1 INTRODUÇÃO3
Embora o estado de São Paulo venha apresentando quedas expressivas nos índices de violência fatal (WAISELFISZ, 2013, 2014; IPEA, 2017), essa diminuição percentual não alterou a percepção de professores, alunos, pais e da mídia, no que concerne à insegurança e à existência da violência nas escolas públicas paulistas - percepção que encontra respaldo no aumento exponencial das ocorrências policiais registradas por esses profissionais e divulgadas por meio da Lei de Acesso à Informação4 (CAVALCANTI, 2018; PINHO; MARIANI, 2017).
Nesse contexto, a Secretaria Estadual de Educação concebeu, em 2009, o Sistema de Proteção Escolar (SPEC), que abrange sob sua rubrica um conjunto de programas e projetos de prevenção à violência escolar; dentre eles, os modelos restaurativos para resolução de conflitos, que passaram a ser introduzidos no contexto escolar a partir de uma experiência bem-sucedida realizada em São Caetano do Sul (SP) pela Vara da Infância e da Juventude, que executou, em 2005, o projeto “Justiça e Educação: parceria para a cidadania”. Através do envolvimento dos Sistemas de Justiça e de Educação, esta proposta foi expandida para o município de Guarulhos (SP), para o bairro de Heliópolis, em São Paulo (SP), e chegaria no ano seguinte a Campinas (SP).
Importa destacar que a justiça restaurativa propõe estabelecer uma outra concepção de justiça: intersubjetiva, mediada pelo diálogo, em que o acordo busca o entendimento (consenso), não como aceitação passiva, tampouco imposição ou obediência, mas desde a perspectiva da responsabilização ativa e do protagonismo dos estudantes. Emerge, portanto, como verificação corretiva da punição e do julgamento, baseados na autoridade e na regra, reivindicando, para sua consecução, a reorientação da gestão de conflitos, que deve ser conduzida por uma preocupação ética, pelo desenvolvimento de uma postura de respeito à alteridade e aos direitos humanos, permitindo aos envolvidos posicionar-se face ao conflito instaurado e refletir sobre as consequências daí resultantes (MELO, 2006; VITTO, 2005).
Assim, dentre as inúmeras ações realizadas desde então com vistas ao arrefecimento da violência e das situações de conflito nas escolas no município de Campinas (SP), consideramos a formação “Cultura Restaurativa e suas Práticas”5 uma excelente oportunidade para compreender, a partir da narrativa dos professores6 egressos desse curso, o lugar que os direitos humanos e a justiça tiveram em suas trajetórias e perceber se tais percepções influenciaram o modo como negociaram o uso dos princípios da justiça restaurativa no interior das unidades escolares na qual lecionam.
Acolhemos a história oral de vida pelo fato de ela estabelecer como seu campo de estudos e investigações os elementos subjetivos extraídos da memória narrativa (MEIHY, 2010, p. 182-183), por permitir “a compreensão dos fatos históricos e sociais filtrados pela ótica dos sujeitos, a partir de seu próprio passado” (MAGALHÃES, 2007, p. 28), como também, pela colaboração do entrevistado na condução da pesquisa. Após passar pelos processos de transcrição, textualização e transcriação7, intrínsecos à análise das entrevistas no âmbito de estudos da história oral de vida, a narrativa deve ser submetida ao crivo do sujeito entrevistado8 e somente poderá ser utilizada mediante sua aprovação9 (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 60).
O que se pode verificar nas narrativas dos professores, quando analisadas desde a perspectiva de seu ofício, é que suas trajetórias também se inscrevem na lógica do poder, do controle e da judicialização dos conflitos10, haja vista que ocupam um lugar específico na estrutura institucional hierárquica, a qual, por sua vez, está relacionada à organização da escola, à comunidade na qual atuam, aos órgãos da administração pública e às políticas de valorização do trabalho docente (PEREIRA, 2018), que também submetem, produzem e configuram suas subjetividades (FOUCAULT, 1997; GUIMARÃES, 2003).
Ademais, tais instâncias esperam que os professores atuem como vetores das mudanças propostas, por meio da conversão, em ato pedagógico, dos programas, das políticas e dos projetos educacionais. Entretanto, é necessário reconhecer que qualquer proposta terá seu conteúdo confrontado com a trajetória de vida e com a experiência que o professor acumula em sua prática, a partir da qual ele analisará sua conveniência e o nível de dificuldade requerida à sua incorporação. Considerando que os professores não se constituem como uma categoria homogênea, questões de natureza afetiva, profissional e política também se constituem como referências que podem vir a incidir sobre sua prática pedagógica.
