ensaio, delineamos alguns princípios hermenêuticos gerais que estão na base de formação do sujeito pesquisador diante da exigência da rigorosidade conceitual.
Sentido etimológico da palavra hermenêutica
A hermenêutica contemporânea constitui-se em uma das principais tradições de pesquisa e inspira o debate sobre questões filosóficas, jurídicas, estéticas e, também, educacionais. A influência de autores como Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Wilhelm Dilthey (1933-1911), Martin Heidegger (1889-1976) e Hans-Georg Gadamer (1900-2002) é marcante4. Suas ideias iluminam o modo como o sujeito contemporâneo compreende a si mesmo, em sua relação com o mundo. Conceitos como linguagem, mundo, sujeito, pré-compreensão, compreensão, sentido e fusão de horizontes articulam o pensamento desses autores, permitindo pensar, de maneira derivada, problemas de áreas específicas, como a própria área da educação.
Reelaborando criticamente o debate filosófico contemporâneo acerca da noção de sujeito, a hermenêutica, sobretudo de origem gadamereana, não o compreende como uma alma essencial e pronta, residindo em algum lugar do corpo, como fora defendido pela metafísica cartesiana. Também não assume a compreensão do ser humano aos moldes kantianos, como sujeito que possui estruturas transcendentais a priori, como o espaço e tempo, do lado da sensibilidade e, as categorias, do lado do entendimento. O que conta então é a historicidade, contextualidade e intersubjetividade do sujeito, as quais definem a formação do sujeito como uma busca constante e inesgotável, sempre sujeita a riscos. Como não há mais uma essência pronta que reside na interioridade do sujeito, dando-lhe segurança e fixidez, também não faz mais sentido a ideia de pesquisa em educação como desabrochar do conhecimento verdadeiro o qual está e na interioridade do texto. Esta guinada filosófica para a historicidade linguística do sujeito põe exigências específicas à pesquisa educacional e à própria pesquisa bibliográfica em especial, permitindo pensar a relação entre intérprete e texto de maneira aberta, na perspectiva auto formativa do sujeito pesquisador. Voltaremos a este tema na parte final deste ensaio.
A hermenêutica não é uma produção teórica exclusivamente contemporânea. Ela está na origem da própria cultura ocidental, assemelhando-se, em algumas de suas ideias, com outras culturas, como, por exemplo, a oriental. A noção de ser humano experimentado, como decifrador do sentido subjacente às formas de vida que o cercam, assemelha-se, em certo sentido, com a figura do sábio na cultura oriental, o qual se torna educador respeitado pela longa experiência de vida acumulada. Com o nascimento da ciência moderna e o desenvolvimento do procedimento experimental, a valorização da sabedoria inerente ao ser humano experimentado foi reduzida progressivamente à esfera da crendice e superstição, sendo substituída pela do cientista que assume a figura de proa. Deste modo, o sábio pedagogo deu lugar ao cientista metódico que baseia seus procedimentos não mais na experiência de vida acumulada ao longo dos anos, mas sim na regularidade medida e calculada por meio da experimentação ancorada tecnologicamente. A pesquisa educacional deixa-se orientar pelos critérios de medida construídos pelo procedimento experimental da ciência moderna, buscando apoderar-se da verdade dos fatos, descrevendo-os com a objetividade assegurada pela aplicação das regras do método5.
Se a história da hermenêutica confunde-se com a própria história da cultura ocidental, ela tem sua origem cravada na mitologia grega. Etimologicamente, provém da palavra ermeneúein, a qual carrega múltiplos significados, como expressar, interpretar e traduzir, todos imbricados com a capacidade simbólica do ser humano (Grondin, 1999). Expressar refere-se à capacidade humana de exteriorizar simbolicamente seus sentimentos, emoções e pensamentos. Desde o sorriso manifestado pela alegria sentida, fruto de um bom acontecimento até a fala firme e enérgica do pai alertando o filho para o perigo do fogo, todas essas atitudes são expressões simbólicas típicas da ação humana. Assim, interpretar tem a ver com a disposição de compreender as expressões culturais e simbólicas manifestadas, é investigar o sentido que lhes é inerente. As expressões culturais são constituídas por sentidos que não se manifestam à primeira vista, cabendo ao procedimento hermenêutico desvelá-los, isto é, pô-los à luz. Precisamos assinalar, contudo, que não há interpretação possível sem o diálogo, constituído pela escuta e pela capacidade humana de interpor perguntas. Escutar e perguntar são, deste modo, duas características centrais da postura hermenêutica que possuem, como veremos adiante, interferências diretas na formação do sujeito pesquisador.
