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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.2 Campinas Apr./June 2019  Epub Sep 19, 2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i2.8651501 

ARTIGOS

INCLUSÃO ESCOLAR: UM OLHAR SOBRE AS FORMAS DE CONVIVER COM O OUTRO

SCHOOL INCLUSION: A LOOK AT WAYS TO LIVE WITH THE OTHER

INCLUSIÓN ESCOLAR: UNA MIRADA SOBRE LAS FORMAS DE CONVIVIR CON EL OTRO

Neusete Machado Rigo1 

1Doutora em Educação - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - Santa Maria, RS - Brasil. Docente -Universidade Federal Fronteira Sul - Cerro Largo, RS - Brasil. E-mail: neuseterigo@gmail.com


RESUMO

A questão das diferenças tem se apresentado como uma temática central nas discussões pedagógicas atuais. Esse debate se amplia nas escolas mediante a definição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). O objetivo desse artigo é problematizar o enredamento que se dá entre o processo de inclusão escolar e a questão das diferenças nas práticas dos professores de uma escola pública de educação básica. Discute-se como a escola, embora sendo uma instituição normativa, pode desenvolver uma educação em que as diferenças possam existir e não sejam consideradas como um ‘problema’ de ordem pedagógica e social, como frequentemente constatamos. A metodologia consiste em uma pesquisa qualitativa que desenvolve um estudo de caráter descritivo- analítico sobre os processos de inclusão escolar, a partir de referenciais foucaultianos. Para o levantamento de dados, utiliza-se a pesquisa documental e a observação participante em momentos de planejamento e de formação pedagógica dos professores dessa escola. A análise dos dados foi realizada segundo a problematização de duas categorias: a inclusão que normaliza e conduz o outro ao mesmo; e a inclusão que promove um encontro com o outro. Os resultados apontaram que a inclusão escolar está proporcionando um encontro com o outro que efetiva, tanto processos de normalização que anulam as diferenças e conduzem à mesmidade, quanto processos que produzem experiências nos sujeitos, levando-os a reconhecer o outro como diferença que não depende do consentimento do eu para existir.

PALAVRAS-CHAVE: Diferenças; Experiência; Normalização; Encontro com o outro

ABSTRACT

The question of differences has been presented as a central theme in the current pedagogical discussions. This debate widens in schools through the definition of the National Policy of Special Education in the Perspective of Inclusive Education (BRAZIL, 2008). The aim of this article is to problematize the entanglement between the process of school inclusion and the question of differences in the practices of teachers of a public school of basic education. It is discussed how school, although it is a normative institution, can develop an education in which the differences may exist and do not be considered as a pedagogical and social 'problem', as we often see. The methodology consists of a qualitative research that develops a descriptive analytical study about the processes of school inclusion from Foucaultian referents. For data collection, documentary research and participant observation are used in planning and pedagogical training moments of the teachers of this school. The analysis of the data was performed according to the problematization of two categories: the inclusion that normalizes and leads the other to the same; and the inclusion that promotes a meeting with the other. The results pointed out that the school inclusion is providing a meeting with the other that makes effective, both normalization processes that nullify the differences and lead to the same, as processes that produce experiences in the subjects, leading them to recognize the other as a difference that does not depend of self's consent to exist.

KEYWORDS: Differences; Experience; Normalization; Meeting with the other

RESUMEN

La cuestión de las diferencias se ha presentado como una temática central en las discusiones pedagógicas actuales. Este debate se amplía en las escuelas mediante la definición de la Política Nacional de Educación Especial en la Perspectiva de la Educación Inclusiva (BRASIL, 2008). El objetivo de este artículo es problematizar el enredo que se da entre el proceso de inclusión escolar y la cuestión de las diferencias en las prácticas de los profesores de una escuela pública de educación básica. Se discute cómo la escuela, aunque es una institución normativa, puede desarrollar una educación en que las diferencias puedan existir y no seam consideradas como un 'problema' de orden pedagógica y social, como a menudo constatamos. La metodología consiste en una investigación cualitativa que desarrolla un estudio de carácter descriptivo analítico sobre los procesos de inclusión escolar, a partir de referenciales foucaultianos. Para el levantamiento de datos, se utiliza la investigación documental y la observación participante en momentos de planificación y de formación pedagógica de los profesores de esa escuela. El análisis de los datos fue realizado según la problematización de dos categorías: la inclusión que normaliza y conduce al otro al mismo; y la inclusión que promueve un encuentro con el otro. Los resultados apuntaron que la inclusión escolar está proporcionando un encuentro con el otro que efectiva, tanto procesos de normalización que anulan las diferencias y conducen a la mismidad, como procesos que producen experiencias en los sujetos, llevándolos a reconocer al otro como diferencia que no depende del consentimiento del yo para existir.

PALAVRAS-CLAVE: Diferencias; Experiencia; Normalización; Encuentro con el otro

1 INTRODUÇÃO

Uma das características que marca o atual cenário social e também educacional, é a existência de um discurso que enaltece as diferenças sugerindo reconhecimento e respeito a elas. Como resultado das transformações culturais, econômicas e políticas que ocorrem na sociedade contemporânea, motivadas tanto pelas lutas sociais quanto por interesses político-econômicos, as diferenças passaram a compor um debate constante no campo da Educação. Diversos modos culturais e sociais e diferentes identidades irrompem na sociedade em geral e, consequentemente, adentram a escola ameaçando ‘desorganizar’ o cenário escolar, fazendo barulho e riscando em suas paredes brancas e homogêneas outros modos de vida, reclamando um lugar para viver (RÍOS, 2002, p.113).

Essas lutas travadas por minorias sociais, ao mesmo tempo em que conquistaram direitos negados às diferentes identidades, também passaram a ameaçar as posições e as formas hegemônicas ocupadas pela cultura branca e masculina. Pouco a pouco essas lutas também estão possibilitando um certo empoderamento que leva esses sujeitos a reconhecerem para si outras posições que não a da periferia.

