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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.2 Campinas abr./jun 2019  Epub 19-Set-2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i2.8653203 

DOSSIÊ

A ESCRITA AUTORAL DE MULHERES-PROFESSORAS

THE WRITING AUTHORSHIP OF WOMEN-TEACHERS

LA ESCRITURA AUTORAL DE LAS MUJERES-MAESTRAS

Margareth Diniz1 

Natália Goulart2 

1Doutora em Educação - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte, MG - Brasil. Docente - Universidade Federal de Outro Preto (UFOP) - Ouro Preto, MG - Brasil. E-mail: dinizmargareth@gmail.com

2Mestre em Educação - Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) - Ouro Preto, MG - Brasil. E-mail: nataliagoulartvintedois@gmail.com


RESUMO

O presente artigo trata da escrita feminina na formação docente. Quando nos atemos à formação docente, é inexorável atentarmos às histórias de vida das mulheres-professoras, posto que trabalhamos em prol de uma formação docente implicada, considerando a relação entre a docência feminilizada e o feminino. Como método de pesquisa utilizamos a pesquisa/intervenção por meio de oficinas, analisando as narrativas de vida das mulheres-professoras na relação com a escrita e nos perguntamos: O que quer a escrita das mulheres-professoras? Que corpo e histórias irão se inscrever na experiência/invenção com a escrita das mulheres-professoras? Que relação é esta que se estabelece entre a construção do gênero e a escrita feminina? Ao se falar de uma escrita feminina, de uma escrita que convive com o saber da falta, algo de novo pode ser reinventado, então é nesse lugar indecifrável que a escrita feminina desequilibra o paradigma, o centro. Como efeito da pesquisa/intervenção é possível dizer que o saber do vazio instaura um saber feminino.

PALAVRAS-CHAVE: Formação; Mulheres-professoras; subjetividade; escrita feminina

ABSTRACT

This article deals with female writing in teacher education. When we focus on teacher education, it is inexorable to look at the life histories of teacher-women, since we work for teacher training involved, considering the relationship between feminized and female teaching. As a research method we use the research / intervention through workshops, analyzing the narratives of life of female teachers in relation to writing and we ask ourselves: What does the writing of female teachers? What body and stories will enroll in the experience / invention with the writing of women-teachers? What relationship is established between the construction of gender and female writing? When talking about a feminine writing, a writing that coexists with the knowledge of the lack, something new can be reinvented, then it is in this indecipherable place that the feminine writing unbalances the paradigm, the center. As a result of the research / intervention it is possible to say that the knowledge of emptiness establishes a feminine knowledge.

KEYWORDS: TRAINING; WOMEN-TEACHERS; SUBJECTIVITY; FEMALE WRITING

RESUMEN

El presente artículo trata de la escritura femenina en la formación docente. Cuando nos ocupamos de la formación docente, es inexorable tomar em cuenta a las historias de vida de las mujeres-maestras, puesto que trabajamos en favor de una formación docente implicada, considerando la relación entre la docencia feminizada y lo femenino. Como método de investigación utilizamos la investigación / intervención por medio de talleres, analizando las narrativas de vida de las mujeres-maestras en la relación con la escritura y nos preguntamos: ¿Qué quiere la escritura de esas mujeres? ¿Qué cuerpo e historias se inscriben en la experiencia / invención con la escritura de las mujeres-maestras? ¿Qué relación es ésta que se establece entre la construcción del género y la escritura femenina? Al hablar de una escritura femenina, de una escritura que convive con el saber de la castración, algo nuevo puede ser reinventado, entonces es en ese lugar indescriptible que la escritura femenina desequilibra el paradigma, el centro. Como efecto de la investigación / intervención es posible decir que el saber del vacío instaura un saber femenino.

PALABRAS CLAVE: Formación; Mujeres-profesoras; subjetividad; escritura femenina

1 O GÊNERO: DA RIGIDEZ À PLURALIDADE DOS CORPOS

Ao percorrer o campo dos Estudos Culturais, sob uma perspectiva pós-estruturalista a respeito do gênero, nos referenciamos em Guacira Lopes Louro. De acordo com a autora, “gênero se refere ao modo como as diferenças sexuais são compreendidas numa dada sociedade, num determinado grupo, em determinado contexto (...)”. Louro (1997, p. 77) vai nos dizer que tomará esse conceito por outra perspectiva; não diretamente relacionado ao “desempenho dos papéis masculinos/femininos e sua fixidez (como muito se percebe em algumas análises dicotômicas sobre essa categoria), porém, compreendendo-o sob o viés da produção de identidades múltiplas e plurais de homens e mulheres, não sem antes pensarmos a estrutura masculino/feminino como dois polos separados”, o que mais tarde viria a ser implodido.

Compreende-se essa polarização - masculino versus feminino - como uma estrutura em que o masculino é marcadamente um espaço central e privilegiado, sem dúvida, ocupado pelo homem branco, burguês, heterossexual, cristão e jovem. Por outro lado, e à margem, a mulher, o negro, o homossexual, o idoso, mais propriamente os desviantes, o estranho, o que não é normal etc. Por meio da estrutura aparentemente simples que montamos, tal oposição binária assegura que um lado é sempre mais privilegiado-valorizado nessa dicotomia. Há, portanto, uma lógica de construção de identidades certamente regidas pela estrutura apresentada. Essa lógica só poderia rotular e fixar identidades de homens e mulheres pelo modo como são trazidas para a prática social, no interior de nossos contextos. Vejamos, então, alguns exemplos que nos permitem compreender e, mais adiante, interrogar a estabilidade dessa estrutura e sua suposta fixação identitária.

Em um primeiro momento, o pai negociava o futuro das filhas, sobretudo entre as famílias que tinham reconhecimento social e de classe. Figura-se, então, como detentor do poder, a centralidade paterna. O destino das mulheres na virada do século XIX para o XX está relacionado à vocação religiosa, pois, naquela época, para as famílias, ter alguém e, de preferência do gênero feminino, significava status e inserção social. Além das mulheres religiosas, donas do lar, dedicadas, frágeis e mães, havia as solteiras que cuidavam dos pais e eram financeiramente sustentadas por eles, de acordo com Louro (2008, p.446) que reconhece que as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”, pois, vinculadas oficialmente ao lar, tem com única via aceitável, desenvolver uma carreira doméstica, de modo a zelar pela família (filhos e marido).

Diferente dos destinos anteriores, as práticas de prostituição, as ‘mulheres da vida’, descolavam-se da moral familiar da época. Porém, “o custo disso é a marginalização. As ‘mulheres da vida’ só assim o foram - e o são - por pagarem o preço de uma maldição moral e de uma exclusão social”. (PEREIRA, 2006, p.63)

Se nos séculos XVIII e XIX assistimos uma identidade central e uma ascensão fixadora dos desempenhos de cada papel para homens e mulheres no interior da sociedade, no século XX, por sua vez, não só os movimentos feministas, mas outros de cunho político e social, como os étnico-raciais e os ecológicos, destacaram-se como questionadores das hierarquias privilegiadas, de acordo com Louro, 2008. E é nesse momento que a estrutura rígida e dicotômica entre masculino/feminino vai lidar com alguns possíveis desarranjos e desmontagens, no que se refere ao destino das mulheres, sua emancipação e deslocamento no interior da estrutura fixa que apresentamos.