De igual modo, há inúmeras expressões de “ser escola” (SCHILLING, 2010, p. 3), cujas diferenças e especificidades podem ser identificadas em sua arquitetura, em seus projetos político-pedagógicos, na construção de suas normas e nas relações interpessoais que os sujeitos estabelecem no âmbito da interação pedagógica, que também exercem influência na abordagem de questões relativas à violência, aos direitos humanos e na condução da justiça restaurativa.
Assim, a questão que nos mobilizou foi: como uma proposta cujo fundamento é o respeito aos direitos humanos dos sujeitos e na qual já está de antemão incorporado um telos de acordo recíproco que define a sua dimensão ética e dialógica pode existir em uma sociedade historicamente oligárquica, excludente e autoritária e na qual uma parte expressiva da população rejeita não só os direitos humanos mas também as reivindicações e as conquistas das forças progressistas que se deram nas últimas décadas?
Tal ponderação enseja uma reflexão sobre o problema da efetivação da democracia e dos direitos no Brasil, e também sobre o papel da educação como um elemento instrumentalmente conectado à formação para o exercício da cidadania, considerada essencial para o desenvolvimento de um verdadeiro estado democrático. E, uma vez que a justiça restaurativa não pode ser separada da doutrina de proteção aos direitos humanos, sua proposta também poderá contribuir para explicitar alguns traços da nossa enfraquecida democracia e, ao mesmo tempo, das resistências e dos indícios, ainda que tímidos, de novas possibilidades democráticas.
2 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, A JUSTIÇA RESTAURATIVA E A FORMAÇÃO PARA A CIDADANIA
Considerada um marco histórico à emancipação humana, a Declaração dos Direitos do Homem, promulgada no século XVIII, preconizava que o homem possui direitos naturais que deveriam ser resguardados da intervenção da Igreja e do Estado (ARENDT, 2012, p. 405). Ocupando-se em evidenciar que uma natureza comum não torna os homens iguais, tampouco os dota de direitos iguais, a crítica formulada por Arendt (2012) aos direitos humanos aponta que é a sua dimensão de universalidade em torno de princípios abstratos que inviabiliza debatê-los em termos políticos e torná-los, enfim, efetivos (ARENDT, 2012). Por esta razão, a autora entende que é no espaço público que os direitos humanos devem ser reivindicados e debatidos, de maneira intersubjetiva, através do discurso e da ação política; fora dessa esfera, tais direitos carecem de sentido.
Foi o que observou no contexto dos regimes totalitários: a vinculação entre os direitos de cidadania e aqueles outorgados pelos Estados-nações significou que, com a perda da nacionalidade, todos os demais direitos de proteção foram suspensos para um enorme contingente de sujeitos que, desprovidos de um estatuto legal de proteção, não encontraram nenhum outro país ou instituição disposto a assegurá-los (ARENDT, 2012). Formulados em resposta às atrocidades cometidas pelo nazismo no contexto da Segunda Guerra Mundial, os direitos promulgados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 têm como propósito manter um fundamento ético de caráter universal para a conduta dos homens (PEREIRA, 2018).
No entanto, embora os direitos humanos11 já estejam declarados há pouco mais de 70 anos, os mais diversos países têm dificuldades em fazê-los parte do modo de ser da população e até mesmo das instituições do Estado. O enorme distanciamento entre os dispositivos jurídicos de proteção desses direitos, consolidados entre nós na Constituição de 1988, e a sua efetivação no Brasil evidencia a atualidade da crítica arendtiana (2012).
Para Arendt (2012), a proclamação de um direito é insuficiente para assegurá-lo, pois, em sua compreensão, é a prática política que o institui e o conserva. Ademais, as questões políticas são aquelas que envolvem aspectos relativos ao espaço público e dizem respeito ao coletivo, e não aquelas pertinentes ao universo individual, íntimo, da subjetividade humana. O individual não é objeto de decisão coletiva, mas um direito que cabe ao indivíduo de modo pleno. Assim, não obstante ela acredite que todo homem deve possuir o direito a ter direitos, essa condição só pode ser atendida no âmbito de um corpo político concreto: o da esfera pública.
Ao localizar na modernidade o esvaziamento político do espaço público, Arendt identifica a perda de uma experiência compartilhada de mundo que só se realiza na dimensão plural da interação dialógica e intersubjetiva (ARENDT, 2010). Excluídos ou privados desse espaço, ficam os homens apegados às suas diferenças e, com isso, corre-se o risco de que tais diferenças sejam transformadas em normas legais ou critérios políticos, de modo que os indivíduos passem a ser julgados pelo que são12, e não por suas ações e opiniões.
