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ETD Educação Temática Digital

versión On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.1 Campinas ene/marzo 2019  Epub 24-Oct-2018

https://doi.org/10.20396/etd.v21i1.8651418 

Artigos

BULLYING ESCOLAR E OS PROCESSOS DE RESILIÊNCIA EM-SI SOB A ÓTICA DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

BULLYING AND THE RESILIENCE IN ITSELF PROCESSES UNDER THE HISTORICAL-CULTURAL THEORY

ACOSO ESCOLAR Y LOS PROCESOS DE RESILIENCIA EN SÍ BAJO LA ÓPTICA DE LA TEORÍA HISTÓRICO-CULTURAL

Marcos Vinicius Francisco1 

Renata Maria Coimbra2 

1Doutor em Educação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT/UNESP) - Presidente Prudente, SP - Brasil. Docente permanente Educação - Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) - Presidente Prudente, SP - Brasil. E-mail: marcos_educa01@yahoo.com.br

2 Doutorado em Psicologia - Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, SP - Brasil. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Presidente Prudente, SP - Brasil. E-mail: coimbralibor@uol.com.br


RESUMO

Nesta investigação analisou-se o processo de apropriação de objetivações culturais, favorecedoras da resiliência em-si em jovens expostos ao bullying escolar. Assumiu-se como referencial a Teoria Histórico-Cultural que tem como base epistemológica o Materialismo Histórico Dialético. Participaram da pesquisa, 06 jovens de uma escola pública, do interior do estado de São Paulo, Brasil. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas, a fim de problematizar fotografias e filmagens. Os resultados apontaram que os participantes vêm se apropriando de algumas objetivações humanas, tais como as atividades e espaços que contemplam o lazer, a música, a literatura e outras manifestações artísticas. Embora tais objetivações os tenham conduzido ao enfrentamento do bullying escolar, por meio da resiliência em-si, desenvolvida na relação dialética entre mecanismos mediadores de risco e proteção, tal enfrentamento é pontual, pois os estudantes continuam centrados no modelo de organização social que produz tal manifestação de violência.

PALAVRAS-CHAVE: Bullying escolar; Resiliência em-si; Teoria Histórico-Cultural

ABSTRACT

In this research, we analyzed the process of appropriation of cultural objectivations, favoring resilience in itself in young people exposed to bullying. The Historical-Cultural Theory have as reference the epistemological basis the Historical Dialectical Materialism. Six young people from a public school in the São Paulo, Brazil, participated in the study. Semi-structured interviews were conducted in order to problematize photographs and filming. The results pointed out that participants had appropriated some human objectifications, such as activities and spaces that include leisure, music, literature and other artistic manifestations. Although such objections had led to the confrontation of school bullying, through resilience in itself, developed in the dialectical relationship between mechanisms mediating risk and protection, such confrontation is punctual, because students continue to focus on the model of social organization that produces this violence.

KEYWORDS: School bullying; Resilience in itself; Historical-Cultural Theory

RESUME

En esta investigación se analizó el proceso de apropiación de objetivaciones culturales, favorecedoras de la resiliencia en sí en jóvenes expuestos al acoso escolar. Se asume como referencial la Teoría Histórico-Cultural que tiene como base epistemológica el Materialismo Histórico Dialéctico. Participaron de la investigación 06 jóvenes de una escuela pública, del interior del estado de São Paulo, Brasil. Entrevistas semiestructuradas se realizaron, a fin de problematizar fotografías y filmaciones. Los resultados apuntaron que los participantes vienen apropiándose de algunas objetivas humanas, tales como las actividades y espacios que contemplan el ocio, la música, la literatura y otras manifestaciones artísticas. Aunque estas objetivas las han conducido al enfrentamiento del bullying escolar, por medio de la resiliencia en sí, desarrollada en la relación dialéctica entre mecanismos mediadores de riesgo y protección, tal enfrentamiento es puntual, pues los estudiantes continúan centrados en el modelo de organización social que produce tal manifestación de violencia.

PALAVRAS-CLAVE: Acoso escolar; Resiliencia en sí; Teoría Histórico-Cultural

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo3, defende-se a tese de que os indivíduos durante sua vida vão se apropriando de objetivações culturais, produzidas socialmente, que os orientam para a formação de sua personalidade. A personalidade de cada indivíduo se constrói a partir do contato com a realidade objetiva, incorporadas ou não às possibilidades para uma atividade consciente. Quanto menores forem essas possibilidades, mais fragmentados serão os motivos e as ações presentes na atividade humana. Decorrente disso, no sistema de organização capitalista, ao analisar o bullying escolar, evidencia-se uma contradição, pois mesmo que estudantes vítimas se posicionem frente a essa manifestação de violência, por meio dos processos de resiliência em-si, desenvolvidos na relação dialética entre mecanismos mediadores de risco e proteção, o enfrentamento será pontual. Os estudantes continuarão centrados no modelo de organização social que produz o fenômeno.

Assume-se que o bullying escolar não deve ser entendido como fruto da relação imediata entre agressores e vítimas (FRANCISCO; COIMBRA, 2015; SANTOS JÚNIOR, 2017), mas como um produto das relações capitalistas de produção. Tal produto é expresso na perseguição e intimidação daqueles que não se ajustam aos padrões culturais de corpo, modos de ser e agir criados e difundidos pela burguesia, a serviço da manutenção das relações sociais.

Entende-se por resiliência em-si o processo de enfrentamento das adversidades vivenciadas por um indivíduo, mas que não oportuniza o estabelecimento de relações conscientes com as formas que produzem sua vida. A resiliência em-si está abaixo da emancipação e deve ser superada por incorporação. Já a emancipação não é um processo individual, ocorrerá por meio da superação das relações entre dominados e dominantes.

