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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.3 Campinas July/Sept 2019  Epub Sep 23, 2019

https://doi.org/10.20396/etd.v21i3.8654689 

DOSSIÊ

ECONOMIA, POLÍTICA E EDUCAÇÃO: A AULA COMO UM ESPAÇO MENOR DE ABERTURA AO MUNDO

ECONOMY, POLITICS AND EDUCATION: SCHOOL CLASSES AS SMALL SPACES OF OPENNESS TO THE WORLD

ECONOMÍA, POLÍTICA Y EDUCACIÓN: CLASES COMO UN ESPACIO DE ABERTURA PARA EL MUNDO

Viviane Klaus1  2 

1Doutora em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. Professora e Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Mestrado Profissional em Gestão Educacional - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). São Leopoldo, RS - Brasil. E-mail: viviklaus@unisinos.br

2Doutoranda em Educação; Mestre em Gestão Educacional - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). São Leopoldo, RS - Brasil. Professora da Rede pública municipal de Porto Alegre. Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: mcampesato@yahoo.com.br


RESUMO

A partir de uma breve contextualização do cenário político contemporâneo, que experimenta crescentes movimentos de cunho conservador, este ensaio teórico busca discutir a política em suas diferentes dimensões, indo além da razão de Estado e das funções de governo em suas articulações com a Educação. Para tal, realiza uma contextualização histórica do par economia e política, apoiando-se principalmente no pensamento de Arendt, em duas de suas obras: “A condição humana” (2008) e “O que é política?” (2007). O ensaio ainda aborda as relações entre economia, política e formas de governamento da população - chave importante de análise da sociedade contemporânea e dos desafios que se colocam ao campo educacional. Por fim, a partir do conceito de “menor”, de Deleuze e Guattari, reflete-se sobre a aula como possibilidade de abertura ao mundo, como um espaço democrático, político, de acolhimento às novas gerações e de produção de novas formas de existência.

PALAVRAS-CHAVE: Educação; Economia; Política; Democracia; Aula

ABSTRACT

From a brief contextualization of the contemporary political scenario, which has been going through conservative movements, this essay seeks to discuss politics in its different dimensions, going beyond the reason of State and the functions of government in its articulations with Education. To this end, it provides a historical contextualization of economy and politics, based on Arendt's reflections, namely on these works: “The human condition” (2008) and “What is politics?” (2007). In addition, this essay approaches some relations between economy, politics and forms of governance of the population - which is an important key for analyzing contemporary society and the challenges concerning the educational field. Finally, from Deleuze and Guattari's concept of “minor”, this paper reflects on school classes as a possibility of openness to the world, as democratic, political, and welcoming places to the new generations, and as contexts of production of new forms of existence.

KEYWORDS: Education; Economy; Politics; Democracy; School classes

RESUMEN

A partir de una breve contextualización del escenario político contemporáneo, que ha pasado por crecientes movimientos conservadores, este ensayo teórico busca discutir la política en sus diversas dimensiones, yendo más allá de la razón del Estado y de las funciones del gobierno en sus articulaciones con la Educación. Con tal finalidad, se hace una contextualización histórica de la economía y de la política, apoyándose en el pensamiento de Arendt, más precisamente en dos de sus obras: “La condición humana” (2008) y “¿Qué es política?” (2007). El ensayo también aborda las relaciones entre la economía, la política y las formas de gobernamiento de la población - llave importante de análisis de la sociedad contemporánea y de los desafíos del campo educativo. Finalmente, a partir del concepto de "menor", propuesto por Deleuze y Guattari, se refleja acerca de la clase como posibilidad de abrirse al mundo, como espacio democrático, político, de acogida a las nuevas generaciones y de producción de nuevas formas de existencia.

PALAVRAS-CLAVE: Educación; Economía; Política; Democracia; Clase

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

Crescentes movimentos de cunho conservador estão a ocupar os espaços societários do último decênio. Nas agendas políticas recentes, a discursividade oscilante entre o nacionalismo, a propriedade privada e o papel do Estado reverbera com intensa adesão daqueles que veem com esperança a resolução de problemas que assolam o mundo contemporâneo. Manchetes publicadas em diversos veículos de comunicação no início do ano de 2017 anunciam, como resultado de pesquisa realizada pelo IBOPE Inteligência, que o brasileiro está mais conservador. Questões como legalização do aborto, redução da maioridade penal, prisão perpétua, pena de morte e casamento entre pessoas do mesmo sexo recebem destaque dentre os temas polêmicos revelados pela pesquisa, que entrevistou, em 2002, pessoas de 141 municípios brasileiros (IBOPE Inteligência, 2017, s/p.). Em âmbito mundial, a vitória eleitoral de alguns candidatos autoproclamados de ‘direita’ demonstra certa tendência política em curso - tendência essa que reforça o esquecimento das conquistas sociais, dos direitos humanos e da democracia.