De outra parte, a palavra traduzir está, intimamente, relacionada com o sentido da interpretação, sendo considerada quase como seu sinônimo, pois todo o ato de tradução exige capacidade de interpretação. Traduzir significa, de qualquer forma, a capacidade humana de transferir sentidos familiares para contextos culturais e linguísticos estranhos. O exemplo mais claro que conhecemos, no âmbito acadêmico, é a tradução do texto de um idioma para outro. A ocupação com o trabalho de tradução é uma tarefa árdua e muitas vezes polêmica, não havendo consenso entre os especialistas sobre a existência de regras gerais e universais. O tradutor envolve-se com certos dilemas e dificuldades que exigem dele determinadas escolhas, as quais nem sempre se revelam posteriormente como as mais adequadas. De qualquer modo, o trabalho de tradução carrega consigo uma infinidade de sentidos que podem servir metaforicamente para esclarecer o perfil e o papel do sujeito pesquisador. A melhor definição do sujeito pesquisador talvez seja mesmo a de um tradutor de sentido. Ao se pôr a campo ou ao abrir um livro, ele vê-se, imediatamente, na iminência de ter que decifrar sentidos. Voltaremos a isso posteriormente.
O sentido etimológico da palavra hermenêutica brota do mito antigo. O próprio Gadamer resgata o sentido originário da hermenêutica, vincula-o diretamente à figura de Hermes e define seu papel da seguinte forma: “A tarefa de Hermes consiste fundamentalmente em transportar uma conexão de sentido de um outro mundo ao seu próprio mundo” (Gadamer, 1974, p. 1061). Com base nisso, podemos afirmar que Hermes é o mensageiro dos deuses, cuja função primordial consiste em levar a mensagem dos deuses aos seres humanos e destes aos deuses. Em sua origem, são duas mensagens diferentes entre si. O ser humano não conseguiria decifrar por si mesmo a mensagem divina, se entrasse diretamente em contato com ela, por isso precisa da mediação do mensageiro. Relacionando-se diretamente entre si, deuses e seres humanos não se comunicariam, ou seja, não conseguiriam se entender. Hermes vem, justamente, para romper o diálogo entre surdos, fazendo emergir o sentido subjacente às mensagens humanas e divinas. Pelo seu trabalho de mediação, Hermes dá vida ao sentido imóvel que desde sempre habita as duas mensagens. Dar vida ao sentido, recriando-o, é tarefa principal desta figura, meio humana e meio divina. Por saber tomar parte de ambos os discursos, dos deuses e dos humanos, decifrando a linguagem de ambos, pode pôr em contato, um discurso com o outro.
Ora este é o aspecto hermenêutico fundamental - Hermes só pode cumprir adequadamente seu papel de mensageiro se for um bom tradutor. Precisa ser capaz de tornar compreensível a linguagem dos deuses aos humanos, do mesmo modo que deve fazer chegar aos deuses os sentimentos e as emoções humanas. Tamanha é a força e a potência da linguagem dos deuses que se ela chegasse de forma direta aos ouvidos humanos, isso lhes causaria surdez, impedindo-os de compreender a verdade, bondade e beleza da mensagem divina. Amedrontados pelo vigor da mensagem divina, os humanos iriam paralisar sua própria curiosidade. Sem fazer perder o esplendor da mensagem divina, Hermes, ao traduzi-la adequadamente para os humanos, atiça a chama de sua própria curiosidade. O mais importante talvez seja, do ponto de vista da hermenêutica como busca da mediação de sentidos, não propriamente o esplendor da mensagem divina, mas sim o trabalho incansável de mediação pedagógica realizado por Hermes e a própria chama da curiosidade humana.
Cabe ressaltar, neste contexto, a ambiguidade que constitui a condição de Hermes como tradutor de sentido, a qual brota de sua relação comunicativa intrínseca aos dois universos linguísticos distintos, o universo divino e o humano. De sua comunicação com os deuses, Hermes aprende o sentido universal da linguagem e sua pretensão infalível. Contudo, ao se confrontar com o sentido da linguagem humana, ele vê-se diante da finitude e falibilidade da linguagem, percebendo o próprio caráter transitório e incerto de sua condição de tradutor de sentido. Essa experiência de falibilidade na interpretação de sentido torna-se indispensável à formação da postura de Hermes, pois, ao se deparar com as limitações da linguagem humana, assume a transitoriedade inerente a sua própria interpretação.
Com esta reconstrução do sentido metafórico exercido por Hermes esperamos ter elucidado o trabalho de tradução como exercício pedagógico-formativo genuíno de mediação entre sentidos estranhos e inicialmente incomunicáveis entre si. Aproximar mundos distantes e estranhos, torná-los comunicáveis entre si e buscar, ao mesmo tempo, o sentido comum na diferença é o que caracteriza basicamente o trabalho do tradutor. Neste contexto, é possível perceber, já de uma maneira antecipada, o quanto a metáfora do tradutor como mediador de sentidos estranhos pode tornar-se fecunda para pensar o perfil e o papel do próprio sujeito pesquisador. Como um Hermes, o sujeito pesquisador possui a tarefa de intercambiar comunicativamente mundos diferentes entre si, fazendo emergir o esplendor e a curiosidade que os constituem. A condição de seu trabalho refere-se diretamente ao estranho, ou seja, àquilo que não lhe é familiar, exige-lhe por isso uma dupla capacidade, de estranhar-se a si mesmo, para romper com seu mundo familiar, e de compreender o estranho que se põe à sua frente, sempre como uma realidade ou situação diferente a qual ele próprio vive. Dessa capacidade humana de se deixar estranhar brota o distanciamento como postura investigativa adequada do sujeito pesquisador.