A análise arendtiana sobre a esfera pública (ARENDT, 2010) se constitui uma referência conceitual que nos permite refletir sobre as limitações e as distorções no entendimento da questão pública entre nós. Se, para Arendt (2010), a modernidade é caracterizada pela liquefação entre as esferas da vida pública e privada, no Brasil o processo de formação da cultura política não apenas reproduziu essa realidade, como a subverteu: nosso espaço público esteve desde sempre submetido aos ditames da realidade doméstica. Como exemplo dessa construção, destacamos a fala da professora Suzana, que, ao refletir sobre o papel da justiça restaurativa e dos direitos humanos, demonstra isso:
Então, eu acredito que a cultura restaurativa e os direitos humanos têm que começar desde a família, a família tem que se situar no tempo e no espaço, para ela poder fazer uso dos direitos humanos e da cultura restaurativa. É no que eu acredito e é o que eu quero ensinar para minha filha.
Essa compreensão encontra respaldo nos dados apresentados pela pesquisa Direitos humanos: percepções da opinião pública, realizada em 2008, pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH/MDH), sobre os significados atribuídos pelos brasileiros a esses direitos. Passados mais de dez anos da publicação dessa pesquisa, dada a atualidade e a relevância dos dados nela apresentados, passamos a analisar, dentre eles, os que refletem as percepções dos professores entrevistados.
Quando interrogados sobre o fator mais importante para que fossem garantidos os próprios direitos, 55% dos respondentes mencionaram “o apoio da família”, imediatamente seguido de “esforço pessoal” (49%), “políticas de governo” (44%) e “possibilidade de acesso à Justiça” (42%). Ou seja, em suas percepções, o apoio da família e o mérito pessoal precedem em importância as políticas de governo e o acesso à justiça na garantia dos direitos de cidadania no Brasil (VENTURI, 2010).
A família, apresentada como a principal responsável pela elaboração e proteção dos direitos, vai na contramão do que define Arendt (2010), haja vista que, em seu entendimento, as questões políticas são aquelas que dizem respeito às nossas relações no espaço público - o lócus da orquestração dos interesses coletivos -, e não aquelas que pertencem ao universo individual, íntimo, da subjetividade humana, já que para a autora o individual não é objeto de decisão coletiva.
Para Benevides (2010), esses dados revelam a pouca importância conferida aos direitos políticos no Brasil e evidenciam não só a nossa equivocada compreensão de cidadania, esvaziada de sentido, ao ser deslocada da esfera pública para o âmbito da vida privada, como também os valores conservadores que constituem a sociedade brasileira, “baseados na autoridade, na solidariedade familiar e na crença das virtudes pessoais” (BENEVIDES, 2010, p. 97), e que terminam por comprometer a efetivação de uma democracia fundamentada nos princípios da cidadania e articulada às exigências decorrentes dos direitos humanos.
Em complemento a essa perspectiva, Kehl (2010) problematiza a predominância dos valores privados sobre os públicos, justamente pelo seu caráter de autorreferencialidade, pois carecem da universalidade necessária para que possam constituir-se como parâmetros no espaço público.
Cotejando os dados que informam a prevalência da família na transmissão e na garantia dos direitos com os que apresentam a pouca importância atribuída aos direitos políticos no Brasil, compreendemos que a “longa história do paternalismo” entre nós é tributária do que Kehl (2010, p. 36) denomina “lógica dos afetos”, a partir da qual um percentual significativo da população se comporta, face à Lei e aos direitos, como no exemplo oferecido pelo professor Raimundo:
Eu tinha uma diretora que ela tocava o dedo na cara do aluno, “você é moleque, você cala a boca”. E eu falei “puxa, não é possível você falar isso!”. Meu primeiro trabalho de mediação foi nessa escola. Ela falava isso, eu pensava: “nossa, o menino vai dar um soco na cara dela aqui”. E eu estava junto, do lado, ficava do lado ali. E daí a pouco, “chama a mãe, chama a mãe”. E eu ligava para a mãe, a mãe vinha buscar. E aí ela maltratava a mãe também, porque ela também falava grosso com a mãe. Não explicava direito, era o jeito dela...
Ainda de acordo com Kehl (2010), sociedades orientadas pelo respeito aos direitos e à cidadania não atuam com base em predisposições afetivas, e é precisamente esse o componente que assegura a impessoalidade da Lei e os direitos iguais para todos. O que fica em evidência, a partir dos dados apresentados na pesquisa, e bem ilustrado pelo exemplo fornecido pelo professor, é que, entre nós, violações de direitos parecem transformar-se em problema apenas e necessariamente quando envolvem parentes e amigos.