Leontiev (1978) esclarece que a dimensão humana presente no homem advém de sua inserção social, significadas em uma dada cultura. O pensamento e a consciência são determinados pela vida real. Por conseguinte, as transformações sofridas pela consciência decorrem da divisão social do trabalho (LEONTIEV, 1983). A expropriação econômica gerada pela iniciativa privada conduz à alienação e à desintegração da consciência das pessoas. Nessa lógica, as objetivações produzidas historicamente (produção material, linguagem, ciência e artes), que oferecem possibilidades para a humanização do gênero humano, não são apropriadas por todos (MARTINS, 2001).

2 O BULLYING ESCOLAR E A RESILIÊNCIA EM-SI

Dentre as diversas formas de violência que ocorrem no ambiente escolar, ganhou ênfase, nos últimos anos, o bullying. Pioneiro nos estudos da temática, Olweus (2006) aponta que o termo tem sido empregado para classificar situações nas quais um estudante é perseguido ou intimidado de maneira individual ou grupal nos espaços escolares. Destaca, ainda, o caráter intencional, repetitivo e assimétrico nas ameaças e perseguições.

Francisco e Coimbra (2015) ponderam que a conceituação de Olweus é incipiente, não supera as questões mais individualistas e não enfatiza a influência dos aspectos histórico-culturais. Defende-se na perspectiva do Materialismo Histórico Dialético (MHD) a necessidade de se garantir a compreensão das múltiplas determinações do bullying, destacando aquelas de natureza social, relacionadas às sociedades capitalistas. Há de se conceber essa intimidação sistemática4 como uma manifestação humana, socialmente construída.

No que tange aos papéis dos estudantes nas situações de bullying, Avilés (2010) e Bandeira (2009) apontam os autores (agressores), os alvos (vítimas típicas ou agressoras) e os espectadores (testemunhas). As consequências do bullying escolar afetam todos os envolvidos. No caso, em específico, das vítimas, foco de análise deste artigo, estas apresentam restrições a frequentarem a escola, o que maximiza a evasão e o baixo rendimento, além de desenvolverem baixa autoestima (FRANCISCO; COIMBRA, 2015; OLWEUS, 2006). Lisboa, Braga e Ebert (2009) destacam que o bullying pode ter efeitos a longo prazo, ao influenciar as atitudes, os comportamentos, o autoconceito das vítimas, a imagem que têm dos outros e do mundo e até da própria vida. Mencionam, ainda, casos extremos, nos quais as vítimas cometem suicídio.

Sobre a inserção dos indivíduos nos casos de bullying, é importante considerar que eles estão imersos em relações sociais que fomentam a linguagem da violência como um meio de excluir ou de se firmar perante os pares (FRANCISCO; COIMBRA, 2015; LISBOA; BRAGA; EBERT, 2009; SANTOS JÚNIOR, 2017). “Reforçar e não denunciar comportamentos agressivos de algumas crianças para com outras pode aumentar a popularidade individual - tão almejada em grupos de pares na infância e adolescência” ( LISBOA; BRAGA; EBERT, 2009, p. 63).

Participaram desta pesquisa estudantes que experienciaram o bullying escolar no papel de vítimas, todavia eles haviam se posicionado sobre o fenômeno, por meio dos processos de resiliência em-si. O constructo resiliência teve sua origem no início do século XIX, sendo utilizado pelas áreas de Física e Engenharia para descrever estruturas materiais que, mesmo diante de seu uso nas atividades sociais, não sofriam deformações (YUNES; SZYMANSKI, 2001). A incorporação do conceito pelas áreas de Psicologia e Educação ocorreu, apenas, a partir dos anos de 1970 e 1990, respectivamente (SOUSA, 2008).

Avançando na compreensão do conceito de resiliência, Edwards e Apostolov (2007), por meio da Teoria Histórico-Cultural, propõem que os indivíduos em condição de vulnerabilidade social sejam percebidos como capazes de intervir nas condições de seu desenvolvimento. Para que eles consigam buscar aquilo que a sociedade tem a oferecer, faz-se necessário superar interpretações que concebam a sociedade de forma homogênea, pois no capitalismo criam-se, cada vez mais, condições para alienar os vulnerabilizados.

Reconhecem-se os avanços em Edwards e Apostolov (2007), entretanto, algumas ponderações são necessárias. Uma das contradições expressas no sistema de organização capitalista refere-se ao fato de que, embora muitos indivíduos se posicionem ou enfrentem as adversidades vivenciadas, eles estarão centrados, apenas, nos processos da resiliência em-si. A resiliência em-si é o reflexo, imediato, da adaptabilidade ao contexto social. O termo “em-si” utilizado para designar a resiliência em-si, advém das produções de Duarte (1999, 2007). A estrutura das objetivações genéricas, em níveis (em-si e para-si), reflete o grau de humanização alcançado pelos homens ao longo da história. A partir de Agnes Heller, o autor pontua que ambas são categorias tendenciais e relativas.

[...] São relativas porque tanto podem ser utilizadas tomando-se por referência a relação entre homem e natureza, caso em que o ser-em-si será a natureza e o ser-para-si a sociedade; quanto podem ser utilizadas considerando-se apenas o âmbito da prática social humana, na qual o ser-em-si caracteriza a genericidade que se efetiva sem que haja uma relação consciente dos homens para com ela e o ser-para-si caracteriza a ascensão dessa genericidade ao nível da relação consciente (DUARTE, 1999, p. 135).

