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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.29  Campinas  2024

https://doi.org/10.24220/2318-0870v29a2024e12077 

ORIGINAL

Abandono e evasão escolar: emergência da busca ativa como política pública de educação pós-pandemia

School dropout and evasion: emergency of active search as a post-pandemic public education policy

Marco Wandercil, Conceituação, Análise formal, Supervisão, Escrita – rascunho original, Escrita – revisão e edição1 
http://orcid.org/0000-0002-9295-1051

Sanny Silva da Rosa, Análise formal, Metodologia, Supervisão, Escrita – revisão e edição1 
http://orcid.org/0000-0001-5044-6156

Nonato Assis de Miranda, Análise formal, Metodologia, Supervisão1 
http://orcid.org/0000-0001-6592-3381

Eliana Josefa da Silva, Conceituação, Investigação, Escrita – rascunho original1 
http://orcid.org/0009-0003-5366-5145

Maurício Costa Carvalhinhos, Investigação, Escrita – rascunho original1 
http://orcid.org/0009-0002-5828-3640

1Universidade Municipal de São Caetano do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação. São Caetano do Sul, SP, Brasil.


Resumo

Diante do crescimento das taxas de abandono e evasão escolar na educação básica verificados nos dois anos da pandemia de COVID-19, o artigo discute a busca ativa como estratégia de garantia do direito de acesso à educação e permanência na escola. A partir de uma breve revisão dos conceitos e fatores associados ao binômio abandono-evasão, o texto analisa os dados da Pnad-Contínua de 2022 e do Censo Escolar de 2023, colocando em evidência o cenário de insucesso e exclusão escolar dos grupos mais vulneráveis de estudantes matriculados nos sistemas públicos de ensino. Recorrendo ao exemplo do projeto de busca ativa em um município do ABC Paulista, aponta-se a potencialidade desta metodologia social para a redução das desigualdades educacionais nos territórios e de sua emergência como política pública de educação no contexto pós-pandêmico.

Palavras-chave Abandono e evasão escolar; Busca ativa escolar; Pós-pandemia; Vulnerabilidade social

Abstract

Given the growth in school abandonment and school dropout rates in basic education seen in the two years of the COVID-19 pandemic, the article discusses active search as a strategy to guarantee the right to access education and remain in school. Based on a brief review of the concepts and factors associated with the abandonment-evasion binomial, the text analyzes data from the 2022 Pnad-Contínua and the 2023 School Census, highlighting the scenario of failure and school exclusion of the most vulnerable groups of students enrolled in public school systems. Using the example of the active search project in a municipality in ABC Paulista, the potential of this social methodology for reducing educational inequalities in territories and its emergence as a public education policy in the post-pandemic context is pointed out.

Keywords School dropout and evasion; Active school search; Post-pandemic; Social vulnerability

Introdução

Desde o dia 11 de março de 2020, quando Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) fez um pronunciamento informando que a COVID-19 foi caracterizada como uma pandemia. Logo, ficou evidente que o mundo e a vida das pessoas passariam por grandes transformações. Mesmo com todas as medidas sanitárias recomendadas pela OMS para evitar a propagação do vírus Sars-Cov2, até 2022, a pandemia de COVID-19 já havia tirado a vida de mais de 15 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, a relutância do então governo federal em oferecer respostas efetivas à grave crise sanitária levou a óbito mais de 700 mil brasileiros, enlutando um sem número de estudantes.

No Brasil, a pandemia desorganizou a vida escolar, principalmente das escolas públicas. Milhões de crianças, jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade social não tiveram condições de acompanhar as atividades escolares remotamente. Quando a escola se transferiu para dentro das casas dos estudantes, as precárias condições de vida e moradia das famílias se tornaram visíveis.

Muito se falou sobre as dificuldades tecnológicas dos sistemas públicos de ensino para viabilizar o Ensino Remoto Emergencial (ERE). No entanto, diante da ameaça do vírus, a prioridade era preservar vidas, o que incluía garantir o direito básico à alimentação diária e a moradias dignas, proporcionando às famílias condições mínimas para manter uma convivência saudável e organizar suas rotinas de trabalho e estudo.

O agravamento da crise econômica levou muitas crianças e adolescentes a ingressarem precocemente no mundo do trabalho. O alto custo dos aluguéis obrigou famílias inteiras a viverem nas ruas ou migrarem para seus locais de origem em busca de redes de apoio. Circunstâncias como essas explicam o aumento do abandono e a evasão escolar durante a pandemia. Uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2021) revelou que, em outubro de 2021, 5 milhões de estudantes brasileiros estavam fora da escola. Além disso, os dados do Censo Escolar de 2023 (Brasil, 2024) indicam que 68 milhões de pessoas com mais de 18 anos não concluíram a educação básica e não estão estudando. Reverter esta situação exige ações imediatas e políticas públicas consistentes.