De início, destacamos a primeira onda do feminismo, o sufragismo, o direito ao voto, interesse principalmente das mulheres brancas de classe média. Na segunda onda, no final da década de 1960, o movimento feminista irá se voltar para as questões teóricas, políticas e sociais, problematizando também o conceito de gênero. Nesse momento, o discurso de algumas feministas não se centrava mais na igualdade de sexos, mas em um “corte com o discurso de igualdade, pelo qual não se procura ser igual nem mesmo busca-se uma identidade contrária à do homem”. (NERI, 2005, p. 228). Além disso, as feministas também denunciavam a ausência da mulher na ciência, buscando, portanto, tornar a mulher visível e sujeito também desse espaço. Aos poucos, o verdadeiro universo da mulher, o espaço doméstico, era desafiado. O mundo do trabalho começa a ser ocupado por elas, porém de forma lenta, pois algumas ainda se viam entrelaçadas com a casa, com a prole, com a mentalidade doméstica construída no seio da cultura e que parece polarizar e unificar seus papéis e práticas sociais. Ainda “há uma gramática que produz discurso e leva sujeitos a investirem em suas posições identitárias”. (PEREIRA, 2006, p. 65).

É certo que a perspectiva biológica ainda interfira nas representações de gênero, marcando, definindo e estereotipando papéis de homens e mulheres, generalizando e contando histórias únicas e universais. E é justamente nos séculos XVII e XVIII, quando o discurso religioso tornou-se incapaz de explicar as diferenças entre homens e mulheres, que a perspectiva racionalista vai tentar explicar e preencher com a biologia alguns mistérios: é a presença do útero, da capacidade de gestação ou as diferenças hormonais que vão explicar a dicotomia masculino/feminino.

No entanto, com Joan Scott (1990) entende-se que as representações de gênero são construídas socialmente, não se dando de forma natural. A autora irá pensar o gênero como uma categoria de análise útil não somente para a história das mulheres, mas também para a dos homens, o que ampliaria as questões de desigualdade e das hierarquias sociais. A importância do conceito de gênero seria, então, uma maneira de opor-se ao determinismo biológico nas relações entre os sexos. Ainda com Scott (1992), a perspectiva pós-estruturalista oferece conceitos importantes à análise feminista, pois se trata de uma crítica literária que parte da linguagem, diferença, discurso e desconstrução, apoiada principalmente em Michel Foucault e Jacques Derrida.

O diálogo com Derrida nos interessa, porque o autor problematiza a noção de estrutura e suas lógicas centralizadoras. Propõe-se com o autor, a partir do pensamento da desconstrução, compreender e interrogar a estrutura masculino/feminino que atravessa este artigo.

O termo desconstrução não se refere a um movimento de anulação ou destruição de um determinado pensamento, ou à desarticulação deste de maneira negativa. Pode-se dizer que a problemática estruturalista foi o ponto de partida para que o autor desenvolvesse uma análise da noção de estrutura e a situasse no contexto de uma vasta e rigorosa abordagem de suas raízes e ressonâncias em toda a tradição filosófico-crítica. Quer dizer, “é preciso compreender esse jogo”, de acordo com Derrida, (1967), interrogar a estabilidade de um centro, questionar a suposta ideia de uma origem. A noção de desconstrução derridiana não pretende inverter e nem aniquilar um dos polos da estrutura, seja ela qual for. O que Derrida pretende é questionar a hierarquia que, em detrimento de uma centralidade, exclui e abafa um, ou vários, de seus componentes. Não é por menos que a ideia de desconstrução esteja ligada às causas minoritárias, mas desconstruir não quer dizer tirar de cena aquele que ocupa um lugar no jogo.

A crença na suposta estabilidade do centro, do ser como presença, da garantia e firmeza da consciência e da razão, da pureza do sujeito, diz Derrida (1967), esteve repetidamente inscrita à ideia de uma proibição, à interdição da transformação ou deslocamento dos elementos que constituem uma estrutura. Nesse sentido, “a estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, embora tenha sempre estado em ação, viu-se neutralizada, reduzida por um gesto que consistia em dar-lhe um centro, em relacioná-la a um ponto de presença, a uma origem fixa”. (DERRIDA, 1967, p. 230).

Entendemos assim, que o jogo da estrutura a que queremos compreender e desconstruir - o masculino/feminino - só poderia (re)velar o jogo de uma ausência e de uma presença, e não somente o jogo de uma neutralidade. Assim, como nos aponta Scott, no que concerne ao campo dos Estudos Culturais,

só podemos escrever a história desse processo, se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não tem significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas. (SCOTT, 1989, p. 28).

A estrutura masculino/feminino, ou melhor dizendo, a relação entre esses dois polos em seu sentido mais arbitrário só fez surgir uma marca de divisão, classificação, hierarquização. Desse modo, elegeu-se o polo masculino e tudo o que lhe cabe; a verdade, o poder, ‘o nós’, a força, o saber etc., como uma identidade normal e positiva. Diante disso, a demarcação, “a força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade”. (SILVA, 2009, p. 83).

No caso da identidade de gênero, a dominação masculina e aquilo que a classifica são evidentes a partir da justificativa biológica, embora se saiba que mesmo as leituras biológicas, valendo-se de discursos essencialistas, são culturais e interpretativas, “nascem do movimento de fixação que caracteriza o processo de produção da identidade e da diferença”. (SILVA, 2000, p. 86). Mas como é formada a produção da identidade e da diferença? Ora, a identidade e a diferença não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirimos sentido. Desse modo, se somos sujeitos estruturados na linguagem, a identidade e a diferença são fabricadas, reproduzidas e também subvertidas no contexto das relações sociais e culturais. Em outras palavras, no dentro da linguagem, a partir dos sistemas simbólicos é que a identidade e a diferença se (des)organizam.

No entanto, esse arranjo, a organização de uma estrutura não poderia permanecer estável, pois a linguagem “(...) é, ela própria, uma estrutura instável”. (SILVA, 2009, p. 78) Trata-se de pontuar que a linguagem vacila. Nesse ponto indeterminado, a identidade e a diferença que dependem da linguagem para significar (fazer sentido), tampouco são fixas, na medida em que compreendemos que a linguagem é incerta, ou seja, em sua estrutura algo balança, vibra, tem lá seu ponto de descentramento, possível de captura apenas pelo traço: “é preciso pensar a vida como traço antes de determinar o ser como presença”. (DERRIDA, 1967, p. 188). Não seria então a partir da noção de traço que o movimento, o deslocamento da estrutura masculino/feminino se intensifica? Ao desconstruirmos a lógica hierárquica da estrutura masculino/feminino e compreendendo o jogo também como possibilidade de deslocamento, ao mesmo tempo em que há uma repetição que reforça e garante a regalia do centro, é possível pensarmos em um movimento de disrupção, ou seja, de uma interrupção. Nesse sentido, “a repetição pode ser interrompida. A repetição pode ser questionada e contestada”. (SILVA, 2009, p. 95).

Diante disso, com Judith Butler (2003), a partir também do pós-estruturalismo e do campo dos Estudos Culturais sob uma perspectiva crítica, o gênero deve ser compreendido por meio de um olhar descentrado da visão biológica. O que tentamos dizer a partir da crítica derridiana sobre a noção de estrutura é que o sujeito precisa ser desconstruído do feminino ou do masculino, das amarras fixas e arranjos certos.

Trata-se, então, de considerar a não existência de corpos certos ou errados, mas, e sobretudo, feminilidades e masculinidades múltiplas, representações diversas e em constantes transformações. Mas vejamos, a seguir, a entrada da mulher no universo da escola e como a divisão de gênero, na perspectiva fechada dos papéis sociais, fixou a mulher-professora a alguns destinos e estereótipos, principalmente no que diz respeito à maternidade.

2 A SAGRADA MULHER-PROFESSORA: MÃE SEM SER MÃE, A MULHER PURA

Mãe espiritual, sagrada, solteira, pura, mulher de vocação no trato com os alunos e alunas, abotoada, carinhosa, ‘mãe da família escolar’. Essas são algumas representações, entre tantas, que marcaram e ainda marcam a mulher-professora e seus exemplares atributos, quando consideramos o gênero antes de sua implosão, quando somente estava ligado aos papéis sociais de homens e mulheres. Também à mulher-professora estaria atrelada a missão de ser mãe, mesmo sem ser mãe, na esteira do que se dava na Literatura e na imprensa, onde também as mulheres ocuparam tardiamente alguns espaços para além do lar. No cenário escolar, esse acontecimento também se deu de forma lenta e nada tranquilo.