No cenário brasileiro, a polarização manifesta nos acontecimentos que antecederam e sucederam a campanha eleitoral de 2018 parece não nos deixar dúvidas de que este é um momento delicado. O racismo, a homofobia e o preconceito figuram no epicentro discursivo daqueles que clamam para si a detenção da verdade e da moral. Assistimos, estupefatos, ao extermínio de pessoas e de ideias. Vivenciamos ameaças a vidas e projetos. A educação, neste contexto, vê-se atacada com propostas como a da ‘Escola sem Partido’, em que se busca retirar da vida escolar o exercício do pensamento, a possibilidade de escolha e a liberdade pedagógica. A pergunta ‘como resistir?’, seguida de outras por ela suscitadas, como ‘resistir a quê?’ e ‘ao lado de quem?’, parece-nos assaz instigante para pensarmos no importante papel da educação, na produção de outros modos de subjetivação e em outras possibilidades de existência.

Trazer a política ao debate educacional constitui-se como uma estratégia importante de resistência neste momento, em que se abstrai o caráter público da polis: “politizar nosso presente, nossas ações e nossas condutas é tomá-los como objeto de uma problematização constante e paciente; é, sobretudo, problematizar os pressupostos com os quais pensamos e operamos, em nossa vida cotidiana”. (GADELHA, 2012, p. 80).

Discutir a dimensão política da educação, em tempos de sua crescente marquetização e perda de controle democrático sobre as escolas (BIESTA, 2013), possibilita-nos retomar a sua responsabilidade, “que não é apenas uma responsabilidade pela vinda ao mundo de seres únicos e singulares; é também uma responsabilidade por um mundo de pluralidade e diferença”. (BIESTA, 2013, p. 156). Conforme apontam Dalbosco e Doro (2019, p. 64), “não é mais possível sustentar filosoficamente a noção de essência pronta, como princípio de fundamentação última, e derivar dela a ideia de educação”. Para os autores, há uma mudança significativa na concepção acerca do humano, uma “reviravolta” esboçada na Modernidade, que “ganha contornos definidos com o pragmatismo de John Dewey e sua noção de plasticidade humana”. (DALBOSCO; DORO, 2019, p. 64).

Biesta (2013) apresenta três respostas à questão sobre o que constitui o sujeito democrático: a concepção individualista proposta por Kant, a concepção social de Dewey e a concepção política de Arendt. Concordamos com o autor quando diz que “a concepção política da subjetividade democrática apresentada por Arendt torna possível ir além da ideia de educação como produtora e salvaguarda da democracia”. (BIESTA, 2013, p. 167). A vida ativa na polis, o novo simbolizado a partir dos recém-chegados que possibilitam novos inícios, bem como a esfera pública da polis que preexiste aos recém-chegados e que pressupõe a coexistência com outros diferentes de nós, ajudam-nos a pensar a educação e o sujeito democrático. E é a partir dessa renovação de mundo que reunimos nossos estudos, no intuito de promover uma discussão acerca da política, da economia, da educação3 e da aula como um espaço potente de produção de subjetividades. Para tal, o ensaio teórico foi dividido em duas seções, que discutem as temáticas de forma subsequente e articulada.

