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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.2 Campinas Apr./June 2019  Epub Sep 19, 2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i2.8653393 

DOSSIÊ

CORRESPONDÊNCIAS SOBRE O OUTRO NA EDUCAÇÃO ESPECIAL1

CORRESPONDENCES ABOUT THE ‘OTHER’ IN SPECIAL EDUCATION

CORRESPONDENCIAS SOBRE EL OTRO EN LA EDUCACIÓN ESPECIAL

Carla Vasques2 

Wladimir Ullrich3 

2Doutora em Educação. Professora - Faculdade de Educação; Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: k.recuero@gmail.com

3Mestre em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre, RS - Brasil. Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: vladslav1976@gmail.com


RESUMO

O outro como tema na educação especial provoca um impasse no campo das licenciaturas. Algo no encontro com a deficiência causa estranhamento e essa não parece subsumida nem mesmo às diretrizes inclusivas. Buscamos compreender a perplexidade - ou mesmo a impossibilidade - envolvida no processo de tornar-se professor desse outro, quando a racionalidade moderna afirma um mundo dividido em dualismos e dicotomias. A fim de abrir espaço para a estranheza que precede e persiste na lição de nossos alunos, e divergindo de tal racionalidade, adotamos como referencial metodológico e teórico o ensaio O inquietante (1919), de Freud. A conversão freudiana ao literário justifica a escrita de uma carta como experiência formativa. Uma carta envolve a presença do outro, faz-se pela suposição de um interlocutor. Em resposta ao chamado por implicação, a correspondência se apresenta como possibilidade de uma racionalidade diversa na formação docente.

PALAVRAS-CHAVE: Educação especial; Formação de professores; Licenciaturas; Modernidade; Psicanálise

ABSTRACT

The "other" as a topic in special education raises an impasse within the field of undergraduate degree (Licenciatura). Something in the crossroads with disability causes strangeness and this does not seem subsumed under inclusive guidelines. We seek to understand the perplexity - or even the impossibility - envolved in the process of becoming a teacher to such "other", when modern rationality states that the world is divided in dualisms and dichotomies. In order to make room for the strangeness that preceeds and persists in our students´class works, and diverging from such rationality, we adopted as methodological and theoretical reference Freud´s 1919 essay The Uncanny. The Freudian conversion to the literary justifies the writing of a letter as a formative experience. One letter involves the presence of the other - it is done under the supposition of a recipient. In response to the call for implication, correspondence presents itself as the possibility of a different rationality in teacher training.

KEY WORDS: Special education; Teacher Education; Undergraduate (Licenciatura); Modernity; Psychoanalysis

RESUMEN

El otro como tema en la educación especial provoca un impasse en el campo de los profesorados. Algo en el encuentro con la deficiencia causa extrañamiento y esta no parece asumida ni siquiera en las directrices inclusivas. Buscamos comprender la perplejidad - o incluso la imposibilidad - presente en el proceso de volverse profesor de ese otro, cuando la racionalidad moderna afirma un mundo dividido en dualismos y dicotomías. A fin de abrirle espacio al extrañamiento que precede y persiste en la lección de nuestros alumnos, y, divergiendo de dicha racionalidad, adoptamos como referencia metodológica y teórica el ensayo Lo siniestro (1919), de Freud. La conversión freudiana a lo literario justifica la escritura de una carta como experiencia formativa. Una carta incluye la presencia del otro, se hace por la suposición de un interlocutor. En respuesta a la llamada por implicación, la correspondencia se presenta como posibilidad de una racionalidad diversa en la formación docente.

PALABRAS-CLAVE: Educación especial; Formación de profesores; Profesorados; Modernidad; Psicoanálisis

Originalmente as palavras eram mágicas; e ainda hoje conservam muito da velha

magia. Com palavras uma pessoa pode tornar outra feliz ou levá-la ao desespero, com palavras o professor transmite seu saber aos alunos, com palavras o orador arrebata uma plateia e determina os julgamentos e decisões de seus ouvintes. Palavras despertam afetos e são o meio universal de os homens influenciarem uns aos outros.

Sigmund Freud

1 ESCREVA-NOS UMA CARTA

A educação especial se constituiu como campo de saber e modalidade de atendimento educacional ao se apropriar da deficiência como objeto científico, deslocando-se paulatinamente das explicações religiosas que precederam a modernidade. Esse decurso desencadeou a criação de diferentes categorias e procedimentos destinados à identificação do seu público-alvo, à constituição dos especialistas e à proliferação de instituições destinadas ao asilo, ao tratamento e, mais recentemente, à educação daqueles considerados deficientes, constituindo uma racionalidade híbrida, tramada a partir da pedagogia, da medicina e da psicologia. Como argumenta Plaisance (2015), essa modalidade educacional foi estabelecida sobre a cultura da separação. Nesse caso, aqueles considerados anormais, diferentes ou mesmo ineducáveis frequentariam instituições separadas em classes ou estabelecimentos especiais. Tais instituições tinham por objetivo aproximar crianças e adolescentes com deficiência a um padrão considerado normal - de desenvolvimento, de comportamento e de inserção na cultura.

O Brasil, em diálogo com diferentes movimentos e instituições internacionais, tem buscado redefinir seus conceitos e práticas, sobretudo a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008. O documento enfatiza mudanças na organização escolar, na gestão, no financiamento e no currículo, de modo a fazer operar os direitos à educação, à diferença e à igualdade. No plano normativo, a Resolução nº 04/2009 do CNE4 e o Decreto nº 6.949/20095 especificam que a escolarização dos alunos considerados com deficiência ocorra no ensino comum, com efeitos que se manifestam na ampliação das matrículas nas escolas regulares e na exigência de qualificação dos docentes e demais profissionais da educação. Ao conjugar igualdade e diferença como valores indissociáveis, a PNEEPEI (BRASIL, 2008) e os documentos subsequentes procuram incidir sobre a histórica produção da exclusão dentro e fora da escola. A formação de professores sob a égide inclusiva se torna, assim, imprescindível para sustentar a instituição escolar e o acesso ao conhecimento como experiências constitutivas para todos e para cada um.