A escola, como um espaço social de formação de meninos e meninas, homens e mulheres, “é, ela própria, um espaço generificado, isto é, um espaço atravessado pelas representações de gênero”. (LOURO, 1997, p. 77). Esse espaço, a princípio, não só no Brasil, mas em outros países, foi marcado pela presença masculina. No Brasil, a escola, no início, era conduzida pelos mestres jesuítas e direcionada para a formação dos meninos brancos da elite. O saber, ao longo dos séculos, era um privilégio dos homens, dirigido e exercido por eles.

No Brasil, as mulheres só ocuparam a escola no decorrer do século XIX. A entrada das meninas na sala de aula e das mulheres-professoras exercendo o magistério foi bastante contestada, pois entregar às mulheres a tarefa de educar as crianças seria problemático, já que para muitos, inclusive para o discurso científico, as mulheres possuíam cérebros pouco desenvolvidos. Alguns discursos apostaram que essa ampliação da escolarização às mulheres-professoras seria ideal, uma vez que a mulher, colada ao destino de ser mãe por natureza, seria essencial para a educação.

É importante sublinhar que o projeto de abertura do espaço escolar às mulheres, embora em alguma medida tenha seu grau de importância, não nos impede de pontuar que por detrás desse projeto nada ingênuo, as estratégias para que a mulher não se descolasse de seu destino primordial, o de ser mãe, também fixaram o papel da maternidade às mulheres-professoras.

A escola como extensão do lar só fez entrelaçar a representação da mulher-professora à figura materna, à sua vocação principal. Mulher dedicada, possuidora de virtudes, vigilante, amorosa e sensível. Louro (1997) nos aponta que essa representação fez sentido para algumas mulheres e que muitas delas conduziram suas vidas marcadas por tais papéis. Se a mulher, aos poucos, ocupava os espaços sociais, sua liberdade era seguida por um preço muito caro; o preço de uma representação única de mulher, assinada e construída pela produção e reprodução de estereótipos. Diniz (2006) nos ressalta que, tanto no trabalho, quanto na escola, a educação da mulher foi pautada a partir do silêncio e domesticação. Essa reprodução da ordem social estabelecida, “continuam presentes na representação social: frágeis, infelizes, passivas, alienadas, degeneradas, rancorosas, vítimas, faladeiras, queixosas”. (DINIZ, 2006, p. 47).

Ao mesmo tempo em que foi conferido à mulher o destino da maternidade e o de ser professora, pois ainda eram negadas a elas outras possibilidades no espaço social, é perceptível que, mesmo presas às demarcações discursivas, a luta pela presença nos espaços sociais trouxe certa visibilidade a elas.

Nesse sentido, não só a perspectiva pós-estruturalista nos interessa e nos serve para desestabilizar as estreitas representações de gênero, mas também o discurso psicanalítico, que nos coloca questões e deslocamentos, contrapondo-se aos vários discursos que antecipam e fixam a verdade dos sujeitos e, principalmente, a verdade da mulher e as certezas que lhes foram impostas, ainda que em diálogo tenso com as próprias feministas. De início, é imprescindível dizer, que “para a experiência psicanalítica, não há passagem automática do menino ao homem e da menina à mulher”. (DINIZ, 2006, p. 36).

Do silêncio aos primeiros ruídos, a Psicanálise na virada do século XIX se configura discursivamente como a primeira a problematizar a diferença, a diferença dos sexos, abrindo espaço ao feminino para além do gênero.

3 A PSICANÁLISE E O FEMININO: A CRISE DA RAZÃO E A CRISE DO MASCULINO

É importante abrir um parêntese sobre o final do século XVIII. Neste momento, já era possível encontrar alguns desarranjos quanto ao masculino e ao feminino, o que representava uma virada radical no pensamento ocidental. Não é por menos que a Revolução Francesa (1789) e a queda significativa do “Deus Monarca Pai” desequilibra a ordem fixa da hierarquia paterna marcando o início de uma ruptura das estruturas fixas entre masculino e feminino. Quer dizer, a morte do rei representaria um outro contexto para provocar as discussões sobre a hierarquia dos sexos. Se a monarquia foi rejeitada, pensar a democracia, tendo como autoridade a hegemonia masculina, o modelo do sexo único, seria incompatível com o discurso de igualdade.

Desde a Antiguidade até o século XVIII, o masculino tinha seu lugar estabelecido, sendo o princípio divino e a razão, ao passo que, o feminino seria nada mais que um desvio, uma falha; a expressão máxima de inferioridade e passividade. No contexto da Modernidade, a mulher começa a se inscrever na cena social, deslocando sua história do silêncio para a emergência de seu próprio discurso.

Para além da racionalidade filosófica, pois nesse período o saber está relacionado à certeza, um não-saber ressoa. Freud se propõe a escutar a fala emergente, a do feminino. Ao se interessar e de fato ouvir outro discurso, a voz e o mal-estar das mulheres - a partir da escuta das histéricas - Freud se interroga nesse terreno complexo dos corpos sobre a diferença sexual. Importante destacar que tudo isso acontece em um momento de crise do masculino e de crise da razão. A cultura do feminino começa, então, a atravessar e ocupar espaço.

Essa escuta a que Freud se dedicou seria a marca registrada da Psicanálise. O encontro com a histeria, a subversão do corpo anatômico nessa incessante relação com o pensamento para além da ordem biológica. Em estado de incerteza e crise, na ausência ou na presença, em outra realidade do corpo, a histérica se pergunta, então, quem sou eu: homem ou mulher? Frente a esse impasse, algo na fala das histéricas já anunciava um corte radical com a ordem biológica. Uma fala que subverte a ordem fixa da razão, anunciando um corpo para além do sujeito cartesiano, desmontando o eu da consciência para o inconsciente. Ou seja, corpo subjetivo que se interroga. Corpo vertiginoso, transbordante. Excessivo, intenso e pulsional.

É essa fala descentrada do corpo anatômico das mulheres histéricas que vai dizer a Freud sobre a crise de suas identidades sexuais. Em meio a essa tensão, o que queriam as mulheres? Queriam as mulheres o discurso masculino destinado a elas? Não seriam a fala das mulheres e o encontro obscuro com o feminino a virada radical do pensamento ocidental, a quebra do sujeito cartesiano, de um saber masculino racional, universal e único?

4 O FEMININO EM FREUD: ENTRE A ORDEM FÁLICA E A FEMINILIDADE

Em 1905, Freud inicia a formulação de suas questões sobre a diferença sexual com o texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, escritos que ao longo dos anos foram reformulados e repensados. Nesse texto, o autor estabelece o conceito de pulsão sexual e refere-se a ele como algo diferente do instinto. Um ponto considerável e de quebra do pensamento ocidental está no movimento de construção do conceito de sexualidade, não mais visto como uma dimensão à serviço da natureza, mas, sim, do prazer. Caminhando contra a corrente da produção de discursos naturalistas, essencialistas e de cunho moralista, Freud desloca suas formulações questionando os lugares fixos e preestabelecidos sobre a sexualidade humana. E ressalta em 1932, nas Novas Conferências Introdutórias que o que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida, que a anatomia não pode apreender.