É nesse contexto que a inclusão das pessoas com deficiências nas escolas comuns2 ganha força e a cada dia cresce o número de pesquisas (JESUS; BAPTISTA; BARRETO; VICTOR, 2009; THOMA; HILLESCHEIM, 2011; BAPTISTA; JESUS, 2011; LOPES, 2009) que investem em estudos para acompanhar, avaliar e/ou problematizar a implantação da atual Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, proposta pelo Ministério da Educação (MEC), em 2008. Esta Política afirma uma perspectiva inclusiva da escola comum, coadunando com o caráter inclusivo da educação, presente em sua própria gênese. Segundo Lopes e Fabris (2013), educar consiste em trazer a infância (os ‘recém-chegados’) para a cultura que vivemos, incluindo-a para o pertencimento em diferentes grupos sociais. Desta forma, toda educação é inclusiva, porém as autoras argumentam que:

[...] os processos de educação da população é que passaram e passam por processos de segregação, exclusão, em diferentes graus e tempos diferenciados. Portanto, são essas práticas que devem ser analisadas e reinventadas para que a educação possa viver a condição de inclusão. Práticas, tanto no nível macro, das políticas, quanto do nível micro, das relações sociais (LOPES; FABRIS, 2013, p. 112).

Por isso, considerando que diferentes práticas podem ocorrer nos processos de inclusão escolar, discuto nesse texto os enredamentos que se dão entre a inclusão escolar e a questão das diferenças. Esclareço que não estou tomando a deficiência como a diferença, mas considerando que há nos processos de inclusão discursos que a associam às diferenças, ao ‘respeito às diferenças’, sensibilizando todos a incluir. Discursos a serem problematizados para compreendermos que não se trata de ‘respeito às diferenças’ ou simplesmente tolerância ao outro que é diferente de mim. Estes discursos são armadilhas que fazem com que as diferenças sejam compreendidas como um estado biológico “não desejável, impróprio de algo que cedo ou tarde voltará à normalidade” (SKLIAR, 1999, p. 22), e não como construções sociais e culturais.

A partir dessa compreensão, as intenções desse texto ocupam-se em refletir como práticas pedagógicas de professores podem desenvolver uma relação entre o eu e o outro no processo de inclusão escolar em que as diferenças possam existir, sem que sejam consideradas como um ‘problema’ de ordem pedagógica e social, como frequentemente o constatamos. Parto dessa problemática, descrevendo e refletindo sobre as práticas de professores, a fim de analisar possibilidades de processos inclusivos que não estejam tão preocupados em normalizar os sujeitos com deficiências, mas considerar a possibilidade de que as diferenças possam indicar formas de convivência com o outro que permitam a alteridade.

Esse estudo deriva de um recorte da pesquisa realizada para elaboração da minha Tese de doutorado, sobre as práticas produzidas em uma escola pública de educação básica, situada na região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, sensibilizada pelo processo de inclusão escolar, e por isso, mobilizada para sua implementação. Com base nos estudos foucaultianos, utilizo alguns conceitos teórico-metodológicos como ferramentas, especialmente a ‘norma’, para problematizar os dados obtidos por meio da pesquisa documental e da observação participante. Também contribuem a esse exercício descritivo analítico as noções de ‘representação’ (SILVA, 2000) e ‘experiência’ (LARROSA, 2011). Pela observação participante não estou concedendo “à visão a possibilidade de revelar como é mesmo a realidade”, como nos alerta Veiga-Neto (2002b, p. 24). Ao contrário, a considerei como possibilidade para ampliar as condições de busca pelas práticas da escola. A pesquisa documental foi realizada sobre os pareceres descritivos dos alunos com deficiências dessa escola, e a observação participante em momentos de planejamento e de formação pedagógica dos professores. As reflexões da observação participante foram registradas em um diário de campo, a partir das quais organizei as seções principais dessa escrita, considerando dois pontos para análise e discussão: a) a inclusão que normaliza e conduz o outro ao mesmo; e b) a inclusão escolar que promove um encontro com o outro.

Ainda, a fim de reconhecer a temporalidade e a espacialidade de tais práticas, inicialmente, discorro sobre a escola (instituição), considerando-a como um espaço eminentemente normativo que tende a apagar as diferenças e conduzir o Outro ao Mesmo. Essa condução se dá por meio de um governo que Foucault (1995) explica como o poder que uns exercem sobre os outros, produzindo um governamento3 sobre os sujeitos. Nesse sentido, questiono: o que fazemos com as diferenças quando nos propomos a incluir? Que relações o processo de inclusão das pessoas com deficiências pode produzir no espaço escolar, sendo a escola inclusiva em sua gênese, mas também normativa?

2 HÁ ESPAÇO PARA AS DIFERENÇAS NA ESCOLA?

O que a escola tem feito com as diferenças? Se nos debruçarmos a retomarmos a história da escola, veremos que ela sempre 'deu conta' das diferenças: corrigindo-as! Seja em relação ao fato de ela assumir como sua a tarefa da produção de sujeitos, segundo uma determinada moral, e para isso, utilizar-se de sistemas disciplinares e normalizadores, seja pela suas formas organizacionais e/ou gestoras dos processos pedagógicos, preocupados em eliminar o erro e garantir o controle para que tudo funcione de acordo com o que fora planejado. Não podemos ignorar que ela se constitui como uma instituição normalizadora, o que dificulta para que as diferenças possam viver livremente no seu interior, sem ameaças de serem apagadas ou conduzidas à mesmidade4. Como Skliar (2003a, p. 27) nos alerta, “o outro da educação foi sempre um outro que devia ser anulado [...]”, transformado no mesmo, e a pedagogia e a escola contribuíram para transformar a tarefa de educar em um ato de fabricar mesmidades (SKLIAR, 2003a, p. 199).