A despeito da letra da lei, não é dada a devida consequência à discussão sobre a alteridade no campo da educação especial, seja em sua vertente dita inclusiva, seja na abordagem que é feita em torno das práticas e da formação docente. Diferentes pesquisas demonstram a educabilidade e a validade da convivência entre pares como alvos de estranhamento e desconforto junto aos docentes; experiências escolares consideradas inclusivas são reduzidas a práticas mecanicistas, restando ao especial a marca da anormalidade e uma inserção na escola sob os auspícios da desconfiança, da normatização e do empobrecimento na relação com o outro - um lugar marginal (RAHME, 2014; JATOBÁ, 2016). Se a formação continuada, eminentemente destinada aos professores especialistas, pouco conjura outras formas de reconhecimento, há, nos cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, em nível médio e superior, de instituições de ensino públicas e privadas, um silêncio ruidoso e constrangedor no que se refere ao saber-fazer docente em contextos inclusivos. Os currículos e as pesquisas parecem ter relegado a segundo plano a formação inicial de professores para atuar no ensino básico na interface inclusiva (MÔNICO, MORGADO, ORLANDO, 2018). Ademais, as licenciaturas, em sua maioria, ainda pressupõem um saber-fazer docente destinado a um aluno ideal, em geral, muito distante daquele identificado como público-alvo da educação especial ou lido apenas sob a lente genérica de sua deficiência ou diagnóstico.

É nesse contexto, por exemplo, que o conhecimento científico sobre as síndromes - sintomas, prognósticos, etc. - torna-se um discurso fascinante e eficaz no âmbito da formação de professores, do ensino especializado e dos processos inclusivos. A eficácia e a fascinação derivam da forma: um modelo explicativo onde tudo está organizado, listado e aparentemente contemplado. Representa-se algo considerado claro, concluso, conhecido, capaz de ser traduzido, inclusive, em manuais psiquiátricos e pedagógicos. Veem-se os genes, sabe-se das leis e das causas; destes, decantam-se currículos e didáticas. “Na recente produção acadêmico-científica brasileira, o diagnóstico médico-psicológico é central ao determinar as práticas pedagógicas e, sobretudo, limitar as formas de conhecer em educação especial” (VASQUES, 2015). Esvaziados de seu caráter enunciativo, o comportamento, o gesto e o silêncio são, nessa perspectiva, enquadrados, depurados pelos inúmeros questionários e escalas de medidas, a ponto de perderem o valor de palavra dirigida a alguém. Desejo por transparência, clareza e diafaneidade - a antiga Alegoria da Caverna de Platão parece persistir6. Poder-se-ia apostar: é sob essa persistente luz que ainda se lê o outro na educação especial. Contudo, quais os efeitos dessa equação pretensamente harmoniosa frente às desmesuras do humano?

Em oposição a essa leitura clara e diurna, podemos oferecer outra forma de ler e escrever: noturna, difusa, com limites e certezas borrados. “Durante o dia, a biblioteca é um reino de ordem. [...] . À noite, porém, a atmosfera é outra. Os sons se abafam, os pensamentos se fazem ouvir” (MANGUEL, 2006, p. 20). A aventura da palavra, às sombras, não dá as costas para o mundo e sequer ignora os restos diurnos, apenas persiste contra verdades naturalizadas; afirma o direito comum de duvidar, perguntar, discordar e, quem sabe, promover encontros insólitos e inusitados: “é à luz que lemos as invenções alheias; sob a escuridão, inventamos nossas próprias histórias” (idem, p. 224).

Inspirados nessas palavras, ou ainda, pela potência de contar e contar-se em uma história, costumamos solicitar, em nossas salas de aula, a escrita de uma carta que tematize a experiência de cursar uma disciplina sobre intervenção pedagógica e sujeitos com deficiência7. Uma educação inclusiva, defendemos, certamente proporciona encontros diante dos quais não se deve recuar em termos práticos, teóricos e éticos. Não se é professor sem envolvimento com o mundo, tampouco sem ao menos se supor em uma cena educativa. Apostamos que esse exercício de escrita, após a desnaturalização das tradicionais formas de conhecer em educação especial, pode profanar o discurso técnico e normalizador característico da formação de professores para a educação básica ao promover outro modo de comprometimento na cena educativa.

Uma carta envolve a presença do outro, e a letra de nossos alunos têm demonstrado a potência dessa narrativa endereçada: Carta para os mortos. Carta ver-melha. Carta para Emily Dickinson. Carta para uma mãe. Carta para um outro Eu. Como leitores das cartas, somos também implicados pelo que se deu a ler. Consequentemente, não nos furtamos de dar letra a isso, instigados, sobretudo, pelo que, nesses escritos, advém do encontro com o inesperado, causando desarvoramento. O presente ensaio é efeito da lição de nossos alunos, de suas respostas ao nosso chamado por implicação, onde a correspondência se coloca como possibilidade de uma racionalidade diversa na formação docente. E a leitura da lição é a escuta daquilo que o texto diz, do que nele comparece repetidamente: a perplexidade ou a possível inexequibilidade em relação ao fazer-se professor de um outro considerado sob a luz da educação especial. Mas também do que fica por dizer, por pensar e perguntar. Uma lição que, ao trazer à tona os efeitos daquilo ou daquele que parece permanecer à margem da educação, nada mais faz do que atentar à radicalidade contida no próprio desejo de educar. Portanto, em nada deixando de responder ou sequer se afastando do próprio centro normativo da educação e da resposta que se espera que ela dê a esse outro.