A sexualidade, então, se constituiria nos processos mentais e não absolutamente direcionada para a anatomia dos corpos. E nesse sentido, também desloca a noção de passividade, direcionada ao feminino, e atividade, direcionada ao masculino, apontando que tais características se confundem. Como exemplo, Freud apresenta a relação da mãe com o bebê e como aquela é ativa nos cuidados com o filho. Na conferência XXXIII, intitulada Feminilidade, o autor nos diz que (...) “é insatisfatório identificar a conduta masculina como atividade e a feminina com a passividade”. ([1932], p. 88). Além disso, Freud também formula a existência de uma sexualidade infantil, grande escândalo para a época, dizendo que a criança - ao contrário da visão popular em que a pulsão sexual não existiria nessa fase - também tem um corpo erógeno, que demanda, experimenta.

Atendo-nos a outras formulações dos Três Ensaios (1905), Freud enuncia suas questões sobre a sexualidade, discorrendo sobre o caráter bissexual observado nos meninos e nas meninas, além de uma libido única de essência masculina. O autor concebe o conceito de monismo sexual, no qual aponta que as crianças não percebiam a diferença entre os sexos, pois acreditavam que o clitóris na menina iria crescer, tornando-se um pequeno pênis. Assim, haveria uma simetria entre o pênis e o clitóris. Ao se interrogar sobre o sexo da mulher, Freud pensa a sexualidade feminina em simetria com o masculino. Ou seja, a existência de um só e mesmo aparelho genital; o órgão masculino e seu correspondente nas meninas: “com respeito às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poder-se-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino”. (FREUD, 1905, p. 207). Nesse momento, somente o órgão genital masculino é conhecido, ao passo que na menina, os processos a respeito de sua sexualidade são pouco desvendados.

Ao nosso ver, a sexualidade masculina perpassa um caminho menos trabalhoso a Freud, pois, carregada de certezas pelo contexto em que estava, parecia mais visível e compreensível por ser ela dominante. Talvez, por isso, falar do feminino teria como extensão primeira o apoio no masculino. Mas não seria também, nesse momento de suas interrogações, a universalidade do pênis como sexo visível o caminho a que delineou suas primeiras ancoragens? Ora, a anatomia feminina nada dá a perceber. Desse modo,

a teoria freudiana da sexualidade fundou-se inicialmente no pressuposto de que primordialmente estaria sempre a masculinidade tanto para o menino quanto para a menina. A feminilidade então seria adquirida depois pela mulher, com a perda dessa masculinidade originária. Nesses termos, não nasceria jamais mulher, mas essa condição seria sempre uma construção segunda, advinda de uma transformação da masculinidade primordial. (BIRMAN, 2001, p. 213).

Na primeira teoria sobre a sexualidade, Freud apontava sobre a universalidade do pênis. Nesse percurso, não existe a antítese masculino-feminino, e, sim, masculino-castrado. No entanto, na virada dos anos 1920, percebe-se um deslocamento em sua obra quanto à sexualidade feminina e esta não mais em simetria com o masculino, mas assumindo, então, uma dinâmica própria.

Se antes havia a dominância do pênis como referencial, agora, entende-se como a primazia do falo. E quando Freud estabelece a noção de falo e percebe na fantasia da menina, no (des)encontro com suas sensações corporais, uma disposição masculina inicial, eis sua virada criativa para levar adiante a ideia de castração, não exclusivamente apoiada na anatomia, mas construída nos processos mentais. Se calcada na anatomia, como sofrer pela perda de algo que nunca se teve?

Em outras palavras, trata-se de dizer que a ordem fálica remete a um ter ou não ter. Ou seja, o falo é o significante da falta, não o órgão masculino, mas uma representação que se constitui a partir dessa parte anatômica. Vale dizer que a mulher para além de uma falta-a-ser, sofre de outra, numa dupla falta, ou seja, a lacuna de um significante específico de seu sexo no inconsciente. No entanto, podemos afirmar que ninguém possui o falo, pois o homem estará às voltas com a ameaça de sua perda. Embora esse percurso atribua à mulher uma dupla negatividade, ela não tem o que temer, pois sabe que algo lhe falta. Entre o não ter e sobre as possíveis ameaças de perder, tanto homens como mulheres são marcados pela falta. Desse modo, a noção de falo nos leva a duas maneiras de compreensão: o masculino remetendo a uma presença e o feminino a uma ausência.

E nesse momento, sob os contornos da noção de falo, Freud vai olhar para a sexualidade feminina, suas tensões e mistérios para além da anatomia. Irá, desse modo, tratá-la como um percurso específico, obscuro e complexo em direção a um torna-se mulher.

Freud, em A dissolução do complexo de Édipo (1924), aponta caminhos diferentes da menina e do menino ao saírem da configuração edipiana. Para Freud, no percurso de constituição da sexualidade infantil, a articulação com a organização fálica, o complexo de Édipo, a castração, a formação do superego e o período de latência, justificam a afirmação de que a destruição do complexo de Édipo é ocasionada pela ameaça da castração. A partir da ordem fálico-edípica no menino, a configuração de ameaça pela castração paterna o faz sair do Édipo por medo de perder o que lhe confere poder e renuncia o desejo dirigido à mãe, seguindo um caminho narcísico de valorização de seu órgão. Assim,

a observação que finalmente rompe sua descrença é a visão dos órgãos genitais femininos. Mais cedo ou mais tarde a criança, que tanto orgulho tem da posse de um pênis, tem uma visão da região genital de uma menina e não pode deixar de convencer-se da ausência de um pênis numa criatura assim semelhante a ela própria. Com isso, a perda de seu próprio pênis fica imaginável e a ameaça de castração ganha seu efeito adiado. (FREUD, 1924, p. 103).

Já a menina, diferentemente do menino, entra no Édipo pela via da castração. Dessa maneira, o complexo de castração na menina é marcado pela inveja e por um sentimento de inferioridade. Ao se deparar com a mãe, também não-toda, modifica seu primeiro objeto amoroso - que também se apresenta na figura materna - e se direciona ao pai, como uma maneira de substituir a falta do pênis. Na tentativa de compensar sua perda, seu desejo é o de receber do pai um bebê.

A partir disso, Freud discorre que “tem-se a impressão de que o complexo de Édipo é então gradativamente abandonado de vez que esse desejo jamais se realiza”. (FREUD, 1924, p.111). Frente à dissolução dos desejos, tanto da menina quanto do menino, nessa trama triangular e adiante nesse processo, como seguiria a menina em seu percurso, em sua diferença?

Freud conferiu três destinos possíveis para o ‘torna-se mulher’ na perspectiva do modelo fálico-edípico: a frigidez e inibição, o complexo de masculinidade ou a via da maternidade e passividade. Maria Rita Kehl nos diz que:

a lógica fálico-edípica - o menino sai do Édipo pelo medo da castração mas a menina entra no Édipo pela castração - faz com que a mulher não tenha nada a perder. O que levaria a mulher a renunciar se ela não tem nada a perder? Nada a perder, a não ser a ilusão jamais abandonada de um dia vir a receber, em função do amor que for capaz de despertar no pai, um falo igual ao dele. Do Édipo, supostamente a mulher herdará a via da feminilidade, ou seja, a promessa de receber o falo paterno na forma da maternidade. (KEHL, 1996, p. 44).

No entanto, para além de formular três destinos para a mulher, Freud deixou em aberto o percurso da menina em direção a um tornar-se, e o nomeou como “continente obscuro”, apontando para o caráter inacabado da questão. Na XXXIII Conferência sobre a Feminilidade, Freud aponta para o fato de que também a psicologia não soluciona o enigma da femilinidade. (FREUD, 1932) .

