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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.3 Campinas jul./set 2019  Epub 23-Set-2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i3.8655952 

EDITORIAL

LUTO É VERBO: EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA

Maria do Carmo Martins1 

Wenceslao Machado de Oliveira Junior2 

1Pós-doutorado - University of Brighton - Reino Unido e Universidad del Valle, Colômbia. Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/FE) - Campinas, SP - Brasil. Professora - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação (UNICAMP/FE) - Campinas, SP - Brasil. Editora da Revista ETD - Educação Temática Digital. E-mail: carminha@unicamp.br

2Pós-doutorado - Universidade do Minho/Portugal. Doutorado em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/FE) - Campinas, SP - Brasil. Professor - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/FE) - Campinas, SP - Brasil. Editor da Revista ETD - Educação Temática Digital. E-mail: wenceslao.oliveira@gmail.com


Uma vez vivendo em uma sociedade democrática contemporânea, saberíamos dizer quando essa democracia estaria em risco? Mas, de que democracia estaríamos falando? Já não haveria paradoxos ou contradições entre os vários sentidos que esse conceito ganhou nas últimas décadas ao se ver conectado a outros desejos individuais e projetos sociais, ou mesmo a outros sentidos de liberdade a ele associados?

Quais agentes, no âmbito do Estado ou fora dele, estariam atuando para este enfraquecimento ou desaparecimento? Qual o papel exercido pela agenda conservadora em suas diversas expressões e pretensões? De que formas os movimentos sociais e novos movimentos políticos se organizam?

Como resistir? A que resistir? Ao lado de quem resistir? Quais as possibilidades, para além da resistência, de tornar a democracia ainda existente a expressão de outras potencialidades democráticas? Toda e qualquer luta pela democracia já traz em si um traço democrático? Como o ato de educar traduz-se em um gesto democrático e de que maneira as instâncias e instituições educativas atuariam aí? Quais lutas pela democracia são atinentes aos agentes da Educação?

Com esta grande sequência de perguntas, a comissão editorial da revista ETD - Educação Temática Digital, decidiu-se por abrir uma chamada para recepção de artigos, em caráter especial na sua agenda de publicações, com vistas a propugnar a democracia e participar, de forma qualificada, nos diálogos sobre o papel da educação na (re)construção de uma sociedade plural, múltipla, humanizada, cuja partilha do sensível seja não apenas um anseio mas, também, uma possibilidade (Ranciére, 2009).

O dossiê aqui publicado, configurado em uma convocatória temática, insere-se na ação editorial que a ETD privilegia desde 2017, por ocasião da publicação dos dois números intitulados (Des)ocupar é resistir e É preciso defender a escola. Com o dossiê Luto é Verbo: Educação e Democracia, consolidamos uma direção editorial que enfatiza a ETD - Educação Temática Digital como uma revista acadêmica que, para além de ser um canal de divulgação das pesquisas e experiências significativas em educação, assume-se como espaço propositivo no sentido de subsidiar os debates contemporâneos que assolam e interpelam o campo educacional.

A expressão “Luto é Verbo”, que antecede a articulação entre Educação e Democracia no título deste dossiê, tem sido constantemente utilizada no sentido de marcar as ações dos sujeitos que se dispõem a transformar suas dores e perdas em possibilidades de reação, de irrupção política, de enfrentamentos à uma agenda conservadora e excludente.

Tal expressão, que já era uma palavra de ordem em manifestações de grupos minoritários há alguns anos, ganhou as ruas e redes sociais brasileiras em momentos recentes de enfrentamentos às políticas de Estado contra a educação, em 2016, por ocasião da luta dos educadores contra a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n° 241, rejeitando, portanto, o congelamento de investimentos em educação e saúde pelo Estado brasileiro. “Luto é Verbo” foi ainda mais clamado no ano de 2018, em manifestações indignadas pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e, recentemente, reapareceu em manifestações que marcavam as disputas no processo político eleitoral, no qual ganhou força um projeto político (e jurídico) que coloca em evidência restrições às ações democráticas.

Tendo em vista que muitos analistas apontam que a crise da democracia é mundial e está intimamente associada às redes sociais e ao atual estágio do capitalismo, optamos por lançar a chamada para este dossiê nas três línguas em que publicamos: português, inglês e espanhol. Isto fez com que houvesse a necessidade de enfrentar a tradução de uma expressão cuja ambiguidade intensificadora - luto e luta - só funciona linguisticamente em português. Desta forma, nas chamadas em inglês e espanhol foi incluída uma frase explicativa, conforme aparece a seguir.

