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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.3 Campinas jul./set 2019  Epub 23-Set-2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i3.8654669 

DOSSIÊ

GÊNERO NA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA: A INCONSTITUCIONALIDADE DE PROJETOS PROIBITIVOS

GENDER IN BRAZILIAN BASIC EDUCATION: THE UNCONSTITUTIONALITY OF PROHIBITIVE PROJECTS

GÉNERO EN LA EDUCACIÓN BÁSICA BRASILEÑA: LA INCONSTITUCIONALIDAD DE PROYECTOS PROIBITIVOS

Daniela Auad1 

Janaína Guimarães da Fonseca e Silva2 

Camila Roseno3 

1Pós-Doutorado em Educação - Universidade de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP - Brasil. Doutorado em Educação - Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, SP - Brasil. Professora Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (FACED/UFJF) - Juiz de Fora, MG - Brasil. E-mail: auad.daniela@gmail.com

2Doutora em História - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Recife, PE - Brasil. Professora adjunta da Universidade de Pernambuco (UPE) - Petrolina, PE - Brasil. E-mail: guimaraes.janaina@gmail.com

3Mestra em Educação - Universidade de Pernambuco (UPE) - Petrolina, PE - Brasil. Doutoranda em Educação - Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) - Juiz de Fora, MG - Brasil E-mail: milaroseno@gmail.com


RESUMO

A partir do conceito de gênero, de Joan Scott; da compreensão de política, de Chantal Mouffe; e da crítica feminista à produção do conhecimento, de Donna Haraway, o texto analisa projetos de lei pretensamente proibitivos quanto ao diálogo sobre relações de gênero na escola. Esses projetos colocam em disputa modelos de sociedade, via políticas públicas e práticas educacionais, no que se refere à autonomia e igualdade de direitos.

PALAVRAS-CHAVES: Relações de gênero; Educação básica; Educação democrática; Movimentos sociais; Direito à educação

ABSTRACT

Starting from the concept of genre, by Joan Scott; of Chantal Mouffe's understanding of politics; and Donna Haraway's feminist critique of the production of knowledge, the text analyzes allegedly prohibitive bills on dialogue on gender relations in school. These projects put into dispute models of society, through public policies and educational practices, regarding autonomy and equality of rights.

KEYWORDS: Gender relations; Basic education; Democratic education; Social movements; Right to education

RESUMEN

A partir del concepto de género, de Joan Scott; de la comprensión política, de Chantal Mouffe; y de la crítica feminista a la producción del conocimiento, de Donna Haraway, el texto analiza proyectos de ley supuestamente prohibitivos en cuanto al diálogo sobre relaciones de género en la escuela. Estos proyectos plantean en disputa modelos de sociedad, por medio de políticas públicas y prácticas educativas, en lo que se refiere a la autonomía e igualdad de derechos.

PALAVRAS-CLAVE: Relaciones de género; Educación básica; Educación democrática; Movimientos sociales; Derecho a la educación

1 INTRODUÇÃO: LUTO É VERBO! E LUTAMOS HÁ MUITO TEMPO...

Em múltiplos espaços educativos e com diferentes abrangências e profundidades, tem se desenvolvido, ancorado em pesquisas legítimas realizadas em território nacional há pelo menos três décadas, o debate de gênero e educação, seja em perspectiva Feminista, seja ao agregar também a Teoria Queer. Neste período de estabelecimento do que hoje percebemos como o campo da Educação e Relações de Gênero - e que segue se construindo -, variadas foram as tentativas de deslegitimação de ações de pesquisa e de extensão, de práticas docentes em todos os níveis e modalidades de ensino e, da mesma forma, muitas foram as disputas travadas no campo da implantação das políticas públicas que assegurassem o debate sobre a igualdade de direitos e a desnaturalização daquilo que se conhece como masculino e feminino em nossa sociedade.

Recentemente assistimos a uma nova rodada de tentativas de proibição deste debate, que coloca projetos de sociedade em disputa. Assim, o presente texto versa sobre a inconstitucionalidade de projetos cuja finalidade é proibir o trabalho que tematize as relações de gênero na Educação Básica Brasileira, especialmente a partir dos embates em torno do material “Escola sem Homofobia”. Em 2011, este material, destinado à formação sobre questões de gênero e sexualidades, foi vetado pela Presidência da República do Brasil, após ser alvo de uma ofensiva de grupos que podem ser considerados ultraconservadores no Congresso Nacional. O kit continha vídeos, boletins informativos e o caderno de instruções para professoras e professores para seu uso. Esse conjunto de recursos, com manuais sobre procedimentos acerca de sua utilização, deveria ser distribuído em escolas do ensino médio de todas as regiões do país. Porém, foi julgado, pelos citados grupos, como promotor de “promiscuidade” e apelidado por setores fundamentalistas cristãos, de modo pejorativo, como “kit gay”.

Na França, também em 2011, uma das mais importantes teóricas na construção do campo dos estudos de gênero, Joan Scott, nos conta que ocorreu uma grande controvérsia no país em torno de um conteúdo presente nos exames de bacharelado em Ciências Biológicas. No país de origem da emblemática e sempre atual obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, a unidade “tornar-se homem ou mulher” foi julgada censurável por “políticos católicos, pais e educadores” (SCOTT, 2012, p. 328). E, apesar da palavra genre constar apenas uma vez entre as trinta páginas do material, “foi sobre o gênero que as pessoas que organizaram a massiva campanha contra o manual concentraram o foco de sua objeção” (p. 329). Para a estudiosa de gênero e feminista americana, esse julgamento e, consequentemente, essa mobilização social se revelaram algo digno de estranhamento, uma vez que o uso do gênero como categoria parecia já ter se consolidado na Academia, no Estado - tanto em políticas públicas quanto em planos governamentais -, nos organismos internacionais e nos movimentos feministas. Joan Scott, diante de uma situação como essa, foi tomada pela desagradável surpresa da existência de consideráveis e ruidosas ondas conservadoras. Assim como a autora do representativo artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” (1995), muitas de nós acreditávamos que havia um consenso sobre a consideração da categoria gênero - que abarcava inclusive a consideração protetiva e mesmo conservadora de mulheres e crianças face a violências como pedofilia e outros abusos correlatos. Tínhamos como estabelecido que a interdição das temáticas suscitadas pelo movimento feminista e o diálogo sobre relações de gênero já não mais seria algo possível em variados níveis, embora muito ainda houvesse a caminhar para atingirmos a igualdade de direitos, a modificação das relações de poder e representações acerca do masculino e feminino.