O argumento desdobra-se em três seções, abertas por excertos de cartas escritas nesse contexto formativo, por meio das quais se busca compreender uma problemática estabelecida no âmbito da educação especial, mas também apresentar uma possível abordagem a essa, bem como considerar seus efeitos. Em um primeiro momento da escrita, tendo como pano de fundo a história das ideias, esse outro é pensado como resultado de um mundo platonicamente concebido e cartesianamente conduzido, sendo realizadas, nesse sentido, duas abordagens inter-relacionais da experiência da modernidade: como fato histórico e como experiência subjetiva. Essas visam expor registros complementares de uma problemática que desde então se põe: pois, se a divisão do mundo e do ser que se dá fundamentalmente pela dicotomia estabelecida entre um mundo das ideias e um mundo sensível - ou entre a coisa pensante e a coisa extensa - conduziu por um lado ao primado da subjetividade e a uma concepção racionalista de homem, por outro lado “no que tange às ciências, ela estabeleceu a quantificação do ser, a possibilidade de medir o mundo e calculá-lo” (STEIN, 1976, p. 105), incidindo, inevitavelmente, na educação e de modo mais agudo nas formas de conhecer em educação especial.

No entanto, a despeito dessa vontade por conhecimento e determinação de si e do mundo, algo no encontro com a deficiência causa estranheza, perplexidade - há um desencontro com o outro - e essas não parecem subsumidas nem mesmo às diretrizes inclusivas. Desse modo, com o intuito de responder à essas consequências e oferecer alternativa à naturalização e universalização de certas categorias e dicotomias que constituem a predominante concepção moderna de homem e sujeito, é que a tentativa de compreensão do outro na educação especial tem, nos momentos seguintes do texto, seu eixo deslocado pela aproximação à psicanálise.

Para dar lugar ao que caracterizamos como uma inquietante estranheza que precede e parece persistir na lição de nossos alunos, bem como legitimar nossa conversão ao literário (CERTEAU, 2011, p. 94) no âmbito da formação de professores, tomamos como referência o ensaio O inquietante (1919), de Freud. Buscamos, com ele, aludir ao método freudiano enquanto uma ciência da literatura, e assim justificar a escrita de uma carta como experiência formativa. Desse modo, ao destacar e apostar na força das ficções teóricas apresentadas por Freud e no seu papel na interpretação e na percepção que temos da realidade (GARCIA-ROZA, 1994; MASSCHELEIN, 2011), intentamos não apenas desdobrar as dificuldades do viver pela via literária ao permitir que se considere o mal-estar, a ruptura e o enigma como constitutivos do viver juntos. Mas, também, destacar possibilidades abertas por uma teoria que coloca em xeque o primado da consciência e a postura reivindicante de determinação do homem moderno. Pretende-se assim, oferecer uma alternativa epistêmica para a reflexão sobre o outro na educação especial que permita uma renovação do educar e das formas de conhecer nesse contexto, respondendo também ao compromisso ético ao qual o discurso psicanalítico nos convoca em um cenário intersubjetivo por excelência.

2 UM QUADRO BORRADO

[...] Desculpe-me a formalidade, mas precisava abrir caminho para o que escrevo a seguir, para dar forma a uma necessidade de lidar com certo sentimento ruim, certa sensação estranha. A questão, por sua vez, parece simples: pense na imagem que temos da educação. Pense, a despeito de alguns que falam em “educação impossível”, naquilo que dela verdadeiramente esperamos. Pense naquilo que planejamos. No que queremos de nossos alunos, no conhecimento que pretendemos a eles passar. Na retribuição que almejamos através do seu aprendizado. Há uma razão para a educação. E ela está lá, em nossas políticas educacionais, em nossas leis, e nos parâmetros e diretrizes curriculares que a elas respondem.

[...] No entanto - e esse é o motivo do incômodo, bem como da escrita -, o quadro tão bem pintado pode ser borrado. Basta que surja no horizonte de um aluno em formação docente algo para o qual ele não estava preparado. Que, em uma disciplina obrigatória de um curso de graduação em licenciatura, esse futuro professor seja convocado a pensar em um aluno diferente da maioria - aquele identificado como especial - e em uma intervenção pedagógica que atenda à especificidade desse aluno no contexto da escola regular. Ocorre que pode se colocar entre ele e a realização dessa tarefa nada menos que o espanto, o desconcerto. Se antes o processo de aprendizagem vinha sendo pensado com vistas à realização do potencial humano, o que fazer agora? [...] 8

Pensar o outro na educação especial pode ser considerado um desafio posto por um jogo de forças que experienciamos diante do estabelecido como a imperfeição e a perfeição, o irracional e o racional, o dentro e o fora, a identidade e a diferença, o normal e o anormal. É de uma árvore plantada na modernidade, onde essas dicotomias, dentre outras, surgem ou ganham maior contorno e força, que o fruto da educação especial cai. Isso significa lembrar que os termos educação e especial, e correlatos deste último, como deficiente e anormal, nem sempre estiveram sob as mesmas aspas. Também a junção dos dois sob um único termo - uma convenção relativamente recente, estabelecida apenas no fim do século XIX - não pode ser compreendida sem considerar que os princípios que moldam a educação especial remontam, em grande parte, ao pensamento moderno.