Certamente, a genialidade de Freud e de sua teoria a respeito da diferença dos sexos descola a Psicanálise dos sistemas fechados, contraponto a racionalidade científica, admitindo sempre e constantemente em sua obra idas e voltas, descaminhos e incompletudes, uma potência, portanto, a aceitar o inacabado. Como nos lembra Kehl, “a própria psicanálise já nos ensinou que a cada barreira removida, a cada véu levantado, deparamos não com um paraíso de conflitos resolvidos e sim com um campo minado ainda desconhecido”. (KEHL, 1996, p. 23).

Embora se apoiando na perspectiva universal falocêntrica, ao tratar da sexualidade feminina, a escuta da mulher histérica levou Freud em direção ao que muitos campos do saber se negavam a interrogar. Pois o que teriam as mulheres de interessante a relatar se consideradas invisíveis para a Ciência?

A obra freudiana esteve sempre com algo que não se diz por completo, abrindo caminhos para a interrogação dos corpos. Entre o dizível e o indizível, um saber não todo, o feminino, uma falha de origem. E mesmo numa relação de tensão frente ao feminino, Freud não cedeu à ilusão de produzir sistemas acabados. É justamente a confissão do inacabado, da Psicanálise como saber furado e fragmentado, que confere à obra de Freud um traço singular, tanto em sua escrita, ou melhor, sua escrita feminina, como também inscrevendo o feminino para além do sentido já nomeado, pois nos deixa um impasse entre a ordem fálica e a feminilidade. Freud confessa em A feminilidade: “isso é tudo o que eu tinha a lhes dizer sobre a feminilidade. Certamente é incompleto e fragmentário, e nem sempre parece amigável”. (FREUD, 1932, p.91)

De acordo com Kehl, o horror à castração equivaleria ao repúdio à feminilidade, o que seria comum em homens e mulheres. Nesse ponto, o falo não desapareceria, mas estaria em oposição como reação e contra a feminilidade, uma vez que o falo é o que há de mais perfeito. Ou seja, a feminilidade originária aponta a nossa imperfeição e finitude antes mesmo da perfeição fálica. A partir disso, Kehl ressalta que “o ser não nos é dado; ele se constrói ao longo da vida. Construir o ser é constituir diferenças”. (KEHL, 1998, p.1).

Até aqui, a voz do discurso freudiano ecoou permitindo, em alguma medida, outra voz, a das mulheres. Mas foi Freud quem as escreveu e descreveu, ressaltando suas pequenas diferenças, suas angústias, corpos e sonoridades. Mas o que pode a mulher frente à falta quando ela mesma se conta em palavras escritas? Suas escrituras poderiam criar um traço singular e para além do traço fálico?

5 A ESCRITA FEMININA: DE MULHER, DE HOMEM, DE TODOS/A?

De qual maneira se relacionam as interrogações sobre os corpos, os sexos, o gênero e a escrita? A nossa posição - sujeitos frente à falta - também irá ressoar na escrita? Freud nos lembra que somos sujeitos da palavra, “em última instância, todo discurso é atravessado pelo corpo, é suportado pelo corpo, na medida em que há sempre um sujeito, um autor, por trás daquelas palavras”. (BRANCO, 1991, p. 22). Mas quem escreve a escrita feminina, só as mulheres? De frente a essa questão, parece-me imprescindível desatar alguns nós ou, simplesmente, permanecer entre um território ambíguo que ora se faz visível, ora se confunde. Pois tratar do feminino, do feminino na escrita, é pensar esse ato para além dos sexos, ao mesmo tempo em que não podemos radicalmente esquecê-los.

De acordo com Lúcia Castello Branco (1991), a escrita feminina não se refere somente à escrita de mulher, pois seria restringir o adjetivo feminino a um olhar reduzido, a uma escrita produzida só por mulheres. No entanto, a autora nos aponta que ao escolher o adjetivo feminino, admite-se também que esse tipo de escrita tenha a ver com a mulher. Em outras palavras, é relativo às mulheres e não propriamente de autoria de mulheres. Se voltarmos a Freud, a partir do discurso psicanalítico, temos por certo que o feminino está posto para ambos os sexos, seja no menino, com a saída do Complexo de Édipo por medo da castração, seja na menina, que entra nessa trama pela castração. No entanto, por que, ao falarmos do feminino, o ancoramos nessa interseção insistente à mulher? Ou até mesmo, em certos momentos, por que falamos do feminino e da mulher como se fossem conceitos iguais?

Os conceitos de feminino e masculino são diferentes dos empregados à mulher e ao homem (palavras que se apoiam na anatomia do sujeito), pois são configurações psíquicas, independente do sexo biológico. Em alguns momentos, esses conceitos se tocam e, por isso, certo nó. Aqui reside uma questão. Como a mulher e o homem lidam com a posição feminina? Como essas configurações psíquicas se constituem para ambos?

Sabemos que essas questões são amplas em demasia, já que as configurações variam de sujeito para sujeito. No entanto, pensando na relação entre o anatômico e o psíquico, tocando nesses nós do corpo e para além dele, entre o masculino e o feminino, mulher e homem, trazendo novamente a trama do Complexo de Édipo e sua dissolução: não estaria a mulher a aceitar uma posição feminina com mais facilidade, já que ela não teria nada a perder? Sabemos também que essa pergunta pode conter certa generalização, pois não podemos tomar as mulheres como unidades, como um grupo de iguais.

Se o feminino está fora, rompendo e trapaceando com a ordem universal que é o Falo, então Freud nos parece fundamental quando diz que o percurso rumo à feminilidade é uma trajetória que vai se constituindo, distinta em cada sujeito, já que não é um lugar de certezas, no dizer de FREUD, nas Novas Conferências Introdutórias de 1932. Parece possível pensar, pois, que “(...) não basta possuir um corpo de mulher para se constituir psiquicamente como mulher”.(BRANCO, 1991, p. 20). Portanto, a posição feminina é adquirida, não diz respeito à anatomia dos corpos, mas atravessa-os, toca e esbarra neles. Contudo, persistimos: por que a escrita feminina é apreendida como escrita de mulheres, além de tê-las como exemplos, mais do que a escrita dos homens?

Tentar se aproximar dessa resposta é o que leva o nosso olhar a pensar ainda mais sobre o discurso psicanalítico. As mulheres histéricas, no contexto de suas falas, no século XIX, plantavam interrogações sobre seus corpos justamente no momento em que o masculino era o paradigma, e ainda o é, cabe ressaltar. Nessa relação de dúvida, de embate com a perpetuação do saber masculino, essas mulheres quebravam, aos poucos, com o discurso sobre elas, com o discurso praticado pelas Ciências, pela Literatura etc; por todo discurso que esbravejava saber a verdade sobre a mulher.

Ora, se no discurso delas algo não era dito por completo e nem de certeza, não seria, então, a escrita feminina mais próxima e atravessada na escrita das mulheres, já que esse corpo, também de palavras, ocupa um lugar privilegiado, aquele que esconde algo e nada vê por inteiro? Nesse sentido, a escrita feminina estará sempre esbarrando na mulher. Branco (1991) afirma que há um grande número de mulheres escrevendo nesse tom enigmático, nessa dicção feminina. Entretanto, encontramos tais características em alguns textos feitos por homens e, por isso, pergunto: toda escrita é feminina? Digamos que sim, mas sem muito alarde, pois certos textos, de homens e mulheres, negam a posição feminina, mesmo que ela esteja sempre ali, atravessada nos escritos e nos corpos. De qualquer modo, sabemos que do texto mais comportado ao mais revolucionário, sempre haverá um indizível, um não-dito que se esvai e escapa à sua totalidade, um feminino que aí se encontra, não iluminado e aclarado em demasia, mas que é sombra.