Estranhar-se a si mesmo e compreender o estranho que se lhe interpõe exige o exercício paciente da escuta, que leva o sujeito pesquisador a não se precipitar para dar razão apressadamente a só uma das mensagens. A escuta é a mola propulsora do estranhamento, porque permite ao sujeito pesquisador abrir sua mente e seu coração, primeiro, para si mesmo e, segundo, para o mundo que o cerca. Conduzindo à compreensão do estranho, a escuta traduz-se em curiosidade e põe em ação, deste modo, o espírito inquiridor do sujeito pesquisador. De outra parte, sua capacidade de ouvir permite-lhe construir a postura de serenidade e moderação e, como um juiz, pode tornar público o veredito, somente depois de ouvir atentamente todas as partes envolvidas e, o mais importante, após ter meditado longa e silenciosamente consigo mesmo. Contudo, o estranhamento curioso que brota da escuta ativa exige a capacidade do estar só consigo mesmo. Tal capacidade, enquanto caraterística da solidão intelectual, é autoimposta pelo sujeito pesquisador, para poder cumprir com o exercício de elaboração teórica, uma das coisas mais difíceis de ser alcançada na investigação.
Se o sujeito pesquisador pode ser tomado metaforicamente, de acordo com o sentido originário da hermenêutica, como tradução de sentido, o que significa traduzir sentido no âmbito da pesquisa bibliográfica? Qual é o perfil e papel do sujeito pesquisador na perspectiva hermenêutica? Para tratar destas questões precisamos dar um passo adiante em nossas considerações, focar, primeiro, em um aspecto da especificidade da pesquisa educacional, delineando, na parte final do ensaio, alguns princípios hermenêuticos que embasam a postura do sujeito pesquisador educacional.
Especificidade da educação
Fazer pesquisa em educação e, por conseguinte, pensar a formação do sujeito pesquisador, não é a mesma coisa do que pesquisar em outras áreas do conhecimento humano, como na agronomia, na engenharia ou na biologia. Talvez possamos pensar metaforicamente, por afinidade eletiva, a proximidade entre essas áreas: assim como o cultivo cuidadoso de uma planta ou o acompanhamento do desenvolvimento da vida orgânica em geral, o processo educacional formativo do ser humano depende de um kairós específico, ou seja, de um tempo próprio e de um momento oportuno para a ação os quais precisam ser respeitados. Neste sentido, se o pesquisador educacional quiser somente intervir e não construir um espírito paciencioso de abertura para também deixar acontecer livremente, ele acaba então corrompendo o próprio processo investigativo. Contudo, há um aspecto nuclear do ponto de partida do processo investigativo educacional que não é o mesmo do que nessas outras áreas, ou, ao menos, não é tomado por elas da mesma forma que se faz na educação. Tal aspecto refere-se ao ser humano e sua condição de historicidade. Problematizar em que medida a condição humana constitui o ponto de partida de questões educacionais é um ponto relevante, com o qual precisamos nos ocupar.
Reivindicar a especificidade da educação não significa a mesma coisa que requerer para ela uma essência ou exclusividade. A educação não é uma entidade monolítica que permanece a mesma ao longo do tempo. Também não possui um caráter a priori que a colocaria em uma posição independente das transformações históricas. Como resultado do agir humano-social, ela sofre as mudanças do tempo e entrelaça-se com as próprias transformações socioculturais. A educação é, neste sentido, o resultado da produção cultural humana, localizada espacial e temporalmente. Ou seja, assim como o próprio ser humano, a educação tem a sua historicidade.
Neste contexto, a pesquisa educacional precisa levar em consideração a condição humana em suas diferentes dimensões: agente, linguística e pensante. A condição agente é que torna o ser humano propriamente humano, pois é pela ação que ele transforma a si mesmo e seu ambiente. A ação no sentido pleno não é o simples movimento, por exemplo, de levantar a mão ou estender a perna. Outros animais também o fazem, mexendo músculos ou movendo órgãos de seu corpo, muitos deles com maior agilidade do que os próprios seres humanos. Mas, a ação humana pressupõe um dinamismo complexo que, no sentido mais elaborado, envolve sentimentos, emoções e ideias. A ação humana possui uma especificidade que a diferencia de meros movimentos reflexos e condicionados, a qual foi denominada de práxis por Aristóteles (1998). Trata-se, segundo ele, de uma forma específica de ação, cuja finalidade, diferentemente da episteme e da poiésis, reside nela mesma (Aristóteles, 1998).
A ação humana se dinamiza, quando se traduz em linguagem e pensamento. A linguagem é a principal forma de exteriorização da ação. Sem ela, a ação permaneceria um ato interiorizado, apenas introspectivo, e não faria o menor sentido para os outros e para o próprio sujeito. Ação e linguagem tornam possível a interação mediada simbolicamente e, com ela, a própria cultura, no sentido mais amplo. Além da ação gestual, o ser humano também é capaz, como mostrou Mead (1992), de ação simbólica. Diferentemente do gesto, o símbolo caracteriza-se pela capacidade de internalização ressignificada da reação que o outro contrapõe à ação desencadeada pelo próprio agente. O símbolo marca este vai e vem da ação humana que exterioriza sentido e absorve, modificando, a reação do outro em relação ao sentido emitido pelo sujeito agente.