Apesar dessa conjuntura, o que pode ser verificado como um discurso facilmente identificado como “moralista” tem tomado forma nesta última década. Tratam-se de manifestações de apego a um conjunto de valores que reforçam as noções binárias e essencialistas de masculino e feminino, segundo expressas, por exemplo e de maneira modelar, em textos bíblicos. São expressos, cada vez mais frequentemente, discursos, atitudes, comportamentos que demonstram exacerbada preocupação com princípios circunscritos a uma estreita, polarizada e irreal noção do que deve ser um homem e do que deve ser uma mulher, de modo que esses ideários têm assumido a forma de questões morais, com forte tendência conservadora à intolerância e preconceito em relação a variados movimentos sociais, especialmente ao Movimento LGBT4 e aos Feminismos. Assim, de variadas maneiras e oriundos de múltiplos espaços, inverdades, preconceitos e discriminações têm sido perpetrados sob a forma ora de pregações, ora de projetos de lei, acentuando práticas de difamação e deslegitimação dos estudos de gênero, especialmente em suas diversas interfaces com a educação.

O uso do termo “ideologia de gênero”, com objetivo de denunciar um conjunto de ideias, ações e políticas públicas que seriam desrespeitosas quanto às leis cristãs, parece fazer parte de uma agenda conservadora apresentada em variados países, seja por católicos, pentecostais, neopentecostais ou outros segmentos conservadores que também se sustentam através do explícito e intenso apego a princípios que se afastam do entendimento democrático sobre o que é ser homem e sobre o que é ser mulher. No Brasil, há de se destacar que se somam a esses grupos de manifesta inspiração religiosa - e que muitas vezes não são legitimados em seus comportamentos intolerantes nem mesmo pelos líderes de suas próprias religiões - grupos advindos de setores das Forças Armadas e proprietários de latifúndios ainda muito presentes na desigual distribuição do território nacional. Esses grupos, via democracia representativa, apresentam-se no Congresso Nacional e foram designados pelos movimentos sociais e por setores da imprensa mais engajados à esquerda como a “Bancada BBB - Boi, Bala e Bíblia”. Ao lado disso, uma série de ações judiciais e projetos de lei vêm sendo apresentados nas variadas esferas legislativas do país, tanto no âmbito de Estados e municípios quanto no Supremo Tribunal Federal, se configurando como uma ação orquestrada nacional e internacionalmente, cuja finalidade última parece ser a proibição de qualquer consideração e debate nas escolas sobre as relações de gênero. A despeito de conseguirem seu intento, esses grupos, com suas ruidosas manifestações e ações de judicialização dos debates educacionais, acabam por lançar um mar de desinformação e contrainformação à opinião pública, querendo fazer crer que são inimigas da Pátria e da Família desde feministas até servidores públicos, assim como professoras, políticos identificados como do campo da esquerda e religiosos que venham a defender a consideração das temáticas pretensamente proibidas no interior das escolas. Em contraponto, já há decisões judiciais sobre a inconstitucionalidade desses projetos de lei que estão sendo apresentados e não aprovados, posto que divergem dos princípios democráticos, instauram a censura e ferem a laicidade do Estado.

Ao considerar que as disputas travadas nessa seara não começaram hoje, mas atualmente se acirram com as especificidades de nosso tempo, este artigo tem como objetivo analisar as faces dos projetos de lei que visam proibir as questões de gênero na educação escolar, de modo a identificar e debater como um aparente moralismo apegado a valores conservadores e excludentes, assim como a aposta em projetos marcados pela inconstitucionalidade, fazem parte de uma série de tensionamentos de retrocesso que estão em marcha no campo da educação, para os quais são apresentadas devidas e pertinentes resistências democráticas.

2 RESULTADOS: EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA, UM CAMINHO HÁ MUITO INICIADO

Há trinta anos, em 1989, Ken Jones, professor da Universidade de Londres, escreveu sobre a revolução conservadora e o direcionamento acentuado à direita que se deu no sistema educacional inglês após a aprovação da Lei da Educação de 1988, formulada pelo Partido Conservador, sob o comando da primeira ministra Margareth Thatcher. Segundo esse autor, a formulação da política conservadora para a educação inglesa perpassou a publicação dos Cadernos Negros, em 1969. Construídos por dois professores universitários, os Black Papers continham preocupações com mudanças progressistas propostas pelo Partido Trabalhista, principalmente pelo caráter de justiça social que a educação deveria dispor, ao universalizarem o ensino e abolir o sistema seletivo de acesso.