Refletindo sobre as possíveis reconfigurações da escola no pós-pandemia, Bernadete Gatti (2020) indagou se as situações vividas naquele período permaneceriam na memória coletiva a ponto de transformar os modos de conceber a vida, a relação com os outros e o próprio sentido da educação. “Tomará corpo em agenda de primeira linha, repensar o bem comum diante de tanta desigualdade aviltante revelada, da incapacidade de tantos, especialmente de gestores públicos ou privados, de perceberem o todo da situação?” (Gatti, 2020, p. 30).

As provocações da autora nos instigam a levantar alguns questionamentos: (i) que medidas deveriam ser tomadas pelos poderes públicos com o intuito de mitigar os fenômenos do abandono e da evasão escolar?; (ii) a busca ativa escolar pode se configurar como política pública capaz de reduzir o número de estudantes que não concluem a escolaridade básica?, e (iii) frente às estruturais desigualdades socioeconômicas, regionais, raciais e de gênero existentes no país, quais seriam os limites e possibilidades desta estratégia para reverter este quadro da educação brasileira?

Este artigo visa discutir estas questões a partir de dados secundários que evidenciam o impacto da pandemia de covid-19 no abandono e evasão escolar no Brasil, como os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023a) e do Censo Escolar de 2022 (Brasil, 2024), e da análise documental do projeto “Nenhum a Menos”, implementado pelo município de Santo André, estado de São Paulo, no âmbito do Programa “Busca Ativa Escolar”, desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (2022), em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).

A escolha deste objeto se justifica por se tratar de uma metodologia política que, ao mapear casos individuais, reúne informações abrangentes e essenciais ao planejamento de ações voltadas ao atendimento das necessidades das populações de maior vulnerabilidade social. Parte-se da hipótese que a busca ativa escolar pode ser uma estratégia eficaz de suporte personalizado que aumenta a probabilidade de reintegração do estudante ao sistema educacional.

Para cumprir o objetivo proposto, o primeiro tópico discorre sobre o ciclo que conduz ao abandono e à evasão escolar. O segundo descreve o cenário dos desafios da educação no contexto pós-pandemia, com base nas pesquisas oficiais, cujos dados sustentam a proposição, a seguir, de que a busca ativa escolar pode se configurar como política pública de combate à evasão escolar e às desigualdades crônicas da sociedade brasileira. O último tópico traz como caso ilustrativo da potencialidade desta política o projeto “Nenhum a Menos” da Secretaria de Educação, implementada no município de Santo André, em São Paulo.

Retenção, abandono, evasão: um ciclo recorrente de fracasso escolar

Para falar de evasão escolar, é preciso compreender as relações entre os elementos do ciclo de fracasso escolar, que se inicia com a retenção, evolui para a distorção idade-série e culmina com o abandono e/ou saída definitiva do aluno da escola. Para Silva e Araújo (2017, p. 37), as formas de interpretação desse fenômeno “não permitem chegar a uma definição precisa de “evasão e abandono escolar”, uma vez que esta requer uma compreensão das relações entre os motivos de ingresso e a trajetória dos permanecentes, dos desistentes e egressos desse público”.

Na mesma direção, Nadai e Santos (2018) observam que não é tarefa simples reconhecer a sutil diferença entre estes termos que se articulam na trajetória que compromete o futuro pessoal, social e profissional dos sujeitos. Dore e Lüscher (2011, p. 775) nos ajudam a esclarecer o porquê dessa ambiguidade:

A evasão escolar tem sido associada a situações tão diversas quanto a retenção e repetência do aluno na escola, a saída do aluno da instituição, a saída do aluno do sistema de ensino, a não conclusão de um determinado nível de ensino, o abandono da escola e posterior retorno. Refere-se ainda àqueles indivíduos que nunca ingressaram em um determinado nível de ensino, especialmente na educação compulsória, e ao estudante que concluiu um determinado nível de ensino, mas se comporta como um dropout2.

Devido às imprecisões terminológicas, é conveniente recorrer às definições do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), segundo o qual o abandono é diferente de evasão (Brasil, 2014). Para estabelecer esta distinção, o Inep se apoiou no trabalho de uma Comissão Especial de Estudos sobre Evasão nas Universidades Brasileiras, tendo como entendimento:

[...] a saída definitiva do aluno de seu curso de origem sem concluí-lo é considerada evasão do curso e a evasão da instituição é entendida como o desligamento da instituição na qual o estudante estava matriculado. É entendida como evasão do sistema quando o aluno abandona o ensino de modo geral

(Brasil, 2014, p. 16).

No que diz respeito aos fatores que concorrem para a interrupção dos estudos, estes escapam ao controle das instituições. Diante de tal complexidade, o Inep (Brasil, 2014) classificou as possíveis causas da evasão em três categorias3: (a) fatores individuais; (b) fatores internos às instituições, e (c) fatores externos às instituições. Importante salientar que os motivos da evasão abrigados nestas categorias podem variar de acordo com a etapa e/ou modalidade do ensino que estiver sendo examinada.