Contudo, a capacidade de o agente de internalizar a reação que o outro manifesta em relação à sua ação inicial, atribuindo-lhe significado próprio, só é possível quando a ação simbólica se torna reflexiva. Melhor dito, é pela capacidade reflexiva que a ação se torna simbólica. É justamente, neste âmbito que ação, linguagem e pensamento formam entre si uma profunda unidade, dando origem à capacidade humana de reflexão. É preciso muito esforço de socialização e muita tarefa formativa, acumulando níveis cada vez mais complexos de aprendizagem, para que a ação humana atinja este nível em que a linguagem e pensamento se entrelacem profundamente. Agir, simultaneamente, falando e pensando é um nível complexo e altamente sofisticado da condição humana, resultado de muito trabalho formativo do sujeito sobre si mesmo, sempre na companhia influenciadora de outros seres humanos e do ambiente mais amplo. A educação nada mais é, neste sentido, do que o trabalho contínuo sobre si mesmo e sobre o ambiente, no qual se entrelaçam ação, linguagem e pensamento. Isso significa que a formação do sujeito pesquisador precisa levar em conta a especificidade da condição humana formativa, em todas essas três dimensões e o modo específico em que ocorre, em cada situação, o entrelaçamento entre elas.
Ação, linguagem e pensamento não constituem a essência da natureza humana, mas são sim, antes disso, aspectos constituintes da condição humana, que se modificam do mesmo modo como outras produções culturais e históricas do ser humano. É a condição da sociabilidade e da historicidade do ser humano que o permitem não ser um arame rígido, inflexível. São a perfectibilidade e plasticidade da condição que tornam possível a educabilidade do ser humano. Isto é preconizado pela mais alta tradição pedagógica, presente em autores como Rousseau (1999) e Dewey (2003). Em síntese, historicidade, perfectibilidade e plasticidade mostram a própria vulnerabilidade (fragilidade) da condição humana, que está na base da pesquisa educacional. Como veremos adiante, é desta condição vulnerável que brota o problema do sentido e da compreensão humana, os quais são o ponto de partida da formação do sujeito pesquisador.
A condição tripartite da ação, linguagem e pensamento, ancorada na historicidade e plasticidade da condição humana, impede que o próprio ser humano seja tomado simplesmente como “objeto” de investigação a ser descoberto. É justamente, neste ponto, que se evidencia a especificidade do campo investigativo educacional: a impropriedade de se tomar a condição humana, em suas diferentes dimensões, como “objeto” a ser diagnosticado e querer persegui-la de maneira, exclusivamente, experimental. Contudo, para que a pesquisa educacional possa tomar a condição humana de maneira mais ampla, que a impeça de incorrer neste reducionismo, ela precisa desenvolver terminologia e procedimento apropriados a sua conjuntura linguística. Nossa hipótese é que a pesquisa educacional encontra, na postura hermenêutica, ferramentas conceituais indispensáveis para tomar de maneira mais adequada possível a vulnerabilidade da condição. Assim, gostaríamos de justificar brevemente dois conceitos hermenêuticos importantes na formação do sujeito pesquisador: pré-compreensão e compreensão.
A pré-compreensão é uma noção importante, porque caracteriza a condição inicial do ser humano, sendo o ponto de partida de sua própria formação. Hans-Georg Gadamer, contrapondo-se a uma versão reducionista da tradição iluminista moderna, foi responsável por recuperar e dar vitalidade filosófico-pedagógica à noção de pré-compreensão. Em sua obra clássica Verdade e Método (Wahrheit und Methode) (Gadamer, 1999a), ela aparece associada ao preconceito. Contrariamente a uma posição estandarte do iluminismo moderno, presente também em pensadores esclarecidos como Kant e Hegel, Gadamer (1999a) afirma que, embora seja vontade do conhecimento, não podemos nos livrar de nossos preconceitos e que toda a compreensão parte dos preconceitos e, mesmo depois de tê-los supostamente superado, retorna novamente a eles.
Do significativo problema da pré-compreensão cabe destacar seu vínculo imediato com a visão de mundo do ser humano, caracterizando sua postura ambígua e tensional de fechamento e abertura. A pré-compreensão define, por um lado, a postura dogmática e pouca flexível que o ser humano adota frente a determinados temas ou comportamentos. Mas também ela se caracteriza pela abertura e pelo esforço de ir ao encontro do diferente, buscar compreendê-lo e tomá-lo como ele se apresenta. Em sua ação cotidiana, o ser humano adota, de maneira espontânea, essa dupla postura, fazendo-o oscilar rapidamente de um polo ao outro. É pela capacidade de perguntar, possibilitada pelo diálogo que torna possível tomar consciência da ambiguidade, buscando livrar-se dela sem poder excluir por completo a tensão que caracteriza o agir humano. O diálogo guiado pela pergunta já remete para o universo da compreensão.