De acordo com Duarte (1999), todos os indivíduos ingressam no gênero humano por meio de um processo formativo em-si. Isso não significa que a apropriação das objetivações genéricas em-si ocorra de forma similar para todos, independentemente do tempo histórico e da posição ocupada por cada um no interior das relações sociais. Ninguém vive em sociedade sem realizar um mínimo que seja de apropriações dessas objetivações. Quanto menos alienada a sociedade, mais estarão presentes as objetivações genéricas para-si.

3 MÉTODO

Assume-se o MHD, base epistemológica da Teoria Histórico Cultural, como método de apreensão da realidade investigada. Vigotski (1995) propôs alguns princípios para a pesquisa, nessa perspectiva: a) explicar os fenômenos em oposição à descrição aparente; b) explicitar a análise dos nexos dinâmico-causais, a fim de compreender a origem do fenômeno, na busca pela síntese das múltiplas determinações e c) analisar dialeticamente os processos desde suas formas mais simples para as formas mais complexas e vice-versa.

3.1 Local de pesquisa e processo de seleção dos participantes

A pesquisa foi desenvolvida em uma escola que atende estudantes de Ensino Fundamental e Médio, em uma cidade de médio porte do interior de São Paulo. A seleção se deu por meio de um sorteio aleatório dentre as escolas da cidade, que atendiam aos segmentos mencionados. Com a autorização concedida, iniciou-se o contato com todas as turmas de 9º anos do Ensino Fundamental (07 turmas) e 1º anos do Ensino Médio (06 turmas) para apresentar a pesquisa aos estudantes interessados em participar e que tinham autorização dos responsáveis, entregar aos jovens os Termos de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) e recolher essa documentação. A atividade durou duas semanas e ao final recolheram-se 36 TCLE.

A escolha por tal faixa etária deu-se pelo fato de os estudos sobre bullying escolar indicarem que nessas idades que costumam haver as maiores incidências do fenômeno (OLWEUS, 2006). Os estudantes foram convidados a responder o questionário Scan-Bullying elaborado por Almeida e Caurcel (2005). O Scan-Bullying é composto de uma prancha que ilustra uma história com situações de perseguição a um(a) estudante, a qual serviu para que eles refletissem acerca das questões propostas no questionário. Posteriormente, procedeu-se pela tabulação dos dados, com o auxílio do software SPSS 12.0, a fim de identificar os estudantes expostos ao bullying escolar (14 participantes).

Os estudantes que vivenciaram o bullying escolar foram contatados para aplicação do questionário CYRM (Child and Youth Resilience Measure) - que mensurou processos de resiliência (UNGAR et al., 2007), tendo sido validado por Ungar e Liebenberg (2008) - e também do questionário “Fatores de Risco e Proteção em adolescentes de Presidente Prudente”, elaborado pela segunda autora do artigo e validado em 20085, que possibilitou a identificação de outros mecanismos mediadores de riscos presentes em suas vidas, além do bullying escolar. Dos 14 estudantes selecionados, apenas 12 participaram, sendo que duas jovens haviam se transferido de escola. A partir de análises dos resultados dos instrumentos, foram selecionados 06 estudantes que apresentaram, concomitantemente, níveis significativos de resiliência e mecanismos mediadores de risco em suas vidas.

Ao entender o bullying escolar e a resiliência como condições postas pelas circunstâncias atuais, é possível se ter instrumentos como os utilizados, a fim de se identificar os envolvidos em situações de bullying, bem como os recursos e as formas de enfrentamentos por eles utilizados. Contudo, esses instrumentos por si só não dariam conta de identificar a essência do objeto da pesquisa, ainda mais no referencial adotado, porque é necessário ir para além da aparência do fenômeno. Daí a importância de outros procedimentos, os quais serão apresentados posteriormente, a fim de contemplar aspectos da dinâmica organizacional/estrutural da sociedade burguesa e que se refletem no objeto investigado. Conforme Paulo Netto (2011):

[...] os instrumentos e também as técnicas de pesquisa são os mais variados, desde a análise documental, [...] observação, recolha dos dados, quantificação etc. Esses instrumentos e técnicas são os meios de que se vale o pesquisador para “apoderar-se da matéria”, mas não devem ser identificados com o método: instrumentos e técnicas similares podem servir (e de fato servem) em escala variada, a concepções metodológicas diferentes (PAULO NETTO, 2011, p. 26).

Tais ponderações se aplicam a todos os instrumentos utilizados no processo de identificação dos participantes da pesquisa. É válido reforçar, mais uma vez, que o seu uso se deu, apenas, com o intuito de selecionar os estudantes com os quais seriam realizadas entrevistas semiestruturadas, a partir de fotografias e filmagens de seu cotidiano.

Os 06 estudantes selecionados (04 moças e 02 rapazes) para a fase de entrevistas, fotografias e filmagens residem em diferentes bairros do município. Apenas Jéssica reside no bairro onde a escola está localizada; Murilo, Pedro e Paloma moram em bairros próximos ao da escola, enquanto que Bruna e Patrícia deslocam-se de bairros distantes da cidade.

3.2 Fotografias e filmagens

O processo de captação das imagens e de filmagens seguiu a proposta de Ungar (2008). Antes do período de captação das fotografias e filmagens, realizaram-se com os participantes uma entrevista inicial, com média de trinta minutos. Tais entrevistas foram gravadas, seguindo um roteiro que possibilitou a compreensão de alguns dos mecanismos mediadores de risco e proteção nos contextos familiares, escolares e comunitários, associados aos processos de resiliência em-si; bem como possibilitou também provocar os processos para a coleta de imagens. O roteiro de entrevistas foi elaborado a partir de Ungar et al., (2007), sendo que algumas questões foram incluídas, na perspectiva do MHD.