Uma das dificuldades de identificação das causas da evasão é que esta “decisão” geralmente se associa a um conjunto de situações que nem sempre são reveladas pelos estudantes (Araújo; Santos, 2012) ou por seus familiares. Os motivos que levam ao abandono definitivo da escola são muitos e vários deles se sobrepõem. Porém, há certo consenso entre os pesquisadores (Dore; Lüscher, 2011; Figueiredo; Salles, 2017; Fiorotti; Rosa, 2022; Miranda; Tozzi; Curado, 2023; Santos Baggi; Lopes, 2011) de que as razões invariavelmente passam por questões de ordem socioeconômica, institucionais e/ou subjetivas.

Paro (1996) constatou que os alunos evadidos das escolas públicas são os que mais sofrem os efeitos da vulnerabilidade social: fome; carência cultural e afetiva; falta de recursos materiais e psicológicos para estudar; necessidade contribuir com o orçamento familiar, entre outros. Tais injustiças sociais se consubstanciam em riscos à garantia dos direitos fundamentais do cidadão, estabelecidos na Constituição Federal de 1988, que por isso dependem de medidas assecuratórias dos poderes públicos para tentar escapar do ciclo vicioso do fracasso escolar (Brasil, 1988). Em tempos de crise, o ciclo tende a se acentuar, razão pela qual combater o abandono e a evasão escolar tornou-se um dos grandes desafios da educação brasileira no contexto pós-pandemia.

Abandono e evasão são termos relacionados à desistência da escola, no entanto, do ponto de vista formal, são conceitos distintos. Enquanto o abandono escolar se caracteriza pela interrupção da frequência às aulas durante o ano letivo, a evasão escolar se configura com o desligamento definitivo do estudante da instituição de ensino, sem intenção de retorno. A evasão significa, portanto, a saída permanente do estudante do sistema educacional. No Brasil, ambos os fenômenos se articulam e são agravados, geralmente, por fatores associados às condições econômicas e/ou a falta de apoio familiar e social para a permanência do estudante na escola (Oliveira; Nóbrega, 2021; Ramos; Gonçalves Júnior, 2024).

Exclusão escolar: desafios da educação no contexto pós-pandêmico

De acordo com o relatório publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em abril de 2021, a evasão adquiriu centralidade no debate das políticas públicas de educação. Em 2019, havia cerca de 1,1 milhão de crianças e adolescentes, entre 4 e 17 anos, fora da escola. Em 2022, pouca coisa havia mudado. O Censo Escolar de 2023 (Brasil, 2024) apontou que 1,04 milhão de estudantes dessa faixa etária continuavam sem estudar.

É nítido que os maiores índices de exclusão escolar se concentram na faixa da educação infantil (4 e 5 anos) e no Ensino Médio (14 a 17 anos). A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023a) apontou que a taxa de frequência das crianças de 4 e 5 anos foi 1.2% menor, em 2022 (91,5%), em relação à verificada em 2019 (92,7%). Considerando que o total de crianças nessa faixa etária é de cerca de 6 milhões, chega-se ao total de 512.658 crianças de 4 e 5 que permaneciam fora da escola em 2022. Dos 14 aos 17 anos, eram de 461.716 adolescentes.

Dados da pesquisa do Unicef mostraram que, em 2019, ao menos 32 milhões de meninos e meninas (63% do total) viviam em estado de pobreza; em 2022, o percentual de crianças e adolescentes com alguma privação em relação ao direito à educação dobrou em relação a 2020: de 1,9% para 3,8%, respectivamente (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2023). Os mais afetados são os que pertencem aos grupos mais vulneráveis: crianças e adolescentes negro(a)s e indígenas, residentes nas regiões Norte e Nordeste do país.

Vale destacar um dado curioso detectado pela Pnad Contínua 2019/2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023a) acerca dos motivos alegados pelos pais e/ou responsáveis por crianças de 4 e 5 para a não frequência à escola: em 2019, quase a metade (48,5%) alegava ser uma “por opção” da família; em 2022, este percentual caiu, mas, ainda assim, continuou alto (39,8%), visto que a pré-escola é etapa obrigatória da educação básica desde 2009.

De acordo com o Censo Escolar de 2023 (Brasil, 2024), o total de crianças matriculadas na pré-escola foi de 5.338.282, de onde se conclui que a meta do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) de universalizar o atendimento da pré-escola até 2016 não apenas não foi alcançado, como permanece um grande desafio a ser enfrentado.

No ensino fundamental, etapa praticamente universalizada desde 2016, também não houve mudanças significativas. Em 2022, 26,2 milhões de estudantes (99,4%) frequentavam a escola, praticamente metade deles (49,3%) em escolas municipais. Estes números mostram o peso da responsabilidade dos municípios na garantia do direito ao acesso e à permanência escolar. Mas, no que diz respeito ao direito de aprender na idade certa, os dados não são animadores. A Figura 1 sugere o nítido crescimento da distorção idade-série, principalmente a partir do 3º ano desta etapa, com evidente desvantagem para os meninos, dado observado no Censo Escolar de 2023 (Brasil, 2024).

Fonte: Elaborado pelos autores com base no Censo Escolar da Educação Básica de 2023 (Brasil, 2024).

Gráfico 1 Distorção idade – série na rede pública, Ensino Fundamental segundo o sexo. 