Sérgio Buarque de Holanda (2014, p. 176) foi o primeiro a identificar, em Raízes do Brasil, publicado na década de 1930, que valores personalistas guiavam o comportamento social do brasileiro, cuja personificação era o homem cordial. “A lhaneza no trato, hospitalidade, generosidade”, em sua compreensão, revelavam como característica principal nossa dificuldade em distinguir o ambiente público do privado. Tal como a compreende nosso autor, em sendo a cordialidade o que emana do coração, a passionalidade que lhe é decorrente é o que conduz as nossas relações interpessoais na esfera pública, nos termos do favor e da proteção, constituindo-se, pois, como o principal obstáculo ao pleno estabelecimento da democracia entre nós.
Por essa razão, afirma Holanda (2014) que o caráter personalista forjou nossa esfera pública, fazendo nela vicejar a histórica ausência da pluralidade de interesses e das condições necessárias à participação dos homens na vida pública, tornando-os propensos à afetividade e à pessoalidade, sempre tendente a conceder privilégios aos parentes e amigos e a destinar aos inimigos as frias letras da lei, inviabilizando, desse modo, a construção de relações sociais e políticas pautadas por normas e prescrições legais.
Ao longo dos últimos 80 anos, Raízes do Brasil (HOLANDA, 2014) influenciou enormemente a interpretação da realidade social brasileira. Contemporaneamente, a crítica elaborada por Souza (2015), no que concerne à análise do conceito de patrimonialismo, nos ajuda a compreender que a criação do “homem cordial” como modelo “genérico”, desprovido de família, de passado e de classe social, em um país atravessado por uma desigualdade estrutural, escamoteia a gênese histórica dos diversos tipos de dominação, exploração e discriminação que comprometem a luta, a defesa e a efetividade dos direitos humanos e civis entre nós.
Nessa perspectiva, afirma Chaui (2014, p. 226-227) que a trajetória política do País é marcada pelo seu passado colonial escravocrata, expressa na estrutura fortemente hierárquica do espaço público, conformando relações sociais verticalizadas nas quais as diferenças e as assimetrias são convertidas em desigualdades que corroboram a prevalência da relação mando-obediência. Contexto que é muito bem expresso na fala do professor Gabriel:
Nós vivemos em um país que é racista, classista, ou seja, você é julgado, ou por que você é pobre, ou por que você é negro. E se você for pobre e negro a situação é muito pior porque as pessoas têm como rótulo que você não é capaz, que não consegue romper aquilo que é “normal”.
Desigualdades que em nossa divisão social são interpretadas como sinônimas de inferioridade (é o caso das mulheres, dos negros, dos índios, dos trabalhadores, dos idosos, dos migrantes e dos imigrantes) e de perversão (no caso dos homossexuais). Estas características descortinam um perfil conservador e autoritário da nossa sociedade, marcada não só pela indistinção entre o público e o privado, tanto no campo social como no político (CHAUI, 2014, p. 263), mas também pelo fato de que todas as nossas relações assumem “[...] a forma da dependência, da tutela, da concessão, da autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo, considerados naturais [...]. ” (CHAUI, 2014, p. 262).
Nesse sentido, ainda de acordo com a pesquisa Direitos humanos: percepções da opinião pública, indica Venturi (2010, p. 20) que, quando interrogados sobre os sujeitos que os direitos humanos prioritariamente protegem, apenas um em cada sete entrevistados (15%) os associou negativamente à defesa de grupos específicos (infratores, tanto das classes populares, como das elites). Afirma ainda esse autor (p. 23) que, dentre as políticas de enfrentamento à violência criminal citadas na pesquisa, as de caráter preventivo, tais como aperfeiçoar a formação dos policiais e intensificar os programas de oferta de emprego para os jovens, obtiveram uma aprovação maior do que as repressivas. Entretanto, esse comportamento se contradiz com os 31% dos respondentes que são contrários aos direitos humanos dos presos (p. 25).
Esse dado parece ser reforçado pela concordância de 34% (somados os que concordam “totalmente” e “em parte”) dos entrevistados com a frase “Direitos humanos deveria ser só para pessoas direitas”, revelando que, para uma parcela significativa da população, o outro - o lado de lá, o bandido, o negro, o pobre, morador de rua...- é visto como algo pelo qual não revelamos muita consideração e apreço, e para o qual toleramos algumas violações dos direitos humanos, como exemplifica Kehl (2010, p. 36, grifos do autor): “Doze supostos traficantes foram mortos pela polícia no Morro dos Macacos na tarde dessa quinta feira... Ah, bom. Já que se tratava de supostos traficantes, tudo bem; será que tipos assim ‘mereceriam’ ser incluídos na universalidade dos direitos? ”.