É nesse tempo, quando os consolos da religião se tornam inverossímeis e a “virada antropocêntrica” (TAYLOR, 2010) está posta, que aquilo que antes “não era um problema principal, nem visto de qualquer maneira especial, [...] simplesmente parte do lote da miséria humana” (ARMSTRONG, 2003, p. 9), passa a exigir resposta. Uma resposta que, ao se opor às trevas medievais e se orientar por uma ideologia humanista/racionalista, cobrará o seu preço: o preço de lançar o homem em um campo dinâmico onde, à luz do conhecimento e do esclarecimento, o processo civilizatório se desdobrará para dar conta de certas relações estabelecidas, por esse próprio processo, como oposições. Pois, não é apenas a oposição entre normal e anormal que surgirá por volta do século XVIII. Outros termos, como bárbaro, identificado desde a Antiguidade com a ideia de estrangeiro - logo sem conotação deveras negativa até esse período -, serão ressignificados a fim de manter firme os princípios de um novo tempo e a ideia de homem então defendida, produzindo, nas palavras de Joel Birman (2002), uma partição do mundo sedimentada fundamentalmente pela oposição civilização e barbárie.

Diante disso, o remédio consistiu, em grande parte, na aproximação cautelosa desse outro, o diferente, para tentar compreendê-lo e o explicar; para controlá-lo e não o temer. E, se isso se deu pela pretensão de tudo compreender, identificar, categorizar, ou se por meio de uma complexa estratégia no jogo de inclusão/exclusão, no limite pouco importa. Restou um mundo partido entre o eu e o outro, entre nós e eles. Resultado de um pensamento alienado, mas também estímulo para ele. E onde o isolamento do diferente, mesmo velado, passou a ser tomado como dispositivo de garantia da ordem e de uma preciosa lógica instaurada, a qual, por meio da estipulação de categorizações, abordagens e instituições para o atendimento de indesejáveis especificidades humanas, procura administrar o que foge a certo padrão por ela estabelecido.

Sob diferentes disfarces, a partição do mundo continua a ser realizada. E não está apenas em jogo se superamos a distinção entre civilizados e bárbaros; ou se a aprimoramos por meio da identificação e da separação entre normais e anormais com o auxílio de uma ciência médico-pedagógica e processos de higienização. Ou mesmo se a resposta parece surgir com as diretrizes inclusivas. Tendo como pano de fundo a história das ideias, o que está em jogo também, e talvez de modo premente, é a partir de que tipo de pensamento certas perspectivas que deram origem e hoje circunscrevem com maior ou menor força a educação especial - como as perspectivas caritativa, médica e inclusiva9 - vieram a se constituir. Além disso: como, mesmo diante de toda uma aparente conotação ética que esses discursos pretendem carregar na tentativa de lidar com a diferença, um obstáculo muitas vezes na forma de mal-estar e estranhamento permanece.

É aqui que a questão do outro na educação especial precisa ser considerada para além da experiência histórica da modernidade, voltando-se propriamente para sua inter-relação com o viés subjetivo dessa experiência. Pois é nessa experiência da subjetividade, em meio aos conceitos e oposições por ela evidenciados e certa ideia de homem que ela historicamente produz, que o sujeito moderno se constitui. Desse modo, procurar entender como se deu a formação da identidade moderna coloca-se aqui como uma reflexão potencialmente auxiliar para se pensar a questão do outro e do que está subentendido em uma lógica identitária e normalizadora, bem como seus desdobramentos para a educação especial e para a formação de professores em um contexto que se pretende inclusivo.

Em As fontes do self, ao discorrer sobre a construção da identidade moderna, Charles Taylor (2013, p. 50) nos informa que há um modo pelo qual nos referimos às pessoas como “seres da profundidade e complexidade necessárias para ter (ou para estar empenhadas na descoberta de) uma identidade”, daquilo que é mais fundamental sobre si, o que equivale a se referir a cada uma dessas pessoas como um self10. Essa ideia de self está ligada, bem como também é elaborada por certo sentido de interioridade, a partir de uma poderosa oposição entre o dentro e o fora, tal como exposta na tese agostiniana de que “o mundo como o conheço existe para mim, é vivenciado por mim ou pensado por mim, ou tem significado para mim”11 (idem, p. 173).

A conclusão dessa virada para a interioridade é que nos embrenhamos em uma realidade dualista. Todavia, não é mais em um mundo platônico das ideias, mas no interior do homem que está o acesso ao bem; a verdade mora no interior. Assim, inaugura-se, com Santo Agostinho, “uma corrente de internalização que participou da construção da identidade moderna” (idem, p. 231), da qual fazem parte Descartes, Locke e outros pensadores racionalistas e que ainda exerce poderosa influência até mesmo sobre aqueles que desconhecem, por exemplo, a filosofia desses autores ou até rejeitam seus sistemas filosóficos. Uma forte razão para isso são os atrativos dessa “identidade antropocêntrica”: uma sensação de poder e capacidade de ordenar o mundo e a nós mesmos. “E, como esse poder está relacionado à razão e à ciência, a sensação de ter ganho em conhecimento e compreensão sobre esse mundo e sobre nós”. (TAYLOR, 2010, p. 358).

A ideia da subjetividade como interioridade, o conhecimento e a verdade se fundem então, desde a modernidade, em um poderoso corpus identitário, o qual atende à noção de self, a certa concepção de eu que se coloca sempre acima e do outro lado. Todavia, não sem um revés a ser sofrido, dado que “esse heliocentrismo egológico teve como consequência o surgimento de uma questão que pode ser considerada uma das aporias fundamentais do racionalismo: como justificar, a partir do Eu, a pluralidade dos sujeitos?” (VAZ, 2001, p. 69). Como evitar a instauração de “uma espécie de abismo metafísico entre o eu e o outro” (HERMANN, 2014, p. 12). Um abismo, vale lembrar, que não existe desde sempre; que, como toda construção ou elaboração humana, serve a um propósito, podendo ser interpretado como mais uma possível estratégia ou mecanismo de defesa, como nada mais que “expedientes de efeito passageiro” (TODOROV, 2013, p. 130) a atenuar os sintomas sem se voltar para as causas de um problema. Este pode acabar, então, sem pedir licença, por retornar como indesejável refluxo, como no campo educacional, onde o problema parece ganhar proporções maiores. Pois, se a escola e o agir pedagógico podem ser lidos como representantes da modernidade, neles se inclui o que se ajusta à norma, ao padrão, às máximas e aos princípios universais. E exclui-se aquilo que a isso foge, escapa, não se deixa conhecer e categorizar, acontecimento aqui corroborado pela escrita sobre um aluno de inclusão12:

[...] Ele não fala, por isto estou aqui e escrevo. Não consigo conceber isto: um aluno que não fala nada, mesmo tendo todo o aparato para tanto. É uma recusa? Uma renúncia à infância, à escola? Procuro compreender quem é este aluno, como ensiná-lo. Não sei onde amparar o trabalho, o que fazer com o planejamento. Como dar aula? [...]. Depois que escrevi minha carta sonhei que ele falava comigo. O que ele dizia? Não sei, não consegui escutar... [...] 13

Recusa, renúncia. De quem? E por quê? Afinal, sob o que se abrigam a exigência de unidade, as escalas do desenvolvimento, os testes de inteligência, os tempos de aprendizagem que, entre outros, conduzem a intervenções mecanicistas, amplamente influenciadas pelo cientificismo? Não é na esteira dessa lógica que a necessidade de um local especial e de uma técnica específica aplicada à deficiência são, até hoje, por exemplo, defendidos por muitos como elementos vitais para um processo educacional para esses alunos? Não são a investigação e a prática docente orientadas muitas vezes no sentido de construir um conhecimento supostamente certo e objetivo acerca do aluno e de sua deficiência? Não há ao menos um forte desejo de certeza em relação à definição do público-alvo da educação especial e de suas (im)possibilidades educacionais?

Quanto ao cientificismo, cabe lembrar que ele defende teses como a de que há uma ordem do universo que o homem pode compreender; que “o encadeamento inexorável de causas e efeitos deixa-se conhecer de maneira exaustiva, e a ciência moderna constitui a via real desse conhecimento” (TODOROV, 2005, p. 30). Nesse contexto - no qual humanistas e cientistas aliam-se para afirmar que o conhecimento racional do mundo é possível -, o que pode significar o encontro face a face com o aluno considerado deficiente? Como não reduzir o estranhamento e o mal-estar advindos desse encontro a pautas normalizadoras, aparentemente assimiladoras, se a essa lógica estivermos, mesmo que involuntariamente, curvados? Diante de uma moldura educacional impregnada pela modernidade e seu apelo ao racionalismo e à ciência, bem como à certa noção de subjetividade, se apresenta como algo provável a perpetuação de uma recusa a esse outro, o que abre caminho para a tese muito representativa de um longo momento histórico, a qual Todorov apresenta como espécie de corolário do cientificismo. Essa, como enuncia o autor,

[...] consiste, com efeito, em fundar, sobre o que se julga serem os resultados da ciência, uma ética e uma política. Em outras palavras, a ciência, ou o que é percebido como tal, deixa de ser um simples conhecimento do mundo existente e torna-se geradora de valores, à maneira de uma religião; ela pode, pois, orientar a ação política e moral. (TODOROV, 2005, p. 30-31) .

A Antiguidade ficou para trás. No entanto, a Alegoria da Caverna e a questão do conhecimento por ela trazida ainda se impõe e se atualiza. Razão, verdade, identidade, determinação. De um mundo partido à educação (especial). Dessa a um mundo partido. Que pareçamos experimentar uma espécie de refluxo, certo círculo vicioso, nada indica ser uma ilusão. Algo permanece inquietante, estranho. E o que é dito? Isso permanece difícil de escutar.

3 UM SALTO NECESSÁRIO: UMA “CARTA-CORDA”

Esta é uma carta para o Eu - mas não estritamente falando. É para um Eu qualquer, em um lugar qualquer; e só é carta em sua forma: a esperança é que sua substancia seja análoga a de uma corda - que este Eu a ler seja capaz de, com suas próprias mãos, sair do buraco obscuro que por tantas vezes nos encontramos sem nem ao menos nos darmos conta. [...]

O Eu é um solitário na multidão de Outros, e tantas vezes é incapaz de erguer os olhos do chão para encará-los de frente. Tantas outras, é incapaz de erguer os olhos para olhar a si mesmo no espelho. O exemplo que tenho a dar é mais específico ainda: as pessoas com necessidades especiais. Se sair da armadilha do Eu já é um obstáculo gigantesco, espere para ver o salto necessário para finalmente compreender a miríade de diferenças que existem entre os seres humanos.

"Mas sempre os considerei como pessoas!", talvez você esteja pensando. Espero que sim. Mas reflita comigo: Quantas vezes a consideração pelo Eu foi substituída pela imagem de um "Eu-especial" ou "Eu-diferente"? Veja bem, não estou lhe acusando. Espero tão somente que você reflita um pouco - quero apenas lhe estender esta corda por hoje. [...] Saiba, por enquanto: há outros de nós aqui fora do Eu. Pegue esta corda. Vai ser desconfortável, mas vai ser real.14

Em sua obra Freud e o inconsciente, ao discorrer sobre onde situar a psicanálise, Garcia-Roza (1994, p. 20) afirma que “ao fazer da consciência um mero efeito de superfície do Inconsciente, Freud operou uma inversão do cartesianismo que dificilmente pode ser negada”, atingindo em cheio “o ideal narcísico de uma consciência idêntica a si mesmo”. Com isso, ofereceu uma concepção de subjetividade diversa daquela estabelecida até então, operando, nas palavras de Thomas Nagel (1995), uma permanente revolução. Esta, como sugere o autor, não se volta para a ambição e atitude científicas que dão origem ao projeto freudiano, mas revelam sua importância e caráter transformador pelo fato de Freud levar a subjetividade para além de uma ideia de identificação e unidade com a consciência, fazendo com que os tipos de explicação por ele introduzidas ampliem substancialmente a compreensão de nós mesmos e dos outros, ao mesmo tempo que, em contraponto, podem “potencialmente perturbar o modo como experienciamos e entendemos nosso mundo interior” (MILLS, 2004, p. X) e a temática da alteridade.