A compreensão é seguramente o conceito mais importante e, ao mesmo tempo, mais difícil da tradição hermenêutica, reunindo inúmeros estudos em torno de si. Todos os grandes autores citados anteriormente, de Dilthey a Gadamer, ocupam-se com este conceito. Para nossos propósitos específicos, cabe destacar dois aspectos da noção de compreensão que estão interligados entre si e que, sem um deles, não haveria o outro. O primeiro refere-se à ideia de que compreender exige do sujeito um ir ao encontro consigo mesmo e ter que se colocar na situação. E isso significa ter que dar um sentido à sua própria situação, aos seus próprios questionamentos. É por isso que, para a hermenêutica, baseando-se justamente na noção de compreensão, não há pura objetividade, no sentido de que o intérprete (o sujeito investigador) pudesse se colocar totalmente de fora da situação. Uma vez iniciado o processo de interpretação, o sujeito já se encontra envolvido com a situação. O segundo aspecto refere-se ao fato, repetidamente acentuado por Gadamer, de que compreensão implica sempre conversação, ou seja, que só se põe no diálogo. Ela é a continuação de um diálogo que iniciou antes de nós e que continua depois de nós. Como afirma Gadamer, a compreensão é um colóquio que somos nós e que ocorre por meio de nós (Gadamer, 1999a).
Assim, pré-compreensão e compreensão implicam-se mutuamente, dando-nos a ideia de que desde sempre estamos, por meio do diálogo, em busca do sentido, o qual, devido a nossa condição humana de linguagem e historicidade, não se encontra em um só lugar, em nenhum dos polos da interpretação e nem é dado de uma vez por todas. Ele precisa sim ser reconstruído permanentemente, dentro da história humana e levado adiante pelo ato dialógico. É nesse sentido que Gadamer (2007, p. 385) ressalta que “a compreensão deve ser pensada menos como uma ação da subjetividade e mais como um retroceder que penetra num acontecimento da tradição, onde se intermedeiam constantemente passado e presente”.
Em síntese, a compreensão hermenêutica, na pesquisa educacional, impede que a condição humana seja tomada como “objeto” sólido de investigação nos mesmos termos de uma ciência experimental que o mensura, extraindo deles suas propriedades linguísticas e históricas. Ao contrário disso, a hermenêutica vincula diferentes dimensões da condição humana ao sentido e à compreensão, busca escapar dos padrões de medida e de uniformização e propõe como contraponto a noção de adequação, pois a condição humana não se deixa enquadrar neles. Por ser um sujeito agente, falante e pensante, que produz sentido compreensivo, o ser humano não pode ser tomado com a mesma fixidez e direcionamento com que se pode tomar experimentalmente um objeto ou um fato. Contudo, esse resultado tem um significado importante para a formação do sujeito pesquisador, não só do âmbito da pesquisa educacional ou das ciências humanas, mas também de outras áreas de pesquisa. Mesmo nas áreas em que se emprega habitualmente a terminologia do objeto de investigação, tomando-o experimentalmente, quem o faz é sempre o sujeito pesquisador, o qual não pode excluir do processo investigativo sua própria condição de ser humano. Nestes termos, o próprio cientista natural é um sujeito agente, falante e pensante, com a mesma historicidade (e vulnerabilidade) do pesquisador educacional. Também é um sujeito capaz de produzir sentido compreensivo que interfere inclusive no seu modo experimental de tratar o objeto. Ou seja, ao chamar atenção para o sentido compreensivo do pesquisador enquanto sujeito humano, a hermenêutica traz contribuições para a pesquisa em geral, independentemente da área do conhecimento humano.
Antes de apontar alguns princípios hermenêuticos que estão na base de formação do sujeito pesquisador, cabe referir, brevemente, três possíveis efeitos que hermenêutica traz para a pesquisa bibliográfica, diante da especificidade da educação. Como a pesquisa bibliográfica refere-se ao texto escrito, este precisa ser tomado antes de tudo como produto do ser humano. Isso pode parecer trivial, mas torna-se problemático quando se leva em consideração os aspectos constituintes da própria condição humana. Deste modo, a compreensão do texto escrito, que diz respeito imediatamente à relação entre autor e leitor, precisa levar em conta, em primeiro lugar, que o sentido compreensivo comum, ou seja, a fusão de horizontes, no sentido gadamereano, nunca escapa da historicidade que constitui a condição humana. Em segundo lugar, ao interpretar o texto, o leitor não pode abandonar, mesmo que o queira, seu horizonte de pré-compreensão, pondo-o em jogo no seu esforço de compreender o texto escrito. Por fim, em terceiro lugar, a relação entre autor e leitor é marcada pela especificidade do contexto no qual ambos estão inseridos. Autor e leitor fazem parte de um mundo social, com suas marcas culturais próprias, e o trabalho de interpretação precisa levar tal mundo em consideração. Isso conduz o leitor (o intérprete) a compreender-se a si mesmo para poder compreender não só o mundo do autor, mas também seu próprio mundo. Ou seja, “compreender o todo a partir do individual e o individual a partir do todo” (Gadamer, 2007, p. 385). Deste modo, os três efeitos acima referidos, resultantes da especificidade da educação, transformam-se em princípios de interpretação hermenêutica, ancorando-se na ideia geral de que toda a interpretação (compreensão), parte da pré-compreensão, transformando-se simultaneamente em autocompreensão.