MOURNING IS A VERB - EDUCATION AND DEMOCRACY

(In Portuguese the word mourning, “luto”, is the same word for the 1st person of the verb fight, I fight is “eu luto”, which allows the double meaning of the phrase “Luto é verbo” which has been used a lot by Brazilian activists pro democracy).

DUELO ES VERBO - EDUCACIÓN Y DEMOCRACIA

(En portugués la palabra duelo, "luto", tiene la misma ortografía que la primera persona del verbo luchar, yo lucho es "eu luto", lo que permite el doble significado de la frase "Luto é verbo", el cual ha sido muy utilizada por activistas brasileños pro-democracia)

Enfrentar a tradução para os diferentes contextos sociais, linguísticos e políticos onde a chamada iria circular nos colocou diante de um dos problemas da própria democracia: a necessidade de acolher a diferença como possibilidade de produção daquilo que é comum. Em outras palavras, faz parte da luta enfrentar aquilo que Walter Benjamin denominou “a tarefa do tradutor”, reconhecendo “que toda a tradução não é mais do que uma maneira provisória de nos ocuparmos a fundo com a disparidade das línguas”, indicando que esta disparidade não é propriamente estrutural das línguas, mas sim algo atinente à história, uma vez que são os contextos sociais que dão vida à língua, bem como indicando que “todos os fenômenos vitais assim como as suas finalidades particulares e isoladas não surgem para serem úteis à vida mas sim para dar expressão à sua natureza e para apresentar aquilo que ela significa” (Benjamin, apud Branco, 2008, p. 33 e 29, respectivamente).

Para nós, a expressão “Luto é verbo” surgiu e ganhou força nos movimentos pró-democracia do Brasil dos últimos anos justamente por expressar a natureza da vida social que se faz presente entre nós, por nos apresentar alguns dos significados que nossa vida tem ganhado nestes mesmos últimos anos.

Esta expressão, portanto, “traduziu” a vida brasileira para a língua portuguesa e coube a nós traduzir, de maneira certamente provisória, os significados que ela expressa para aqueles outros contextos linguísticos e sociais onde ela poderia reverberar para apresentar possíveis entendimentos dos fenômenos sociais que temos vivido no mundo atual.

Entendendo que o papel dos intelectuais, nesse contexto, é o de participar ativamente na compreensão de tais fenômenos e, construir alternativas que elucidem nosso contexto, evocamos a expressão “Luto é Verbo” para compor a chamada aos artigos que agora apresentamos e que foi, em grande medida, assumida também pelos autores que dela participaram. Nós e eles, bem como todos aqueles e aquelas que se juntarem a nós, decidimos não fazer o luto pelas formas de democracia que estão deixando de existir, mas sim lutar para que estas e outras formas do viver democrático (re)tomem suas forças sociais e sustentem a democracia como a mais justa e plural possibilidade de vida em sociedade.

Seis artigos compõem o dossiê. Neles, a busca por alternativas para o entendimento da propalada crise democrática que assola o Brasil e o mundo, são apresentada aos leitores, alicerçadas em filosofia das diferenças; em filosofia política; em teoria social sobre conflitos; em aparatos jurídicos; em reflexões sobre tecnologias e teoria do conhecimento. A diversidade dos temas escolhidos pelos autores para abordarem a relação entre educação e democracia, assim como a diversidade de ênfases teóricas, potencializa o conjunto dos artigos e reitera a vocação multidisciplinar e democrática da revista.

Para além do dossiê, este número da ETD - Educação Temática Digital publica nove artigos com temas variados atinentes à área de Educação.

Convidamos as leitoras e os leitores a ingressarem em nossas páginas e juntar-se a nós nos inúmeros combates por uma educação que se faça como prática da liberdade, como escreveu Paulo Freire (2015), legando-nos uma das expressões mais contundentes para lidarmos com a relação entre Educação e Democracia.

REFERÊNCIAS

BRANCO, Lúcia Castello. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Faculdade de Letras-FALE/UFMG, 2008. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. [ Links ]

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível - estética e política. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2009. [ Links ]

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