Passadas três décadas e diante dos contextos educacional e legislativo brasileiro, se faz atual a descrição que Ken Jones delineou ao analisar as políticas formuladas pelos conservadores de outrora - a defesa, no parlamento nacional, de um conjunto de leis que buscam alterar o sistema educacional do Brasil, de modo a proibir o tratamento das questões de gênero no âmbito escolar e o combate ao que se convencionou denominar, a partir de grupos ultraconservadores, de uma “doutrinação comunista”. Isto, que seria uma indevida pregação, estaria em curso nas escolas, e pode ser comparada com as preocupações formuladas pelos ingleses há décadas. Tais diretrizes nacionais seriam estabelecidas para um núcleo compulsório de matérias, enquanto as percebidas como “periféricas” ou “controversas” poderiam se tornar optativas. Assim, os pais poderiam tirar seus filhos e filhas de discussões sobre sexo e política e as matérias consideradas básicas teriam uma nova “obrigação de equilíbrio”, legalmente definida da seguinte forma: “...o ensino nas escolas públicas não seria específico de qualquer tendência, e nem tampouco seria baseado em uma análise associada a qualquer ideologia política determinada” (JONES, 2012, p. 285). Trechos idênticos a estes escritos por Ken Jones se encontram expressos nos projetos de lei que estão sendo apresentados na atualidade no Brasil. Ao partirem dessas mesmas premissas, grupos foram alicerçados e buscam ter força de movimento social, a exemplo do “Escola Sem Partido”. Embora não seja objetivo neste artigo aprofundarmo-nos sobre o que é o “Movimento Escola Sem Partido” (MESP), acreditamos que é importante situar do que se trata esse agrupamento que se coloca como basilar para os projetos de lei em tela.

O Movimento Escola Sem Partido surge em 2004, obtendo visibilidade apenas em 2014, e, segundo um dos fundadores, o objetivo inicial era o “combate à doutrinação política ideológica de esquerda” (NAGIB apud CABRAL, 2017), que segundo eles, possivelmente ocorreria nas escolas do país. A esse objetivo se alia “o combate à ideologia de gênero”, termo cunhado pelos conservadores com o intuito de desqualificar os estudos de gênero. Para o MESP, perpetra doutrinação o/a docente que utiliza de argumentos que favorecem o seu ponto de vista, ao indicar livros relativos ao conjunto de ideias que está ensinando, ao valorizar figuras históricas percebidas como não aprovadas pelos conservadores ou ao enaltecer variadas religiões que não sejam cristãs, assim como admitir a não crença em todas delas, o ateísmo. Essas práticas educativas seriam, para os integrantes do “movimento”, desrespeitosas para com determinadas religiões cristãs e ainda seriam desagregadoras das tradicionais noções de Família e Pátria, que eles dizem que desejam ver preservadas. Devemos enfatizar que tais “favorecimentos ideológicos” são usualmente para muitas pessoas o simples ato de ensinar ele mesmo, mas, na visão do MESP, são um trunfo particular e pernicioso de aliciamento de crianças, jovens e adolescentes, da Educação Infantil às Pós-Graduações, de modo a fazer de todos os níveis e modalidades de ensino um lócus de doutrinação para “práticas e pensamentos esquerdistas”. Os integrantes do MESP colocam ainda homossexuais, ateus, prostitutas e povos de terreiro como uma legião a ser enquadrada e/ou exterminada, grupos dos quais a infância e a juventude devem ser salvas, desde os bancos escolares.

Com aprofundadas análises sobre essa base argumentativa, existem, atualmente, diversos estudos sobre o “Escola Sem Partido”, entre os quais cabe destacar Frigotto (2017), Miguel (2016) e Roseno e Silva (2017). O primeiro autor vincula as teses do “Movimento Escola Sem Partido” ao agravamento das relações sociais no sistema capitalista através de um ataque à educação e aos seus profissionais, de maneira a apontar o sentido autoritário e de disseminação de ódio aos Movimentos Sociais que pautam a reforma agrária e aos grupos identitários vinculados à raça, gênero e sexualidade. O segundo autor, Luis Felipe Miguel, analisa a convergência entre a “ideologia ultraliberal libertariana, descendente da chamada ‘escola econômica austríaca’” (2016, p. 592), através de thinkthanks5, com o fundamentalismo religioso e o anticomunismo. E, por último, as autoras Camila Roseno e Janaina Guimarães da Fonseca e Silva (2017) analisam como as leis que visam instaurar o programa “Escola Sem Partido” representam ataques a uma série de políticas públicas educacionais, sobretudo as destinadas a trabalhar gênero e diversidade sexual. Essas políticas públicas educacionais se desenvolveram na última década e encontram searas de desenvolvimento e resistência aos ataques conservadores em órgãos públicos e movimentos sociais, que são contra essa investida antidemocrática desferida contra a educação. Além dessas autoras e desses autores, existem também três coletâneas de artigos sobre o tema, são elas: “A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso”, organizado pela Ação Educativa (2016); a publicação do livro “Gênero e educação: fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais”, compondo um importante instrumento de formação teórica sobre a temática, desenvolvido entre 2014 e 2016 pela Ação Educativa em parceria com as organizações Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), Comunicação em Sexualidade (ECOS) e Instituto da Mulher Negra (Geledés); e o livro “Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira” (2017), organizado por Gaudêncio Frigotto, pela editora da UERJ, através do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).

Como um fio condutor, iremos focalizar as nossas análises no Projeto de Lei (PL) 7180/2014, do Deputado Erivelton Santana (BA), que se encontra em fase final de tramitação na Câmara Federal. Esse projeto visa alterar o artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394/1996, que busca incluir entre os princípios do ensino “o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” (COMISSÃO, 2018, grifos nossos). Atualmente esse PL reúne mais sete Projetos de lei, pois a comissão formada para analisá-los avalia que todos eles tratam de proposituras legais sobre a mesma matéria. Construímos o quadro a seguir para melhor visualizá-los:

TABELA 1 Sete Projetos de Lei Reunidos no PL 7180/2014 

Número do projeto e Ano Autoria Filiação Objetivos
7181/2014 Erivelton Santana No ano de autoria PSC - Partido Social Cristão, agora PEN/BA Dispõe sobre a fixação de parâmetros curriculares nacionais em lei com vigência decenal.
867/2015 Izalci Lucas PSDB/DF Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”.
1859/2015 Izalci Lucas e outros deputados PSDB/DF e outros partidos Prevê a proibição de adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação.
5487/2016 Professor Victório Galli PSL/MT Institui a proibição de orientação e distribuição de livros às escolas públicas pelo Ministério da Educação e Cultura que versem sobre orientação de diversidade sexual para crianças e adolescentes.
6055/2016 Jean Wyllys PSOL/RJ Institui o programa “Escola livre” em todo o território nacional.
8933/2017 Pastor Eurico PATRI/PE Dispõe que o ensino sobre educação sexual somente será ministrado ao aluno mediante autorização dos pais ou responsáveis legais.
9957/2018 Jhonathan de Jesus PRB/RR Coíbe a doutrinação na escola.