A respeito do “atraso” no processo de escolarização das crianças a partir dos 6 anos de idade, no contexto da pandemia, vale destacar o que diz o relatório da Pnad Contínua de 2022:

É importante observar que a idade de 6 anos concentra a maior queda na Tafel4 para o ensino fundamental, como esperado, por ser a idade limítrofe entre a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental. Para essa idade, a Tafel passou de 81,8%, em 2019, para 69,0%, em 2022, o que significa um aumento na proporção de crianças de 6 anos que deveriam ter ingressado no ensino fundamental, mas permaneceram na educação infantil (29,7%) ou não frequentavam escola [...]

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023b, p. 103).

Como efeito dominó, a pandemia também levou ao atraso da escolarização das crianças com 7 anos ou mais, como destaca o mesmo relatório:

A tendência de aumento do atraso escolar no início do ensino fundamental, após os dois primeiros anos da pandemia de COVID-19, também foi observada a partir de dados do Censo Escolar da Educação Básica do INEP. A taxa de distorção idade-série do 1o ano do ensino fundamental mede a proporção de crianças com idade acima da esperada para essa série, ou seja, crianças com 7 anos de idade ou mais, cursando o 1o ano desse nível escolar. Nesse sentido, o indicador se refere ao atraso escolar de crianças de 7 anos ou mais, que não deveriam estar no 1o ano do ensino fundamental, mas no 2o ano ou acima, seja porque repetiram aquele ano, seja porque ingressaram no ensino fundamental com idade acima da esperada

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023b, p. 105).

Apesar do grupo etário de 15 a 17 anos ter sido o único que manteve a trajetória de crescimento da frequência escolar entre 2019 e 2022 – de 89,0% para 92,2% respectivamente –, no Ensino Médio, os desafios não são menores. Nesta etapa, o aumento do fluxo escolar nos dois anos anteriores contribuiu para esse crescimento. Mas há que se considerar que, em 2022, dos 9,8 milhões de jovens de 18 a 29 anos que haviam abandonado a escola, 462 mil tinham entre 15 e 17 anos. Destes, apenas 22,2% completaram o ensino fundamental, e 53,3% sequer chegaram ao final desta etapa, o que significa que 75,5% dos jovens entre 15 e 17 anos não ingressaram no Ensino Médio em 2022.

Os indicadores da Pnad Contínua de 2022 adquirem outra dimensão e significado quando se destacam as desigualdades por sexo e cor/raça. Dos 9,5 milhões de jovens entre 14 e 19 anos que não completaram o Ensino Médio – seja por abandono, seja porque nunca frequentaram a escola –, 58,8% são homens, e 70,9% são pretos ou pardos (Brasil, 2024). Compõem este mesmo cenário os estudantes matriculados na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). De acordo com o Censo Escolar de 2023, pretos/pardos representam 77,7% das matrículas da EJA no nível fundamental; e 70,7% no nível médio. Em contraste, os alunos brancos correspondem a 19,6% no nível fundamental e 26,9% no nível médio.

Diante do cenário descrito nas três etapas da educação básica, a busca ativa dos que não frequentaram a escola durante e após a pandemia configura-se como política emergente de enfrentamento às injustiças sociais evidenciadas nas estatísticas oficiais.

Busca ativa: política pública emergente no contexto pós-pandêmico

A busca ativa reflete uma abordagem política de trabalho no território, entendida como “um todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes [...] convidando a pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação socioespacial e o mundo” (Santos, 2000, p. 104).

No Brasil, a busca ativa surgiu no âmbito das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) como estratégia de atenção à Saúde Mental e Atenção Básica e como prática de cuidado transportadas para os espaços de vida dos cidadãos. O pressuposto desta abordagem, segundo Lemke e Silva (2010, p. 284), é que “uma prática de cuidado só pode ser consequente se for relativa ao sujeito em seu contexto existencial”. Na mesma direção, Arregui, Koga e Diniz (2018, p. 1415) argumentam que:

Territórios e políticas sociais são elementos mediativos essenciais à regulação e garantia de proteção e cidadania. São capazes de movimentar a apreensão sobre as particularidades dos sujeitos de cada lugar, pois, ao compreender territorialmente as demandas por seguranças socioassistenciais, pode-se orientar com nitidez o planejamento e a execução das políticas sociais, sobretudo, da assistência social.

Nos anos da pandemia, a busca ativa se configurou como uma política pública emergente no campo da educação. De acordo com o Unicef, com base em números aferidos pela Pnad Contínua de 2020, cerca de 13,9% dos estudantes com idades entre 6 e 17 anos não participaram das aulas remotas em 2020, principalmente os residentes nas regiões Norte (28,4%) e Nordeste (18,3%), conforme detalhado na Tabela 1. Conclui-se, portanto, que 5,8 milhões de estudantes matriculados em instituições públicas ficaram sem aula no primeiro ano da pandemia (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2021).

Tabela 1 Distribuição de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos segundo a condição de não frequência à escola, por Grandes Regiões, 2020. 