A essa subjetividade herdeira de uma noção moderna, unificada de self, se opõe uma subjetividade clivada, indicando-nos que não há coincidência entre aquilo que pensamos e o que dizemos; o que se diz e o que se faz. O inconsciente não é um acidente dessa subjetividade mas, como pontua Garcia-Roza (1994, p. 229), o que a constitui fundamentalmente. Com a clivagem do sujeito somos levados a um outro espaço de questões. Um espaço que para ser acolhido demanda algo mais do que a linguagem da ciência, voltada para a precisão e a certeza. E que encontra voz na literatura, na ficção, na metáfora, as quais se apresentam não apenas como forma de expressão, mas também como elementos fundamentais de uma abordagem interpretativa, nomeada como ciência da literatura15. Para Freud, o termo literatura não se restringe a significar a familiaridade com grandes romances ou um sinal de distinção cultural. Implica também certo modo de conhecimento que faz a ponte entre os estudos médicos e as humanidades (RABATÉ, 2014, p. 3-4).

É a partir dessa ideia de conhecimento, portanto, que podemos pensar a linguagem psicanalítica e a teoria desenvolvidas por Freud. Como destaca Masschelein (2011), suas ficções teóricas funcionam como metáforas no sentido mais forte da palavra, orientando a interpretação e a percepção que temos da realidade, o que permite atribuir um estatuto especial à linguagem psicanalítica e propor essas ficções como "modelo para uma nova concepção de ciência que combine teoria e práxis e leve em conta a posição ideológica do pesquisador" (MASSCHELEIN, 2011, p. 130). A literatura e a ficção desempenham, para isso, papel fundamental. Elas são, certo modo, um poderoso pano de fundo para a interpretação psicanalítica; mas também são, muitas vezes, o veículo, a forma pela qual a explicação psicanalítica e a construção dessa teoria encontram expressão. São, pode-se dizer, ao mesmo tempo artifício e método por meio dos quais surgem construções teóricas que não descrevem, mas produzem o real:

[...] o fato de uma teoria emergir de uma série de fatos empíricos (no caso de Freud, de suas observações clínicas), ela implica um conjunto de conceitos que não são retirados dessas observações, mas que lhe são impostos a partir de um lugar teórico. Estes não são, pois, noções descritivas, mas construtos teóricos que não designam realidades observáveis ou mesmo existentes. São puras construções teóricas ou, se preferirmos, ficções teóricas que permitem e produzem uma inteligibilidade distinta daquela fornecida pela descrição empírica. Esses conceitos não descrevem o real, eles produzem o real; ou, se quisermos, eles permitem uma descrição do real segundo um tipo de articulação que não pode ser tirado desse próprio real enquanto “dado”. (GARCIA-ROZA, 1994, p. 114-115)

É nessa esteira, sob o pano de fundo de uma ciência da literatura, que podemos tomar a investigação realizada por Freud no domínio do fenômeno circunscrito pela palavra unheimlich, em seu ensaio O inquietante, de 1919. Neste, o autor parte da hipótese de que existe um núcleo especial de significado que justifica o uso desse termo específico para expressar aquilo que é não familiar, que desperta angústia e horror, seja no que refere à etimologia da palavra, principalmente na língua alemã, seja naquilo que é comum às diferentes vivências e situações que despertam em nós certo sentimento ou sensação por ela nomeados.

Por sua vez, o recurso à etimologia e mesmo à lexicografia no argumento do ensaio tem o objetivo de corroborar o exame das pessoas, coisas, impressões, eventos e situações que despertam em nós a sensação do inquietante (FREUD [1919], 2010, p. 340), os quais devem ser tomados em primeiro plano. Até mesmo porque, como afirma Freud, muitas línguas não tem uma palavra para expressar o seu ponto de interesse no ensaio, qual seja, certa nuance do que é assustador (idem, p. 332). Assim, que se chegue à afirmação de que heimlich (não estranho, familiar) é uma palavra que desenvolve seu significado na direção da ambiguidade, até afinal, em certo sentido, coincidir com o seu oposto unheimlich (ibidem, p. 340), não se segue disso que se dê conta de sua situação paradoxal como conceito, de certa oposição que parece resistir mediante a pergunta sobre como algo que se apresenta como terrível, nos confrontando com forças escuras em nós mesmos e despertando angústia e terror, pode também se apresentar, sob certo aspecto, como conhecido, como familiar.

A nuance que interessa a Freud, portanto, não se dirige à oposição entre heimlich e unheimlich. Mas, à certa ambiguidade e indeterminação que se coloca entre esses termos opostos, o que explica sua recorrência à formulação de Schelling de que Unheimlich seria tudo o que deveria ter permanecido secreto, oculto, mas apareceu"16 (ibidem, p. 338). Uma formulação que ainda poderia levar o leitor a se perguntar se essa definição do estranho corresponde a um sentimento real ou se lidamos com uma metáfora. Ao que se poderia responder que a relação entre real e metáfora - tendo em mente o outro espaço de questões em que Freud nos coloca - sequer se apresenta aqui como problemática, podendo ser tomada como necessária.