Fonte: Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei nº 7.180 de 2014.

Entre os sete projetos expostos na tabela acima, é necessário destacar que o PL 6055/2016, de autoria de Jean Wyllys, diverge dos objetivos dos outros seis que foram apensados. Cumpre destacar que este Deputado Federal, declaradamente homossexual, eleito e reeleito pelo Estado do Rio de Janeiro desde 2010, reconhecido no campo da esquerda e reeleito em 2018, não pôde assumir seu mandato em função de ameaças de morte que seguidamente sofreu, e segue sofrendo, ao lado de sua família. Eram marcantes em seu mandato a defesa dos Direitos da população LGBT e a oposição enfática a políticos ligados a grupos de milicianos no Estado pelo qual se elegeu. O PL proposto pelo deputado Jean Wyllys é marcado pelo ideário justamente oposto ao que defende o “Escola Sem Partido”. Trata-se de propositura que ressalta a importância de debater as questões de gênero e de diversidade sexual, valorizando essas temáticas quanto ao necessário aprendizado escolar dos Direitos Humanos em variadas perspectivas. Apesar disso, ao defender uma escola livre, de um único pensamento possível - o que, no caso específico, seria defender a escola do padrão único de família e da heterossexualidade como compulsória obrigação - o Projeto de Lei de autoria do deputado Jean Wyllys foi agregado aos demais pela comissão responsável, tornando-o passível de análise em conjunto e desconsiderando os seus objetivos. Expressivo da ausência de esquadro quanto ao enquadramento do referido PL ao lado dos demais, é o fato do Projeto defender que não deve haver censura em sala de aula, enquanto a maioria dos outros vai na direção da proibição do diálogo sobre as questões de gênero e diversidade sexual.

Assinado pelo relator deputado Flavinho (PSC-SP), o texto da Comissão destacada para analisar os sete projetos citados foi estudado por nós e, nas últimas páginas, sublinha o que, no entendimento desta comissão, significa a “ideologia de gênero”. Trata-se, segundo o texto, de “uma das facetas mais tacanhas com a qual pode se materializar a doutrinação” (2018, p. 17), além de afirmar que é “uma concepção extremamente controversa, defendida por uma minoria de intelectuais e ativistas políticos” (p. 17). Não é demais sublinhar a discordância dessas assertivas faces às abordagens adotadas como norte nas análises que se consubstanciam neste artigo, guiado por valores republicanos e princípios democráticos.

No Brasil, os primeiros núcleos de estudos e grupos de pesquisa de gênero são criados na década de 1980, primeiro na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro em 1983 e em 1984 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre as Mulheres (NEIM) (COSTA; SARDENBERG, 2014). De certo que muitas resistências antidemocráticas foram - e continuam sendo - enfrentadas por esses primeiros núcleos. Essas reações negativas à fundação, implantação e funcionamento dos núcleos e grupos foram e ainda são concretamente sentidas, de diversas maneiras, nas trajetórias e nas carreiras das pesquisadoras que os fundaram e os mantêm em funcionamento, formando discentes, fazendo pesquisa e extensão, promovendo ensino com conteúdos e práticas cada vez mais significativos e associados a um ideal democrático de sociedade. Tal ideal inclui em pesquisa, docência e extensão os princípios e práticas da igualdade racial e de gênero, assim como a autonomia para as mulheres e meninas, a liberdade e o respeito para todas as pessoas. As dificuldades que núcleos e grupos feministas, de gênero e de diversidade sexual enfrentam para a sua consolidação na Academia, assim como para a legitimação de seus estudos e pesquisas, não ocorrem por falta de rigor acadêmico ou de compromisso ético, mas por serem julgados como partidários, parciais e “militantes por demais”. Esse julgamento depreciativo e discriminatório parte frequentemente de pares no interior da Academia, cientistas centrados/as em um ideal acadêmico excludente, racista, misógino e heterocentrado. Estes, acostumados/as aos seus privilégios acadêmicos, se ancoram em uma suposta neutralidade acadêmica, a qual também não é alcançada por eles. Tratam-se de grupos e setores inteiros da Academia que, historicamente, teciam críticas às pesquisadoras feministas porque estas desestabilizaram - e seguem desestabilizando - os cânones científicos ora defendidos por positivistas, como nos mostra Donna Haraway em seu artigo, também inspirador deste texto, “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” (1995).

Ao lado dessas históricas ações e reações, importantes mobilizações ocorreram a partir da década de 1990, marcadas pela construção de eventos, planos e políticas que visavam o fim das desigualdades de gênero, compreendendo a educação como eixo estratégico para tal. Esse percurso histórico resultou na criação de numerosos grupos nas Universidades e uma parte deles é retratada pela pesquisadora Sandra Unbehaum em sua tese de doutorado. Em 2014, mesmo ano em que foram apresentadas as primeiras leis que estamos analisando aqui, ela trouxe a contagem de 221 grupos registrados na área de educação que pesquisam gênero e são cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na mesma direção da criação e movimentação efervescente dos grupos de pesquisa, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), em 2003, cria o Grupo de Trabalho “Gênero, Sexualidade e Educação”, o “GT 23”. Em 2017, na 38º Reunião Nacional da citada Associação, 21 trabalhos6 foram apresentados no GT, advindos de distintas Universidades do país, destacando-se a importância desse espaço para a institucionalização do debate sobre o tema e convivência deste GT ao lado de outros, cujas temáticas eram percebidas como já estabelecidas e fundadas por pesquisadores e pesquisadoras que muitas vezes se comportavam como os cientistas descritos por Donna Haraway.