Nesse sentido, também se observa que as escolas possuem muitas dificuldades em lidar com as diferenças, desde a aceitação da circulação de diferentes identidades em seu interior, até às manifestações de pensamentos e formas de vida que não se enquadram às normatizações e modelos por elas assumidos. Como uma máquina sedentária ela:

[...] elabora um modelo global e homogeneizador do social, que se institui com a onipotência do logos, exorcizando tudo aquilo que atrapalha, incomoda, ou seja, um cosmos que tenta ser coerente, organizado, homogêneo, frente a um caos, heterogêneo, incômodo, em certo sentido diluidor dessa única maneira de ser que implica estar subordinado a uma ordem (RÍOS, 2002, p. 115).

Nessa direção as teorias curriculares tradicionais mantiveram as diferenças em repouso, caladas, por intermédio de práticas disciplinares que estabeleceram contínuos processos de normalização e de captura, a fim apagá-las, convivendo com currículos homogeneizantes e nada plurais que as conduziam à mesmidade. Assim, pode-se dizer que o que a escola tem feito com a diferença é “transformá-la em um puro conceito” (SCHÖPKE, 2004, p. 22) envolvendo-a nas malhas da representação (SILVA, 2000) e subordinando-a a identidade. Segundo Silva (2000, p. 91), a representação é “uma forma de atribuição de sentido” que tende a fixar os significados a um conceito, impedindo diferenças e singularidades. A representação é também um conceito trabalhado por Foucault (1988), para explicar que aquilo que é representado não traduz a realidade, porque a representação não considera as particularidades e só reconhece o que é conhecido. Assim, fixa à identidade, a diferença é identificada, nomeada e, como consequência, é inferiorizada, sendo tensionada a um certo apagamento.

No entanto, Silva (2000), esclarece que a fixação da identidade sendo uma tendência que ocorre sob os efeitos da linguagem, é ao mesmo tempo uma impossibilidade, está sempre escapando. Por mais que se tente estabilizá-la, sempre subverte. Isso porque o reino da representação está sendo perturbado por um conjunto de rupturas que tentam fazer barulho e desassossegar a 'paz' e a 'harmonia' que se acreditava reinar na escola e na sociedade. São “diversos modos culturais e sociais” e “diferentes maneiras de viver a identidade (social, política, sexual, étnica)” (RÍOS, 2002, p. 113) que irrompem na sociedade e que passam pelos muros da escola, habitando seu interior e desestabilizando a mesmidade. São vozes de um devir-minoritário5 que, mesmo diante de todos os artifícios disciplinares, não podem ser contidos, sempre escapam e manifestam-se de formas diferentes, em lugares diferentes. Diferentes identidades adentram a escola, diferentes modos de pensar infiltram-na reclamando seu lugar, num território que já é, que já tem suas normas e regras. Nessa perspectiva, as teorias curriculares filiadas a uma perspectiva pós-crítica, começam a sacudir a escola, mexendo com o silenciamento das diferenças, e provocando-a a outras práticas.

O ‘mapa’ escolar contemporâneo não mais suporta a delimitação de linhas e territórios que possam fixar identidades como o pensamento moderno pedagógico sempre lhe orientou. A multiplicidade vem perturbando a homogeneidade e a mesmidade, o que contribui para confirmar a impossibilidade do governo das diferenças. Por mais que se criem formas e mecanismos para encerrar a diferença, enquadrando-a e nomeando-a, ela sempre escapa. Porque ela é intraduzível, ocorre que quanto mais multiplicidades se manifestam, mais mecanismos de controle sobre elas são criados, como em um movimento de permanente captura, embora se entenda que o ato de “governar é uma operação inatamente falha” (MILLER; ROSE, 2012, p. 28). O governo que se pretende de uns pelos outros nunca se efetiva de modo a conter o sujeito em uma totalidade, porque em um gesto de liberdade, o sujeito faz alguma coisa sobre si que o poder não tem controle.

Nesse sentido, a seguir descrevo e analiso alguns recortes de uma realidade escolar que contém movimentos de diferentes governamentos nas práticas inclusivas, para problematizar como a escola está lidando com as diferenças. Na primeira seção, analiso a inclusão escolar como processo de normalização do sujeito com deficiência, associado à condução da anormalidade à normalidade. Nesse processo de normalização evidencia-se um interesse em conduzir o outro à mesmidade e, desta forma, apagar as diferenças, tornando-o idêntico. Na segunda seção, discuto algumas brechas no processo de inclusão, que apontam para o acolhimento às diferenças como possibilidade destas existirem para além da deficiência ou da anormalidade, permitindo que as diferenças simplesmente existam.

3 A INCLUSÃO QUE CONDUZ O OUTRO AO MESMO

A educação não acontece sem o ‘outro’, ninguém se educa sozinho, é no encontro com o ‘outro’ que ela pode ocorrer, pois esta é uma relação que é própria da educação. O problema é que pouco sabemos dessa relação, senão a de dominação do ‘outro’ pelo ‘mesmo’. Veiga-Neto e Lopes (2013), explicam que a educação pode ser vista como uma forma de dominação, mas não necessariamente sob uma noção negativa que implique em dominar o outro para oprimi-lo, mas sob a perspectiva de trazer o outro para a nossa morada. Ao dizerem que educar é também dominar, estes autores utilizam-se de um deslocamento desse termo, entendendo-o como um “gênero das relações sociais em que uns agem sobre os outros no sentido de trazê-los para o seu domínio, seu domicílio, sua morada” (VEIGA-NETO; LOPES, 2013, p. 107). Nesse sentido, educar é uma ação do mesmo sobre o outro, para trazê-lo ao seu domínio, à sua cultura.