O que nos parece interessante é que a escrita feminina não se pretende na oposição ou complementaridade com a ‘escrita masculina’ ou as demais, do contrário, cairíamos em um pensamento simétrico e dicotômico. Se for assim, nada temos a fazer aqui, pois, reforçaríamos a ideia de completude e nenhuma estrutura toca na outra ou é atravessada pela outra, em idas e vindas. Nada se desconstrói. Tudo indica que “o feminino não é a mulher, mas a ela se relaciona. Sugere-se que o feminino é o não-masculino, mas a ele não se opõe”. (BRANCO, 1991, p. 27). Eis que nos complicamos novamente. Tentemos em outras palavras: a escrita feminina se encontra no entre, por isso seu tom complicador. Não se complementa no masculino, nem se opõe a ele. A escrita feminina ultrapassa a escrita fálica, rompe com a escrita oficial e busca outro caminho, um passeio discursivo por aquilo que lhe confere uma diferença. Mas que diferença?

Uma escrita que se encontra em outra lógica, que não tem como projeto a busca pelo preenchimento, a certeza, o conforto da letra ou a razão fálica na ancoragem de ser toda. Mas, e, sobretudo, uma escrita lacunar, singular, insuportável e incômoda, já que não se pretende linear, tampouco cronológica, tampouco fiel à realidade, tampouco demasiadamente compreensível.

A escrita feminina parece afrontar e desequilibrar aquilo que está posto de certeza, a escrita fálica, não se tratando de uma escrita apoiada no paradigma de escrever como os homens, imitá-los, mas de escrever a partir de uma diferença, não de uma igualdade, como busca expressar Clarice Lispector: “o escritor não tem sexo ou tem os dois. Os criadores são esses seres incertos, móveis e abertos, para os quais escrever é ser trabalhado no entre, viagem ao encontro do outro desconhecido, incessante movimento de si, do outro e do outro em si”. Também em Guimarães Rosa no conto A terceira margem do Rio, encontramos um homem, um pai de família que não se apoia em nada, a não ser no fino chão de uma canoa, do outro lado da margem, no dentro do rio finito ao mesmo tempo em que infinito. Do lugar de certeza, pois era um homem “cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação”, ao rio sem barreiras, um rio feminino. E não seria esse lugar, ou melhor, lugar que também já não o é, em que o texto feminino se encontra e desencontra? Texto que suporta o silêncio e que também tagarela? Texto que pausa e que também deságua a lugar nenhum? Assim, o texto feminino, discorre Lúcia Castello Branco, talvez ocupe “o lugar que não é este nem aquele, mas um terceiro, não intermediário, não mediador, mas outro, terceira via, terceiro veio, terceira margem: aquele do suporte da ambiguidade, da sustentação do absurdo (...)”.(BRANCO, 2004, p. 149).

Se é possível falar em escrita feminina, em uma escrita que convive com o saber da falta e, a partir desse vazio, por mais terrível, algo seja reinventado, então é nesse espaço indecifrável que a escrita feminina desequilibra o paradigma, o centro. Nesse lugar outro; na margem, no declive, no derradeiro da linguagem, lá que é aqui, rompendo com a certeza, trapaceando a língua oficial e seu poder.

Veremos neste instante como as mulheres começaram a se inscrever e escrever seus inesgotáveis mundos. Em que momento a mulher escrita passou a se inscrever como mulher de escrita?

6 A MULHER ESCRITA, A ESCRITA DA MULHER, MULHER DE ESCRITA...

É também no contexto do final século XIX e início do XX que podemos perceber que a histórias das mulheres podia ser escrita. A começar pelas cartas endereçadas a parentes, cartas de amor, os diários íntimos escritos pelas adolescentes e autobiografias. Esses diários eram práticas que a igreja recomendava, a fim de direcionar e aprisionar seus escritos, controlando a consciência por meio do ato de escrever. Por outro lado, ainda sobre o diário íntimo, é justamente através desse instrumento arquivado, de páginas em branco, de um baú que foi aos poucos preenchido por relatos e memórias, que se ouve a voz das mulheres. Esses escritos muitas vezes eram queimados e destruídos.

Organizar arquivos, conservá-lo, guardá-los, tudo isso supõe uma certa relação consigo mesma, com sua própria vida, com sua memória. Pelo fora das coisas é um ato pouco feminino. A perda, a destruição, a autodestruição são muito mais frequentes. Os descendentes se interessavam com muito mais frequência pelos homens importantes da família, e muito pouco por suas mulheres, apagadas e obscuras, cujos papéis destruíam ou vendiam. (PERROT, 2013, p. 11).

Na Idade Média, enquanto os homens eram destinados a guerrear, as mulheres da nobreza, dentro dos conventos, aproximavam-se da escrita e do hábito da leitura. No final do século XIII, “pareciam culturalmente superiores aos homens” (PERROT, 2013, p. 32)

No século XIX, escritoras de origem aristocrática escrevem biografias de mulheres e, aos poucos, conquistam um público feminino que, de forma não surpreendente, justamente pelo contexto e pela estrutura binária que apresentamos, também se interessava por livros de cozinha, moda, pedagogia, romances, dentre outros gêneros.

Interessante pontuar que desde o começo do século XX muitas feministas construíram arquivos de mulheres para enfrentar o esquecimento de suas histórias; cartas, textos, cartazes, dentre outros tipos de escritos. É inegável a contribuição do movimento feminista, seja qual for sua bandeira, “principalmente no domínio da imprensa, que era seu modo de expressão”. (PERROT, 2013, p. 32.). De uma história sem palavras e arquivada à aproximação da mulher com o romance, tendo acesso à escrita e, mais adiante, ocupando e também assinando as páginas dos jornais e revistas.

Mas por onde caminhava a história das mulheres antes disso? Histórias existiam, mas foram silenciadas, colocadas à margem dos acontecimentos, obscurecidas. Por muito tempo ficaram à sombra das palavras, registros foram perdidos. “Que a mulher conserve o silêncio, diz o apóstolo Paulo (...)”. (PERROT, 2013, p. 17). O silêncio das bocas, dos corpos e seus desejos, imersas e confinadas em casa, mantendo a ordem ‘natural’ das coisas. Por ocuparem um lugar invisível, “as mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas”. (PERROT, 2013, p 17). Desse modo e por outras razões, o acesso à escrita se deu tardiamente.

Por que considerá-las se eram apenas uma pequena sombra apoiada e abafada no masculino? Não é de se espantar que, para alguns, as mulheres tinham um cérebro menor, que seriam capazes apenas de reproduzir e, portanto, incapazes de criar-escrever-pintar-inventar.

Embora a Modernidade seja o momento de inscrição da mulher na cultura, algumas ‘fazendo arte’, balançando com a verdade absoluta sobre elas, ao mesmo tempo em que outras não rompiam em nada e se apropriavam do ideal masculino, podemos dizer que esse processo de rompimento dos territórios não foi nada fácil. Se o lugar da escrita estava restrito ao homem, algumas escritoras temiam tal confronto, instaurando-se ali mesmo, na condição limitada que o discurso oficial lhes colocava, numa posição inferior e nada inventiva sobre seu sexo, o que ressoava em suas personagens e em seus escritos. A escrita da mulher, de início, tanto na imprensa como na literatura, assumia os mesmos discursos que lhes eram impostos. Ou seja, a verdade da mulher era escrita pelos homens e muitas reproduziam essas verdades, imitando-os e também assinando textos com pseudônimos masculinos. E no momento atual como se dá essa posição da mulher diante da escrita? Há uma mudança perceptível de apropriação do real por meio da escrita? Considerando essa questão nos propusemos realizar uma pesquisa/intervenção com mulheres-professoras.

A partir dos escritos das mulheres-professoras, de que forma o traço de cada uma se inscreve em linhas? Seguimos, então, com os escritos e as análises de uma oficina de escrita feminina realizada no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e outra com mulheres-professoras de Santa Rita de Ouro Preto, distrito de Ouro Preto (Minas Gerais).

