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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.3 Campinas July/Sept 2019  Epub Sep 23, 2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i3.8654644 

DOSSIÊ

LUTAS DEMOCRÁTICAS CONTRA O URSTAAT: O QUE PODE FAZER A EDUCAÇÃO?

DEMOCRATIC FIGHTS AGAINST URSTAAT: WHAT EDUCATION CAN DO?

LUCHAS DEMOCRÁTICAS CONTRA EL URSTAAT: ¿QUÉ PUEDE HACER LA EDUCACIÓN?

Sílvio Gallo1 

Alexandre Filordi de Carvalho2 

1Doutor em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - SP. Docente - Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do CNPq. E-mail: gallo@unicamp.br.

2Doutor em Filosofia - Universidade de São Paulo (USP) - SP e Doutor em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - SP. Docente - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) - Guarulhos-SP. E-mail: afilordi@gmail.com.


RESUMO

A partir das pesquisas com o pensamento de Deleuze e de Guattari, o artigo centra-se na investigação do conceito de Urstaat para sustentar que as formas antidemocráticas atuais não passam de atualizações do próprio Urstaat. Ao desenvolver o que é o Urstaat e o seu avanço como arquétipo de um Estado primordial, apresenta-se a hipótese de que a democracia é uma produção de relações subjetivas que necessariamente vão na direção contrária dos sensos e dos consensos do Estado. O artigo se vale do pensamento político de Rancière para defender o registro singular da democracia face à política universalista do Urstaat, já que se trata dos lugares da multiplicidade e da máquina de guerra para pensar as lutas democráticas contemporâneas. Ao cabo, refere-se a conceber a educação como experiência imprescindível e privilegiada de lutas democráticas antiurstáticas.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Urstaat; Lutas democráticas; Educação

ABSTRACT

Starting from researches on Deleuze and Guattari’s thought, the paper aims investigate the notion of Urstaat to sustain that the pattern of the nowadays antidemocratic ways is the own Urstaat actualization. As it develops the meaning of Urstaat and its advance as a primordial States’ archetypic, it shows the hypothesis that the democracy is a production of subjective relationships unfetter going forward against all senses and consensus from the State. For reaching that, the paper takes the Rancière’s political thought to argue that the singular path of democracy as a stand up against the universal political tendencies of the Urstaat, once it concerns the sites of the multiplicities and of war machine to figure out the contemporary democratic fights. Finally, it recovers the view that Education is such experience absolutely vital and privileged to all anti-urstatic democratic fights

KEYWORDS: Democracy; Urstaat; Democratic fights; Education

RESUMEN

A partir de las investigaciones con el pensamiento de Deleuze y de Guattari, el artículo se centra en comprender el concepto de Urstaat para defender que las formas antidemocráticas actuales no pasan de actualizaciones del proprio Urstaat. Al desarrollar lo que es el Urstaat y su avanzo como arquetipo de un Estado primordial, se presenta una hipótesis de que la democracia es una producción de relaciones subjetivas que necesariamente se encuentra el la dirección contraria de los sentidos y de los consensos del Estado. Para eso ser logrado, el artículo utiliza el pensamiento político de Rancière para sostener el registro singular de la democracia delante de la política universalista del Urstaat, una vez que se trata de los lugares de la multiplicidad y de la máquina de guerra para pensarse las luchas democráticas contemporáneas. Al final, se trata de concebir que la educación es experiencia innegable y privilegiada de luchas democráticas anti-urstáticas.

PALAVRAS-CLAVE: Democracia; Urstaat; Luchas democráticas; Educación

1 INTRODUÇÃO: CHAMADOS A AGIR EM UM CENÁRIO ANTIDEMOCRÁTICO

As alianças desejantes moleculares são assombradas por uma aliança urstática, por uma finalidade mortífera molar (GUATTARI, 2012a, p. 134).

Como não reconhecer nas democracias o déspota que devém mais hipócrita e mais frio, mais calculista? (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 292).

No crepúsculo do século XX, Huntington (1991) denominava de “consolidação da terceira onda democrática” o colapso ao longo da extensão planetária, desde os anos de 1980, dos regimes autoritários. Mas apenas duas décadas e meia após a suspeição de Huntington, a mais diversificada e recente literatura do campo científico social analisa um mundo assolado não mais por uma onda, mas por um tsunami de tendências antidemocráticas (CHOMSKY, 2017; COMITÊ INVISÍVEL, 2016, 2018; GALLEGO, 2018; KLEIN, 2007, 2017; LEVITSKY; ZIBLATT, 2018; PIKETTY, 2014). Malgrado a pletora de tônicas teóricas e de ênfases no campo empírico de suas análises, grosso modo, sobressaem-se convergências a serem destacadas.

Em primeiro lugar, há um consenso de que os estados democráticos foram parasitados pela financeirização do mercado, sopesada pela especulação capitalista rentista. Por sua vez, tal dinâmica ocorre às custas do despejo da presença do Estado de direito no tecido social, assegurador da justiça e da inclusão, do funcionamento das instituições de garantia de direitos sociais e de maximização da liberdade e da segurança humana em todas as suas frentes. Essa vertente é entendida sob o registro do neoliberalismo econômico, combatido e contestado em todas aquelas análises.

Em segundo lugar, há um consórcio da perspectiva anterior com a extrema-direita, alastrada desde os Estados Unidos com assunção da Alt-right, perpassando por diversos países europeus, tais como Alemanha, Áustria, Espanha, França, Hungria, Itália, Polônia, República Tcheca, dentre outros, até ecoar na América Latina, especialmente no Brasil. Nesse caso, afeta-se a ampla arquitetura constitucional consagrada, o equilíbrio de separação entre poderes e os seus sistemas de pesos e contrapesos; também se refreia a participação de todos os cidadãos em assuntos públicos, quer controlando a formação da opinião pública, inclusive por censura, quer atacando a liberdade de pensamento articulada nas instituições públicas: escolas, universidades, partidos políticos de esquerda, por exemplo, quer, ainda, valendo-se do direito do uso de forças jurídico-policiais para impedir manifestações públicas contrárias às tendências autocráticas ou greves de trabalhadores, mas também para perseguir e prender políticos avessos aos ditames pavimentados entre o interesse das oligarquias, ao mesmo tempo, parturientes e casadas com a extrema-direita.