Veiga-Neto e Lopes ainda esclarecem um sentido à dominação que segue a etimologia da palavra, mas se afastam do senso comum sobre seu entendimento, explicitando-a como “o conjunto de ações estratégicas e práticas que buscam trazer os outros para o domínio do mesmo, sem que isso implique, per se, algum juízo de valor” (VEIGA-NETO; LOPES, 2013, p. 110. Grifos meus). Assim, segundo essa noção, a educação é uma forma de dominação e de condução, pois trazemos os outros para nosso domínio, para o nosso mundo, para a nossa verdade, para a nossa moral. Sem subterfúgios, simplesmente ao educar exercemos um governamento sobre o sujeito. Foucault (1995, p. 244) nos explica que o governo é um modo de ação que se projeta sobre os indivíduos e que estrutura “o eventual campo de ação dos outros” e objetiva “dirigir a conduta dos indivíduos e grupos”.

Seguindo essa ideia da educação como dominação e governo que uns exercem sobre os outros, identifico em práticas de inclusão de uma escola pública de educação básica, uma certa visibilidade sobre estes processos, a qual passo a descrever e analisar na sequência. São visibilidades que indicam intenções de normalização dos sujeitos com deficiências. Estas se dão nos pareceres descritivos dos alunos que apresentam deficiências e estão matriculados na sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE)6:

Parecer 1: A7 (o aluno) não domina as bases da alfabetização. Apresenta muitas dificuldades, seja na relação ao reconhecimento das letras do alfabeto, das famílias silábicas que as compõem, quanto à adição e subtração de sílabas simples. Sugerimos: ler muito e, se possível, em voz alta. Exercitar o hábito de ouvir bem as informações. Procurar concentrar-se mais e realizar as tarefas de sala de aula. Envolver-se em casa com livros, revistas e jogos de leitura e escrita, que vão ajudá-lo na sua alfabetização (aluno do 4º ano do ensino fundamental).

Relato 2: O B (o aluno) está mais organizado com seu material, está conseguindo copiar as atividades do quadro e aos poucos orientando-se em seu caderno (aluno do 3º ano do ensino fundamental).

Relato 3: Sugiro que C (o aluno) participe de atividades extraclasses, que envolvam a leitura e a escrita e realize atividades de raciocínio lógico-matemático desenvolvendo a concentração. Também deve realizar atividades esportivas, onde poderá desenvolver o espírito esportivo e o trabalho em equipe (aluno do 4º ano do ensino fundamental).

(Arquivos da escola. Pareceres descritivos. 2016).

Observo nos pareceres que, além da descrição e da classificação das condições de cada um dos alunos com deficiência, estes também prescrevem, destacadamente, sugestões para aperfeiçoá-las, com a intenção de aproximá-las à normalidade. Aqui, é necessário ter presente que a educação se faz mediada pela linguagem e esta não detém um poder totalizante para dizer sobre as coisas, há uma inexatidão entre as coisas e as palavras. Como Wittgeisnten (1999) nos diz, a linguagem não é capaz de definir as coisas como se fossem uma essência, algo fixo e determinado, ou um conceito, mas ela se encarrega de defini-las a partir do seu usos, não cabendo indagar sobre o significado das palavras, mas sobre suas funções práticas. Assim também, os pareceres descritivos dizem como as coisas ‘parecem ser’, mas o mais importante será o que eles motivam a acontecer e que será mobilizado pelo próprio aluno (sujeito), contando com o auxílio da sua família. Desta forma, encaminham-se processos de normalização com esses alunos a fim de possibilitar-lhe um ensino e uma aprendizagem, considerando uma normalidade dada no processo pedagógico.

Na mesma direção, uma professora do ensino fundamental relata sobre o contexto de inclusão de um de seus alunos, em relação a seus colegas de turma:

“Agora o D (aluno) não está sendo identificado como um aluno incluso, porque eles (os alunos da turma) perceberam que tudo o que eles fazem, o D faz também, claro que com outras exigências, mas ele não fica em separado, […] em nenhuma atividade ele fica separado. Todas as atividades que eles recebem o D também recebe”. (Professora de Ciências)

(Diário de campo. Reunião pedagógica. 2016).

Também aqui, há um relato comparativo entre o estado anterior e o atual do aluno, demonstrando uma postura avaliativa da professora para dizer sobre os progressos de inclusão que, pouco a pouco parecem aproximá-lo da normalidade que compõe o processo de ensino nesta sala de aula. Observo que esse 'dito' da professora, tal como um discurso que Foucault explica em ‘A Arqueologia do Saber’ (2013), não tem nada escondido a ser representado pelos signos e descoberto por alguma análise. Mas, ele diz exatamente o que a professora disse “[...] o D não está sendo identificado como um aluno incluso”, “[…] ele não fica em separado”, assim se ele faz tudo o que os outros fazem, então o D (o aluno) pode ser considerado 'normal', segundo uma 'curva de normalidade' que se faz no interior da sala de aula.

Considerando essas análises e o fato de que a gênese da educação é incluir, em geral, as práticas de inclusão dos sujeitos com deficiências se ocupam em desenvolver processos de normalização, na tentativa de aproximar o sujeito a uma normalidade que lhe possibilite autonomia e capacidade produtiva. É na sua produtividade e na possibilidade de ser incluído no mercado de trabalho, que frequentemente ouvimos manifestações públicas justificando projetos e trabalhos educativos em prol das pessoas com deficiências, sejam eles promovidos pela sociedade civil ou pelo poder público (pelas escolas). Isso está relacionado à racionalidade neoliberal contemporânea que reconhece a inclusão como forma de conduzir vidas aos jogos econômicos do neoliberalismo, e por isso, faz da educação uma estratégia para oferecer condições a todos para entrar nesse jogo, para permanecer nele por ter desenvolvido potenciais produtivos e/ou criado estratégias que lhe assegurem uma posição e, ainda, para desejar permanecer jogando, por estar suficientemente capturado por ele (LOPES, 2009).