Regiões Fora da escola ou sem atividades escolares
6 a 10 anos   11 a 14 anos   15 a 17 anos   Total
N % N % N % N %
Norte 0.453.282 26,9   363.948 27,3   0328.957 32,4   1.146.187 28,4
Nordeste 0732.211 16,1   554.918 15,7   0699.475 25,3   1.986.604 18,3
Sudeste 0659.220 10,8   385.775 08,6   0403.118 11,8   1.448.113 10,3
Sul 0105.791 05,2   051.149 03,5   083.875 06,9   0240.815 05,1
Centro-Oeste 0128.284 09,9   056.295 06,0   068.997 09,3   0253.575 08,5
Brasil 2.078.788 13,2   1.412.085 12,0   1.584.422 17,3   5.075.294 13,9

Fonte: Elaborada pelos autores com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Pnad (2023a) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (2021).

Nota: Foram considerados não frequentando a escola crianças e adolescentes de 6 a 17 anos que declararam não frequentar, ou que frequentavam a escola, mas não tiveram atividades escolares disponibilizadas na semana anterior à entrevista.

Estes números, detalhados por raça/cor, apenas confirmam as persistente desigualdades raciais do país: 71,3%, dos excluídos das atividades escolares remotas, em todas as faixas etárias, eram pretas(os), pardas(os) ou indígenas, sendo estes últimos os mais prejudicados.

Nesse contexto, o Unicef, em parceria com União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e com o apoio do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS) e do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (CONASEMS), desenvolveu o projeto Busca Ativa Escolar em Crises e Emergências, com o objetivo de apoiar governos estaduais e municipais no combate ao abandono e à evasão escolar. De acordo com a organização, “até julho de 2020 mais de 3.160 municípios e 16 estados haviam aderido à estratégia, os quais estão atualmente em diferentes estágios de implementação” (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2024a, p. 1).

A Busca Ativa Escolar é uma estratégia apoiada em uma metodologia social, com emprego de ferramentas tecnológicas, disponibilizadas em uma plataforma digital, “que funciona como um grande banco de dados que facilita a comunicação entre as áreas, armazena dados importantes sobre cada caso acompanhado e apoia na gestão da criança e do adolescente no município e/ou estado” (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2024b, p. 1).

A eficácia desta estratégia depende de políticas intersetoriais, envolvendo as secretarias de educação, de assistência social e saúde no planejamento, execução e monitoramento de cada etapa do processo. A operacionalização do sistema pressupõe ações integradas entre os gestores políticos, coordenadores operacionais, agentes comunitários, técnicos verificadores e supervisores institucionais no processo de identificação e registro dos casos de alerta e no de averiguação dos motivos do abandono, a fim de realizar as intervenções necessárias ao retorno e à permanência dos alunos nas escolas (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2022).

Tais ações, focadas no território, envolvem visitas às residências das famílias, entrevistas com pais e/ou responsáveis pelos estudantes, entre outras técnicas utilizadas na coleta de informações que permitem estimar os riscos de evasão escolar e amparar os que já se encontram fora do sistema de proteção social.

Conhecer as causas do abandono e combater a evasão escolar pós-pandemia permanece como um desafio que exige políticas públicas coordenadas de forma persistente. Considerando a Convenção sobre os Direitos da Criança, e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2030 das Nações Unidas, o Unicef estabeleceu 27 recomendações aos gestores públicos e tomadores de decisão no âmbito dos estados e municípios para que pudessem agir no combate à pobreza e à exclusão social. De acordo com o documento (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2023, p. 87), é preciso:

Implantar com urgência políticas de busca ativa escolar e de retomada da aprendizagem, em especial da alfabetização - Encontrar cada um(a) dos(as) milhares de crianças e adolescentes fora da escola e atuar, de forma intersetorial, para possibilitar o início ou o retorno à escolarização, e a permanência deve ser prioridade dos municípios e estados. Cada área da política pública pode - e deve - contribuir, dentro de suas próprias rotinas, para o enfrentamento da exclusão escolar.

Este trabalho tem demandado a mobilização e o comprometimento de todos os atores da escola – equipes gestoras, docentes, funcionários administrativos e de apoio escolar e da comunidade em geral. O trabalho envolve ainda agentes públicos que integram a Rede de Proteção Social, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Conselhos Tutelares, Ministério Público, entre outros.

Apesar do reconhecimento da eficácia da busca ativa no campo da Educação, notadamente pelo fato de ter sido implementada em vários municípios, ela ainda não foi regulamentada em âmbito federal. Em 2021, foi apresentado, pela Deputada Dorinha Seabra Rezende (DEM/TO), o Projeto de Lei n° 2.297/21, que institui a Política Nacional de Busca Ativa das crianças e jovens em idade própria para a educação básica obrigatória. O projeto busca assegurar o acesso universal das crianças e jovens de 4 a 17 anos à educação básica obrigatória nos termos da legislação vigente. Em setembro de 2023, o PL foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, mas não avançou por ausência de um relator.. No tópico a seguir, vamos analisar como esta política tem sido realizada na experiência da rede municipal de Santo André.