7 UMA OFICINA DE ESCRITA FEMININA

Caminhar entre cheios e vazios no espaço do texto é perder-se. Espaço inseguro, sem começo, página não mais branca, travessia oca? A escritura parece nos deslocar para algum lugar, ou melhor, lugar nenhum, cujo caminho não se vê-lê por completo. Algo semelhante ao que Michel Foucault apresenta em Linguagem e Literatura (1964), quando ele diz que “cada palavra real é de certo modo uma transgressão da essência pura, branca, vazia, sagrada da literatura que faz de toda obra não a realização da literatura, mas sua ruptura, sua queda, seu arrombamento”. (FOUCAULT, 1964, p. 142).

Na tentativa de iniciar a prática da escritura realizamos uma oficina de escrita feminina, apostando que as palavras representavam as coisas como espelho, como um reflexo realista. Entretanto, o espelho, a imagem que a palavra constrói, isso que se repete e cria um duplo, não é linguagem primeira, nem absoluta, nem pura. Vejamos, então, como um jogo de espelhos, refrações desviantes, confusas e não mais inscritas a partir da ideia de representação e fidelidade.

Na Modernidade, o ser da literatura, este de que Foucault fala, ao contrário de ser um sujeito sem cisão, autor iluminado e inteiro, é, antes de tudo, um complexo de vozes, multiplicidade de ecos e ruídos. Nesse sentido, se essas vozes que nos falam assumem agora um tom menor, um estilhaço de ruídos fragmentários, reduplicados, o desaparecimento do sujeito no discurso faz emergir não mais uma voz toda, imóvel e centrada, mas, e sobretudo, o ser-linguagem, a escrita como experiência. Lembremos que Roland Barthes, em A morte do autor (1968), pontua que a escritura,

é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve. Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente no real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES, (1968) 2004 , p. 58).

Barthes, assim como Foucault, volta-se aos escritos de Stéphane Mallarmé e, nesse ponto de atravessamento, o que parecem dizer é que a linguagem não tem um proprietário, um dono soberano, um corpo e uma voz única que se incrustam e se apresentam como origem. Se a literatura se inscreve como aquilo que não obedece ao código, uma vez que rompe com suas leis, ela também “não deve ser compreendida nem como a linguagem do homem, nem como a palavra de Deus, nem como a linguagem da natureza (...). É uma linguagem transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio livro”. (FOUCAULT, 2000, p. 154.)

Na oficina, tentamos desconstruir a ideia de representação, procurando demonstrar que o ato de escrever talvez fosse o momento de experimentar o vazio. Um instante que envolve um movimento de luz, sombra, profundidade, superfície.

É fundamental destacar que não colocaremos todos os textos e, sim, alguns fragmentos da oficina, utilizando nomes fictícios, mesmo sabendo que a assinatura envolve mais do que um nome em si. O tema escolhido foi: minha casa, meu corpo, minha história, retirado por sua vez de fragmentos de leituras sobre a escrita feminina, em que eram recorrentes as interrogações dos corpos e da memória, com a história das mulheres e a escrita, destacado precisamente do texto de Virgínia Woolf intitulado Um teto todo seu (O ensaio foi proferido no Newnham College e Girton College em Londres no ano de 1928, publicado em 24 de outubro de 1929). A escritora aborda justamente a questão da mulher, da ficção e de qual maneira isso estaria relacionado à ideia de que a mulher precisaria, para escrever, de um teto todo seu e algumas tantas libras de dinheiro. É interessante pensar que Woolf já nos dizia, em 1929, sobre as dificuldades que as mulheres enfrentavam quando se enveredavam no espaço literário. Nas palavras dela:

Peço-lhes que escrevam todo tipo de livros, não hesitando diante de nenhum assunto, por mais banal ou vasto que seja. Por bem ou por mal, espero que vocês se apoderem de dinheiro bastante para as viagens e o lazer, para contemplar o futuro ou o passado do mundo, para sonhar com livros e vaguear pelas esquinas e mergulhar a linha do pensamento fundo na corrente. (WOOLF, 1929, (2005) p. 132).

Seria preciso, desse modo, que as mulheres lutassem por um espaço próprio, por uma voz própria. Também Marguerite Duras, no livro Escrever, discorre sobre a casa, lugar em que tudo escreve. Nesse sentido, Lúcia Castello Branco, no livro Chão de letras: as literaturas e a experiência da escrita, afirma que

a casa, então, nesse surpreendente livro de Duras, é figura da solidão essencial da escrita, mas não só. Espécie de continente da escrita - margem, borda, moldura, contenção -, a casa é também o seu conteúdo, aquilo que a escrita comporta e contém. Mas não só. Porque a casa é também as paredes da casa - onde, “à nossa volta, tudo escreve -, mas também a casa sem paredes, onde é possível perder-se”. (BRANCO, 2011, p. 29).

Esse tema seria, então, o ponto de partida da oficina, o meio da estrada, um teto por construir e desconstruir. Em seguida, depois de finalizado o texto, pedimos a elas que falassem sobre seus escritos e, nesse instante, algo se fez em silêncio. Muitas não conseguiram dizer, outras arriscaram, mas brevemente. Algumas se emocionaram, outras não escreveram e nem leram. Percebemos naquele momento, o quanto é difícil dizer do próprio texto e enxergar o que ali se fez em palavras. Falar da sensação da escrita que surge pode soar mais palpável, mas não menos difícil. Solicitamos que também comentassem sobre o texto das outras e o silêncio persistiu. Para nós uma questão: como analisar aqueles textos? Seria possível analisar um texto de forma a não diminuí-lo, a não considerar sua diferença? Certamente temos alternativas para que não seja uma experiência medida, mas diferentes experiências, marcas singulares.

Aqui escolhemos o trecho de Ester para iniciar nossa análise:

(...) moro em mim, e aqui tenho várias casas, onde me habitam os eus. Guardo alguns cemitérios. Me afogo em pensamentos, às vezes quero fugir de casa, abandonar a casca, rasgar a pele. Tudo isso é excesso de água. Choro e busco a terra. Coleciono sementes que vem de dentro e espero o vento que invade as cortinas opacas de meus olhos, o vento leva a semente, eu caminho em casa. Meu vôo de repente se fez leve e seguro, o vento faz que minha casa interior vire fogo, acenda meus desejos. Assim persigo minha busca de cada dia, traço meu rumo vadio. Vagueio nas inúmeras aberturas de mim e nelas encontro calmaria da inquietação pulsante, que vibra, e nesse instante encontro meu coração, lar dos apaixonados, que arde e invade a solidão. Sou incompleta no sentir (22 de agosto de 2014).

Em um primeiro momento, podemos dizer que a história é o menos importante. Essa escrita, que respira em palavras, parece não se preocupar com ‘o que’ contar, mas o ‘como’ contar. Aqui, nesse fragmento, o discurso insiste no fascínio pelo abismo, por um corpo-palavra que é ‘vadio’, sem rumo. Espaço onde as palavras respiram no ritmo da busca pelo preenchimento de algo, mas nada o faz, pois sabe dessa impossibilidade; ‘sou incompleta no sentir’. E na inquietação que essas vozes ecoam, algo se ouve do corpo, ora uma calmaria, ora o que estremece, o que faz vibrar e chacoalhar, movimento entre um pouso leve na casa de um corpo que sabe de suas aberturas, feridas e que, portanto, ‘arde’. Nesse fragmento, evoca-se um mundo, uma casa e um corpo a escrever.

É nesse jogo de pontuações, de uma palavra a outra e suas sonoridades, que sentimos o texto acelerado, respiração entrecortada. Ester tenta se revelar e se revela, não por inteiro, mas em contradições, espasmos e ardência, ‘o vento faz que minha casa interior vire fogo, acenda meus desejos’. Não é à toa que escolho esse trecho como o primeiro. Nele, percebemos o ‘descentramento’ do discurso em relação a uma narrativa que não tem a intenção de ser fiel a nada, mas que deseja um (des)caminho que, por sua vez, também não se pretende saturável.