Na entrevista inicial abordou-se: o que eles faziam diante das dificuldades em suas vidas e onde buscavam apoio; que tipo de recursos, programas e serviços estavam disponíveis na comunidade; como percebiam o papel do governo na garantia dos seus direitos; como reivindicavam espaços/serviços que consideravam importantes e que não existiam; e o que pensavam sobre a sociedade, em termos de condições para o desenvolvimento humano. Ao final das entrevistas, conversou-se com os adolescentes sobre a captação de imagens, recomendando que tirassem fotos dos elementos (pessoas, lugares e objetos) que consideravam positivos ou negativos em suas trajetórias de vida. Realizou-se a entrega das câmeras digitais para os jovens tirarem 28 fotografias. Após a revelação das fotografias, os adolescentes passaram por outra entrevista (em média, 20 minutos de duração) sobre o conteúdo das fotos tiradas. Esse roteiro de entrevista foi baseado a partir de Ungar et al., (2007): as fotografias que mostravam aquilo que os fazia apreciar morar na sua comunidade, bem como o inverso e as explicações para tal; os significados das demais fotografias e se gostariam de conversar sobre algo não abordado.

Em um terceiro momento, realizou-se uma filmagem de um dia de suas vidas “a Day in the life” (GILLEN et al., 2006), na qual os participantes foram registrados nas atividades cotidianas (8 horas de filmagens para cada jovem, divididas em dois dias). Nas filmagens, uma auxiliar de pesquisa fez anotações no diário de campo. Após, iniciou-se o processo de assistir às gravações e editar na forma de um DVD com 5 a 6 clipes, as filmagens de cada participante, compondo um vídeo de aproximadamente 30 minutos. Na edição, utilizou-se o software Pinnacle 11.0. Após essa tarefa, os jovens foram convidados, individualmente, a assistirem aos vídeos sobre suas respectivas filmagens e realizou-se uma última entrevista. Cada entrevista durou aproximadamente duas horas, sendo problematizados os seguintes elementos: esclarecer o que se via nos clipes; o que significava ter acesso/contato com as práticas socioculturais analisadas; o que pensavam de algumas pessoas não terem/fazerem aquilo que estava sendo analisado; o que acreditavam gerar tal situação; se achavam que a referida situação precisaria ser modificada e o que poderia ser feito.

Diante dos apontamentos, dialeticamente, na análise dos dados, serão apresentados os eixos analíticos: 1 - Objetivações que fortaleceram os participantes por meio do lazer e das atividades físicas; 2- Contato com a música, literatura e outras manifestações artísticas. Tal configuração visa apresentar como ocorreu o processo de apropriação de objetivações culturais produzidas socialmente. Entende-se que, tais condições auxiliaram no enfrentamento do bullying escolar, ainda que no âmbito da resiliência em-si.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Inicia-se esse tópico apresentando os 06 participantes (Jéssica, Pedro, Bruna, Murilo, Patrícia e Paloma), a partir dos “motivos” que os levaram a serem vítimas do bullying escolar. Na entrevista inicial, Jéssica mencionou que em sua escola havia conflitos entre os estudantes, os quais aconteciam por meio de brincadeiras de mau gosto e xingamentos; pontuou, ainda, que o grande motivo estava relacionado às características físicas de uma pessoa. Ao conversar sobre as fotografias apresentou uma foto de sua sala de aula, vazia, como a de que menos gostou, ao justificar que lá aconteciam os xingamentos. Indagada, se havia tirado fotos capazes de representar algo difícil que tenha passado em sua vida, relatou que se pudesse ilustraria os “falatórios” que envolviam a sua pessoa e que lhe faziam mal. Constatou-se que ela tinha o discurso de uma vítima de bullying, em função de sua estrutura física (sobrepeso). Sobre a foto apresentada abaixo (Foto 1), esclareceu que:

Ela fala coisas que a gente não gosta e machuca as pessoas. E também coisas boas [...] palavras carinhosas (JÉSSICA, INFORMAÇÃO VERBAL).

Fonte: Pesquisa de campo

Foto 1 A boca 

Pedro evidenciou certa dificuldade em construir amizades com os colegas de escola. Alegando timidez, bem como o interesse demasiado pelas práticas religiosas e de estudo, mencionou que os colegas de escola não tinham os mesmos interesses que os seus, por isso não havia o que dialogar com eles. Suas amizades foram construídas com pessoas mais velhas e que frequentavam sua igreja, espaço no qual se sentia bem, pois expressava o gosto pela música e obtinha reconhecimento. Destaca-se que os professores e funcionários da escola admiravam sua organização e empenho nas atividades escolares. Embora não tenham ficado explícitos, os possíveis motivos do bullying escolar sofrido eram as práticas religiosas e o excelente desempenho escolar.

Bruna apontou a existência de conflitos entre os estudantes na escola e que eles começavam por meio de brincadeiras que ganhavam, em alguns casos, proporções maiores. Ao falar sobre os grupos tratados injustamente na sociedade, vítimas de preconceito, destacou os evangélicos. A perseguição constante que sofria, conforme a adolescente, estava ligada a não realização de atividades desempenhadas por outros jovens, tais como: frequentar festas e ouvir músicas para além do estilo gospel, ao justificar que era fiel aos ensinamentos da Bíblia. O bullying em seu caso estava relacionado à sua religiosidade.