Busca ativa escolar no município de Santo André

Santo André, município localizado na região do Grande ABC paulista, tem uma população de 748.919 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2024). Sua rede municipal de ensino conta com 118 equipamentos escolares, dos quais 44 são creches (0-3 anos); 5 atendem exclusivamente a pré-escola (4-5anos), e 65 o Ensino Fundamental e Educação Infantil (pré-escola). Destes últimos, 23 unidades escolares oferecem a modalidade EJA. No todo, a rede municipal de Santo André atende 40.169 alunos, incluindo matrículas de Educação Especial e EJA.

Seguindo as legislações emergenciais, o município declarou estado de calamidade pública em 23 de março de 2020 (Santo André, 2020). Daí em diante, as escolas permaneceram fechadas aos alunos até o mês de outubro de 2021, quando a Secretaria Municipal de Educação (SME) determinou o retorno presencial, em regime de rodízio, de todas as unidades da rede, por meio da Resolução n° 12/2021 (Santo André, 2021). No entanto, somente no começo do ano letivo de 2022 é que todos os alunos retornaram, efetivamente, às aulas presenciais.

Alguns estudos (Fiorotti; Rosa, 2022; Rosa; Martins, 2021) discorreram sobre as ações das escolas da rede de Santo André para dar continuidade às atividades pedagógicas de forma remota, bem como as percepções dos profissionais de ensino sobre as iniciativas da gestão municipal durante a pandemia. Um dos pontos destacados nesses estudos foi a forte preocupação da SME em monitorar a frequência dos alunos, considerando os contatos feitos com os alunos/famílias através do WhatsApp e/ou as entregas e devolutivas das atividades impressas aos seus responsáveis na porta das escolas, ou em visitas às suas residências. Na maioria dos casos, estas evidências não foram suficientes para garantir o direito de acesso à escola e às aprendizagens, como demonstram as estatísticas oficiais (Brasil, 2024; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023a; 2023b).

Nesse contexto, em novembro de 2021, o município lançou o Programa ‘Nenhum a Menos’, voltado à busca ativa escolar. De acordo com a Folha do ABC, “O programa tem como finalidade garantir a permanência dos alunos nas escolas a partir da ação de 33 assistentes sociais que, em casos de evasão, irão em busca do aluno, identificando os motivos que levou o estudante a evadir ou abandonar a escola” (Santo André lança [...], 2021, online).

As ações do “Nenhum a Menos” começam com o monitoramento da (in)frequência das crianças pelos professores. Mediante três faltas consecutivas, os diretores escolares entram em contato com as famílias; caso persistam as faltas, os responsáveis são convocados. Quando a criança atinge cinco faltas consecutivas, o(as) assistentes sociais da Federação das Entidades Assistenciais de Santo André (FEASA), entidade conveniada com a prefeitura, são acionados. Tendo em vista que, em muitos casos, a ausência do estudante se deve a problemas familiares, a SME recorre às demais redes de apoio e proteção social para oferecer o devido apoio às famílias em situação de vulnerabilidade.

A gestão do projeto é feita pela Plataforma Busca Ativa Escolar, desenvolvida pelo Unicef, começando pelas notificações de “alerta” de infrequência pelos agentes comunitários; a partir daí, os técnicos verificadores entram em campo para identificar os motivos das faltas. De posse destas informações, os supervisores institucionais analisam os relatórios técnicos, transformando-os (ou não) em “casos” de abandono e definem os encaminhamentos necessários. O trâmite das informações é acompanhado pela plataforma pelo coordenador operacional do projeto no município, responsável pelo planejamento e pela execução das ações no âmbito da rede municipal.

Compete aos gestores escolares informar os casos de faltas consecutivas à SME semanalmente, por meio de formulário eletrônico. Uma assistente pedagógica da rede, entrevistada em julho de 2023, fez o seguinte depoimento sobre esta rotina:

Essa questão da busca ativa realmente é o que tá sendo muito exigido dos gestores da rede, principalmente, o diretor e o vice, nesse caso. Cada grupo de escolas tem um assistente social que fica na itinerância. Então, uma vez por semana, ela está na unidade escolar e [depois de] cinco faltas os professores comunicam aos gestores, até esgotar todas as possibilidades: Conselho Tutela... e vai indo pra outras instâncias, né? Nas reuniões setoriais vem sendo muito trabalhado isso com os gestores, tanto a questão do acompanhamento e monitoramento das aprendizagens, quanto a questão da busca ativa e da infrequência. Está tudo com gráfico, tá tudo tabulado.

Segundo os informes divulgados na página eletrônica da SME, em março de 2022, cerca de 485 alunos estavam no radar do(as) assistentes sociais. Em 2023, foram 317 visitas domiciliares; 844 atendimentos às escolas e 901 reuniões com as equipes gestoras das escolas (Terzi, 2023). No primeiro ano da pandemia (2020), foram confirmados 371 casos de abandono em escolas públicas em Santo André; destes, 79 eram de escolas municipais, sendo que 33 eram de crianças matriculadas no 1º ano do ensino fundamental.