Finalmente, as investigações se aproximam, ao destacar, nas expressões de Céfaï (2005, p. 764), o perigo de “um seguidismo e de um conformismo sem precedentes” que perpassa os sujeitos sociais, imantando-os de um acriticismo perigoso, mormente como consequência da fácil adesão ao embrutecimento pretensamente justificante lastreado nas bolhas de entretenimento midiático, responsáveis por promover uma “bestialização cotidiana das pessoas” (SLOTERDIJK, 2012, p. 17), facilmente inclinadas a um populismo desinibido. Em tal cenário, promovem-se a solidificação do consenso neoliberal e a impermeabilização da solidariedade democrática, fundada no respeito e na promoção dos direitos humanos e de todas diferenças que possam existir e serem produzidas entre os seus cidadãos. Mas ali também se arrimam fanatismos e arcaísmos distintos: de um lado, a fé em um chamado metafísico que pode ser em nome de um credo, de um moralismo, de uma mística genocida, racista, sexista, xenofóbica, ginofóbica, transfóbica; e, de outro lado, um saudosismo retrógrado em busca da repetição da história, da recolonização religiosa, da superação do medo da realidade, em nome da supremacia do imaginário, de fazer habitável porões repugnantes - de tortura e (de) morte - das ditaduras civil-militares.

Por conseguinte, vem à luz um consenso nas análises sobre a necessidade de algum tipo de ação urgente por parte daqueles que se situam, ou podem vir a se situar, na outra margem de tais tendências. Há um consistente chamado para se pensar e se viver de modos a recusar os circuitos de produção social antidemocráticos, bem como a assumir novas proposições e ações voltadas para a reafirmação de tudo que é açambarcado pelo espírito democrático, o que não se faz sem lutas, solidariedade, confiança e estratégias de formação para tanto.

O objetivo deste artigo, assim, é produzir um campo problematizador e analítico que se pretende somar às proposições insurgentes, contestatórias e de destituição do que poderíamos denominar de conluios de fascínios antidemocráticos. A hipótese central do texto é a de que precisamos recalibrar na atualidade o sentido e o alcance das lutas democráticas. Também é urgente nos amotinar contra as forças do individualismo e do isolacionismo doutrinador do neoliberalismo econômico, considerados impulsos que bloqueiam a solidariedade capaz de agenciar coletivos contra as injeções paralisantes do desejo que ousa afirmar um modo de se viver fora das demandas negociadas nas bolsas de valores dos moralismos consagrados e dos consensos sedantes. Com efeito, assumimos que a educação é um dos campos fundamentais para se conceber tal empreitada, e é isso que queremos pensar: o que a educação pode fazer para ser um contrapeso no Zeitgeist atual, esse espírito de época que não deve nos furtar de educar para outras e novas ondas democráticas.

Para tanto, conceberemos dois momentos. No primeiro, sustentaremos que as formas antidemocráticas atuais não passam da atualização do Urstaat, tal como Guattari (2012a, 2012b) e Deleuze e Guattari (2010) conceberam. Com isso, será necessário compreender o que é o Urstaat, suas feições e dinamismo. A questão a ser alcançada aqui diz respeito à paradoxal tendência dos estados democráticos de permitir a sabotagem da própria potência da democracia em sua concretude, pois a função do Urstaat é de continuamente reativar os fluxos despóticos de governamento, em nosso caso, retraduzidos nas estratégias capitalistas neoliberais de parasitagem no Estado, na consagração da extrema direita e no despotismo atualizado, a sufocar todas as liberdades possíveis e desejáveis. Na segunda etapa, contraporemos ao cenário contemporâneo do Urstaat a perspectiva das lutas democráticas moleculares e a urgência de a educação assumir lugar como estratégia de formações subjetivas contra-hegemônicas, levando-nos a agir de alguma maneira contra o Urstaat. Para tanto, tomaremos o pensamento político de Rancière (1996, 2005, 2007) para compreendermos o registro singular da democracia face à política universalista do Urstaat, o que nos prepara para as considerações finais.

2 O URSTAAT É O ESTADO PRIMORDIAL: FEIÇÕES E DINAMISMOS DE UM DESPOTISMO ANTIDEMOCRÁTICO QUE SE CONTEMPORANIZA

Deleuze e Guattari (2010, p. 287-288), ao introduzirem a temática do Urstaat, são peremptórios: “O Estado não se formou progressivamente, mas surgiu de uma vez já todo armado, num golpe de mestre, Urstaat original, eterno modelo de tudo o que o Estado quer ser e deseja”. Mas, antes mesmo de anunciarem a aparição do Estado a um só golpe, encontramos uma frase que, ao longo de O anti-Édipo, não é desenvolvida e tampouco justificada a ponto de nos conduzir a uma compreensão evidente acerca do dito: “Cidade de Ur, ponto de partida de Abraão ou da nova aliança” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 287).

Assim está posta uma complexidade que precisamos enfrentar, pois o termo é registrado em alemão e, ao mesmo tempo, remetido à cidade mesopotâmica de Ur. Qual a relação, portanto, de Urstaat com Ur, e o que isso quer dizer? Por que a referência a Abraão, e não apenas a Ur? Por que a escolha da Ur histórica, e não apenas o prefixo Ur, do alemão, para se compor com Staat, que quer dizer Estado; e por que a sobreposição coincidente de cidade e prefixo Ur? Qual o alcance da afirmação: “o Estado é o Urstaat original”? Finalmente, o que é o Urstaat, no sentido de modelo de tudo o que o Estado quer ser e deseja? Responder a tais questões torna-se fundamental não apenas para se obter um esclarecimento exegético do conceito: muito mais, porém, para poder atingir o seu núcleo operador com o que queremos sustentar: o Urstaat é uma megamáquina de produção de despotismo antidemocrático.

De forma mais evidente, porque mais enunciada, o Urstaat é um conceito conjugado pelo prefixo alemão Ur mais o substantivo Staat. Se, para este último, o sentido é menos invariável, pois quer dizer Estado, para o prefixo, a opção de tradução pode ser determinante. Em alemão, Ur pode designar o que é primeiro, originário e original, primitivo, primevo; mas também agencia o sentido de o mais antigo, os primeiros tempos, aquilo que é principal, bem como “proto”. O problema se dá no uso do prefixo, o que faz mudar completamente o campo semântico de seu propósito.