Durante as fases da pesquisa, em especial durante as filmagens, percebeu-se em Murilo uma preocupação excessiva com os aspectos físicos, ao ressaltar a importância das pessoas cuidarem de sua aparência. Em função disso, frequentava uma academia privada de musculação, apontando a necessidade de ganhar massa corporal, pois se considerava muito magro. Infere-se que o bullying que Murilo sofria advinha das questões físicas de seu corpo.

Patrícia disse que gostava da maioria dos colegas de escola, embora, de alguns não, tendo em vista que eles zombavam de sua magreza. Com um discurso de naturalização, mencionou haver conflitos e brigas entre os alunos, o que considerava normal. Por mais que fosse vítima de bullying, em função de sua magreza, relatou que não se importava com isso. Por sua vez, Paloma apontou não haver muitos conflitos e perseguições entre os estudantes de sua escola, embora fosse perseguida, constantemente, pelos companheiros, desde quando passou a estudar lá (6º ano):

Há poucos (casos de perseguições entre os estudantes). Mas comigo há bastante [...] De meninas que não gostam de mim [...]. É tenso, eu acho que as pessoas deveriam ter um pouco mais de respeito, sei lá, deveriam fazer mais amizades, olhar melhor e investir e se identificar com a pessoa, pra depois julgar. Entendeu? Julgam sem ver a pessoa, sem conversar [...] (PALOMA, INFORMAÇÃO VERBAL).

Sobre os conflitos na escola, Paloma não explicitou os motivos para tal. Todavia, no conjunto das fases da pesquisa, percebeu-se que as perseguições decorriam do fato de ela não se adequar financeiramente ao grupo de colegas. Ela não possuía nenhuma amizade, para além das que viviam em seu bairro, localizado em uma área de alta exclusão social.

Um dos princípios da pesquisa, na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, refere-se à explicitação dos nexos dinâmico-causais, a fim de apreender o fenômeno apresentado em sua processualidade e totalidade, na busca pela síntese de suas múltiplas determinações. Ao identificar que os participantes apresentam características contrárias ao que é esperado ou valorizado socialmente e culturalmente, tem-se a manifestação aparente da realidade, em oposição à essência (KOSIK, 2010; PASQUALINI; MARTINS, 2015). Daí a importância de se considerar a dialética entre singular-particular-universal (OLIVEIRA, 2005; PASQUALINI; MARTINS, 2015).

Isso significa afirmar que a universalidade não pode ser compreendida em si e por si, mas nas complexas relações que estabelece com a particularidade e singularidade. Da mesma forma, a singularidade tomada em si também é uma abstração. Não existe o homem singular, mas o homem singular-particular-universal. Por isso, a singularidade só pode ser compreendida no desvelar de suas conexões com o particular e o universal: se em cada ente singular estão contidos o particular e o universal, a compreensão da singularidade é tão mais objetiva quanto mais se capte suas mediações particulares com a universalidade (PASQUALINI; MARTINS, 2005, p. 366-367).

Cada um dos participantes supracitados é um indivíduo singular, porém o que se almeja é identificar quais aspectos os particularizam, ou seja, que condicionam sua existência, impondo condições semelhantes. No caso em tela, pode-se ressaltar que eles são filhos da classe trabalhadora, estudam em uma escola pública e experienciam a intimidação sistemática perante seus colegas, por não se adequarem aos padrões de normatividade social impostos pela sociedade burguesa.

A particularidade desses jovens reside no fato de serem vítimas de uma manifestação de violência, o bullying, produzida socialmente, o que culmina com práticas de perseguição ou intimidação constantes (FRANCISCO; COIMBRA, 2015; NASCIMENTO; MENEZES, 2013; SANTOS JÚNIOR, 2017;). Por conseguinte, seus agressores circunscritos às relações humanas fetichizadas agem sem entender os condicionantes históricos que impactam suas formas de ser e agir, como por exemplo, na naturalização da linguagem permeada pela violência, como um meio de se imporem perante seus pares ou de manifestarem os valores apreendidos culturalmente, por meio do ódio, da intolerância e do etnocentrismo.

Pasqualini e Martins (2015, p. 368) asseveram que a “particularidade é a especificação de uma universalidade”, ou seja, a sociedade capitalista, entendida “como um todo, no qual estão presentes tendências gerais ou universais que agem sobre as partes singulares que o compõem, isto é, que impõem determinações sobre a vida dos indivíduos que nela vivem” (PASQUALINI; MARTINS, 2015, p. 368), como é o caso da violência, tipificada, por exemplo, nas situações de bullying escolar.

Castelo (2017) recorre ao conceito de “violência como potência econômica” para denunciar que historicamente Estado e capital se complementam no modo de produção capitalista. Assim, são fortalecidos os aparelhos coercitivos de expropriação massiva dos meios de produção e de exploração da classe trabalhadora, sobretudo dos países dependentes, além da expropriação dos direitos sociais. Pari passu, aprofundam-se as desigualdades entre a classe dominante e os dominados, pese que a violência seja utilizada para promover o apassivamento de setores maciços da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que, dialeticamente, ela se reproduz nas relações sociais. Diante desses aspectos serão apresentados, na sequência, os eixos analíticos que expressam o processo de apropriação de objetivações culturais acessadas pelos participantes e que os auxiliaram no enfrentamento do bullying, ainda que no âmbito da resiliência em-si6.

4.1 Objetivações que fortaleceram os participantes por meio do lazer e das atividades físicas

No que tange à presença de espaços públicos que contemplam possibilidades de lazer e atividades físicas nos bairros onde a maioria dos participantes residia, notou-se escassez (Jéssica, Pedro, Patrícia, Paloma e Bruna). Muitas vezes, os espaços frequentados estavam relacionados à iniciativa privada. Os participantes, ao crescerem e conviverem em realidades sem muitas possibilidades, quando tinham contato com uma opção de lazer, acreditavam que aquilo era suficiente e que havia lugares piores para se viver.