Na primeira seção, mobilizadas pela complexa trama de relações que constitui as estratégias de governamento liberal-avançadas, que alteram as relações entre economia, política e sociedade, realizamos uma contextualização histórica do par economia e política, apoiadas principalmente no pensamento de Arendt, em duas de suas obras: “A condição humana” (2008) e “O que é política” (2007). As discussões realizadas são fundamentais, pois nos permitem pensar o sujeito, a economia, a política e as noções de liberdade, público, igualdade e diferença - temas centrais nas discussões educacionais -, indo além da tradição socrático-platônica. Da mesma forma, permitem que compreendamos o que essa tradição representa para os entendimentos posteriores da política - vinculação moderna da Política à Razão de Estado, separação entre pensamento e ação e entre governantes e governados -, uma vez que Platão foi o primeiro a esboçar a construção do corpo político, inspirando utopias posteriores. A comunidade cristã, por sua vez, imprimiu um caráter apolítico e não público a seus membros, ao definir que eles deveriam manter entre si a relação que têm os irmãos de uma mesma família. Na Contemporaneidade, percebemos alguns deslocamentos, transformações e inversões provocados pelo neoliberalismo nas relações entre economia, política e sociedade. Segundo Miller e Rose (2012), é no contexto de estratégias de governamento liberal-avançadas que: dá-se a emergência de novas formas de intervir nas relações entre governo da vida econômica e autoadministração do indivíduo, bem como a separação entre social e econômico, de modo que o primeiro deve ser fragmentado e o segundo não deve ser administrado em nome do “todo social”; o termo ‘política’ precisa ser objeto de análise, pois não pode mais ser utilizado como se seu sentido fosse autoevidente; a autonomia torna-se um termo-chave do poder político, que passa a ser exercido a partir de uma profusão de alianças móveis; e o Estado é deslocado para dentro de uma analítica de problemas de administração. Nesse sentido, Narodowski (1999, p. 103) aponta uma diferença significativa “entre o tipo de autonomia escolar que teoricamente se desenvolvia na década de setenta e oitenta do século XX e os processos de descentralização e autonomização que se observam na atualidade”.

Na segunda seção, discutimos a potência da aula como espaço de atenção e de abertura ao mundo. A partir do conceito de “menor”, cunhado por Deleuze e Guattari, procuramos apontar alguns aspectos possíveis para pensarmos a aula como um espaço político, democrático e de resistência - um espaço de voz e do silêncio.

2 SOBRE ECONOMIA, POLÍTICA E GOVERNAMENTO DA POPULAÇÃO

[...] Uma interpretação “científica” do mundo, tal como o entendeis, meus senhores, poderá ser, portanto, uma das mais estúpidas entre todas as que são possíveis [...] Um mundo essencialmente mecânico haveria de ser um mundo essencialmente desprovido de sentido! Se medíssemos o “valor” de uma música pelo que dela se pode calcular e contar, pelo que se pode traduzir em números... quão absurda haveria de ser uma avaliação “científica” da música! Que se teria realmente apanhado, compreendido, conhecido de uma melodia assim avaliada? Nada, literalmente nada, daquilo que faz dela literalmente uma “música”!... (NIETZSCHE, 2003, p. 221-222).

Neste ensaio, procuramos entender a política em suas diferentes dimensões: indo além da razão de Estado, das funções de governo; e a partir de duas governamentalidades, como diz Foucault (2008a) - a governamentalidade dos políticos (disciplinar, da razão de Estado) e a governamentalidade dos economistas (liberalismo e neoliberalismo). Para compreender o que alguns autores chamam de despolitização, ousamos trilhar o caminho inverso, ou seja, perguntando-nos: o que se entende por politização? O que significa ser politizado? Dessa forma, abordamos alguns dos significados atribuídos à política em diferentes momentos da história.

Para iniciar a discussão proposta por Arendt a respeito da política, partimos da divisão que ela faz entre labor, trabalho e ação. Tal divisão percorre toda a fundamentação proposta pela autora na sua obra intitulada “A condição humana”. Arendt (2008) faz uma diferenciação entre condição humana e natureza humana (essência humana). Segundo essa autora (2008, p. 17), tudo “o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana [...] A objetividade do mundo - o seu caráter de coisa ou de objeto - e a condição humana complementam-se uma à outra”. Com a expressão vita activa, Arendt designa estas três atividades humanas: o labor, o trabalho e a ação. Tal diferenciação é fundamental à compreensão do conceito de política, especialmente para os gregos.