Com efeito, além de identificar os casos, é necessário que se dê a devida atenção aos motivos para o abandono temporário (infrequência) ou definitivo (evasão) da escola. Considerando as razões aferidas durante a busca ativa, é possível classificá-las conforme as categorias definidas pelo Inep (Brasil, 2014). A Tabela 2 apresenta um panorama sobre a situação no município.

Tabela 2 Fatores e motivos associados ao abandono/evasão Santo André (2020-23). 

Fatores Abandono/Evasão Motivos Alegados Menções %
Individuais • mudança de domicílio 378 52,5
• desinteresse pela escola/estudos 188 26,1
Total   566 78,6
Internos à Instituição • falta de vagas, transporte; infraestrutura escolar; 61 08,5
• exclusão devido às “diferenças” (alunos com deficiência; imigrantes, preconceito racial) 35 04,9
• violência na escola 2 00,3
Total   96 13,7
Externos à Instituição • Vulnerabilidade social (violência doméstica e no território; abuso sexual; gravidez na adolescência; uso de drogas; conflitos com a lei, famílias em situação de rua/ausência de documentação 55 07,7
Total   55 07,7
Total Geral   720 100

Fonte: Elaborada pelos autores com base nos dados da Plataforma Busca Ativa Escolar (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2024b).

Observa-se que, de acordo com a classificação do Inep, 78,6% dos motivos mencionados para o abandono/evasão escolar referem-se a “fatores individuais”; 13,7% a fatores “internos às instituições”; e apenas 7,7% aos “externos à instituição”. Contudo, uma análise meramente técnica não resiste ao exame das situações que justificam os motivos alegados. Em nosso entendimento, o desinteresse dos alunos pela escola e/ou pelos estudos (26,1%) concerne, sim, às instituições e aos profissionais de educação.

Ademais, as circunstâncias que levaram inúmeras famílias a deixarem seus domicílios durante a pandemia certamente não foram por “escolha individual”, mas por condicionantes socioeconômicos que as obrigaram a deixar o território onde viviam. Nessa linha de interpretação, porcentagem considerável dos casos aferidos na busca ativa escolar em Santo André pode ser atribuída à vulnerabilidade socioeconômica das famílias, que elevaram os riscos de que seus filhos venham a trilhar o conhecido percurso que leva ao abandono e à evasão escolar.

Limites da busca ativa, enquanto política pública

Embora a política de busca ativa apresente grande potencial, ela também possui limitações que devem ser consideradas. É fundamental que esta política leve em conta as condições socioeconômicas que contribuem para o abandono escolar, uma vez que muitas famílias, especialmente durante a pandemia, enfrentaram dificuldades que não se limitaram a escolhas individuais, mas foram influenciadas por pressões econômicas mais amplas. Este contexto evidencia que, sem abordar as causas estruturais do abandono, a busca ativa pode representar apenas uma solução temporária. Apesar dos resultados positivos apontados no relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (2024b), é necessário acompanhar as condições de permanência dos estudantes na escola, além disso, observar a evolução das aprendizagens e monitorar os riscos de abandono e de novas evasões são fatores essenciais para a avaliação da efetividade dessa política.

A estratégia de busca ativa foi implementada por diversos estados e municípios, mas sua eficácia pode variar consideravelmente em função das condições e dos recursos locais. De acordo com o mesmo relatório (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2024b), 16 estados e mais de 3.160 municípios adotaram esta estratégia, número bem inferior à cobertura total dos sistemas de ensino do país. Vale pontuar que, dentre os que implementaram a busca ativa, há disparidades no que concerne aos índices de reintegração dos estudantes à escola em cada localidade. Os dados revelam persistentes disparidades regionais, raciais e socioeconômicas, que, invariavelmente, penalizam os estudantes pertencentes aos grupos socialmente marginalizados.

Este cenário revela as limitações desta abordagem quando adotada isoladamente. Diante das desigualdades sistêmicas presentes na sociedade brasileira, é fundamental complementá-la com medidas abrangentes de apoio às famílias em situação de alta vulnerabilidade social, como acesso à saúde, transporte e assistência social, cuja falta está na raiz dos fenômenos de abandono e evasão escolar de uma parcela significativa da população.

Embora a busca ativa tenha demonstrado ser uma estratégia promissora para reverter os diversos casos de abandono escolar durante a pandemia, é imprescindível que os gestores públicos permaneçam atentos às taxas de retenção a longo prazo, assegurando a continuidade e a sustentabilidade dos esforços realizados naquele contexto emergencial. Do contrário, à medida que a memória das situações vivenciadas em momentos de crise se arrefecem, corre-se o risco de perder o ímpeto de dar continuidade a programas que, a exemplo deste, descortinam alternativas efetivas de combate à exclusão social.

Considerações Finais

No estrutural cenário de desigualdades de toda a sorte que caracterizam nossa sociedade, a pandemia de COVID-19 visibilizou a fragilidade dos poderes públicos para garantir os direitos fundamentais de parcela significativa do(as) brasileiro(as). Sem dúvida, a trajetória de insucesso dos estudantes pertencentes aos grupos mais vulneráveis foi acelerada pela falta das condições indispensáveis às aprendizagens, principalmente longe da escola. Com propriedade, Moraes (2020, p. 67) observou, na época, que se “não [havia] comida na mesa quiçá internet”.