Para se ter uma ideia, Foucault (1996) fez uma longa análise da complexidade da recepção de Ursprung em Nietzsche. Se Sprung é salto, no entanto, ao somar-se a Ur pode denotar sentidos variáveis. Ursprung é origem, mas uma origem que pode ser concebida como o salto arcaico, o salto originário, uma descontinuidade assumida porque dá origem a algo. Ao se valer de tal empreita para combater a história original, desde Nietzsche, Foucault faz operar um conceito que interessa às suas concepções críticas, mas, do ponto de vista do pensamento de Nietzsche, segundo a pesquisa de Pizer (1990), Foucault estaria equivocado. Assim, na ordem dos conceitos, palavras não são meras palavras. Há toda uma geografia de pensamento em jogo e de concepção de entendimento. Urphänomen, por exemplo, não é uma simples tradução de fenômeno originário, se pensarmos em Goethe; Urwelt, tomado como mundo originário, embora correto, estaria equivocado se fôssemos falar do mundo originário desde a fenomenologia de Husserl, pois tratar-se-ia aí de Lebenswelt3.

Concernente ao Urstaat, assumiremos a ideia de Estado primordial. Nesse caso, além de sugerir o contexto de originário, original ou primitivo, Ur também nos remeteria ao arcaico como algo que é contemporâneo de si mesmo, espécie de princípio básico e incontornável que, a partir de sua forma primeira, faz desdobrar as formas ulteriores, sem jamais deixar de voltar-se ao que lhe é fundamento. O Urstaat remete-se a si mesmo sob uma dupla hélice: ao mesmo tempo que é diacrônico, pois cada etapa de suas formas ulteriores converge para a própria maturação do “todo armado” disruptivo do Estado, simultaneamente, há em cada uma de suas formas uma sincronicidade que não abre mão do seu princípio primordial, isto é, o Urstaat tem de ser despótico ou imperialista. A sua diacronia está expressa na ideia de que “é a formação de base que está no horizonte de toda história” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 288), ou seja, formação de base do Estado. Da base ao seu desenvolvimento, há o fio sincrônico de seu propósito sempre primordial, quer dizer, o de ser um “Império primordial”, conforme concebeu Guattari (2012a, p. 235), para quem “os místicos, coptas, sírios e outros, exprimem um desejo de retorno às fontes do Império primordial: Ur-Estado (Ur-État)”, donde podemos alcançar o sentido proposto por Deleuze e Guattari (2010, p. 288), ao afirmarem que “cada forma mais ‘evoluída’ é como um palimpsesto: ela recobre uma inscrição despótica, um manuscrito miceniano. Sob cada negro e cada judeu, um egípcio; um miceniano sob os gregos; um etrusco sob os romanos” e, por que não dizer, um português explorador, violento, dizimador e senhorial sob cada brasileiro.

Em suma, na acepção inicialmente germânica, o Urstaat é o Estado primordial do despotismo na aparição do próprio Estado. Aparição abrupta e, por isso mesmo, uma Ursprung reatualizada em todas as suas formas: encontro da primazia despótica de toda forma anterior e posterior do Urstaat. Sendo assim, apesar da variação da formação do Estado, o desdobramento de suas formas permanece cristalizado e projetado no que lhe é primordial: o despotismo. Mas por que se trata de uma inscrição despótica no e do Estado?

Em seus Écrits pour L’anti-Œdipe, texto laboratorial de Guattari (2012a) para a produção, junto com Deleuze, de O anti-Édipo, descobrimos que o caráter despótico do Estado primordial se dá em função de sua produção estrutural de disjunções de significantes. Guattari (2012a, p. 466), ao argumentar que “o despotismo é sinônimo de biunivocização”, está nos preparando para a concepção tardia de síntese disjuntiva de registro, ou seja, a perspectiva de inscrição de todo tipo de representação dualista em que ou se está a favor dela ou se está contra ela. No quinto platô de Mil platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2002), acerca do Estado, deparamo-nos com a sua condição estrutural sedentária como princípio operador de normalidade do Estado: ele administra por fixação, identificação, cálculo, controle, ameaça, a ponto de expulsar e aniquilar aqueles e aquilo que insurgem contra a normalidade de sua autorrepetição. Eis, então, o “Estado como lugar de conversão geral de todos os sistemas de valores econômicos, simbólicos, significantes e de desejo, mas se trata também do rizoma tentacular das formações de poder” (GUATTARI, 2012b, p. 468), justamente porque ele é invasivo de modo capilar, com o seu poder disjuntivo. Por outro lado, os nômades ou o nomadismo seriam uma ameaça constante à estabilidade do Estado, fato pelo qual o Estado se faz avançar diante de tudo que se lhe escapa. Assim, ou há uma filiação ao sedentarismo ou há uma filiação ao nomadismo; ou se está dentro ou fora do sistema.

O que o Urstaat sempre faz com o imperialismo da biunivocidade é inovar, com as suas estratégias, perversões excludentes. Conforme cogitamos, os termos de Guattari (2012a, p. 281) vão em tal direção: “O Urstaat é reconstituído a partir de sua explosão em milhares de estilhaços. E recola-se o espelho disjuntivo”. É toda uma legião operadora do imperialismo da biunivocidade significante que está aí representada, necrosando, com seus sedentarismos e suas molaridades, todo poliformismo possível de ser manifestado na vida que escapa aos significantes dominadores. Poderíamos, assim, pensar em uma longa iconografia imperialista de significantes cujo campo gravitacional, com suas pequenas engrenagens de demanda cotidiana, sedimenta camadas necrosantes - portanto, mortíferas - na megamáquina do Estado com os seus pequenos difusores de ou...ou. Eis, com efeito, o destino final de tantos conformados ao despotismo do Estado: seguir, obedecer, reverenciar, submeter-se ao Líder, ao Falo, à Nação, à Raça, ao Capital, ao Mercado, ao Chefe, ao Édipo, à Família, a Deus, à Igreja, à Pátria, à Verdade, à Vontade da Maioria, ao Gênero-Branco-Heteronormativo-machista, aos Novos Tempos, ao Capitão e ao General. Em termos da potência de vida, o Estado é despótico por ser uma experiência tóxica de antiprodução de desejo nômade, molecular, afeito à vontade de produzir experiências dissonantes aos seus imperativos sempre incluso-excludentes. Por conseguinte, “as alianças desejantes moleculares são assombradas por uma aliança urstática, por uma finalidade mortífera molar” (GUATTARI, 2012a, p. 134). Assim ele avança, pois o Estado despótico não se contenta em sobrecodificar elementos significantes já codificados; portanto, ele inventa novos códigos imperiais específicos para todo fluxo de vida que tende a escapar de seu Império, reinsuflando, em todas as novas possibilidades de experiências de vida, o Urstaat. Se há algo de mais primordial no Urstaat, ele se encontra na consistência de suas ressonâncias planificadoras, homogeneizantes e cristalizadoras das formas de expressão dominantes:

Todo mundo, os camponeses livres ou dependentes, os burocratas, a aristocracia, o exército, encontra-se na mesma filiação: aquela do déspota supremo. Assim está constituída uma, e somente uma, máquina, deixando talvez subsistir uma vaga “democracia” interiorana (villageoise). Trata-se de uma máquina que concentrou toda sua produção sobre uma superfície de sentido, uma superfície de gozo único, aquele do déspota e o de sua corte. (GUATTARI, 2012a, p. 238, grifos originais)

Ao submeter “todo mundo” à mesma filiação do déspota supremo, Guattari prenuncia o sentido de Urstaat a partir da derivação do Império de Ur. Assim, temos o encontro do Estado primordial, conforme a análise do prefixo Ur + Staat identificou, com a amplificação da ressonância do despotismo. Ur imperial confluirá para si mesma a atualização da cooptação democrática com o poder do capitalismo, com a radicalização extrema de um governamento intransigente com as dissonâncias e com a pacificação do Estado por intermédio de estratégias de sujeição constante. Trata-se de um incansável estatuto atualizador do Estado primordial. Mas como e por que Ur4?

A partir das pesquisas de Bright (1980) e Mumford (1967), compreendemos que a terceira dinastia de Ur tornou-se uma megamáquina política porque, entre miríades de guerras nômades na Mesopotâmia, entre os anos de 2060 e 1950 a.C., Ur-nammu conseguiu “pacificar” a região, instaurando a renascença sumeriana de modo unificador e imperial, após dizimar as dinastias rivais. A megamáquina diz respeito à produção de bens e de formas burocráticas de administração em massa padronizada e extremamente controlada (MUMFORD, 1967, p. 189), visando integrar “todos os componentes políticos e econômicos, militares, bucrocráticos e reais”. A interpretação dispensada por Deleuze e Guattari (2010) é justamente a de que a máquina capitalista atual não passa do espelhamento da megamáquina urstática. Assim, a referência aos cortes que o capitalismo é capaz de fazer concerne ao sentido da desterritorialização avançada da megamáquina, aniquilando, como já veremos, todas as dissonâncias de códigos de vida, de modos de produção alternativos, de riquezas simbólicas e de relações humanas estrangeiras aos seus determinismos. Por isso mesmo,

o Estado já não pode se contentar em sobrecodificar elementos territoriais já codificados; ele deve inventar códigos específicos para fluxos cada vez mais desterritorializados: pôr o despotismo a serviço da nova relação de classe; integrar as relações de riqueza e de pobreza, de mercadoria e de trabalho; conciliar o dinheiro mercantil com o dinheiro fiscal; reinsuflar em toda parte o Urstaat no novo estado de coisas. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 289)

Ur é uma representação da aniquilação de qualquer rivalidade ao Estado primordial. Por ser um poder verticalizado, instaurou-se o registro de controle burocrático no Estado, com o intuito de intervir sobre todo intercâmbio de interesses comerciais e bélicos impostos na região. Houve uma intensa exploração de recursos naturais, dada a explosão do repertório de necessidades, concomitantemente, balizada com a especialização não apenas do aumento de demanda de poder de Ur, mas também de técnicas produtivas na agricultura, no pastoreio, no militarismo, na administração e sucessivamente. A domesticação e a sedentarização passaram a ser características dominantes do Império, chanceladas por um tipo de poder irrecusável, pois “foi durante a Terceira Dinastia de Ur que todos os reis passaram a ser aclamados divindades” (MUMFORD, 1967, p. 174). A irrecusável aceitação do poder despótico, com efeito, é indissociável da crença que as próprias relações de poder são capazes de produzir em seus súditos. Ur prefigura Egito, Roma, a Idade Média, o in God we trust do dólar, o Deus seja louvado do Plano Real, a argamassa do poder simbólico de Pátria acima de tudo e Deus acima de todos, assim por diante.

Referido horizonte, entretanto, foi unificado pelo estabelecimento de códigos legais válidos para todo o Império. A lei de aspiração universal está desde os primórdios (Ur) inscrita em Ur e, como não deixa de notar Bright (1980, p. 44), o Império de Ur estabeleceu o código de leis “mais antigo que se conhece até hoje”. Nesse aspecto, não é sem sentido, portanto, a percepção de Deleuze e de Guattari (2010, p. 281, grifos originais): “É que a lei, digamos uma vez mais, antes de ser uma fingida garantia contra o despotismo, é a invenção do próprio déspota: ela é a forma jurídica tomada pela dívida infinita”. A dívida infinita é a nossa reclusão no calabouço da autoconsciência, instaurada pela obrigação de reconhecer o erro, ou seja, de saber que deixamos de refletir algum tipo de fragmento espelhado do Urstaat, o que demanda a correção infinita dos gestos, dos comportamentos, das atitudes, dos pensamentos, dos gozos, das maneiras de nos relacionar, das opções subjetivas. Dívida infinita dilatada pelo avanço da própria vontade de lei unificadora do Urstaat, este Império de produção de subjetivação hegemônico-despótico: Ur como megamáquina de nova engenharia de dominação.