O labor é uma atividade que diz respeito ao processo biológico do corpo humano. Era vinculado à necessidade, considerada um fenômeno pré-político característico da organização no lar. Nesse âmbito, os gregos faziam uma diferenciação entre o espaço constituído pela casa (oikia) e pela família e o espaço da polis, que seria uma espécie de segunda vida, o lugar do bios politikos. A instituição da escravidão, na Antiguidade, não tinha como objetivo obter mão de obra barata, nem era um instrumento de exploração para fins de lucro, mas uma tentativa de excluir o labor das condições da vida humana (ARENDT, 2008). A liberdade era conquistada mediante a tentativa de libertação da necessidade, à qual os escravos estavam totalmente sujeitos. Diante disso, a autora estabelece uma diferenciação entre o trabalho e o labor, argumentando que, enquanto no primeiro o processo encerra “quando o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo comum das coisas, o processo do labor move-se sempre o mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse organismo”. (ARENDT, 2008, p. 109).

O trabalho, portanto, corresponde ao artificialismo da existência humana. Assim, a privatividade que se fez necessária na Modernidade, como um direito supremo de cada membro da sociedade, nada mais era que a garantia de isolamento, pois sem esse isolamento nenhum trabalho poderia ser produzido. (ARENDT, 2008). É por meio da fabricação, complementa Arendt (2008), que o mundo é construído. Porém, muitas vezes, esse mundo torna-se tão sem valor quanto o material empregado, ou seja, permite-se que os critérios que presidiram o nascimento do mundo prevaleçam após seu estabelecimento.

Platão logo percebeu que, quando o homem é a medida de todas as coisas de uso, o mundo passa a ser correlacionado ao homem-usuário e fabricante de instrumentos, que vê em tudo um meio para um fim - e não ao homem orador, pensador, ou homem da ação. De acordo com Arendt (2008, p. 172), o acerto “desta observação reside no fato de que a era moderna estava tão decidida a excluir de sua esfera pública o homem político, ou seja, o homem que fala e age, quanto a Antiguidade estava interessada em excluir o Homo faber”.

Importa dizer que essa ideia da fabricação de um mundo - papel das metanarrativas - por meio do trabalho tem relação direta com a Modernidade. Na Contemporaneidade, o trabalho e a fabricação de mundos ganham novos contornos. Diante disso, Candido (2008, s/p.) aponta a modificação de “um trabalho industrial, com sua subjetividade reificada, o homem-coisa, para um trabalho imaterial, no qual as forças subjetivas e criativas estão convocadas a atuarem no âmago do processo produtivo, tornando-se elas mesmas capitais de primeira grandeza”. Fazemos essas considerações para demonstrar que vários temas são ressignificados no decorrer do tempo. Muito embora nosso interesse aqui não seja o de discutir a atividade humana do trabalho, julgamos importante realçar ao leitor que, quando Arendt aborda essa atividade, ela se refere ao trabalho industrial e à fabricação como elementos típicos da sociedade moderna. Do mesmo modo, a autora parte da diferença entre labor, trabalho e ação para falar do lugar ocupado pela política entre os gregos, bem como dos novos contornos que a política ganha na Modernidade. Nessa análise moderna, o conceito de economia é fundamental, como se perceberá mais adiante.

Para que a organização desta seção não se perca em meio aos fios complementares, retomamos brevemente duas das atividades humanas abordadas anteriormente. A primeira delas, o labor, diz respeito à necessidade, que era considerada um fenômeno pré-político. A segunda delas, o trabalho, tem relação direta com a fabricação de um mundo. Já a terceira atividade humana descrita por Arendt (2008) é a ação, que é a única que se exerce diretamente entre os homens (condição humana da pluralidade). Apesar de todos os aspectos da condição humana terem relação com a política, Arendt destaca que a pluralidade é a condição principal. A esfera pública da polis era o lugar por excelência da ação, que não é possível no isolamento. A ação e o discurso necessitam sempre da circunvizinhança de outros. A esfera política, para os gregos, era a esfera da igualdade; significava viver entre pares e lidar com eles, pressupondo a existência de desiguais (ARENDT, 2008). Nesse contexto, o termo público denota dois fenômenos correlatos: significa que o que vem a público pode ser ouvido e visto por todos; e significa o próprio mundo, ou seja, o mundo comum que nos reúne na companhia uns dos outros, de forma que estar “isolado é estar privado da capacidade de agir” (ARENDT, 2008 p. 201).

Na Grécia, a ação e a política eram experiências fundamentais, havendo uma diferenciação entre o que era da ordem do político (ação/discurso) e o que era da ordem da necessidade (econômico/doméstico). Pode-se dizer que um dos traços essenciais do pensamento grego, desde o começo, é a não separação entre falar e agir, uma vez que o próprio ato da fala era compreendido a priori como uma espécie de ação.