Para Foucault, “a literatura é uma linguagem ao infinito, que permite falar de si mesma ao infinito”.(FOUCAULT, 1990, p. 155). Essa experiência radical da linguagem literária, inacabada e reduplicada, constitui, portanto, um espaço móvel, uma travessia do fora, uma experiência que “escapa ao modo de ser do discurso - ou seja, a dinastia da representação - e a palavra literária se desenvolve a partir de si mesma”. (FOUCAULT, 1990, p. 14.).

Antes de tudo, o que se ouve nesse primeiro fragmento de Ester se desemboca em uma experiência aberta, sem final, movimento da própria palavra no desejo de se lançar e fundar um mundo próprio, não um mundo exterior em que as palavras o representariam, mas, principalmente, a própria (im)possibilidade da palavra literária. Desse modo, esse trecho se vê inacabado, no trânsito de sua própria falta, “este intervalo não é a simples negatividade de uma lacuna, mas o surgir da marca”. (DERRIDA, 1972, p. 414). É possível dizer que o saber do vazio se instaura, um saber feminino. Seguimos, então, com a análise dos trechos. Rita escreve:

(...) minha casa é lugar onde encontro sossego, harmonia, onde ao anoitecer se escuta o ruído dos grilos a natureza de se ver o vento soprando as árvores, o barulho dos bichinhos da vizinha, o lugar onde repousa e reponho-me para outro dia de surpresas. O meu ser é o meu instrumento do pensamento na minha cabeça onde vem a imaginação para desenvolver meu dia, as atividades cotidianas que todos desenvolvemos como um simples levantar, estender a cama, fazer café, pedir benção da mãe, cuidar de nossos animaizinhos com muito carinho, cumprimentar os vizinhos ou um simples cuidar da casa, isso faz parte da minha história desde de pequena minha mãe sempre trabalhou fora e desde sempre eu e minha irmã nos reunimos para fazer as propostas deixadas por nossa mãe durante o dia, ou seja desde pequena aprendi a organizar os meus afazeres de casa, da escola (...) (22 de agosto de 2014).

O segundo trecho habita, em certos momentos, uma escrita tradicional, sem brechas, embora saibamos que os textos mais comportados também são atravessados pela falta, como todo discurso. Um cotidiano escrito de forma a representar uma sequencia de afazeres do lar, uma escrita que constrói algumas representações sobre a mulher, sobretudo, suas funções femininas. Trecho que ocupa um lugar no centro e que não o desequilibra, na medida em que se projeta uma perfeição, uma tranquilidade inabalável, um todo completo da vida. Entretanto, aponta Lúcia Castello Branco, “como tapar os furos de um discurso com um discurso que é, ele próprio, constituído de furos, de brechas, de cortes”.(BRANCO, 2004, p. 148).

Com exceção destas passagens, ‘de nossos animaizinhos’ e ‘o barulho dos animaizinhos’, o que torna o trecho pequenino, infantil, há algum sussurro que busque a presença de alguém? Poderia interpretá-lo de várias maneiras, pois, como leitora, reescrevo o trecho a partir da minha leitura e escuta. Derrida nos diz:

O que vale para o destinatário vale também, pelas mesmas razões para o emissor ou para o produtor. Escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever.(DERRIDA, 1972, p. 412)

Podemos nos perguntar o porquê da diferença muito bem delineada de um escrito para o outro? De modo impreciso, não seria justamente devido às marcas diferenciais que atravessam cada escrito? No entanto, há algo mais que podemos atribuir a esses diferentes efeitos de discurso? O que de fato consiste a linguagem literária? Seria o fragmento de Rita uma palavra literária ou estaria mais próxima de uma linguagem comum, do dia a dia?

O convite às professoras para atravessar o universo da escrita, convidando-as para o enfretamento de suas vozes e histórias de vida, a partir da palavra escrita de cada uma, a partir daquilo que confere a elas um feminino particular, uma escrita de si, uma experiência/invenção com a palavra - ser para além daquilo que se mostra verdade, um algo a mais de nós em desconstrução. E é nesse sentido que a escrita encontra uma condição própria, um estado particular ou uma contingência específica durante as travessias de idas e vindas a Santa Rita, distrito onde se deu a pesquisa. Eis a nossa chegada ao ‘campo’, no propósito de dar à pesquisa um tom menor, o tom da mínima diferença de ser mulher, no sopro autoral delas, em um movimento incessante e pausado da possibilidade de ter uma história e voltar-se para ela, ter uma voz e ter uma infância e voltar-se para ela, retornar ao passado que ainda permanece, onde não estamos e cujo aquilo já não é, nem somos, no ponto que ainda continua, no ponto da vida que não cessa de improvisar o inacabado, do eu verdadeiramente e falsamente escorregadio. Apostando como Barthes que a literatura não estabelece e nem fixa os saberes: “a literatura faz girar os saberes”. (BARTHES, 2007, p. 18).

E o que teria a ver as interrogações sobre o corpo, o sexo, o gênero, o feminino e a escrita? No pós-gênero, entre a ordem fálica e o passo à feminilidade, a nossa posição de sujeitos frente à falta, o repúdio ou o sucesso diante de nossa constituição faltosa, também irá ressoar na escrita. Para Lucia Castelo Branco (1991, p. 22) se Freud nos lembra que somos sujeitos da palavra, “em última instância, todo discurso é atravessado pelo corpo, é suportado pelo corpo, na medida em que há sempre um sujeito, um autor, por trás daquelas palavras”.

Se o feminino está fora, rompendo e trapaceando com a ordem universal que é o Falo, não se apoiando na lógica da perfeição, o percurso rumo à feminilidade é uma trajetória que vai se constituindo, que vai sendo adquirida em cada sujeito, já que não é um lugar que se sabe de certeza. Uma escrita que se encontra em outra lógica, que não tem como projeto a busca pelo preenchimento, a certeza, o conforto da letra ou a razão fálica na ancoragem de ser toda. Uma escrita lacunar, singular, insuportável e incômoda, uma vez que não se pretende nem linear, nem cronológica, tampouco fiel à realidade, tampouco demasiadamente compreensível.

Pela análise das oficinas destacamos que alguns trechos tocaram a escrita feminina, assumindo um gesto feminino próprio, seguindo outra direção, no movimento de um texto que ultrapassava a ordem falocêntrica, escapando à hierarquia e à dicotomia que neutraliza e apaga o feminino como diferença. Embora alguns trechos tenham se comportado numa linguagem mais próxima do cotidiano, eles também, em alguns momentos, no próprio movimento das palavras, se deixaram levar por gradações e ondulações, sem apoio, sem presença, apoiando-se na própria palavra, em instantes de suspensão, na experiência de um sem fundo e sem verdade fixa. Se se pode falar de uma escrita feminina, que convive com o saber da falta e se a partir desse vazio, por mais terrível, algo pode ser reinventado, então é nesse lugar indecifrável que a escrita feminina desequilibra o paradigma, o centro. Experimentar na pesquisa/intervenção o gesto feminino, o vazio e nossa pesada incompletude, visava também transmitir à formação docente o feminino, não como uma negatividade, mas como um intervalo vivo, aí mesmo, onde é possível testemunhar-se para além de si.

REFERÊNCIAS

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BARTHES, Roland. A morte do autor: In: O rumor da língua. São Paulo. Martins Fontes. 2004. [ Links ]

BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. [ Links ]

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Recebido: 19 de Agosto de 2018; Aceito: 27 de Março de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Camila Dias E-mail: camiladiasjor@gmail.com

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