Os relatos apresentados nesse texto mostram um esforço dos professores para trazer os alunos com deficiências à norma8. Ao discutir sobre inclusão é inevitável tocar em noções, tais como: norma, normalização, normalidade e anormalidade. Embora não seja possível fazer aqui uma discussão mais ampliada, esses conceitos podem nos oferecer maior clareza sobre o que fazemos quando pretendemos incluir e, desta forma, podem nos possibilitar revisões e redimensionamentos das práticas de inclusão.

Sobre a ‘norma’ pode-se dizer que ela é central nesse estudo, porque a partir dela é possível refletir sobre um poder normativo que age sobre a conduta dos sujeitos impondo “uma exigência sobre uma existência”, que foi “escolhida e instituída como expressão de uma referência e como instrumento de uma vontade de substituir um estado de coisas insatisfatório por um estado de coisas satisfatório” (GANGUILHEM, 2009, p. 109). Pelo cuidado e atenção que os professores desempenham (de acordo com seus relatos) para conduzir o processo de ensino aos alunos com deficiências, é possível perceber a ‘norma’ em operação, produzindo movimentos e estratégias pedagógicas que poderão levá-los a alcançar um estado satisfatório para a existência da normalidade.

Foucault nos explica que:

[…] a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de uma pretensão ao poder. A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado. […] a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo (2010a, p. 43. Grifos meus).

A norma é que vai agir prescritivamente de modo a intervir e capturar para transformar e tornar produtivo o que se encontra em contrário. É dela que surge a necessidade de classificar, ordenar e hierarquizar, como procedimentos que levam à definição do que é normal ou anormal e, em consequência à correção. Ela foi fundamental nas sociedades disciplinares para fixar o que era considerado normal, regra ou modelo. A partir da norma podia-se dizer o que estava em acordo e, por isso, era considerado normal e, ao contrário, o que não estava em acordo, era o anormal, e sobre estes estados de anormalidade ações seriam necessárias, não para excluir, mas para corrigir. Esse é um aspecto interessante a ser considerado nessa discussão, pois a anormalidade dos alunos com deficiências, seu estado em relação à norma, não representa a sua exclusão, ao contrário, o que interessa é a sua inclusão.

Como definidora da normalidade e da anormalidade, a norma sustentou a ação do poder, tanto nas sociedades disciplinares quanto nas de seguridade. Porém, a diferença da noção de norma que está presente entre uma e outra é que, nas primeiras, o normal era uma regra definida por uma decisão normativa. O modo como se chegava a definir o que era normal e o que era anormal, passava pela norma em primeiro plano. A partir dela poderia se dizer o que era 'normal' e o que era 'anormal', e se colocava em funcionamento um conjunto de estratégias para tornar “as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz” (FOUCAULT, 2008, p. 75).

Nas sociedades de seguridade ou na sociedade de controle, como se caracteriza o contexto contemporâneo, esse processo seria diferente, pois para se chegar à norma é necessário obter um certo conhecimento sobre a população e sobre a incidência de casos, a propensão ao risco, a possibilidade de perigo e a probabilidade da crise (FOUCAULT, 2008). Todas essas noções acompanhadas de estatísticas9 permitem ver na população os coeficientes de morbidade prováveis, por meio da identificação de 'diferentes curvas de normalidade', que servem para definir o que é ‘normal’, para, a partir daí buscar a aproximação da anormalidade à normalidade. Desta forma, “o normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele” (FOUCAULT, 2008, p. 83).

Embora não seja possível afirmar que na configuração do presente a norma não detém mais a mesma força e poder normalizador como tinha nas sociedades disciplinares para enquadrar a ação da população, pode-se dizer que os processos de normalização que ocorrem hoje são flexibilizados para que a diferença ocorra num jogo de normalidades. Isso permite que o 'normal' seja determinado de maneira diferente no interior de cada grupo, o que o torna cada vez mais alargado e plural. Assim, a norma seria “um modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença” (GANGUILHEM, 2009, p. 109), porque seu objetivo não se reduziria a simplesmente excluir, embora nesse movimento de inclusão, as condições para que ela possa se efetivar não ocorram em situações de igualdade entre os sujeitos.

Isso faz com que hoje a inclusão das pessoas com deficiências na escola comum seja aceitável, porque ela está relacionada a uma curvatura de normalidade que se faz no interior da escola, impulsionada pelas políticas educacionais vigentes que afetam seu currículo, sua proposta pedagógica, e as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula. Assim, a inclusão da anormalidade na escola comum é considerada normal, desde que seja aproximada da normalidade, mediante mudanças nos currículos e nas condutas dos sujeitos envolvidos (professores, alunos e famílias). Condições físicas e pedagógicas são adequadas, ou até mesmo, como preveem as normatizações e orientações do sistema nacional de ensino, a escola empenha seus esforços para uma mudança estrutural e cultural, que a torne inclusiva10 (BRASIL, 2008). Com isso, ampliam-se e intensificam-se os mecanismos para os processos de normalização dos alunos com deficiências (os 'anormais'), a fim de que se aproximem da normalidade e se integrem aos processos de ensino destinados aos demais ('os normais').

Ao fazer essa análise sobre como a norma opera sobre os processos de ensino, conduzindo o sujeito com deficiências a processos de normalização, não pretendo de modo algum desprezar o esforço empreendido pelos professores nos processos de inclusão, no entanto, não ignoro os efeitos das suas práticas no constrangimento às diferenças, ao conduzir os alunos à normalidade. São práticas de normalização que se pautam por um pensamento que acaba aprisionando as diferenças na identidade e na representação, identificando o sujeito com deficiência e fixando-o a um conceito (de sujeito anormal).