Como importante marco para os Estudos Feministas e de Gênero, assim como a relação destes com a Educação, há de se citar o Seminário Fazendo Gênero, que teve sua primeira edição no ano de 1994, na Universidade Federal de Santa Catarina. Ao reunir participantes do mundo todo, o Seminário passou a ser Internacional em 2000. Promovido pelo Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC, o Seminário teve em sua 11ª edição, em 2017, uma quantidade de artigos científicos enorme, se comparada aos outros anos do evento e, sobretudo, a outros eventos das variadas áreas que congrega. Dentre os cento e sessenta simpósios temáticos apresentados em 2017, doze foram destinados às pesquisas com interface entre gênero e educação, constando cento e trinta e quatro artigos sobre esta temática nos anais do evento7.

Todos estes exemplos quantitativos e qualitativos, citados por nós, poderiam ser complementados com a quantidade de programas de pós-graduação no país que possuem linhas de pesquisa e atuação em gênero e educação, além dos editais financiados pelo CNPq e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) nos últimos anos. Devem ser lembradas também as disciplinas nas quais figuram gênero, feminismo e diversidade sexual, ofertadas em Universidades de comprovado nível de excelência na América Latina e em todo o mundo. Esses componentes curriculares também são expressões de uma certeza: não nos falta, nacional e internacionalmente, legitimidade acadêmica e política para as produções e para o campo de pesquisa que ora vem sofrendo ruidosas tentativas de deslegitimação.

Tão importante quanto esta certeza é que possamos ter nesses ataques antidemocráticos à educação, a oportunidade de relembrar que, segundo Joan Scott, gênero é utilizado para designar as construções sociais a partir de um corpo sexuado. O “uso do ‘gênero’ coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade” (SCOTT, 1995, p. 76). Nesta perspectiva, o gênero “é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86), imputado aos diferentes sujeitos desde o nascimento. Ao lado de Joan Scott, temos no Brasil, dentre muitas autoras, como exemplares de grandes contribuições teóricas, Guacira Lopes Louro, em seu clássico livro “Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista” (1997), e Daniela Auad, em seu livro “Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola” (2006). Esta segunda publicação é apontada em pesquisa da Revista Nova Escola como obra citada em editais de concursos para preenchimento de vagas docentes da Educação Básica, em sistemas públicos de ensino municipais e estaduais, em todo o Brasil. Na matéria da revista, é expressiva essa citação da obra e da autora, estudiosa de gênero, pedagoga e feminista, em meio a autores/as da área de educação que se debruçam sobre outros temas tão relevantes quanto, já estabelecidos como consenso, como alfabetização e desenvolvimento infantil. Tal levantamento feito pela Revista Nova Escola permite notar como está sendo cobrado, na condição de saber docente, o conhecimento sobre relações de gênero e educação para todas as pessoas que desejarem ingressar, via concurso público, nas salas de aula das redes de ensino. Essa é uma mensagem bem delineada de quem elabora concursos e pensa sobre gestão de sistemas de ensino, cujas políticas educacionais sejam assumidas e cotidianamente voltadas para a igualdade de direitos e para a cidadania democrática: há de considerar gênero e educação, em perspectiva feminista, a/o profissional que pretende lecionar nas escolas públicas.

Apesar de todos esses exemplos e construções históricas, a Comissão destinada a analisar os PLs em questão asseverou que gênero “trata-se de uma concepção meramente ‘teórica’, pensada ‘de fora’ como um ideal a ser imposto na sociedade” (COMISSÃO, 2018, p. 18). O relatório da Comissão, além de desconsiderar todas as produções acadêmicas nos campos de estudos citados por eles mesmos, ainda ressalta que por não ser um ponto pacífico, não deveria ser objeto de legislação, o que por si só já é contraditório. Acreditamos que é justamente nas matérias em que não são encontrados os consensos é que a força legislativa deve se mostrar, a fim de assegurar o funcionamento democrático das instituições.

Como nos ensina Chantal Mouffe, em sua obra “Sobre o político” (2015), a democracia não deve ser consensual. Segundo ela, “a crença na possibilidade de um consenso racional universal pôs o pensamento democrático no caminho errado”, pois “a tarefa dos teóricos e políticos democráticos deve ser imaginar a criação de uma vibrante esfera pública ‘agonística’ de contestação, na qual diferentes projetos políticos hegemônicos possam se confrontar” (p. 03). Para a autora os antagonismos existentes atualmente são transferidos para a esfera moral e, nesse caso, para a dicotomia bem/mal ou certo/errado. Ainda para ela, seria mais acertado definir categorias políticas e, dessa maneira, o oponente não seria visto como inimigo, mas como adversário. Segundo Mouffe, há um despreparo da teoria democrática no entendimento de fenômenos atuais, a exemplo do nacionalismo e de manifestações de apego a valores tradicionais e fundamentalistas como as que analisamos neste texto. Para a autora, diante das manifestações onde não há consenso, a "tarefa da política democrática não é superá-las por meio do consenso, mas elaborá-las de uma forma que estimule o confronto democrático" (2015, p. 05). Assim, ao analisar a política democrática, as paixões e desejos que a mobilizam, bem como a ausência de consensos entre diversos interesses existentes na sociedade, Chantal Mouffe nos questiona em sua obra se é possível constituir uma ordem mundial que unifique os interesses da humanidade. E se isso acontecer, será que tal ordem não correria o risco de ser apenas algo próximo a uma hegemonia mundial, que teria conseguido ocultar a sua dominação?