Jéssica mencionou a Lagoa dos Patos (parque com pista de caminhada) e a Cidade das Crianças (parque aquático) como bons espaços para o lazer da comunidade. Contudo, a segunda opção localiza-se num bairro longínquo, além de pertencer à iniciativa privada. Submetida à iniciativa privada, ela frequentava uma academia de musculação na tentativa de emagrecer. As possíveis ocorrências do bullying que Jéssica sofria, por parte de seus colegas, relacionavam-se ao seu sobrepeso.

Não se pode deixar de problematizar as influências que os padrões de beleza difundidos pelos meios de comunicação exercem nos jovens. Conforme Pires (2000), a partir das décadas de 1970 e 1980, houve um enaltecimento da busca por corpos tidos como “ideais”. As academias privadas tiveram um crescimento gigantesco e assumiram como modelos os corpos da classe dominante, ou seja, difundidos nos diferentes meios de comunicação. A busca pelo “novo corpo” - articulado aos discursos de beleza/saúde e às demandas de consumo - atingiram todas as classes sociais.

Quando alguém foge aos padrões definidos pela indústria fotográfica e midiática é rechaçado. Frente à apropriação das práticas de musculação, que foram instauradas historicamente e culturalmente junto ao convívio social, não se pode perder de vista que a ideologia difundida em tais espaços vai além dos discursos que apregoam a busca pela saúde. Não se está defendendo que as pessoas não possam melhorar sua condição física e abarcar benefícios à sua saúde, quando diante de tais espaços. Todavia, a saúde que se defende é a de quem? Ou ainda, não seriam tais espaços mais uns daqueles que difundem concepções que fragmentam os motivos e ações presentes na atividade humana?

Embora essa apropriação tenha sido fundamental para que Jéssica pudesse superar as situações de intimidação, ela não foi suficiente para que ela ultrapassasse concepções idealistas e fragmentárias. O bullying escolar por ela vivenciado somente será erradicado se houver uma superação das circunstâncias atuais, geradoras de sua manutenção e propagação. Duarte (1999) esclarece que, ao se pensar no processo histórico-social de formação do indivíduo, é importante ter claro como essa relação entre apropriação e objetivação se efetiva. Nem sempre, ao se apropriar de uma objetivação humana, o indivíduo, em questão, a fará numa relação consciente.

Murilo foi o único que destacou em seu bairro boas opções para o lazer, tais como quadras, praça, campos e pista de skate; defendeu ainda que, os espaços deveriam ser mais cuidados pela iniciativa pública. O participante apresentou consciência sobre a importância das reivindicações por parte da população na construção de mais espaços de lazer nas diferentes comunidades. Contudo, ele pouco utilizava os espaços públicos, pois os momentos de lazer e as práticas de atividades físicas sempre ocorriam em espaços pertencentes à família ou ao setor privado. Das fotografias tiradas, a de que mais gostou referia-se a uma casa da família na beira de um rio, onde passava os finais de semana junto aos familiares e que realizava atividades náuticas, tais como andar de barco e pescar, além de andar de moto e caçar. Para Murilo, essas atividades de lazer ao lado dos familiares lhe faziam se “sentir muito bem” (MURILO, INFORMAÇÃO VERBAL).

Sobre a vida urbana, Murilo destacou os momentos de lazer com os amigos na piscina em sua casa e que tal objeto representava algo bom em sua vida. Ao ser questionado sobre as pessoas que não tinham tal recurso, deu um exemplo de como a pesquisa promove mudanças nos participantes; disse que nunca havia parado para pensar naqueles que não tinham condições de terem uma piscina em sua casa. Durante as filmagens, constatou-se que ele tinha preocupação excessiva com os aspectos físicos (a magreza era o motivo das ocorrências de bullying), fato que o levou a frequentar uma academia de musculação, diante do objetivo de aumentar a massa muscular.

A descrição do lazer na vida dos participantes, ao ser analisada frente à tese defendida, aponta que os participantes foram deixando transparecer elementos ligados à formação de suas personalidades, resultante da relação dialética entre dois aspectos da sociedade. Conforme Martins (2011), um desses aspectos é de natureza objetiva, enquanto o outro é de natureza subjetiva. No primeiro, tem-se que a personalidade deriva da unidade e luta dos contrários, indivíduo X sociedade. O indivíduo só pode se constituir como tal a partir da sua unidade com a sociedade; se bem que sua existência reside em sua autodiferenciação com a mesma, o que lhe confere papel de sujeito:

Por esta análise, impossível deixar de reconhecer a vinculação e interdependência entre o desenvolvimento da personalidade e as condições objetivas de existência, o que permite uma segunda proposição: a personalidade resulta da atividade do indivíduo condicionada por condições objetivas. Essa afirmação não subtrai da personalidade sua dimensão subjetiva, mas afirma sua objetividade, uma vez que a personalidade de cada indivíduo não é produzida por ele isoladamente, mas sim resultado da atividade social [...] (MARTINS, 2011, p. 87).

Os mencionados posicionamentos dos participantes refletiram esse processo; suas proposições ora contemplavam elementos decorrentes do processo de alienação, ora apresentavam visões um pouco mais críticas. A maior ou menor alienação decorre das atividades socioculturais presentes em suas vidas e da divisão social de classes.