Segundo Schöpke (2004), a representação é a imagem semelhante que contém um objeto concreto, que o torna correspondente a algo naturalmente já existente. Assim, a representação não reconhece a singularidade, somente a generalidade, por isso, ela “não pode apreender o que há de diferente em cada um de nós, o que há de singular em cada objeto” (p. 40). Segundo essa autora, Gilles Deleuze, autor de Diferença e Repetição, já havia empreendido sua crítica à representação clássica, ou seja, ele criticou essa razão que refuta a possibilidade da diferença e nos impede de conhecermos a singularidade, deixando-nos no terreno das generalidades (SCHÖPKE, 2004). Por meio deste pensamento, o que a normalização faz é justamente refutar a singularidade que o sujeito com deficiência manifesta por meio do seu corpo, dos seus diferentes modos de aprender, de ver o mundo, e de se relacionar com os outros. Faz isso porque mantém o pensamento preso à ideia da representação.

4 A INCLUSÃO ESCOLAR QUE PROMOVE UM ENCONTRO COM O OUTRO

Além das práticas de normalização descritas e analisadas na seção anterior, também encontrei outras que sugerem pensar o outro não como representação, mas como diferença em si. Estas práticas levaram-me a questionar a (im)possibilidade de uma relação com o outro sem anulá-lo ou apagá-lo, ou seja, sem normalizá-lo e conduzi-lo à mesmidade: seria possível viver com o outro no processo de inclusão, tomando simplesmente a diferença como diferença em si, sem comparações ou hierarquizações com a ‘normalidade’?

Primeiramente, é preciso reconhecer a singularidade e a multiplicidade dos sujeitos. Em segundo lugar, há que se considerar que a diferença na perspectiva filosófica da Representação11 será sempre tematizada ou apagada, e “quanto mais falamos no outro ou na diferença, […] mais negamos a diferença” (GALLO, 2012, p. 147). Já, em outra perspectiva filosófica, na Filosofia da Diferença12, o outro é tomado como diferença em si, e enquanto tal, nos desafia a pensar a possibilidade de não o transformar no mesmo, mas considerá-lo como exterioridade, como um ser da ordem da proliferação e do devir. Ao tomar o outro, não uma imagem do mesmo, mas pura afirmação, pura possibilidade, Gallo (2012) sugere que essa relação possa levar o mesmo a ver que seu mundo não passa de mais uma possibilidade, porque o outro manifesta outros mundos possíveis.

Nessa perspectiva, de ver o outro como um sujeito singular, encontro algumas práticas de professores que expressam outro pensamento sobre as diferenças:

“Essas práticas (com o aluno com deficiência) provocam uma nova forma de ver o outro e de pensar o mundo. Provoca uma 'revolução mental', mudança de atitudes, comprometimento […]. O importante é encarar as diferenças.” (Professora do ensino fundamental).

“Coisas importantes para considerarmos: ninguém é absolutamente desprovido de potencialidades, podemos não ter aquelas que a sociedade elege, quanto à produtividade. Se acreditamos que nosso aluno tem potencialidades, temos que ter confiança, paciência […] olha a fulana, agora ela tá indo […] com nossa paciência […] no 'tranco' dela” (Professora de Filosofia do ensino médio).

“Todos percorrem o caminho, mas com diferenças. Não espero que eles façam as coisas como eu penso. Eles vão criar a sua própria forma de trabalhar” (Professora de Artes do ensino médio).

(Diário de campo. Reunião pedagógica. 2015)

Nesses depoimentos - ficando no nível do que dizem - como Foucault (2013) nos sugere, a inclusão oportuniza e aponta para outros modos das professoras olharem para seus alunos e também sobre si, sobre seus pensamentos, seus modos de agir e sobre sua docência.

Em sala de aula tive várias situações sobre as diferenças que me marcaram. Eu tinha um aluno que não parava na sala de aula, corria, caminhava o tempo todo, se isolava dos demais, não participava das atividades […]. Os demais alunos o rejeitavam, reclamavam e para mim isso era difícil contornar. Ainda assim, cada dia ia pedindo para que um colega sentasse ao seu lado para dividir material, ajudar […]. Essas coisas provocaram em mim uma nova forma de ver o outro e de pensar o mundo. Isso provocou uma revolução […] mudei atitudes. O importante hoje é encarar as diferenças […] aprendi muito” (Professora dos anos iniciais do ensino fundamental).

(Diário de campo. Reunião pedagógica. 2016)

A gente espera que todos comecem no primeiro degrau e cheguem todos ao último, mas dependendo de cada aluno, chegarão em degraus diferentes. Não aprendemos de modo igual, cada objetivo, cada aprendizagem é única e marca cada um de um jeito. Por isso, não espero que todos aprendam tudo ao mesmo tempo [...], eles não precisam seguir juntos, podem seguir no seu tempo. Assim, podemos perceber que todos são diferentes, que cada ser humano tem um potencial diferente, a gente não pode comparar, isso é individual. Todos percorrem o caminho, mas com diferenças. Não espero que eles façam as coisas como eu penso. Eles vão criar a sua própria forma de trabalhar. Eu passei a pensar de forma diferente, desde que tive meu primeiro aluno com deficiência, sempre trabalhei pensando que cada um pode ser diferente, não precisamos seguir modelos, não somos máquinas produtivas (Professora do ensino médio).