Ao contrário do que se pensa, Platão e Aristóteles, ao promoverem a legislação e a construção (fundação) de cidades ao mais alto nível da vida política - o que mais tarde viria a ser o gênio político de Roma -, não ampliaram o campo das experiências gregas. Para os socráticos, a legislação e o voto eram as mais legítimas atividades políticas, pois permitiam que os homens agissem como artesãos, ou seja, o resultado da ação (práxis) era mais tangível, não era tão incerto (ARENDT, 2008).

Para os gregos, as leis, como os muros em redor da cidade, não eram produto da ação, mas da fabricação. Antes que os homens começassem a agir, era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual se pudessem exercer todas as ações subsequentes; o espaço era a esfera pública da polis e a estrutura era a sua lei; legislador e arquiteto pertenciam à mesma categoria. Mas essas entidades tangíveis não eram, em si, o conteúdo da política (a polis não era Atenas, e sim os atenienses), nem inspiravam a mesma lealdade que vemos no patriotismo romano (ARENDT, 2008, p. 207).

Segundo Arendt (2008), Platão separa os dois modos de ação que, para os gregos, eram correlatos: archein e prattein (começar e realizar). O iniciador passa a ser o governante, que governa aqueles que são capazes de executar. O que caracteriza a política, para Platão, é a ordem de mandar, e a linha divisória entre pensamento e ação torna-se o fosso que separa governantes de governados. Ele propôs uma verdadeira revolução na polis, pela tentativa de extensão doméstica para todo o tecido público, de forma que os cidadãos constituíssem uma grande família. Assim, Platão passou a ter um papel fundamental na compreensão posterior da política. A sua teorização tinha como finalidade terminar com a política no sentido grego (ação/discurso). Ele acreditava que era preciso fugir da fragilidade dos negócios humanos e buscar a ordem em todas as coisas (um mundo idealizado, mesmo que se realizasse apenas no nível das ideias). Mediante a sua teoria dos dois mundos - o mundo das ideias, inteligível, e o mundo do sensível -, Platão propôs uma separação entre o pensamento (teoria) e a ação (prática).

Ao discutir a teoria dos dois mundos de Platão, Veiga-Neto (2003) explica que, durante a Idade Média, o platonismo foi combinado com o pensamento cristão, que partia do pressuposto de que a vida terrena era imperfeita e se constituía numa preparação para a vida eterna, a qual seria vivida num outro mundo e, a princípio, seria perfeita. Veiga-Neto (2003, p. 2) diz ainda que:

Com o advento da Ciência moderna, a Doutrina dos Dois Mundos foi logo incorporada na forma de uma racionalidade [...] Com isso, o dualismo platônico foi contrabandeado para a Modernidade, manifesto pela noção de que as teorias estão no mundo das ideias - devendo ser, portanto, perfeitas, rigorosas, abrangentes -, enquanto que as práticas estão neste nosso mundo, são coisas deste mundo concreto e imperfeito.

Platão, que foi o primeiro a esboçar a construção do corpo político, inspirou utopias posteriores. O conceito de ação passou a ser interpretado no nível da fabricação. Além disso, a noção de que outro mundo - totalmente ordenado, limpo, verdadeiro, idealizado - é possível foi uma das molas propulsoras do pensamento moderno. A perfeição seria encontrada no nível das ideias, e a imperfeição, no mundo das práticas.

Percorremos esse caminho para mostrar que os entendimentos sobre política se deslocam e ganham contornos muito diferentes daqueles constituídos pelos gregos. Apesar de a participação política na Grécia ficar restrita a uma pequena parcela de homens, a forma de organização na polis - organização da esfera pública, do comum - e os entendimentos de práxis (ação) e de liberdade são fundamentais para a definição e a vitalidade que o termo política ganhou.

Ressaltamos que não temos a intenção de fazer aqui um paralelo entre a política para os gregos e a política na Idade Média, na Modernidade e na Contemporaneidade. Pretendemos apenas mostrar como o significado da política na Modernidade foi se restringindo, aos poucos, às ações de governo. Nesse sentido, Fonseca (2006), referindo-se a um debate do qual participou sobre o público e o privado na cultura brasileira, diz que a frase que foi proposta para a discussão, ‘O Brasil não tem povo, só público’, remete-nos à ideia de um esvaziamento da dimensão pública em nosso País - no lugar de um povo, formaríamos um público de espectadores da política.