Retomando Garcia-Roza (1994), pode-se apostar que Freud opera no registro da metaforicidade para produzir o real, dando a esse fenômeno o estatuto de conceito psicanalítico. Afinal, o exame do que desperta em nós a sensação do inquietante vai ser ancorado não em fatos descritos empiricamente, mas em contos fantásticos, em especial na narrativa O Homem de areia, de E.T.A. Hoffmann17. Descrito por ele como de "efeito incomparavelmente inquietante", o conto dá forma ao que Freud nomeia como o “inquietante da ficção", o qual "é, sobretudo, bem mais amplo que o inquietante das vivências" (ibidem, p. 371). É pelo mote do temido homem que sempre retorna nas passagens decisivas da narrativa e arranca os olhos das crianças, que Freud procura definir essa espécie de angústia, de inquietante estranheza, na qual “o elemento angustiante é algo reprimido que retorna” (ibidem, p.360): “Pois, a conclusão da narrativa deixa claro que o ótico Coppola é realmente o advogado Coppelius e, portanto, também o Homem de Areia” (ibidem, p. 346).

Em outros termos, pode se dizer que Freud busca na literatura as muitas possibilidades que esta oferece para a obtenção de efeitos dessa natureza inquietante, com o objetivo de produzir uma inteligibilidade que não poderia ser encontrada a partir apenas da vivência, da empiria, ou mesmo de uma investigação etimológica ou lexográfica. É também a partir da produção de uma nova inteligibilidade, no cruzamento entre metaforicidade e análise conceitual, que ele dá corpo à teoria psicanalítica e sugere o tipo de conhecimento que essa deseja produzir, respondendo, em certo sentido, à tensão entre subjetividade e objetividade posta por um ideal de racionalidade. É assim que Freud consegue dar contornos mais nítidos à formulação de Schelling: o sufixo un é definido, ao fim, como a marca da repressão e o termo unheimlich não como algo realmente novo ou alheio, mas como “algo há muito familiar à psique, que apenas mediante ao processo da repressão alheou-se dela” (FREUD [1919], 2010, p. 360).

Referindo à carta que abre esta seção, talvez sempre tenhamos considerado os alunos da educação especial como pessoas; contudo também como um outro eu, Eu-especial ou Eu-diferente. Pode-se dizer que algo aqui permanece inquietante, difícil de nomear, desconhecido, porém familiar. E se esse self, se essa íntima identidade, se essa subjetividade interiorizada que controla a si própria como controla o mundo exterior pode ser pensada como o principal sintoma da doença moderna que ainda nos acomete, não se pode conseguir a cura reforçando-a. Provavelmente, o excesso de clareza, de luminosidade a envolver a experiência formativa em educação especial precise ser deixado de lado. Talvez seja preciso adentrar as sombras e suportar a noite pois, como sugere Freud em A Interpretação dos Sonhos: “O psiquicamente reprimido, que na vida de vigília foi impedido de achar expressão e cortado da percepção interna pela eliminação antitética das contradições, encontra na vida noturna [...] expedientes e caminhos para se impor à consciência”. (FREUD [1899], 2015, p. 636).

4 UM CHAMADO À LEITURA

[...] Como pensar essa intervenção pedagógica sem a desvincular do projeto de aperfeiçoamento da humanidade? O que essa educação especial quer mesmo? Qual sua finalidade? Enfim, quem é o aluno nessa educação que parece se arrogar como outra? Quem é o outro na educação especial?

Essas são questões que, uma vez colocadas, parecem, de modo incomodativo, não mais querer ir embora. É como se essas passassem a fazer parte de uma realidade que, mesmo contrariada, contradita, não consegue expulsá-las. São perguntas que parecem guardar um grande peso. Não somente o peso da história, de como a educação especial veio a se configurar como modalidade educacional, bem como espécie de forte representante de um projeto inclusivo. Mas, também porque parece guardar certo enigma.18

No âmbito da formação inicial de professores, poucas são as experiências que se ocupam da educação especial na perspectiva inclusiva, sendo esse percurso por vezes conduzido prioritariamente por uma retórica racionalista e cientificista, insinuando uma dificuldade de nos afastarmos do projeto de aperfeiçoamento da humanidade. No entanto, há algo que borra o quadro moderno pendurado em muitas paredes, algo que confronta a racionalidade instaurada e o desejo de ser professor. O outro da educação especial precipita a queda de alguns ideais - de aprendizagem, de ensino, de avaliação - e refuta, de modo contraproducente, certo poder, razão, invulnerabilidade e distância da irracionalidade que iluminam uma ideia moderna de eu. O encontro com a deficiência, diante da claridade e da clareza há muito apreciadas, causa inquietude, perplexidade, angústia. O estranho está fora, está no outro, ou ainda em diretrizes inclusivas que promovem o encontro com quem ou o que nem sempre reconheço. O excluído, o bárbaro, o anormal e o deficiente retornam para ser incluídos. Mas ainda estamos em um mundo partido, de questionáveis, porém ainda convenientes, dicotomias.

O que resta dessa queda? Em um contexto onde a inclusão é uma tarefa irrecusável, a proposta de escrever uma carta pode ter substância análoga a de uma corda a ser usada para sairmos do buraco do qual nem sempre nos damos conta em que estamos. A escolha desse artificio como forma de inscrever uma possível experiência não é, portanto, aleatória. Se o compromisso de formar esses professores se dá em contexto frágil, tenso e contraditório, seja em termos políticos, éticos e epistemológicos, há de se buscar uma outra inteligibilidade: diante de tais oposições, dar um salto. A carta é um convite para que se possa escrever sobre o outro da educação especial a partir de uma lógica diversa e difusa, embora não ingênua de dar as costas ao mundo, ignorando o que ele comporta de diurno. Uma lógica onde a magia das palavras e da narrativa podem nos conduzir a uma suspensão voluntária da descrença, onde podemos encontrar, como na vida noturna, enfraquecidos os nossos mecanismos de censura, permitindo que problemas difíceis de serem articulados no conjunto dos enunciados considerados mais aceitáveis, avançados ou científicos possam encontrar expressão.