O fato de que as nossas relações pessoais, sociais e políticas estejam inscritas no âmbito de uma estrutura personalista (importância dada à violação de direitos somente quando envolve parentes e amigos), patrimonialista (caracterizada pela dificuldade em distinguir o ambiente público do privado), que naturaliza as diferentes formas de autoritarismo (hierarquia, mando e obediência), não só compromete a constituição de um espaço público entre nós e, consequentemente, o pleno estabelecimento dos direitos de cidadania, como impede o reconhecimento do outro como sujeito de direitos, ao ocultar as desigualdades e os conflitos de classe intrínsecos à sociedade brasileira.
Essas perplexidades se verificam na histórica propensão do poder público brasileiro a resolver as necessidades da realidade social por meio da promulgação de leis e declarações oficiais destituídas de uma intervenção efetiva, naturalizando entre nós a ruptura entre os direitos assegurados por lei e os direitos concretizados na prática. Por essa razão, afirma Teixeira (1976, p. 38): “Acostumamo-nos, assim, a viver em dois planos, o real, com as suas particularidades e originalidades, e o oficial, com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. ”
Embora nas últimas décadas do século XX os movimentos sociais e os diversos ativismos associados à ampliação da agenda de direitos tenham sido intensificados e, com isso, tenham revitalizado a cena política brasileira, é possível notar a permanência dessas questões com a adesão da sociedade civil a princípios não democráticos, negando, rejeitando as conquistas dos mais oprimidos, dos pobres, dos marginalizados e dos movimentos sociais. Ou seja, apesar de estarem juridicamente assegurados, os direitos humanos e civis não são preponderantes nas práticas sociais brasileiras. Um contato com essa perspectiva é estabelecido por meio da fala do professor Augusto:
[...] eu sou a favor de distribuir a renda, mas também ensinar a pescar, não é só dar a vara, “ó está aqui o peixe pronto”, dá a vara e o anzol, vai lá pescar ver como é que é. Aí o que desanima a gente é que você vê o político fez isso, outro roubou aquilo, outro fez aquilo, então tem hora que desanimam algumas coisas. Tem hora no semáforo que o cara pede um negócio e você fala assim, “pô caçamba, se todo mundo der 1 real ou 50 centavos, todo dia vão uns 15 reais embora”, é muita gente, “brincadeira!”. Mas acho que alguma coisa tem que ser feita, isso está errado. Então teria que ver uma forma diferente, porque do jeito que está, acho que não está funcionando.
Nesse sentido, afirma Souza (2015, p. 245) que “[...] exploramos, aceitamos e tornamos fato natural e cotidiano conviver com gente sem qualquer chance real de vida digna sem ter nenhuma culpa nisso”. Dignidade que, convém destacar, configura-se como o epicentro axiológico tanto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, como da Constituição Federal, de 1988, e também da justiça restaurativa, e que se revela crucial à compreensão da nossa “estranha democracia” (FREIRE, 1967, p. 55).
Ora, se compreendermos a escola como uma instituição não apenas responsável pela transmissão de conteúdos, mas também incumbida de formar sujeitos para o exercício da cidadania - o que pressupõe direitos e obrigações cujo exercício reivindica um conjunto de capacidades individuais que devem ser desenvolvidas, sobretudo, no cenário brasileiro atual, no qual a maioria dos direitos reconhecidos não são automaticamente efetivados -, o que significa atrelar o processo educativo à formação do sujeito como titular de direitos e deveres?
Do ponto de vista pedagógico, fala-se muito em uma formação/educação para a cidadania, mas na prática escolar observa-se que, apesar de convincentemente detalhadas nas legislações educacionais13, essas propostas geralmente não são concretizadas nas escolas, e os valores que lhes são concernentes não são vivenciados (PEREIRA, 2018). É com esse objetivo que o professor João chega a dizer:
Até mesmo porque quando a gente fala em direitos humanos, a escola em si, ela não tem um programa para o aluno, você não pega, por exemplo, um professor de História, ou qualquer outra área, pode ser a de Biologia, de Ciências, que vá debater o Estatuto da Criança e do Adolescente com o adolescente, ou com os funcionários da escola, ou em uma reunião com os professores, para a gente debater naquilo ali, o que é que dá para ser utilizado, o que é que não dá. Então aquilo dá uma certa bagagem para a gente fazer esse tipo de trabalho também com os alunos, dizer para eles o que eles podem e o que eles não podem fazer, quais são os direitos deles e quais são os deveres. Ou seja, no meu entendimento, politizar essa garotada, mostrar para ele que a vida não é apenas acordar, vir para a escola, copiar algumas coisinhas e pensar que está tudo certo, não, não é, a vida não é só isso, a vida não é só isso. Têm muitas questões que eles precisam aprender, que eles precisam discutir, tudo relacionado à comunidade que eles moram, a cidade que eles moram, o Estado que eles estão, o País que eles estão, tudo o que acontece no mundo acaba interferindo, por mais simples que o aluno seja, acaba chegando até ele, basta se falar em uma crise mundial que estava todo mundo dando risada. E o que aconteceu com aquele menos favorecido? Está aqui dentro da escola, a gente escuta eles falarem que o pai está desempregado, que não sei das quantas, então tudo acaba chegando até eles. E levando conhecimento até eles, eles sabem, eles vão saber para onde eles devem correr ou reivindicar, no caso, um direito que é deles. Visando melhorar a vida deles e fazer com que eles também adultos cumpram com a sua parte, que é o nosso dever.