(Diário de campo. Reunião pedagógica. 2016)

Esses outros modos de ver e compreender os seus alunos com deficiências que essas professoras apresentam em seus relatos, são possibilidades para que a diferença possa existir como singularidade dos sujeitos. Apresentam então, outras formas de viver e de se relacionar com o outro - o sujeito com deficiências - nos processos de inclusão escolar. Ocorre que o governo sobre os outros se encontra com o governo sobre si e outro modo de governar torna-se (im)possível. Embora, sem a pretensão de afirmar, compreendo que esse outro modo de governar indica uma ‘experiência’ produzida nos sujeitos (nas professoras) durante os processos de ensino. Trata-se de experiências que possibilitaram aos sujeitos reconsiderar verdades que vinham sustentando suas práticas, transformando-os, transformando suas palavras, suas ideias, suas representações (LARROSA, 2011).

Quando a professora dos anos iniciais fala de um encontro que foi se dando aos poucos, a partir dos seus investimentos aproximativos com um aluno, na tentativa de trazê-lo ao encontro, ela diz sobre uma ‘experiência’ (LARROSA, 2011). Uma experiência, como ela própria afirma, que provoca uma 'revolução' no seu pensamento, mudando atitudes e comportamentos para manter um encontro com o outro. Compreendo que, embora capturada pela imperatividade da inclusão, ela está aberta ao outro para inventar outros modos de viver com ele, para que este possa ocupar um lugar que seja seu, e não simplesmente, aquele do sujeito normalizado, idêntico à mesmidade.

A professora do ensino médio relata seu estranhamento com o outro que possui deficiências, mas reconhece que não espera que seus alunos “façam as coisas como eu penso”. Ela não espera que eles sigam modelos, pois acredita que “todas as possibilidades são válidas”. O que essa professora diz, indica também uma experiência no encontro com o outro, que aponta um limiar ético da alteridade. Da, ou pela inclusão, ela admite “perceber que todos são diferentes” e que eles podem ser assim, e não precisam ser 'corrigidos' e conduzidos ao mesmo.

A análise que sou conduzida a fazer a partir desses recortes para dizer sobre possibilidades do outro ser considerado como diferença em si, passa pela noção de experiência que Larrosa atribui como:

[...] ‘isso que me passa’ [...]. Não que passe ante mim, ou frente a mim, mas a mim, quer dizer, em mim. A experiência supõe, como já afirmei, um acontecimento exterior a mim. Mas o lugar da experiência sou eu. É em mim (ou em minhas palavras, ou em minhas ideias, ou em minhas representações, ou em meus sentimentos, ou em meus projetos, ou em minhas intenções, ou em meu saber, ou em meu poder, ou em minha vontade) onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar (LARROSA, 2011, p. 6).

A experiência é de cada um e ela transforma o sujeito, ou melhor, ela é um processo provisório que redunda em um sujeito, porque este não existe antes da experiência (FOUCAULT, 2010b, p. 262). Larrosa (2011), argumenta que a passagem do sujeito pela experiência acontece porque este “é como um território de passagem, como uma superfície de sensibilidade em que algo passa” (p. 8). É essa sensibilidade diante do outro, do sujeito com deficiência, que as professoras indicam ao compreender a existência de seus alunos sob outras formas. Assim, a experiência ultrapassa o que é possível, como meandros do impossível:

O possível é o provável, um pouco menos do que o real, mas não está em desacordo. O possível seria aquilo cuja probabilidade se pode calcular. O possível é também o que pode ser real, só depende do nosso poder. As duas dimensões do possível remetem ao saber e ao poder: é possível o que sabemos que pode acontecer, e é possível o que podemos converter em real. […] Se o possível é aquilo que está determinado pelo cálculo de nosso saber e pela eficácia de nosso poder, o impossível é aquilo frente ao qual desfalece todo saber e todo poder. Somente se depusermos todo saber e todo poder, nos abriremos ao impossível (LARROSA; LARA 1998, p. 80-81).

É uma experiência (im)possível que se dá no encontro do eu com o outro (do sujeito ‘normal’ com o ‘sujeito anormal’), em um grau de sensibilidade que permite um deslocamento da busca pela normalidade para justificar e argumentar outra forma de viver com as deficiências, e deste modo, considerar as diferenças em outra relação. É uma experiência que acontece na educação, em meio a processos de ensino. Se ela leva os sujeitos, neste caso, as professoras, a transformarem seu olhar para esse outro (o aluno com deficiência), compreendendo e aceitando como este é, ou como está sendo, e permitindo que ele seja quem é e o que pode ser, temos então, uma forma de desprendimento da racionalidade normalizadora, que pode voltar-se inclusive para rever o tão superior status da normalidade. Afinal, a normalidade que construiu um paraíso para si, ela “que inventa a si mesma para, logo, massacrar e domesticar todo o outro” (SKLIAR, 2003a, p. 153), ela que faz do outro um anormal, não poderia ela ser destituída desse reino absoluto da verdade? Não poderia, essas práticas das professoras dessa escola, produzirem fissuras na normalidade, escancarando a arrogância e a hostilização que confere sobre o outro (anormal)?

Skliar sugere essa perspectiva de desconstrução do poder da normalidade, dizendo que o “problema não é o anormal, a anormalidade, [...] e sim a norma, a normalidade e o normal” (2003a, p. 35), porque a normalidade se transforma em mesmidade, e esta impede a diferença, proíbe que ela se manifeste. Por isso, só poderemos tomar as diferenças em si, sem que estejam submetidas a comparações com a normalidade, quando a experiência no encontro com o outro, possibilitar condições para que as regras da normalidade sejam destituídas (ou pelo menos abaladas), e que outras formas de condução dos processos inclusivos passem a compor as práticas dos professores e das escolas.