É nesse viés que a conversão ao literário, por nós representada pela carta, encontra justificativa, especialmente para o argumento deste ensaio, em O inquietante, de Freud. É justamente o próprio exercício freudiano que está posto em causa: sua busca, na literatura, de outra inteligibilidade para aquilo que parecia fugir à racionalidade tradicional, de modo a dar expressão a algo não conceituável, a uma presença inquietante e familiar por ela não contemplada. Repetimos: o excluído retorna para ser incluído, em nosso caso, pelas recentes diretrizes inclusivas, e com ele traz à tona algo inquietante, porém familiar; algo desconfortável, porém, real. O espanto e o desarvoramento derivados daquilo para o qual não se está preparado, do encontro com aquele aluno que não fala nada, mesmo tendo todo o aparato para tanto, mobiliza algo que resiste às condições de nomeação e aponta para o que habita em cada um de nós, mas permanece recalcado. Trata-se de uma outra razão: a do inconsciente.

A escrita das cartas aqui tratadas, portanto, pode ser pensada como um artificio que permite inscrever o mal-estar; ao bordear o inquietante, permite uma vivência, mesmo que ficcional, de ser professor de um aluno com deficiência ao supor nesse aluno um sujeito. A carta, por meio de uma leveza que se opõe ao peso do científico, é uma tentativa de provocar implicação. Como estratégia, sustentamos, são elas que vem possibilitando perseguir nossas perguntas pelas formas de conhecer em educação especial. Pois, enquanto a ciência da literatura freudiana faz uma ponte entre os estudos médicos e as humanidades, nosso convite à escrita de uma carta é uma tentativa de construção de sentido onde parece faltar justamente o sentido, quando temos pela frente algo que não cabe sob um conceito. O encontro com o aluno da educação especial, que em sua singularidade sacode os alicerces de um frágil eu, pode ser pensado como esse momento onde a razão moderna mostra-se insuficiente. A carta então é corda, é ponte. O professor é chamado a escrever, a saltar para a literariedade; a não negar, mas sim, cair no estranho. Sua ficção desperta afetos, influencia a uns e outros e oferece à cena escolar um outro futuro possível.

REFERÊNCIAS

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1O presente trabalho contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (PROEX-CAPES).

4Resolução CNE/CEB n.º 04/2009: Institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial.

5Decreto n.º 6.949/2009: Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York em 30 de março de 2007.

6Embora Platão apresente a Alegoria da Caverna (Livro VII da República) tratando, em última análise, sobre a natureza da educação filosófica, pode se dizer que essa passagem aborda, de um modo geral, o efeito da educação na natureza humana. Para isso, lança mão de simbolismos e estabelece uma série de oposições, contrapondo a caverna, as sombras, a ignorância e a verdade superficial do mundo sensível ao sol, à luz, à razão, ao conhecimento da verdade real, ao Mundo das Ideias.

7A disciplina (Informação suprimida) é obrigatória para os alunos dos cursos de licenciaturas da (IES suprimida). Semestralmente, são ofertadas nove turmas para, aproximadamente, 450 alunos. A experiência ora compartilhada ocorre, desde 2011, em duas dessas turmas. As correspondências, por sua vez, constituem acervo de um projeto de ensino, pesquisa e extensão intitulado (Informação suprimida).

8W.B.U, Licenciando em Filosofia, 2011.

9Essas perspectivas são abordadas em (ULLRICH;VASQUES, 2017)

10Nossa opção por não traduzir o termo self neste texto encontra amparo em outras traduções, principalmente de cunho filosófico, que optam pela manutenção da grafia original, como na tradução da obra do nosso principal interlocutor nessa passagem, Charles Taylor, bem como pelo fato de que uma definição consensual do termo é justamente objeto de discussão no cenário filosófico. Como destaca esse filósofo, certa confusão ocorre pelo fato da “própria ideia de ter ou ser um self, de o agir humano ser essencialmente definido como o self”, é reflexo linguístico de nossa compreensão moderna e da reflexão radical que ela envolve. (TAYLOR, 2013, p. 31).

11Conforme expõe Charles Taylor (2013), é a partir da radicalidade do pensamento de Santo Agostinho que se pode compreender uma mudança em nossa compreensão das fontes morais e do entendimento de como se dá o acesso ao bem e à verdade e sua relação com a noção de identidade humana.

12Expressão recorrente nos discursos sobre educação especial.

13J.B. Licencianda em Biologia, cursando PIBID (2016).

14D. C. B. Licenciando em Filosofia (2016).

15Expressão referida por Freud em Uma breve descrição da psicanálise (1923) e A questão da análise leiga (1926).

16Para Freud, a etimologia peculiar do termo Unheimlich contraria a intuição e não se enquadra no esquema “familiar versus estranho” proposto por Ernst Jentsch, uma vez que a especificidade da sensação do estranho reside no fato de que algo é assustador não porque não é familiar ou novo, mas porque o que costumava ser familiar se tornou estranho. E é em Schelling que Freud encontra a frase que ele entende formular precisamente essa relação.

17O Homem de Areia faz parte dos Contos Noturnos (1817) de E.T.A. Hoffmann, sendo esse já apontado por Ernst Jentsch, interlocutor de Freud sobre o tema do Unheimlich, como um romancista muito hábil em produzir, em seus contos, efeitos dessa natureza.

18W.B.U, Licenciando em Filosofia, 2011.

Recebido: 11 de Setembro de 2018; Aceito: 29 de Outubro de 2018

Revisão gramatical realizado por:

André Luís de Souza Lima. E-mail: andrelslima82@gmail.com.

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