Em seu livro Educação como prática de liberdade, afirmava Paulo Freire (1967, p. 61) ser necessário reformular o ato educativo na direção de uma formação orientada à “responsabilidade social e política”, capaz de fornecer aos sujeitos subsídios que propiciassem a reflexão acerca do contexto no qual se encontravam imersos; desse modo, colocava sob suspeita concepções curriculares hegemônicas, com vistas a transformar rotinas escolares e a problematizar lógicas reprodutoras de desigualdades e opressão, exatamente por considerar este tema absolutamente central para um aprendizado para a vida.
Afirmava o supracitado autor que a nossa “inexperiência democrática” (FREIRE, 1967, p. 66) se deve, por um lado, à insistente presença de políticas autoritárias em nossa formação histórico-cultural e, por outro, à ausência de um processo formativo que propicie um comportamento participativo. Assim, embora os direitos humanos sejam expressão das lutas e da correlação de forças, não avançaremos na sua prática apenas por lei ou por decreto, mas através do exercício ativo da cidadania pelos sujeitos, o que justificaria, de modo plausível e consequente, um verdadeiro Estado Democrático de Direito (PEREIRA, 2018).
De modo que a ênfase atribuída ao ato educativo para a construção de uma cultura dos direitos humanos, sobretudo do ponto de vista normativo, não é casual: sendo a escola um espaço formativo, desempenha um papel fundamental para ensejar uma revisão dos valores e das práticas sociais. Assim, não obstante as relações sociais na escola tendam à reprodução do autoritarismo e de atitudes segregatórias e excludentes (GROPPA AQUINO, 2003), é inegável que a instituição escolar também pode se constituir como um espaço privilegiado para a reprodução ou a ruptura com essa prática (PEREIRA, 2018).
Por essa razão, o estabelecimento de uma outra concepção de justiça: intersubjetiva, mediada pelo diálogo emerge, em âmbito escolar, como uma revisão da punição e do julgamento baseados na autoridade e na regra, e reivindica, para sua realização, não só a reorientação da gestão de conflitos, conduzida por uma preocupação ética, mas também a possibilidade, para os envolvidos, de posicionar-se face ao conflito instaurado, responsabilizar-se ativamente e refletir sobre as consequências daí resultantes (MELO, 2006).
Somente a reapropriação do dissídio, para implicar-se em sua resolução por meio da disposição em ponderar as razões alheias e em reconhecer sua prévia responsabilidade para com o outro, poderá ensejar essa mudança de paradigma da qual nos fala Melo (2006, p. 648) e que a distingue de um mero “reconhecimento de culpa”. Ou seja, nas técnicas restaurativas há sujeitos debatendo o conflito e analisando suas repercussões, e não “infratores e vítimas” (p. 648).
De modo que o consenso que se pretende produzir por meio da justiça restaurativa não deve ser fabricado em condições de desigualdade, nem conduzir à supressão dos desacordos: deve, pois, concentrar-se na promoção do respeito à alteridade, do protagonismo e da emancipação dos indivíduos no contexto educacional, por meio do diálogo, contendo também um profundo teor formativo.
Donde se percebe que, não obstante a introdução da justiça restaurativa no âmbito educacional seja particularmente fecunda para elaborar um projeto formativo engajado na formação de sujeitos aptos a exercer ativamente sua cidadania, sobretudo, no que concerne à resolução dos conflitos, ela se defronta com inúmeras ambiguidades neste lócus, pois, em sendo a escola uma instituição social, os problemas instalados na sociedade também se processam em seu interior e se manifestam cotidianamente sob as formas da violência e da exclusão, como se pode depreender do relato do professor João:
Então a justiça restaurativa, ela veio mesmo para a gente estar aplicando, seria mais um instrumento para a gente estar aplicando direitos humanos dentro da escola. Que não é fácil. [...] Mas o que nós observamos, por ‘N’ motivos aí, são violações de direitos humanos, é um em cima do outro. E isso nós presenciamos, nós convivemos com isso, às vezes não sei se é por falta de conhecimento de algumas coisas, nós ficamos naquela mesmice aceitando tudo o que vai acontecendo com essa garotada e para a gente torna-se um negócio animal...