Com base nas observações gerais sobre a especificidade da educação, podemos tratar agora, na última parte do ensaio, de alguns princípios hermenêuticos que orientam a formação do sujeito pesquisador.
Formação do sujeito pesquisador
Nosso breve recurso ao sentido etimológico da hermenêutica, associado à figura mitológica de Hermes, permitiu-nos formular, metaforicamente, a definição do sujeito pesquisador como mediador de sentidos. Após a problematização da especificidade da educação, da exposição de dois conceitos hermenêuticos fundamentais e de alguns princípios subjacentes à interpretação do texto escrito, podemos nos voltar agora, especificamente, para o problema da formação do sujeito pesquisador. Deste modo, o aporte da hermenêutica faz-se notar de maneira concreta na formação do sujeito pesquisador por meio de alguns princípios, os quais passamos a expor na sequência.
O primeiro princípio que orienta o sujeito pesquisador é a exigência para pôr em questão suas próprias pressuposições. Se de acordo com a hermenêutica, tudo o que o ser humano faz ou deixa de fazer está vinculado a sua pré-compreensão, igualmente ocorre com a postura do sujeito pesquisador. A formulação do problema inicial da investigação ocorre inteiramente colada com a pré-compreensão do sujeito, do mesmo modo que sua posterior reelaboração. Como a pré-compreensão é ontologicamente indispensável à condição humana do sujeito pesquisador e como esta (a pré-compreensão) possui, como vimos anteriormente, uma estrutura profundamente ambígua, ele precisa trazê-la à tona permanentemente, no processo investigativo, principalmente, na reelaboração da problemática inicial. Isso porque, “a compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias” (Gadamer, 2007, p. 356). É nesse sentido que, antes de se dirigir aos textos, deve-se examinar a pré-compreensão, trazendo-a à luz e buscando esclarecê-la. Em síntese, a postura de vigilância permanente das opiniões é uma condição indispensável da pesquisa educacional adequada.
O segundo princípio toca o coração da hermenêutica gadamereana, esclarecendo o modo de pôr em questão a pré-compreensão do sujeito pesquisador. Hans-Georg Gadamer o define da seguinte maneira: “Pois bem, persigo desde longo tempo o princípio metodológico fundamental de não empreender nada sem oferecer a prestação de contas histórico-conceitual” (Gadamer, 1999c, p. 88). Um dos aspectos que caracteriza a prestação de contas é a apropriação conceitual vagarosa que servirá de base para a justificação teórica do problema de investigação. Apropriar-se conceitualmente significa compreender a origem dos conceitos e o modo como eles se articulam entre si, ganhando vida no esclarecimento do problema do qual tratam. Deste modo, trabalhando com os textos delimitados (textos escritos), o sujeito pesquisador, ao esclarecer a procedência e articulação intelectual de suas ferramentas conceituais, é conduzido, simultaneamente, a questionar o mundo de sua própria pré-compreensão, enquanto leitor (intérprete) do próprio texto. Portanto, a prestação de contas histórico-conceitual é, se quisermos expressá-lo no sentido foucaultiano (Foucault, 2004), o exercício de si indispensável ao processo investigativo que conduz o sujeito investigador a transformar sua própria pré-compreensão e a transformar profundamente a si mesmo. Neste sentido, do mesmo modo que formação é autoformação, pesquisa também o é, neste sentido hermenêutico, auto pesquisa, pois remete à própria transformação do sujeito que investiga.
O terceiro princípio é olhar para a pesquisa bibliográfica como um exercício rigoroso de interpretação do texto. Ou seja, uma maneira pela qual o sujeito investigador transforma-se a si mesmo, ao colocar em questão suas pressuposições, quando consegue compreender adequadamente o texto. Tal princípio exige, portanto, perguntar de antemão pelo estilo do texto, averiguando onde repousa seu sentido. O difícil problema que se coloca aqui é o de reconstruir o sentido do texto, isso porque toda reconstrução pertinente é uma recriação do texto sem violentar o seu sentido original. Para tanto, algumas questões podem ser colocadas, como por exemplo: o que é um texto? Quem é seu autor? Quem é o intérprete? Como se constrói o sentido do texto? O que é propriamente a interpretação? Tais questões ganham especificidades próprias de acordo com o problema de investigação e, obviamente, com o estilo do próprio sujeito pesquisador.