Ao suscitar estas reflexões, muitas vezes sem respostas e geradoras de tantas outras perguntas, Mouffe defende que devemos implementar um "mundo multipolar, com um equilíbrio entre diversos polos regionais que permita a existência de uma pluralidade de potências hegemônicas" (2015, p. 06). Note-se que não se trata de negar o antagonismo e pensar que ele chegou ao fim, seria desconsiderar o que temos como pressuposto da política democrática. Apesar dessas considerações, apenas um projeto hegemônico continua em ação. Trata-se de projeto que desconsidera as construções sociais e históricas sobre os nossos corpos e vivências, além de ser aparentemente alicerçado por uma única moral religiosa e por um discurso biologizante questionado comumente até mesmo por muitos ramos da Ciência.

E é, de fato, muito longe da Ciência e das explicações e análises concretas e sensíveis acerca dos acontecimentos físicos e sociais que se coloca o surgimento da expressão “ideologia de gênero”. Ao tentar compreender os caminhos e as relações que proporcionaram a emergência e a popularização da expressão “ideologia de gênero”, a feminista e pesquisadora na temática da política e dos direitos sexuais e reprodutivos, Sonia Côrrea, nos revela que trata-se de termo que tomou força na conferência Episcopal da Igreja católica no Peru, em 1998. A estudiosa e militante feminista assevera que, em 1998, o uso da expressão “ideologia de gênero” se colocou para reforçar os perigos de uma pauta que trouxesse os direitos reprodutivos separados dos direitos sexuais. Na escrita do artigo intitulado “A ‘política do gênero’: um comentário genealógico”, Côrrea diz trazer não apenas seus referenciais acadêmicos, mas também sua experiência como feminista, que participou da citada conferência. Segundo ela, a América Latina se destacou, num bloco composto por mais de 70 países que se posicionaram de forma incisiva em relação às pautas feministas, contrariando o que foi então proposto pelo Vaticano. Este surge como combatente ferrenho do conceito de gênero, visto que sua aceitação contrariava a própria noção de humanidade, acirradamente defendida pelo Cardeal Joseph Ratzinger, Papa Emérito Bento XVI. Desta forma, como nos apresenta Corrêa (2018), foi no momento que as organizações internacionais começaram a usar a expressão gênero, como conceito independente de mulher e reprodução, levando em consideração as múltiplas identidades e orientações sexuais, que a expressão “ideologia de gênero” passou a ser utilizada por grupos conservadores de modo a destacar algo a ser rechaçado e contra o que grupos inteiros passaram a desenvolver pânico e repulsa.

Temos marcos na proliferação desses sentimentos no Brasil, observados pelo aumento expressivo do uso da expressão “ideologia de gênero”. Podem ser considerados marcos tanto o debate sobre a regulamentação das uniões homoafetivas, que se dá em 2011, quanto os diálogos públicos sobre a proposta, em 2013, do Estatuto da Família, cuja tentativa era de reconhecer apenas as uniões advindas dos relacionamentos heterossexuais. Esses processos começaram a ser chamados, no âmbito dos movimentos sociais e de setores da imprensa, como uma verdadeira “Cruzada Moral” e tiveram seu ápice por ocasião da votação e aprovação do Plano Nacional de Educação, em 2014. Os processos que envolveram o PNE foram marcados pela união das bancadas religiosas do Congresso Nacional ao Movimento Escola Sem Partido, cujo foco até então era o que denominavam de “Ideologia Marxista”. Em uma jovem democracia como a brasileira, não demorou para que esses acontecimentos congregassem múltiplos interesses que não apenas os religiosos. Deputados laicos uniram-se contra a denominada “ideologia de gênero”, ao valorizar aparentemente alianças e interesses financeiros variados que podem ter sido acionados nessa disputa. Setores da imprensa também se colocaram a favor do combate ao trabalho com as questões de gênero e sexualidade na escola. Com essas dinâmicas, e desde então, a expressão “ideologia de gênero” passou a ser utilizada largamente pela população. Tal uso popularizado se colocou amplamente como sinônimo de uma discussão desenvolvida por pessoas perversas, cuja principal intenção seria destruir a família brasileira, transformar as crianças em homossexuais e em fáceis alvos de pedófilos, como expressa a chamada do site Gospel Prime (2018), “Ideologia de gênero pode tornar pedofilia ‘normal’, alerta educadora”.

Seja em conteúdo de sites como o acima citado, seja com o texto da Comissão, são recorrentes as tentativas de difamar e deslegitimar o campo dos estudos feministas e de gênero. A Comissão, ao afirmar que “ideologia de gênero é uma questão essencialmente política” e que “não deve gozar de status legal” (2018, p. 19), desconsidera produção científica reconhecida e realizada com erário público, sendo essas pesquisas parte do que temos como tesouro da Nação, portanto. Defender os resultados e a aplicabilidade das pesquisas do campo de gênero e educação versa na real defesa no Estado brasileiro, uma vez que busca assegurar o Direito à Educação e almeja construir a cidadania democrática. Podemos concordar pontualmente com a Comissão no que concerne a considerar as relações de gênero como uma questão política, pois não esquecemos a máxima dita pelos movimentos feministas desde o século passado, quando afirmavam que “o pessoal é político e o político é pessoal”. Em um país onde mulheres continuam sendo cerceadas dos direitos ao seu corpo, onde tamanha desigualdade salarial entre homens e mulheres ainda é presente, em que a cada 19 horas uma pessoa LGBT é assassinada pelo crime de ódio à sua orientação sexual ou identidade de gênero8, como não ser uma questão política?