Assim, ao considerarmos a posição de quem fala (se diretores, professores ou alunos), é possível afirmar que a escola produz relações caracterizadas pela assimetria e, tal como praticadas neste ambiente, abrem espaço para que os conflitos se instaurem, sob a forma de “indisciplina, agressividade, revanchismo, apatia e problemas de relacionamento interpessoal” (GROPPA AQUINO, 2003, p. 378). É o que podemos observar nas palavras do professor Raimundo, ao rememorar sua chegada na escola na qual atualmente está atuando:
Então, quando eu entrei aqui, todos os vidros das salas de aula, todos, todos quebrados. A gente foi conversando, foi falando, hoje não tem nenhum vidro quebrado. São coisas que a gente vai dosando, conversando, “por que que você fez isso?”. “Você analisou o que você fez?”. É dentro desse contexto que a gente trabalha. E a justiça restaurativa ajuda muito, sim, ajuda muito. Eu cheguei a fazer algumas vezes aqui. Com alguns alunos dá para você fazer, outros não dá. Tem uns que não aceitam nada, é difícil. Em tudo. Se ele faz uma coisa errada, se você pune em alguma coisa ele, ele não aceita essa punição, ele acha que não merece nada, entendeu? Então, é preciso ainda conscientizar esse aluno de que o que ele fez é errado e que é preciso ser feito alguma coisa para que ele entenda que não é dessa forma que tem que ser. Em uma dessa, cabe a quem? Ao mediador. O mediador faz essa ligação entre escola, família/professor, mediador/professor ou direção da escola. Mas eu acho que a justiça restaurativa em si, é muito boa. Como eu já venho trabalhando nessa linha, como eu disse que eu sofri lá com a diretora, que eu via, eu ficava do lado dela com medo dela tomar um soco. Então eu falava, ela ouvia o que eu falava. Eu que recebia os pais para conversar. Então eu fui aprendendo com aquilo, a ver os dois lados da moeda. O lado bruto, a maneira bruta de tratar, bem grosseira, e a maneira educada, que eu teria que mudar. Foi isso que eu falei para a coordenadora do curso, “muitas dessas coisas que tem na justiça restaurativa eu trabalho na escola”. E realmente eu tenho trabalhado isso. O aluno que chega aqui com raiva, nervoso, querendo brigar, querendo até se cortar de nervoso, porque aconteceu alguma coisa, eu acalmo, dou água, converso, “calma, senta aí, vamos conversar. O quê que está acontecendo?”. Então a gente faz todo esse papel já. Meio que sem saber o que era justiça restaurativa.
Houve consenso entre os professores sobre os benefícios da justiça restaurativa em âmbito escolar, sobretudo, no que diz respeito à introdução do diálogo; entretanto, uma parcela significativa deles conclui que este é um trabalho que vêm realizando solitariamente, ou por falta de tempo e espaço para envolver todo o coletivo escolar na proposta, ou porque não há interesse por parte do coletivo em se envolver. Além do mais, como bem identifica o professor supramencionado, localizam excesso de autoridade na atuação dos gestores e também por parte de alguns professores na escola e, talvez por esta razão, não acreditem que as relações escolares sejam pautadas pela imparcialidade, o que faz com que a intervenção ao conflito geralmente ocorra por meio da imposição, da obediência, ou da confissão.
Embora um quantitativo reduzido de professores tenha apresentado percepções favoráveis aos direitos humanos, sua ausência em âmbito escolar é atribuída à formação técnica e despolitizada que vem sendo ofertada nas últimas décadas; na sociedade, associaram as violações a esses direitos ao seu desconhecimento e à falta de educação política.
O principal ganho qualitativo atribuído à formação “Cultura restaurativa e suas práticas” foi a introdução do diálogo em sua prática pedagógica, embora um quantitativo expressivo tenha informado já possuir uma predisposição natural à escuta e que a sua participação no curso apenas os municiou com as técnicas adequadas para mediação dos conflitos14, como se pode observar na narrativa da professora Amanda:
Justiça para mim é você chegar para fulano e falar assim, “ó, você está errada, o certo é isso”. É ouvir, é entender. É igual eu faço com as minhas crianças, eu chamo, eu ouço, eu quero saber o que está realmente acontecendo, aí lá no fundo você vai ver que tem alguma coisa que ele está nervoso, ele está furioso, ele está bravo... Então, para mim, pode fazer o que for que eu vou dizer, “senta aqui, nós vamos conversar”, é ser justo, é entender.