O quarto princípio define, em certa medida, a natureza da interpretação e, ao fazê-lo, surgem pistas significativas para tratar das questões acima formuladas. Nesse princípio, a postura interpretativa do texto consiste em saber dialogar com o próprio texto. Ou seja, o diálogo é um princípio metodológico fundamental para definir a condição de autor e leitor e oferece os contornos intelectuais que definem o processo de reconstrução do sentido do texto. Torna-se decisivo aqui, então, a problematização da estrutura significativa do diálogo, sendo que para a hermenêutica dois aspectos entrelaçados entre si são importantes: a escuta e a pergunta. Saber ouvir é, como afirmamos antes, o espírito de abertura que põe eticamente o sujeito investigador na direção do outro. O aspecto constitutivo da escuta é o silencio, cujo sentido originário que influência muito Gadamer é a capacidade socrática do estar a sós consigo mesmo6. Saber estar a sós consigo mesmo é um momento indispensável do exercício do sujeito investigador, que constitui todas as etapas da pesquisa, especialmente, o momento da elaboração final do trabalho. É o momento da solidão intelectual necessária, na qual o sujeito pesquisador presta contas a si mesmo, da mesma forma em que exercita, intelectualmente, a prestação de contas histórico-conceituais. A pergunta brota por sua vez do próprio espírito de abertura proporcionado pela escuta ativa, introduzindo o espírito de curiosidade no exercício do sujeito pesquisador. Escutar e saber perguntar são, deste modo, duas disposições fundamentais que caracterizam a postura adequada do sujeito investigador.
O quinto princípio refere-se à finalidade da interpretação dialógica: saber ouvir o texto com o propósito de ir além de seu próprio sentido. Tal finalidade assinala a tensão que constitui o diálogo interpretativo do sujeito investigador com o texto investigado. Sem aprender a ouvir o sentido do texto, o sujeito pesquisador não consegue formular as ferramentas conceituais necessárias para tratar, adequadamente, o problema de investigação. Contudo, sem a coragem de ir além do texto, as próprias ferramentas conceituais seriam mera repetição do sentido do texto. Contudo, ir além do texto sem deturpar seu sentido intrínseco é uma das tarefas hermenêuticas mais difíceis. Neste contexto, tanto o “ir além” do intérprete como o “sentido intrínseco” ao próprio texto precisam ser constantemente problematizados. Harold Bloom elucida metaforicamente essa tensão, no âmbito da literatura clássica, com o emprego das expressões “angústia da influência” e “desleitura”: com a primeira significa a força poderosa que o texto clássico exerce primeiramente no leitor; com a segunda expressão, define a coragem do leitor, depois de muito exercício silencioso orientado pela escuta ativa, de se tornar independente do poder do texto. A desleitura caracteriza o momento propriamente criativo da interpretação dialógica (Bloom, 2012).
O sexto princípio apresenta a meta ideal da fusão de horizontes como forma de enfrentar a tensão constitutiva da interpretação dialógica que marca a relação entre leitor e texto. Não é um exercício da subjetividade apenas, mas uma intercessão entre o presente e o passado. A fusão de horizontes sustenta-se em um conceito atualizado de verdade, que contempla a falibilidade e a historicidade do conhecimento humano. Vê-se, agora, o quanto a reflexão antropológica sobre a condição humana feita anteriormente é importante para esclarecer os problemas inerentes à pesquisa em educação. A historicidade da condição humana mostra a inadequação de qualquer pretensão absoluta de verdade que possa estar subjacente tanto ao texto como à postura do leitor. Nem um e nem outro possui a última palavra, pois a verdade possível é provisória, precisando ser refeita e confirmada constantemente. Disso resulta a postura humilde a ser adotada pelo sujeito pesquisador, porque, além de não possuir a última palavra, sabe que a verdade possível a ser construída sobre o texto depende do modo de interlocução com o texto investigado.
Baseando-se na historicidade da verdade, a fusão de horizontes não é simples adesão ao texto e menos ainda sua destruição. Antes disso, é a maneira ideal de assegurar a originalidade do texto, impulsionando o exercício criativo do autor. Nas palavras de Gadamer (2007, p. 503), o ponto de vista do intérprete é determinante, mas não “como um ponto de vista próprio que se mantém ou se impõe, mas como uma opinião e possibilidade que se aciona e coloca em jogo e que ajuda a apropriar-se verdadeiramente do que diz o texto”. Isso significa que a fusão de horizontes se caracteriza pela postura de abertura que permite compreender o sentido como algo a ser construído dialogicamente na relação entre intérprete e texto. O sentido não é dado de antemão e nem reside somente em um dos polos, mas é construído na conversação entre leitor e texto. No contexto específico da pesquisa, o trabalho de dissertação, de tese e a própria produção textual mais ampla só alcançam adequação válida, quando conseguem equilibrar os dois horizontes, ou seja, a originalidade do texto e a criatividade do sujeito pesquisador.
O sétimo princípio enfatiza outro aspecto de natureza tanto epistemológica como metodológica da interpretação. Considerando a compreensão de sentido que brota da historicidade humana como núcleo constitutivo da pesquisa educacional, é a adequação e não a medida o critério de verdade mais satisfatório para a pesquisa educacional. Por ser herdeiro da longa tradição hermenêutica que defende a especificidade das ciências humanas em relação às ciências naturais, Hans-Georg Gadamer busca atualizar o debate sobre este tema, ao insistir no aspecto altamente problemático dos critérios de mensuração para dar conta da condição humana. A objetividade pretendida pelos padrões de medida da ciência moderna, de base físico-matemática, não consegue apreender aspectos específicos do sentido da condição humana. Em uma das conferências proferidas a médicos alemães, Gadamer diz, então, que a adequação é mais apropriada, porque pode alcançar o que permanece incompreendido pelos critérios de medida. Assim afirma ele: “O verdadeiro sentido significativo do adequado é precisamente que ele representa algo que não pode se definir. Todo o sistema do processo de equilíbrio do organismo e do próprio meio social do ser humano possui algo de adequabilidade” (Gadamer, 2006, p. 138).