O que decorre daí é decalque da estrutura urstática. Ur também era monoteísta: apenas se permitia o culto à deusa Lua (BRIGHT, 1980; MUMFORD, 1967). O relato de Abraão deixando Ur é uma inscrição de um texto javista5. Na pretensa promessa de Iahweh libertá-lo do domínio de Ur, já que Abraão era nômade e, assim, não convinha a Ur, pois ou a Ur serviria ou de lá fugiria ou ali seria punido, sempre na obstinação da disjunção excludente, contudo, Abraão acabou sendo salvo. Mas, paradoxalmente, a sua salvação foi uma tensa destinação à servidão, como a própria história da antiga Israel atesta (Bright, 1980). Abraão saiu de Ur, mas ele não saiu do Urstaat, ao contrário, celebrou um novo pacto servil, obediente, e de uma promessa infinita, para todas as gerações, sob uma nova aliança urstática. Abraão foi o primeiro desdobramento da colonização imperial de Ur, a aceitação subserviente ao destino da servidão voluntária.

A esta altura podemos anunciar as razões pelas quais a democracia, tomada como experiência múltipla de participação no destino do poder, é uma ameaça ao Urstaat, pois o Estado primordial não permite outra forma de Estado a não ser a dele. Aceitar a democracia instituída, ou seja, oficial, é assumir a nossa herança como filhos de Abraão. Indagar qual Estado poderíamos desejar já se torna uma ameaça às estruturas do Urstaat, donde a importância de ele controlar como cada um deve se informar e se formar para o Estado. Informar e formar são estratégias de produção de desejo fundamental para o Urstaat: “O Estado é desejo que passa pela cabeça do déspota ao coração dos súditos, e da lei intelectual a todo o sistema físico que dela se desprende ou se liberta. Desejo do Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda desejo, sujeito que deseja o objeto de desejo” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 294).

Ora, o desejo de um Estado democrático vai na contramão da “fantástica máquina de repressão” do Urstaat. Não é nenhum exagero ver no Estado primordial a origem e o desdobramento de toda arte contrarrevolucionária. Se cogitarmos que “a democracia põe o poder nas mãos da população e o tira dos privilegiados e poderosos” (CHOMSKY, 2017, p. 13), não nos demora a ver por que vivemos um momento de ruptura democrática.

A megamáquina urstática é atualização de todos os conluios dos interesses dos privilegiados e dos poderosos ao redor do planeta e, claro está, no Brasil (GALLEGO, 2018; KLEIN, 2007; LEVITSKY; ZIBLATT, 2018). O ódio como política, na expressão de Gallego (2018), é fénix da biunivocidade do Urstaat. As minorias dissonantes, as sexualidades contrastantes ao império hetero-machista-branco, os pretos, os quilombolas, os ribeirinhos, os indígenas, resquícios de uma memória viva nômade, aqueles que pensam contra a dominação vocacionada da política ungida por qualquer metafísica que cumpre o seu destino manifesto, passam a ser ameaçados, uma vez que produzem justamente tensões democráticas no sistema. Consequentemente, o Urstaat é Estado de extrema-direita, pois ele não suporta consistências, existências fora dos circuitos do desejo que ele produz como roteiro histórico: é o chamado de Abraão renovado à enésima potência.

A referida globalização do capitalismo, nesse caso, não passa de consequência das estratégias de dominação e de subjugação da democracia. Como espelhamento, o neoliberalismo é uma forma extremada de capitalismo que, como projeto de unificação de opinião entre as elites mundiais, conforme indica Klein (2017), “despreza a esfera pública e qualquer outra coisa que não seja o funcionamento do mercado ou as decisões dos consumidores”.

Como Império, Ur caiu em função de sucessivas invasões nômades (BRIGHT, 1980). Se o nomadismo é uma máquina de guerra contra a megamáquina do Urstaat, talvez precisemos assumir a dimensão necessária de aprender a nos preparar também para invadir o Urstaat, para dele produzirmos uma democracia. Eis, assim, o diagnóstico preciso de Guattari e Negri (1999, p. 65): “somente a subjetividade comprometida com os processos de produção singular pode romper os códigos e as normas de produção de subjetividade do Capitalismo Mundial Integrado. A democracia pode ser refundada somente nesta direção”. E é justamente em tal perspectiva que a educação pode ser pensada como lutas democráticas contra o Urstaat, pois, na argumentação de Guattari e Negri (1999, p. 68), “a multiplicidade rizomática dos processos de singularidade, cada um dentro de seus lugares de produção que os transformam, recompõem, multiplicam”, é indispensável para a própria experiência democrática como luta contra o Estado primordial.

3 LUTAS DEMOCRÁTICAS CONTRA O URSTAAT?

Se assumimos o viés analítico da política proposto por Deleuze e Guattari através do conceito de Urstaat, ao menos uma questão se impõe a nós, envolvidos em nosso presente: haverá possibilidade de lutas democráticas contra o despotismo deste Estado que nos assombra e nos coloniza?

Uma premissa se apresenta de modo inexorável para esta luta. Como vimos, o Urstaat opera no registro da universalidade. Por essa razão, Deleuze e Guattari afirmam haver um só e único Estado. Se é assim, não faria qualquer sentido pensar a democracia também no registro da universalidade: ela seria presa fácil do Urstaat, se atuasse em seu modelo de ação. Fora de cogitação, pois, a defesa de um “Estado democrático universal”: este tipo de discurso, que está longe de ser raro, nada mais é do que a manifestação despótica do Estado originário, travestido sob vestes “democráticas”. A saída democrática está justamente na conjuração do Estado universal, na afirmação do múltiplo, em contraposição ao Uno, como Deleuze e Guattari (1980, 1992) não se cansaram de afirmar.

Para pensar a democracia em registro não universalista, encontramos em Jacques Rancière um suporte importante. Não é nossa intenção nos alongarmos neste ponto, mas alguns aspectos de seu pensamento precisam ser delineados para que nos possam servir de ferramenta. Um primeiro destaque diz respeito ao fato de que Rancière pensa a política e o político numa perspectiva completamente distinta da tradição: para ele a política é da ordem do acontecimento, do efêmero, do inesperado. A política não está no cotidiano; a essas ações hodiernas e genéricas ele denomina polícia, uma vez que dizem respeito à administração da vida social. A palavra “política” deve, diz ele, ser reservada para aquilo que perturba essa ordem instituída. Em O desentendimento, ele advoga que a política e a democracia estão centradas não no consenso, no entendimento que leva à construção de um comum, mas justamente no não entendimento, no desacordo, no dissenso. A política é, sempre, da ordem do litígio, da disputa. E não do acordo.