Ainda que em suas expressões a justiça restaurativa tenha sido reduzida ao “vamos sentar e conversar”, ela não está desprovida do potencial transformador que poderia ensejar neste espaço, mas se constitui como um dado que evidencia os modos pelos quais os professores entrevistados negociaram os princípios da justiça restaurativa e dela se apropriaram, incorporando-a em suas práticas: são as formas através das quais buscaram resolver os problemas que se apresentaram em âmbito escolar, com seus próprios recursos e na especificidade concreta da sua relação com os alunos, revelando “outras possibilidades de se relacionar com os códigos, que não buscam os finais felizes para sempre, mas vive[m] a vida em sua potência de criação” (SCHULER, 2009, p. 196), na condição de “errantes”, como diria Duschatzky (2012, p. 92).
Duschatzky (2012, p. 93) define a errância como a habilidade de captar as ocasiões do cotidiano como favoráveis à introdução de novas perspectivas ao seu trabalho, não em fazer com que as coisas voltem ao normal, ao seu devido lugar. Assim, mesmo considerando que o espaço escolar não é isento, nem neutro, é possível afirmar que, mesmo dentro da lógica do controle, da judicialização, as resistências podem acontecer. Certamente não por meio de grandes revoluções, mas de microações que revelam a potência política da prática errante, da qual nos fala Duschatzky (2012, p. 114) e que conseguimos localizar na narrativa dos professores.
3 DELINEANDO OS RESULTADOS ENCONTRADOS E ALGUMAS CONCLUSÕES
Embora os direitos humanos sejam fruto das reivindicações vocalizadas pelos movimentos sociais e por setores da sociedade civil organizada, eles coexistem em meio às forças reacionárias que, contrárias à ampliação e à efetivação desses direitos, permanecem poderosas em um contexto marcado pelo autoritarismo, pelo paternalismo e pelo patrimonialismo (VENTURI, 2010). De modo que seu futuro entre nós é permeado de incertezas, sobretudo, ao verificarmos que vêm sendo implementadas reformas que colocam em xeque direitos assegurados pela Constituição Federal (BRASIL, 1988). Essas perplexidades se verificam na execução dos direitos humanos e da justiça no Brasil, e, em sendo a escola uma instituição social, terminam por reproduzir-se nesses espaços.
Muito embora consideremos que a ausência de uma esfera pública (no sentido arendtiano do termo) e de uma relação conturbada com os direitos humanos no Brasil contemporâneo terminem por comprometer a realização de ações orientadas à justiça restaurativa, especialmente na prática escolar, espaço no qual consideramos que elas deveriam ser ensinadas e professadas, acreditamos ser importante destacar que, em nossas entrevistas, os professores revelaram possuir, apesar do descaso do Estado e das inúmeras dificuldades, uma disposição ativa para transformar o que se apresenta como adversidade no contexto educacional; são os “professores errantes”, aqueles que, em tempos difíceis como os nossos, estão à “caça de signos” (DUSCHATZKY, 2012, p. 92), saem de si mesmos e, atentos às circunstâncias, abrem-se ao outro, às experiências, executam projetos alternativos, ainda que sejam ações muito pontuais e que revelem a ausência das políticas públicas que deveriam convertê-las em atos contínuos.
Assim, as microações que daí decorrem não devem ser consideradas pequenas porque sua ocorrência se dá na especificidade de uma escola, no contexto de uma sala de aula ou de uma experiência idealizada por um professor; antes, pois, a autora nelas identifica a potência da diversidade das práticas, às quais atribui “força produtora de valor social” 15. Por essa razão, defende que a potência política da prática errante seja reconhecida e incorporada às políticas públicas, com o objetivo de fortalecer a agência das experiências educativas.
Não obstante as dificuldades relacionadas à sua execução, ainda assim acreditamos que o reposicionamento da prática da justiça restaurativa em âmbito educacional tornaria possível não apenas a resolução dos conflitos e a prevenção da violência no interior das unidades escolares, mas poderia ensejar modos de conviver mais potentes, abertos ao diálogo, dispostos à experiência do encontro com a alteridade e alguma permeabilidade à mudança que encontros desse tipo possam acarretar, constituindo-se, portanto, como um espaço decisivo para construção de relacionamentos democráticos (GROPPA AQUINO, 2013; DUSCHATZKY, 2012; PEREIRA, 2018).