O adequado é, desse modo, o balanço do equilíbrio, mostrando que a verdade e, no caso, a cura no âmbito da medicina, não reside somente em um dos polos, na habilidade médica ou nos cuidados do paciente. Ora, “balanço do equilíbrio” é uma metáfora apropriada para compreender também a postura interpretativo-dialógica do sujeito pesquisador, em relação ao texto investigado, pois o sentido que brota da relação dialógica, não é dado de antemão e nem reside somente em um dos polos, no texto ou no intérprete.
O oitavo princípio é ter a linguagem como a única dimensão a ser apreendida no texto. Isso porque, segundo Gadamer (2007, p. 612), “o ser que pode ser compreendido é a linguagem”. Nesse sentido, o que apanhamos no texto é não é uma objetividade, mas uma suposição de objetividade, ou seja, uma dimensão de objetividade já interpretada, jamais uma objetividade determinante independente da linguagem, como em outras abordagens. Isso significa que não existe uma verdade a ser aprendida além do campo linguístico, pois tudo é interpretação. Qualquer compreensão sempre será fruto de uma produção linguística, resultado da fusão de horizontes entre o universo linguístico do intérprete e o universo já interpretado do texto. Nunca será, portanto, a apropriação de um construto material histórico ou de uma verdade sobre algum fato dado.
Por fim, para concluir, queremos referir ainda um último princípio hermenêutico que precisa estar na base da formação do sujeito pesquisador. Trata-se da necessidade de vincular a interpretação do sentido do texto com o problema de investigação. Esta exigência tem um sentido prático, relacionado ao contexto de elaboração do trabalho de investigação. O professor pesquisador de pós-graduação, por exemplo, aprende, depois de sua própria experiência de elaboração e, também, depois de alguns anos de orientação, que uma boa dissertação ou tese começa pela posição adequada do problema de investigação. Ora, tal posição exige do pesquisador um duplo movimento intelectual, intimamente conectado entre si: a construção de ferramentas conceituais sólidas, resultado da pesquisa bibliográfica cuidadosa, e a formulação de uma pergunta investigativa adequada, capaz de delinear os traços gerais do fio condutor a ser perseguido. Isso mostra, então, que todos os princípios hermenêuticos acima descritos podem contribuir decisivamente para o aprofundamento do problema de investigação, capacitando, teórica e metodologicamente, o sujeito pesquisador para expor com adequabilidade os resultados de sua pesquisa.
Considerações Finais
Com nosso ensaio pretendemos tecer considerações hermenêuticas sobre a problemática concernente à formação do sujeito pesquisador diante da exigência de adequabilidade conceitual da pesquisa em educação. Do sentido etimológico da palavra hermenêutica extraímos a metáfora do sujeito pesquisador como mediador de sentidos. Na sequência, problematizamos a especificidade do campo, mostramos o contexto complexo no qual se insere a pesquisa bibliográfica, considerando a historicidade da condição humana e alguns de seus aspectos constituintes. Por fim, seguindo os resultados anteriores, delineamos alguns princípios hermenêuticos que podem servir de referência à formação do sujeito pesquisador, com foco no balanço do equilíbrio como meta ideal para assegurar a originalidade do texto e possibilitar, simultaneamente, a formação criativa do sujeito investigador.
O percurso desenvolvido tornou ainda mais clara a ideia de que a formação do sujeito pesquisador, quando pensada na perspectiva hermenêutica, precisa enfrentar a tensão que cruza o trabalho interpretativo dialógico do leitor com o texto. Partindo da pré-compreensão, a formação precisa evoluir para a compreensão, a qual já é em sua origem autocompreensão. Desse modo, na perspectiva hermenêutica, a formação do sujeito pesquisador transforma-se em autoformação, uma vez que é resultado do trabalho intenso que o sujeito faz sobre si mesmo e provoca sua própria transformação. O mais importante, nesse processo, não é o resultado que pode ser mensurado pela métrica convencional, mas sim o balanço do equilíbrio o qual gera o sentido de adequabilidade das coisas.
Em síntese, a relevância atribuída aos cuidados interpretativos na pesquisa bibliográfica, diante da especificidade da pesquisa em educação, é um compromisso da formação com a adequabilidade teórica e conceitual do sujeito pesquisador. No sentido hermenêutico, o sujeito pesquisador passa a ser responsável pela confiabilidade da sua produção, ao comprometer-se com a rigorosidade conceitual e interpretativa dos textos, bem como a legitimidade da sua elaboração. Por fim, na perspectiva dos princípios hermenêuticos esboçados acima, podemos dizer que o trabalho intelectual intenso na elaboração da dissertação e tese são formas genuínas de transformação do sujeito pesquisador, “adequando-o” para viver melhor consigo mesmo e com o mundo ambiente do qual faz parte.