O litígio em torno da contagem dos pobres como povo, e do povo como comunidade, é o litígio em torno da existência da política, devido ao qual há política. A política é a esfera de atividade de um comum que só pode ser litigioso, a relação entre as partes que não passam de partidos e títulos cuja soma é sempre diferente do todo. (RANCIÈRE, 1996, p. 29)

E essa disputa política não se resolve; o político não está na resolução do litígio, na produção do acordo, mas no fato mesmo da disputa. Há política enquanto há disputa; quando cessa o litígio, entramos no reino da polícia, da administração do social e da racionalidade burocrática.

Um segundo aspecto a ser relevado é que o filósofo pensa a política como “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 1996, 2005, 2007). Note-se que participar do político não é, necessariamente, participar do poder, mas sim tomar parte de um comum que é partilhado na forma de “espaços, tempos e tipos de atividade” (RANCIÈRE, 2005, p. 15). A noção de partilha implica no múltiplo, numa multiplicidade de partes que, embora possa formar um comum, não remete ao uno, ao universal. Quando se universaliza a ação, abandona-se o registro do político.

Por fim, a democracia. Rancière chama a atenção para o fato de que o termo “democracia” foi inventado pelos seus adversários: todos aqueles que tinham ou julgavam ter algum “direito” a governar (seja pelo nascimento, pela riqueza, pela virtude, etc.) viam nela a inversão da ordem das coisas, quando aqueles que não tinham qualquer direito governavam. A democracia, seria, pois, um governo ilegítimo. Sabemos, por exemplo, das críticas a ela dirigidas por Platão e por Aristóteles, que também colocavam em questão tal falta de legitimidade de um governo pelo demos. Rancière destaca que, antes de designar uma comunidade, com a reforma de Clístenes, demos designava uma parte da comunidade, aquela dos “pobres”; e recebiam tal nome não exatamente porque fossem desfavorecidos economicamente, mas, mais precisamente, porque eram aqueles que não eram contados, não faziam parte da comunidade. No léxico do próprio filósofo, o demos era composto por aqueles que não faziam parte da partilha do sensível. Por aí vemos, pois, que a democracia, o exercício do poder por aqueles que não contam, significa a própria irrupção da política: um acontecimento que perturba uma ordem estabelecida, que provoca uma quebra, uma ruptura. Por isso ele não vê a democracia como um regime político, mas é “a instituição mesma da política, a instituição de seu sujeito e de sua forma de relação” (RANCIÈRE, 2007, p. 232).

A democracia é o próprio regime da política, na medida em que ela opera uma ruptura com a lógica da arkhé, aquela que busca legitimar o exercício do poder político numa ancestralidade.6 Interessante aqui destacar o paralelismo - e mesmo uma certa complementaridade - entre essa análise de Rancière e aquela operada por Deleuze e Guattari: se há apenas um único Estado, o Urstaat, Estado primordial, há apenas uma única democracia, a ruptura com essa ordem arquetípica, que funda o Estado, portanto, precisa ser considerada. Nesta linha de pensamento, não pode haver um Estado democrático: a democracia é a necessária luta contra o Estado, contra todo e qualquer Estado.

A democracia introduz o sujeito da política: o povo. Assim Rancière (2007, p. 233-234) o caracteriza:

O povo, que é o sujeito da democracia, logo o sujeito matricial da política, não é uma coleção de membros da comunidade ou a classe trabalhadora da população. Ele é a parte suplementar em relação a toda conta das partes da população, que permite identificar ao todo da comunidade a conta dos não contados.

O povo (demos) existe apenas como ruptura da lógica da arkhé, ruptura da lógica do começo/comando. Ele não saberia se identificar nem com a raça daqueles que se reconhecem pelo fato de que eles possuem um começo [uma origem], um nascimento, nem com uma parte ou com a soma das partes da população. Povo é o suplemento que disjunta a população dela mesma, suspendendo as lógicas da dominação legítima.

Por isso a democracia é necessariamente escandalosa e provoca o ódio. Ela coloca em cena um novo ator político, o verdadeiro ator da política, aquele que impõe uma ruptura da lógica estabelecida e que garante os privilégios daqueles que se afirmam legítimos detentores do poder político. Ela desvela a ordem policial a que estamos todos submetidos, abrindo espaço para o inesperado e, logo, para a transformação. “O escândalo democrático consiste simplesmente em revelar o seguinte: jamais haverá, sob o nome de política, um princípio uno da comunidade capaz de legitimar a ação dos governantes a partir das leis inerentes ao agrupamento das comunidades humanas” (RANCIÈRE, 2006, p. 75).

Eis o tiro de misericórdia no princípio da universalidade da política e do Estado. Sob a lógica e o regime do Uno e do universal, não há política possível: há dominação, há polícia como administração da ordem social a ser preservada, há o despotismo do Estado. O acontecimento político está no ato de tomada de palavra por aqueles que não são ouvidos, por não serem contados, por não fazerem parte. As lutas democráticas, portanto, não dizem respeito a uma reivindicação pela participação em um banquete para o qual não fomos convidados; elas são muito mais a tomada da cozinha e da comida para a produção de nosso próprio banquete.

Para fechar esta rápida incursão pelos elementos conceituais da política que são ofertados por Rancière, façamos um breve comentário em torno de um de seus livros mais recentes, no qual ele ensaia uma leitura do contemporâneo: En quel temps vivons-nous?.7 Refletindo sobre os problemas contemporâneos da representação e do ativismo político, ele comenta:

[A questão] é de saber qual o tipo de povo com o qual nos identificamos: o povo construído pelo sistema dominante ou um povo igualitário em construção. Ora, o “populismo de esquerda” reivindicado hoje por todo um setor da esquerda retoma por sua conta a figura de povo que o sistema produz como seu outro: o povo substancial e que sofre desprezado pelas elites, que encontra sua expressão numa força que o representa autenticamente e num dirigente que a encarna. Tal forma de antagonismo permanece confinada no jogo de equilíbrio entre a representação e a encarnação que é, definitivamente, um jogo de equilíbrio entre duas forças da desigualdade. Ora, o problema não é o colocar em oposição grupos, mas mundos: um mundo da igualdade e um mundo da desigualdade. Se há uma lógica de distanciamento em relação ao mundo organizado pelas potências financeiras e estatais, esta deve ser capaz de, sejam quais forem as vias pelas quais ela passe, ter seus modos de agir, seus instrumentos de ação, suas agendas autônomas em relação àqueles da ordem estabelecida, mesmo que ela seja levada a interagir com eles. (RANCIÈRE, 2017, p. 67)