Marx e Engels (1974) ao diferenciar os homens dos animais chamam atenção para o fato de que as diferenças entre os mesmos incidem justamente no fato de que o homem, ao produzir seus meios de vida, produz a sua própria vida material (1º fato histórico). Ou seja, é uma condição fundamental da história, e que se faz necessária na atualidade, como se fez também no passado [...] Ao transformar a sua natureza, o homem se apropria da mesma e se objetiva nela. Dessa forma, aquilo que os “homens são” dependerá exclusivamente das condições materiais de suas produções (MARX; ENGELS, 1974).

Leontiev (1983) e Martins (2001) elucidam que submetidos às condições de alienação, os indivíduos serão figurantes do processo de desenvolvimento de suas capacidades individuais. O empobrecimento da individualidade humana em condições de alienação abarca o trabalho social e a vida pessoal, pois as relações políticas e econômicas subordinam a si o desenvolvimento do psiquismo. A alienação diante do capitalismo será maior ou menor e estará atrelada às possibilidades concretas que o indivíduo terá para entender sua existência para além da particularidade, ao superá-la rumo à condição genérico-humana.

Ainda sobre as possibilidades de lazer, Peixoto et al. (2009) apontam que no sistema capitalista elas são oferecidas à classe operária, apenas, como um meio de ocupação do tempo livre, gerado como consequência das contraditórias relações de classe. O contexto político e econômico em que se deflagrou a preocupação com essa problemática, no Brasil, advém do final do século XX. Destarte, Souza (2011, p. 117) pontua que o lazer não é apenas um produto das relações sociais e de produção, mas sim uma necessidade, que foi sendo gradativamente forjada à extensão das políticas capitalistas de lucro e acumulação.

4.2 Contato com a música, literatura e outras manifestações artísticas

Das fotos de que mais gostou, Pedro apresentou uma que se referia a um conjunto de vários CDs, representando algo bom em sua vida, que o fazia sentir-se fortalecido frente às adversidades sofridas. Por fim, ele expôs uma sequência de fotos relacionadas ao universo musical, a fim de justificar a importância das técnicas de canto, apreciação e regência aprendidas na igreja, espaço onde se sentia valorizado e acolhido pelas pessoas mais velhas.

Muito importante, uma das coisas mais importantes na minha vida, porque é nela que eu me dedico o maior tempo, e é uma atividade que eu tenho prazer em ficar fazendo, a música (PEDRO, INFORMAÇÃO VERBAL).

Ressalta-se a importância da música, ela deveria se fazer presente nas escolas, com a intenção de auxiliar os jovens no processo de ampliação dos conhecimentos sobre a sociedade. A música de qualidade é capaz de retratar expressões de sentimentos e fatos historicamente situados.

A literatura e a música são elementos muito presentes na vida de Bruna. Por intermédio da literatura, a jovem mencionou que conheceu outras manifestações artísticas, tais como uma peça teatro; além disso, criou expectativa de se formar na área de Letras. Merece destaque o papel decisivo de uma de suas professoras que “mudou a área de Língua Portuguesa”, ao oferecer a literatura como algo prazeroso, aliado às boas condições da sala de leitura da escola. Embora ela tenha apresentado uma valorização sobre o papel da literatura em sua vida, durante alguns momentos, quando questionada sobre as pessoas que não tinham acesso a livros e a literatura, evidenciou-se um discurso de culpabilização dos mesmos, como se dependesse apenas dos interesses individuais de cada um. Tais aspectos fazem parte do ideário neoliberal e poderão ser superados, à medida que Bruna for desenvolvendo sua consciência sobre a realidade social e ao se perceber como parte da realidade mais ampla. Há de se pontuar que ela explicitou expectativas de ingressar na universidade: esse poderá ser mais um espaço ímpar no desenvolvimento da consciência de classes e de apropriação do conhecimento científico.

Para complementar o quão perigoso é o discurso de Bruna, apresentam-se alguns dados ilustrados por Failla (2012). No Brasil, em 2011, 50,00% da população se considerava leitora. Esses dados ilustram uma redução em 7,4 milhões do número de pessoas que se consideravam leitoras em 2007 (55,00%). Constatou-se que 78,00% dos que não liam justificaram a falta de interesse, seguida pela falta de tempo (50,00%). Na identificação do perfil dos leitores, 76,00% tinham nível superior, 79,00% pertenciam à classe A e 42,00% mencionaram a Bíblia como a obra lida nos últimos meses. Tais dados explicitam as desigualdades sociais presentes no Brasil e o processo de alienação no qual a sociedade está imersa. Para agravar a situação, parcela significativa apontou a Bíblia como a última obra lida, sendo que ela possui caráter mítico e religioso.

Ao mencionar algumas práticas não filmadas e que Bruna participava regularmente, ela mencionou as aulas de violão e guitarra (projeto social ligado à prefeitura), como o grande motivo que a fazia apreciar viver naquela localidade.

Primeiro eles anunciaram que haveria aulas de guitarra, daí eu pensei em fazer. Sei lá, eu contrariei todo mundo. Porque eu achava que eu não era boa em nada, e eu descobri que eu era boa em três ou quatro tipos de instrumentos. Eu já fiz bateria, teclado, mas é no violão e guitarra que eu estou me aprofundando (BRUNA, INFORMAÇÃO VERBAL).

Ressalta-se o fato de Bruna ter acreditado que não era boa em nada, ao passo que, quando descobriu a música, passou a se sentir valorizada - algo que pode ser visto como um mecanismo de favorecimento de sua autoestima. De maneira geral, as atividades artísticas têm sido fundamentais para que ela se sinta fortalecida frente às intimidações sistemáticas (bullying), sobretudo em função de ser uma “evangélica radical”.