Não é exagero afirmar que os prejuízos foram maiores entre as crianças e adolescentes pobres, pardo(as), preto(as) e indígenas, que habitam os territórios mais pobres e violentos das grandes cidades e as zonas rurais. As estatísticas produzidas durante e após a pandemia evidenciaram que as taxas de distorção idade-série, retenção, abandono e evasão atingiram os mesmos de sempre. Este quadro tende a se repetir em crises futuras, caso as lições da pandemia sejam esquecidas e não haja disposição política, compromisso ético e ações intersetoriais coordenadas entre os poderes públicos, com apoio da sociedade civil para revertê-lo.

Este estudo abordou a importância da busca ativa, culminando em algumas implicações práticas com potencialidades para formulação de políticas públicas com vistas a minimizar os altos índices de abandono e evasão escolar, como: (a) implementação de políticas urgentes de busca ativa e retomada do aprendizado, especialmente em alfabetização, para encontrar e apoiar crianças e adolescentes que estão fora da escola, garantindo sua matrícula e continuidade; (b) mobilização e envolvimento da escola, incluindo equipes de gestão, professores e pessoal de apoio, para participar ativamente no enfrentamento da exclusão escolar; (c) monitoramento efetivo da frequência dos alunos para identificar os motivos do abandono ou evasão, com intervenções começando a partir da terceira ausência consecutiva e envolvendo contato com as famílias, e escalando para o envolvimento dos serviços sociais em caso de ausências persistentes; (d) Compreensão das relações complexas entre retenção, distorção idade-série, evasão e saída permanente da escola para desenvolver estratégias que abordem a natureza multifacetada do problema.

O estudo se concentra nas implicações da metodologia de busca ativa no combate à evasão e ao abandono escolar, sem aprofundar nos desafios específicos enfrentados por diferentes grupos demográficos, como populações rurais ou comunidades marginalizadas, o que poderia fornecer insights para outras intervenções mais direcionadas, assim como outras pesquisas poderiam explorar a eficácia da coordenação intersetorial dos municípios em iniciativas de busca ativa, examinando como a colaboração entre autoridades públicas, sociedade civil e instituições educacionais pode ser organizada para melhorar os resultados na redução das taxas de evasão.

Neste artigo, procuramos destacar o potencial da metodologia social da busca ativa, centrada nos territórios, para o enfrentamento do abandono e da evasão escolar. Argumentou-se que as ações no território potencializam a identificação dos casos de maior risco e possibilitam definir estratégias para oferecer apoio às famílias para que seus filhos retornem para a escola.

O projeto, ainda em andamento, conta com a adesão de 16 estados e mais de 3 mil municípios brasileiros. Segundo os dados atualizados da Plataforma do Unicef, em março de 2024, dos 302.802 estudantes que haviam abandonado a escola na pandemia, 225.760 voltaram a estudar. Este dado reforça o argumento central deste texto quanto à necessidade de ações sistemáticas e preventivas por parte dos poderes públicos para estancar a escalada de exclusão escolar e as desigualdades endêmicas da sociedade brasileira.

No âmbito da escola, este é um desafio cotidiano que requer o olhar atento e sensível de professores e gestores escolares para as condições de vida e de aprendizagem de cada aluno individualmente. A pandemia forçou a enxergar estas carências e a compreender que inexistem fronteiras entre o que se passa dentro e fora da escola no que tange à complexidade da educação. Com Gatti (2020), reitera-se a esperança de que a experiência da pandemia não caia no esquecimento e nos permita transformar nossos modos de conceber a vida e o sentido da educação escolar.

2“Estudante que largou os estudos” – Tradução literal do termo pelos autores.

3São muitas as motivações/razões em jogo relacionadas a esses fatores: desemprego e/ou dificuldades financeiras; incompatibilidade horária entre trabalho e escola; questões familiares; influência de colegas e amigos; desempenho escolar insuficiente, entre outras (Brasil, 2014).

4Taxa Ajustada de Frequência Escolar Líquida (Tafel) é a proporção de indivíduos que estão matriculados no nível de ensino correspondente à sua faixa etária, ou que já concluíram esse nível, conforme a estrutura do sistema educacional brasileiro, é analisada em relação ao total de pessoas na mesma faixa etária (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023b).

Como citar este artigo: Wandercil, M. et al. Abandono e evasão escolar: emergência da busca ativa como política pública de educação pós-pandemia. Revista de Educação PUC-Campinas, v. 29, e2412077, 2024. https://doi.org/10.24220/2318-0870v29a2024e12077

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Recebido: 08 de Março de 2024; Revisado: 16 de Setembro de 2024; Aceito: 27 de Setembro de 2024

Correspondência para: M. WANDERCIL. E-mail: marco.wandercil@gmail.com.

Editores

Artur José Renda Vitorino

Conflito de interesse

Os autores declaram que não há conflito de interesse.

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