Se a questão fosse um conflito de grupos, a resolução seria fácil: bastaria, como propagado por certos discursos, colocar para fora aqueles que estão “contra”, que são “do contra”. Mas se trata, mais que isso, de um conflito de mundos. O mundo de uns, que apostam na desigualdade, não é o mesmo mundo de outros, que vivem a busca da construção da igualdade. Expulsa-se um grupo tornado minoritário, mas não se expulsa um mundo, por mais minoritário que ele seja. Ele permanece, afrontando as forças dominantes que se impõem a qualquer custo. A questão está, então, em saber construir as agendas e os instrumentos para as lutas democráticas contemporâneas. Para pensar tais elementos, voltamos a Guattari e a Deleuze.

Ao tomarmos essa filosofia política que Sibertin-Blanc (2013) denominou “materialismo histórico-maquínico” e que, em grande parte, está expressa no livro-continente que é Mil platôs, vemos que, em larga medida, ela trata de um combate à forma-Estado. No prefácio à edição italiana da obra, reproduzido na abertura do volume 1 da edição brasileira, os autores afirmam que Mil platôs está muitos passos adiante de O anti-Édipo, visto que neste se ficava muito mais no registro da crítica, enquanto no outro se buscava uma perspectiva “construtivista”, centrada nas multiplicidades e em sua afirmação substantiva, coroando com a afirmação de que elas “são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 8). Em seguida, na introdução em que se dedicam a pensar o livro como rizoma, afirmam que o Estado sempre procurou enraizar nos seres humanos uma ordem do mundo, colonizando o pensamento; para conjurar o Estado, advogam a necessidade de uma máquina de guerra em relação com o fora, que “torna o próprio pensamento nômade” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36) e não é outro modelo, mas um novo agenciamento.

É, pois, a chave da multiplicidade e da máquina de guerra que elegemos para pensar as lutas democráticas contemporâneas, reforçando o mundo múltiplo da igualdade contra o mundo uno e universalista da desigualdade, interposto a nós com o Urstaat. Ainda antes da publicação de Mil platôs, numa entrevista a ativistas italianos em 1977, Guattari afirmou:

Sim, creio que existe um povo múltiplo, um povo de mutantes, um povo de potencialidades, que aparece e desaparece, que se encarna em fatos sociais, em fatos literários, em fatos musicais. É comum me acusarem de ser exagerado, bestial, estupidamente otimista, de não ver a miséria dos povos. Posso vê-la, mas... não sei, talvez seja delirante, mas penso que estamos em um período de proliferação, de criação, de revoluções absolutamente fabulosas do ponto de vista da emergência de um povo. É a revolução molecular: não é uma palavra de ordem, um programa, é algo que sinto, que vivo, em alguns encontros, em algumas instituições, nos afetos e também através de algumas reflexões. (GUATTARI, s.d., p. 6)

Um povo múltiplo, um “povo que falta” na expressão de Deleuze (1985, 1997), um povo a ser criado para a arte, mas também para a política. Eis nossa urgência para as lutas democráticas contemporâneas.

4 PARA FINALIZAR: O QUE A EDUCAÇÃO TEM A VER COM ISSO?

Pode parecer ao leitor que passamos todas as páginas anteriores sem tratar de Educação. Foi sobre este campo problemático, porém, que construímos toda a argumentação, tendo em vista os problemas que nós, professores e educadores, enfrentamos na realidade escolar. A onda neoconservadora no Brasil parece ter sido capaz de, molecularmente, fazer uso dos equipamentos sociais, dentre eles a escola, para estabelecer um novo regime de relações, pautado na moralização dos costumes. Não nos enganemos: suas táticas foram de máquina de guerra, atuando nas beiradas dos equipamentos estatais, pouco a pouco tomando o controle de múltiplos espaços. Mas, embora usando táticas moleculares, seus objetivos sempre foram molares: tomar o Estado e universalizar seus princípios. No âmbito da Educação, talvez o mais sintomático desta agenda seja o Projeto Escola Sem Partido, um nítido movimento no sentido de educar segundo uma moralidade de cunho moral-religioso e universalista, sem qualquer abertura para diferenças e criminalizando qualquer tentativa de uma educação aberta, pluralista.8 O Ministério da Educação do novo governo federal, recém-empossado, não tardou em afirmar seus princípios, desmontando secretarias e programas de políticas afirmativas da diferença e dando conta de um programa de governo centrado no “combate à ideologia”, voltado para uma “educação de qualidade”. Nitidamente, um programa da unidade, reforçando o Estado, a face indelével do Urstaat.

Como agir, no campo educativo, enfrentando esta realidade? Será efetivo retomarmos antigas bandeiras de luta, como, por exemplo, a de uma escola democrática universal?

Como procuramos mostrar conceitualmente ao longo do artigo, o Estado, centrado em sua forma arquetípica, o Urstaat, opera no registro do universal. A democracia, por sua vez, opera no registro do acontecimental, do efêmero, do múltiplo. Se quisermos utilizar a terminologia deleuzo-guattariana, o Estado opera principalmente no âmbito molar, enquanto as lutas democráticas são majoritariamente moleculares. A defesa de uma democracia universalizada é uma armadilha histórica, visto que universalizar a democracia significaria matar seu potencial transformador, por ser produtor de desequilíbrio nos jogos de força e de poder instituído. Uma democracia universal seria um novo Estado policial, baseado num equilíbrio forçado e imposto, evitando a irrupção de diferenças. Neste contexto, também a defesa de uma universalização da escola democrática seria “fazer o jogo do inimigo”. Ora, o inimigo já fez o “nosso jogo”, operou molecularmente para tomar conta do Estado; cabe aos movimentos que se pretendem democráticos, agora, assumir a molecularidade das ações, não visando reconquistar o Estado, mas buscando, democraticamente, produzir rupturas, fazer que tomem a palavra aqueles que estão sendo excluídos do jogo.