No que se refere à Patrícia, no segundo dia de filmagens, ela foi presenteada com alguns livros em ótimo estado de conservação, os quais a tia encontrou jogados em uma lixeira. Durante um dos momentos de filmagens, seus pais mencionaram que nunca gostaram de ler, mas que ficavam impressionados com o quanto ela gostava de tal atividade. Ela disse ter lido livros inteiros em apenas um dia e que os mesmos a fazem esquecer-se dos problemas presentes em sua vida. Ainda destacou os incentivos que recebia na escola, por parte de suas professoras para que realizasse leituras, aliados às boas condições da escola.

Enfoca-se, a partir da fala dos participantes, a importância do contato com a música e a literatura, ou seja, da arte em suas trajetórias de vida, para o seu fortalecimento frente às situações de bullying. Para Vigotski (2007), a arte deveria ser estudada em conexão com os demais aspectos da vida social, mediante os seus condicionantes históricos concretos. Barroco (2009) complementa que o ser humano desenvolve criatividade por meio do contato com a arte. Por meio de suas produções, os homens revelam sua história e a história humana. As produções individuais carregam as marcas da coletividade e possibilitam situar as histórias de vida dos sujeitos singulares. Nesse processo, a constituição do psiquismo humano, que conta com o auxílio das funções psíquicas superiores, se processa sob a condicionalidade sócio-histórica e dentro dos limites que as classes sociais lhes impõem.

Tal premissa reforça a importância que pode ter a escola diante de um projeto contra-hegemônico. Faz-se necessária a apropriação dos bens materiais e dos bens simbólicos (música, filmes, literatura, poesia, teatro, além de outras linguagens artísticas), por meio dos quais os indivíduos possam se humanizar, ao desenvolverem pensamentos, sentimentos, consciência e personalidade (GANDRA; VIOTTO FILHO; PONCE, 2012). As manifestações artísticas e literárias cumpriram papel fundamental na vida dos participantes, vítimas de bullying escolar, assim como as produções culturais mencionadas no eixo anterior. Por mais que elas tenham os auxiliado a se sentirem valorizados e encorajados a superarem as adversidades experienciadas, dentre elas o bullying, por meio da resiliência em-si, tal enfrentamento é pontual. Os estudantes continuam centrados no modelo de organização social que produz tal manifestação de violência.

5 SÍNTESE

Ao se basear na Teoria Histórico-Cultural, que está assentada no referencial epistemológico e filosófico do Materialismo Histórico Dialético, os objetos de estudo aqui analisados, o bullying escolar e os processos de resiliência em-si, foram entendidos para além de suas conceituações neoliberais, amplamente difundidas em diferentes espaços de divulgação e explicitação do conhecimento científico-humano. Não há como estudar tais constructos sem articulá-los com a estrutura social mais ampla, a fim de se romper com o modo dominante de pensar. Há de se concebê-los em sua totalidade, diante da síntese de suas múltiplas determinações, caso contrário, continuarão sendo fenômenos idealistas.

Constatou-se, ainda, que os participantes apropriaram-se em maior ou menor intensidade, de acordo com sua inserção social, de algumas objetivações humanas, presentes no contato e participação em atividades e espaços que contemplavam o lazer e os exercícios físicos, bem como no contato com a música, literatura e outras manifestações artísticas. Esse processo os orientou frente à formação de suas personalidades e os auxiliaram, inclusive, num posicionamento ou enfrentamento do bullying escolar vivenciado, por intermédio dos processos de resiliência em-si.

Entretanto, tais formas de posicionamento ou enfrentamento são limitadas, ao passo que os processos individuais de constituição da personalidade humana são expressões das condições e contradições postas pelas circunstâncias objetivas de vida, que engendram a construção dos pensamentos, formas de ser e agir. Esse não é um processo linear, mas contraditório, submetido ao desenvolvimento da história. A personalidade de cada indivíduo vem se construindo a partir do contato com a realidade objetiva, incorporadas ou não as possibilidades para uma atividade consciente. Quanto menores são essas possibilidades, mais fragmentados são os motivos e ações presentes na atividade humana. Isso coincide com a superação momentânea das adversidades vivenciadas, no caso aqui analisado, o bullying escolar, sendo que ao mesmo tempo, os indivíduos continuam centrados nos processos de relações instauradas historicamente pelo capitalismo.

Uma das limitações da investigação, e que merece atenção, diz respeito ao fato de se ter partido de uma conceituação de bullying que não abrange aspectos históricos e sociais. Embora se tenha minimizado esse aspecto ao longo do artigo, tal dimensão precisa ser superada por incorporação em futuros estudos.

Revisão gramatica do texto sob responsabilidade de:

Gislene Aparecida da Silva Barbosa

Doutora em Educação

E-mail:barbosagislene@gmail.com

3Recorte de tese doutoral, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

4Pode parecer trivial, mas a palavra bullying apresenta uma carga ideológica que a circunscreve em determinada forma de se pensar, divergente da proposta pelo artigo. Todavia, por falta de espaço essa análise do conceito, com posterior proposição de outra nomenclatura será realizada em outra publicação.

5Bolsa FAPESP, Capacitação Técnica Nível I em 2006 e Nível III em 2007.

6Ao eleger essas categorias, outras não foram contempladas no recorte da tese que originou este artigo, em especial as que discutem a apropriação cultural por meio do processo educativo (transmissão da cultura acumulada), assim como os demais espaços de socialização: família e comunidade. Tal escolha vem diante da necessidade de enfatizar as apropriações culturais que fortaleceram os jovens, vítimas de bullying.

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Recebido: 12 de Janeiro de 2018; Aceito: 26 de Junho de 2018

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