A tamanha contradição expressa nos materiais analisados faz parte do antagonismo do terreno moral encontrado na atual democracia que vivemos. Deste modo, Chantal Mouffe (2015, p. 15) nos alerta que é uma ilusão acreditar que existirá uma sociedade democrática na qual o antagonismo desaparecerá, pois sempre estará colocada a relação entre o "nós" e o "eles", sem a possibilidade de um consenso negociado entre termos que, de fato, não são negociáveis. Quanto mais inegociáveis são os termos de uma situação, quanto mais dilemático é o que está posto em disputa na sociedade, mais necessários se fazem mecanismos que apurem e assegurem o trato democrático, tão em risco em um caldo como o que analisamos no texto, como o que temos vivido na história recente e nos dias atuais no Brasil.

Nos últimos anos, grupos identitários conquistaram direitos, frutos de reivindicações históricas, como por exemplo a política de cotas para a população negra e indígena do país. Enquanto isso e por causa disso, outros grupos estão ameaçando a existência dos primeiros, seja incitando ódio, violentando-os e/ou seguindo representantes políticos que utilizam dos seus espaços de poder para disseminar discursos e práticas violentas em variados níveis, como nas searas psicológica, linguística e física. Expressões disso são o racismo institucional, a linguagem discriminatória ainda recorrente nos meios de comunicação e o extermínio de populações inteiras, como indígenas, juventude negra e LGBTs.

A fim de eliminar a possibilidade de existências contra-hegemônicas e de barrar a série de avanços conquistados durante os mandatos de governos autoproclamados e reconhecidos como do campo da esquerda, no que concerne às políticas públicas para as mulheres e LGBTs, diversos Projetos de Lei que instituem o “Programa Escola Sem Partido” já foram apresentados e aprovados nas esferas legislativas estaduais e municipais do país. O primeiro projeto aprovado que contém o teor desse “Programa” foi o “Escola Livre”, aprovado em 2016 no Estado de Alagoas e suspenso por liminar do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Barroso, em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), em março de 2017.

O Ministro Luís Roberto Barroso suspendeu também recentemente o artigo 1 da Lei Municipal da cidade de Palmas, nº 2.238 de 19 de janeiro de 2016, que proíbe a disponibilização de material didático que verse sobre diversidade sexual nas escolas. No entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal, a lei vai contra a Constituição Federal e contribui para perpetuar a violência, tanto física quanto psicológica da população LGBT9. O também ministro do STF, Marco Aurélio, questionou aos prefeitos das cidades de Petrolina e Garanhuns, em Pernambuco, além das Câmaras Municipais de ambos os municípios, demandando explicações sobre as leis aprovadas com o mesmo objetivo: a proibição das questões de gênero e orientação sexual nas escolas10.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão emitiu uma nota técnica apontando a inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 867/2015, de autoria de Izalci Lucas. Essa nota técnica serviu de orientação, quase como uma criação de jurisprudência, para outros tantos projetos que atualmente proliferam no território nacional e versam sobre o “Escola Sem Partido”. A Procuradoria aponta as respectivas razões:

(i) confunde a educação escolar com aquela que é fornecida pelos pais, e, com isso, os espaços público e privado; (ii) impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III); (iii) nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem (art. 206, II); (iv) contraria o princípio da laicidade do Estado, porque permite, no âmbito da escola, espaço público na concepção constitucional, a prevalência de visões morais/religiosas particulares (MINISTÉRIO, 2016, p. 2).

No Estado de Pernambuco, o PL 709/2016, projeto proposto pelo deputado Joel da Harpa, foi arquivado por ter sido considerado inconstitucional11. Em Minas Gerais, o Ministério Público Federal, através da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, também enviou ofício à Câmara Municipal de Belo Horizonte apontando a inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 274/2017, cuja pretensão era também instituir este “programa” proibitivo12.

Apesar do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público já terem declarado inconstitucionais os projetos que buscam proibir as questões de gênero e de orientação sexual nas escolas, o PL 7180/2014 foi declarado pela Comissão como constitucional e com “boa técnica legislativa” (2018, p. 21). Entretanto, as resistências são maiores e nas duas reuniões convocadas pela Comissão para votar o parecer por nós analisado, a primeira no dia 04 de julho e a segunda no dia 09 de agosto de 2018, houve cancelamento por conta das diversas manifestações contrárias a essa lei conhecida como “a Lei da Mordaça”. Diversas organizações de profissionais da educação, além de entidades estudantis, se fizeram presentes com palavras de ordem e cartazes, impedindo que esse processo continuasse, naquele momento, seguindo na Câmara Federal. Cumpre destacar que o projeto pode vir a ser desarquivado, contudo terá que ser formada uma nova Comissão no ano de 2019 para a votação.

Vale ressaltar que após os resultados das urnas, nas eleições de 2018, para Presidência da República, Senado, Governos Estaduais, Assembleias Legislativas Estaduais e Congresso Nacional, alguns projetos que estavam parados nas Câmaras legislativas estaduais ganharam novo fôlego. Importante destacar que, ao lado de todos esses tensionamentos de retrocessos, temos visto, dentro do âmbito legislativo, para além do projeto Escola Livre de Jean Wyllys, tentativas de salvaguardar a educação desses ataques antidemocráticos. Como exemplo disso, temos a ação da Assembleia Legislativa da Paraíba que aprovou o Projeto de Lei Nº 2013/2018, cujo objetivo é garantir a liberdade de expressão e de cátedra das professoras e professores das escolas públicas paraibanas. O projeto ainda dispõe sobre o uso de celulares em sala de aula, quando sem fim pedagógicos, visto o estímulo dado por seguidores do “Escola Sem Partido”, para que alunas/os filmem as aulas de seus docentes, em busca de flagrantes de doutrinação. Esse Projeto de lei, com acentuado caráter de defesa da Democracia e do Direito à Educação, foi aprovado por vinte quatro votos a favor e cinco votos contra.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA DEMOCRACIA EM RISCO À RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA

Ao mesmo tempo em que observamos a crescente força dos políticos que defendem projetos que visam minar os princípios constitucionais regentes da educação brasileira nas câmaras, e de seus apoiadores fora dela, também se destacam um grande número de docentes, estudantes, entidades, ONGs e grupos, em geral, que se organizam para resistir à homogeneização acrítica da educação pública, construindo movimentos de resistência em rede e unindo forças em todo Brasil. Além desses grupos, temos a resistência de professoras e professores que seguem com a mesma postura crítica em sala de aula, mantendo seus estudos, perspectivas e ações, o que por si já são atos de resistência, diante de uma série de ataques sofridos. Destacamos aqui a luta de professoras e professores universitários, pesquisadoras/es ligadas/os aos estudos feministas e de gênero, assim como teóricos/as da Teoria Queer, dentro de uma instituição que está longe de ser homogênea. Importante frisar que a maioria dessas professoras/es, núcleos e grupos estão nos cursos de licenciatura, tão fundamentais à construção de uma educação democrática, mas tão pouco valorizados dentro da Academia. Por fim, destacamos as entidades, ONGs e coletivos de lésbicas, gays, transexuais e transgêneros, que passaram a incluir pautas educacionais em suas históricas lutas por reconhecimento de direitos e por respeito a todas as pessoas.

Entendemos o quão recentes podem ser consideradas as produções acadêmicas em gênero e educação, assim como podem ser avaliadas inéditas as políticas públicas nessa área. Isso se dá não pela pouca relevância ou pequena necessidade de tais estudos e políticas, mas pode se relacionar ao maior acesso e à democratização da universidade pública no país. Esses podem ser considerados como “dados novos” por setores dominantes tradicionalmente. Tal “novidade”, por um lado, é uma feliz conquista para as camadas populares, historicamente excluídas de todo o sistema de ensino e, especialmente, do Ensino Superior. Por outro lado, os inéditos e singulares aumento de acesso e democratização da universidade são garantias que os grupos que ali sempre estiveram - e pretendem travar disputas para permanecer como maioria - verão se modificar as relações que lhes asseguravam os poderes estabelecidos e cristalizados. Estes poderes, bens, benefícios e privilégios - que também podem ser amplamente percebidos como Direitos - agora, devem ser redistribuídos para que a desigual correlação de forças seja reparada e equalizada. Certamente, os projetos inconstitucionais se levantam também contra a força afirmativa e o valor de reparação que são evocados, na escola, através do trabalho com as relações de gênero, diversidade sexual e relações raciais. Vale relembrar o dado sobre o crescimento dos números quanto à existência de núcleos e grupos de pesquisa, quanto ao aumento de coletivos de mulheres, de jovens, meninas e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTs), quanto à multiplicação das comunicações em Congressos Científicos e à promoção de eventos onde o diálogo se estabeleça nacional e internacionalmente.

Discursos proibitivos são produzidos e reproduzidos por variados grupos, sejam os que propõem os Projetos de Lei que buscam interditar, na escola, o debate de gênero, sejam os setores conservadores no MESP, assim como grupos isolados pelo Brasil que apenas “compram” o ideário receitado pelo pânico. Fica evidente que esses discursos baseiam suas proibições nas associações preconceituosas, discriminatórias e criminosas entre pedofilia e homossexualidade, entre a destruição da família e o movimento feminista, entre o autoritarismo do pensamento único e o debate de gênero e diversidade sexual. Em meio a esses embates e disputas, gostamos de nos lembrar de pesquisadoras e militantes para quem Luto é Verbo. E assim é, há muitas décadas, uma vez que o que vemos hoje é mais um capítulo do tão árduo quanto necessário caminho da construção da democracia no Brasil. Assim, em meio a muitas assertivas produzidas no calor da resistência democrática, lembramo-nos de uma frase inspirada pelos ensinamentos de Maria Victoria Benevides, pesquisadora e defensora dos Direitos Humanos, cuja obra mais recente, de 2009, tem como título principal “Fé na Luta”: Cultivar a diferença pode ser uma riqueza, fomentar a desigualdade é um crime.

REFERÊNCIAS

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4Utilizamos neste trabalho a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Transexuais e Travestis) para nos referirmos às questões que envolvem as sexualidades e expressões de gênero.

5Fundações privadas que treinam divulgadores e financiam grupos de intervenção, ligadas à ideologia ultraliberal libertariana (MIGUEL, 2016).

6Os trabalhos apresentados estão disponíveis através do link: http://38reuniao.anped.org.br/programacao/210?field_prog_gt_target_id_entityreference_filter=26 . Acesso em: 29 ago. 2018.

7Os artigos estão disponíveis em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/site/anaiscomplementares . Acesso em: 29 ago. 2018.

8Dados do site “Quem a homotransfobia matou hoje”, gerenciado pelo Grupo Gay da Bahia. Disponível em: https://homofobiamata.wordpress.com/ . Acesso em: 29 ago. 2018.

9Ministro do STF suspende artigo de lei que proíbe ensino sobre gênero e sexualidade nas escolas de Palmas. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2018/08/27/ministro-do-stf-suspende-artigo-de-lei-que-proibe-ensino-sobre-genero-e-sexualidade-nas-escolas-de-palmas.ghtml . Acesso em: 29 ago. 2018.

10STF questiona cidades de PE sobre leis que proíbem debate de gênero. Disponível em: https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2018/07/18/stf-questiona-cidades-de-pe-sobre-leis-que-proibem-debate-de-genero-347447.php . Acesso em: 29 ago. 2018.

11Parecer final do PL 709/2016. Disponível em: http://www.alepe.pe.gov.br/proposicao-textocompleto/?docid=35BAB42F0DCAD1E103257F6C005656A6 . Acesso em: 01 jun. 2017.

12MPF aponta inconstitucionalidade do projeto Escola Sem Partido da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/mpf-aponta-inconstitucionalidade-do-projeto-escola-sem-partido-da-camara-municipal-de-belo-horizonte . Acesso em: 21 abr. 2018.

Recebido: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 06 de Maio de 2019

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