De maneira prática, podemos enxergar no programa de “incentivo” de formação dos Grêmios Estudantis da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo uma estratégia de captura da espontaneidade democrática de manifestação dos alunos das escolas públicas. A iniciativa se deu como estratégia molar de monitorar e de conduzir a organização - legitimada pelo Estado - dos estudantes na dinâmica das escolas. Selam-se, assim, as regras de um jogo que visa a impedir ações moleculares e, portanto, incontroláveis, capazes de colocar em xeque a própria estrutura educacional do Estado9.

Ora, um trabalho democrático na escola precisaria estar ligado à potencialização das diferenças, do múltiplo, uma abertura ao potencial disruptor. A produção de um povo que falta, um povo múltiplo, um “povo de mutantes”, como citado anteriormente por Guattari. Voltamos, pois, a ele, no ensaio político que escreveu com Negri em 1985, procurando compreender aquilo que, no contexto europeu da época, denominaram de “novos espaços de liberdade”. Ali, encontramos:

Nessas condições, a organização de novos agenciamentos proletários não saberia concernir senão uma pluralidade de relações no seio de uma multiplicidade de singularidades - pluralidade focada nas funções e nos objetivos coletivos, escapando dos controles e sobrecodificações burocráticos, na medida em que ela se desenvolve precisamente no sentido de uma otimização dos processos das singularidades concernidas. O que está em questão, aqui, é um multicentralismo funcional, capaz, de um lado, de se articular com as dimensões diversas de intelecção social e, de outro, de neutralizar ativamente a potência destrutiva dos agenciamentos capitalistas. (GUATTARI; NEGRI, 1985, p. 69-70)

Se ali Guattari e Negri refletiam, tomando por centralidade o proletariado, podemos abstrair essa questão, pensando de forma mais ampla esta contemporaneidade tão mais complexa, mas guardando as armas que são apresentadas: organizar novos agenciamentos a partir de uma pluralidade de relações advindas de uma multiplicidade de singularidades. Singularidades que se agenciam e produzem coletivos - produzem um comum que, no entanto, não é universalizável, mas sempre local, variável, multicentrado, acontecimental.

E, aí, encontramos talvez nossa resposta para as ações possíveis, no campo educativo, para reforçar as lutas democráticas contra o Urstaat: o investimento na produção de subjetividades múltiplas, capazes de agir na pluralidade, reafirmando e valorizando as diferenças, o convívio das diferenças nas diferenças, buscando (molecularmente e ao modo de máquina de guerra) a produção de linhas de fuga às sobrecodificações arquetípicas. Em poucas palavras: o investimento na produção de subjetividades contra-hegemônicas, por sua vez, capazes de prenunciar uma nova Ur sprung.

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3Para a complexidade de Urphänomen em Goethe consultar: Castro (2012). Para maior aprofundamento na recepção de Urwelt na fenomenologia, ver Stein (2004).

4Apesar de não ser objetivo do artigo, vale esclarecer que foi a partir da obra de Lacarrière (1961) que Guattari encontrou o jogo de palavras Ur-Estado (Ur-État). Assim, a ideia original pertence a Lacarrière e foi desenvolvida por Guattari no sentido que estamos analisando e apresentada a Deleuze, que encampou a ideia como conceito. Guattari assume isso nos Écrits pour l’anti-Oedipe (2012a, p. 235). A nota 72 de O anti-Édipo traz uma menção a Lacarrière. A leitura de Mumford (1967), por parte de Guattari, também foi essencial para a consolidação da noção de Urstaat. Há várias menções a Mumford em O anti-Édipo e nos Mil platôs.

5A crítica literária do Antigo Testamento identificou tipos literários distintos no Pentateuco: Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronômio. Cada um possui viés teológico e ênfase distintos. Sem entrar no mérito de cada um deles, é preciso ressaltar, contudo, o deslize que a nota do tradutor de O anti-Édipo comete, ao afirmar que a Abraão, “este outro lugar, a terra prometida, ter-lhe-ia sido indicado por um certo deus, que, então, não se apresenta como único, um deus dito Jeová, Javé ou IHVH (este tetragrama divino) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 287). Ocorre que são transliterações distintas para o mesmo nome: Iahweh, pertencente à mesma tradição Javista. Só há nomes distintos para deus em outras tradições literárias: Elohim, El, El Shadai etc. Isso é importante, pois IAHWEH é o impronunciável, o deus que determina a história, ele é o mesmo ontem, hoje e amanhã, controla o destino de tudo e de todos, mas também é o deus salvador e da promessa, além de ser o deus dos dez mandamentos, o que diz: “Eu sou o que sou”. Ele “salva” Abraão de Ur, mas Abraão, ao aceitar cegamente a promessa, aceita toda uma estrutura de poder que o decalca a outra sujeição: Abraão é passivo, obediente, servil, crente obstinado, não partícipe de sua própria história, Abraão é urstático. Para maiores detalhes, ver: Bright (1980), Schreiner (1978) e Souza (1990).

6A noção de arkhé foi fundamental no pensamento grego antigo. Para os filósofos pré-socráticos, ela significava o “princípio universal de todas as coisas”, o elemento original do qual provém tudo o que existe. No pensamento político, ela significava aquilo que fundamentava o exercício do poder, que tornava legítimas as ações de um soberano.

7Em tradução literal: Em que tempo vivemos?. Essa obra ainda não tem tradução no Brasil.

8Sabe-se da aprovação de projetos desta natureza em municípios e certos estados da federação, mesmo que tenha sido declarado inconstitucional. O projeto de lei que tramitou na Câmara Federal foi arquivado no final de 2018, mas, já no início da nova legislatura, em fevereiro de 2019, um novo projeto, ainda mais rigoroso, foi protocolado.

9Para maiores informações, consultar: http://www.educacao.sp.gov.br/gremio-estudantil/ Atualmente, conforme a SEESP, 92% das escolas do Estado de São Paulo, isto é, 4.317 escolas, possuem Grêmios.

Recebido: 13 de Fevereiro de 2019; Aceito: 25 de Maio de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Leda Maria de Souza Freitas Farah. E-mail: farahledamaria@gmail.com.

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