5 PALAVRAS FINAIS

A escola contemporânea se torna um campo aberto, pois tudo indica que ninguém mais será impedido de entrar nela, porém como uma 'máquina sedentária', ela opera “por meio de suportes que sedentarizam as formas de ser e de estar” (RÍOS, 2002, p.115) e, por isso, instaura-se uma luta travada entre a representação e a diferença. Porém, não há mais como conter a diferença, ela irrompe aqui e ali, então o que vivemos é um “jogo entre o nômade e o sedentário” (RÍOS, 2002, p.115). Um jogo que pode ser desleal, entre as vozes e a existência de um devir-minoritário e a marcação de dualidades que fixam identidades, normas e formas de vida como ‘verdadeiras’. É como se um reino poderoso, que conquistou territórios, capturou os sujeitos que dele se aproximaram, se encontre agora ameaçado. Toda a lógica montada para que a escola funcionasse como a 'oficina de homens', como espaço para sua civilização e produção da sua moralidade não se mantém mais com a mesma segurança.

Desta forma, a proximidade entre os sujeitos e o convívio que a inclusão escolar proporciona, podem fazer emergir outras formas de viver as diferenças, que não estejam tão marcadas pela condução do outro à mesmidade. Mas isso passa pelo nosso reconhecimento de que embora a inclusão seja uma estratégia para a normalização dos sujeitos, também podemos fazer dela encontros com o outro que proporcionem experiências transformadoras dos sujeitos. No entanto, são experiências que acontecem mediante uma sensibilidade, de reconhecimento de que o outro não é um sujeito a ser tolerado ou respeitado, mas que ele reverbera seu lugar e não depende do consentimento do eu para existir.

Por isso, a questão que instigou a escrita desse texto referente ao que fazemos com as diferenças quando nos propomos a incluir, e que relações o processo de inclusão das pessoas com deficiências pode produzir no espaço escolar, pode-se dizer que tanto podemos seguir o reino da normalidade que tudo comanda para manter seu status, como também é possível destituí-la investindo em outra relação. No entanto, como diz Larrosa (2017), essa relação encontra condições de possibilidades na vulnerabilidade do sujeito que se coloca em posição de escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade e exposição para ser o lugar da experiência; para se colocar em uma posição de não-saber, de viver o limite do que sabe para que a experiência possibilite viver com o outro de outro modo, que não o da condução do outro à mesmidade.

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2Segundo a legislação vigente (Parecer CNE 4/2009), o termo ‘escola comum’ ou ‘classe comum’ caracteriza a escola regular destinada a estudantes que não possuem deficiências, e é utilizado para diferenciar as ‘escolas especiais’, destinadas exclusivamente àqueles que possuem deficiências.

3Governamento é explicado por Veiga-Neto (2002a) como o governo em ação, ou seja, o conjunto de ações de poder que visam conduzir a conduta dos outros ou a própria conduta. É a manifestação 'visível' do poder nas ações.

4A ‘mesmidade’ se contrapõe à diferença. A ‘mesmidade’ é a qualidade do ‘mesmo’, daquele que é idêntico, que é homogêneo, que é semelhante ao modelo. ‘Mesmidade’ e diferença referem-se ao idêntico e ao diferente (SKLIAR, 2003a).

5O ‘devir’ é o que pode ‘vir a ser’ como multiplicidade, como aquilo que se produz num ‘entre lugar’, entre uma coisa e outra, por exemplo, entre a criança e o adulto, pode surgir um devir-criança, entre o homem e a mulher, um devir-mulher, como aquilo que difere do que já existe, como aquilo que não se fixa numa identidade, mas como multiplicidade, e por isso é sempre minoritário (DELEUZE; GUATTARI, 1974).

6O Atendimento Educacional Especializado (AEE) está previsto na Resolução CNE nº 4 de 2009 (BRASIL, 2009). Consiste em um trabalho complementar ou suplementar à formação do aluno com deficiência, disponibilizando serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem barreiras para sua plena participação na sociedade e nos processos de ensino.

7Utilizo a inicial de nomes fictícios (A, B, C, D) para fazer referência a alunos.

8A norma é um conceito utilizado por Foucault (2008, 2010a) para explicar que o poder não se manifesta no domínio da lei e sim, da norma. Tanto nas sociedades disciplinares quanto nas de seguridade, a norma converteu-se como o critério de divisão dos indivíduos e guiou os processos de normalização dos indivíduos e da população (CASTRO, 2009). A norma, nas sociedades disciplinares, como referência à condução das condutas, definiu o que era normal e o que era anormal (FOUCAULT, 2008).

9 A Estatística foi um importante instrumento, a partir do século XVII, para identificar e acompanhar a vida da população, a fim de garantir sobre ela um governo que não estivesse estritamente submetido a leis, mas sim, a táticas de governo que dependiam de saberes e análises sobre a população. Ela era como uma ciência do Estado sobre a população (FOUCAULT, 2008).

10O conceito de 'escola inclusiva' previsto nessas orientações está relacionado a uma perspectiva de inclusão que acolhe a todos, independentemente das suas condições físicas, sociais e culturais, garantindo-lhes condições de acessibilidade física e de acesso ao conhecimento.

11A Filosofia da Representação (ou filosofias da representação) situam-se na filosofia moderna, caracterizando-se como filosofias da consciência. Esse tipo de filosofia é marcado pelo pensamento cartesiano, privilegia o sujeito e a razão e, por isso, nela o outro é tomado como representação.

12A Filosofia da Diferença, também pensada como ‘filosofias da diferença’, é uma corrente de pensamento criada por filósofos franceses contemporâneos, inspirada no pensamento de Nietzsche. Enquadra-se numa filosofia de pensamento complexo, que se interessa pela diversidade, pluralidade e singularidade, ao invés de um pensamento de uma filosofia que se interessa pelo pensamento universal e ideia de totalidade.

Recebido: 19 de Janeiro de 2018; Aceito: 05 de Dezembro de 2018

Revisão gramatical realizada por:

Maida Regina da Silveira Brum E-mail: maidabrum@yahoo.com.br

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