Essa questão também aparece no manifesto redigido por Foucault em 1981, “Em face dos governos, os direitos do Homem”. Nesse manifesto, Foucault diz que é preciso recusar a separação das tarefas: aos governos, cabe refletir e agir; aos indivíduos, cabe indignar-se e falar. A frase proposta para a discussão no debate e o manifesto de Foucault apresentam um dos traços fundamentais da racionalidade política da arte de governar neoliberal: o afastamento dos indivíduos das esferas de decisão política e o esvaziamento do sentido da dimensão pública (FONSECA, 2006). Percebem-se aí os efeitos da separação platônica entre pensamento e ação.

Importa ainda salientar que os gregos não vinculavam a política ao governo. Isso não quer dizer que os gregos negavam a sua importância; mas eles comparavam a relação entre governo e governado, entre comando e obediência, à relação entre senhor e escravo, o que excluía qualquer possibilidade de ação (ARENDT, 2008).

Voltemos agora à tentativa de Platão de estender a vida doméstica a todo o tecido público, de maneira que todos os cidadãos formassem uma grande família - resultando na eliminação do caráter privado da vida doméstica e no decorrente enfraquecimento do espaço público. Para os antigos, o essencial era afastar-se da família e da casa e experimentar a liberdade, arriscar a vida no espaço da polis entre iguais. Nesse contexto, é importante situar os entendimentos de liberdade e de igualdade, que são tão mencionados até hoje, mas que tinham significados diferentes na Antiguidade.

A coisa política, para os gregos, estava centrada em torno da liberdade, que significava, negativamente, não dominar e não ser dominado; e, positivamente, um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada um se move entre iguais. Nós vinculamos à igualdade o conceito de justiça, e não o de liberdade. Geralmente, interpretamos a isonomia (Isonomie) como igualdade perante a lei. Porém, para os gregos, igualdade não significava que todos eram iguais perante a lei, nem que a lei era igual para todos; mas tinha o sentido de liberdade de falar, de modo que todos tinham o mesmo direito à atividade política (ARENDT, 2007). O espaço público seria um espaço de visibilidade que permitiria iluminar os acontecimentos humanos, o espaço de um mundo comum que uniria ou separaria os indivíduos, mantendo a distância entre eles - condição fundamental da pluralidade (ORTEGA, 2018). De acordo com Bauman (2000, p. 102-103),

O que se esperava ocorresse na ágora teve um sabor decididamente pedagógico/esclarecedor/penetrante: tratava-se primordialmente de um espaço em que os gumes afiados de interesses incompatíveis se embotavam, pressões contraditórias se equilibravam, sonhos e desejos se desbastavam e comprimiam para não colidir uns com os outros e formar um todo harmonioso, esfriando as áreas conflagradas para não ocorrer uma explosão. O “público” e o “privado” se encontravam na ágora em situação desigual - como guia e guiado, respectivamente, professor e aluno, pai e filho. O “público” era o sujeito primordial da ação, e o “privado”, o objeto dessa ação.

A distância entre os indivíduos, enquanto condição fundamental da pluralidade, é discutida por Ortega (2018) a partir do conceito de amizade. Ele diz que a amizade, entendida enquanto uma experiência que necessita da distância, da assimetria, da irreciprocidade e da divisão, substitui o amor ao próximo pelo amor ao distante. Essa era uma experiência fundamental na polis grega. A igualdade não era vinculada ao amor fraterno, à irmandade, à justiça, como será posteriormente. A igualdade tinha relação direta com a liberdade. O pertencimento aos poucos iguais (homoioi) significava ter a permissão de viver entre os pares; porém, a polis era permeada de um espírito agonístico, pois cada homem tinha de se distinguir constantemente de todos os outros.

Segundo Ortega (2018), desde Platão e Aristóteles até Carl Schmidt, o amigo é considerado um irmão. As relações que eram específicas ao espaço da casa (oikia) estendem-se a todo o tecido social. Esse abismo entre o privado e o público manteve-se durante a Idade Média, apesar de ter perdido muito da sua importância e mudado de localização. Com o advento do cristianismo, o caráter privativo da privatividade perdeu sua força e quase se extinguiu. A moralidade cristã insistiu que cada um deve cuidar dos seus afazeres e que a responsabilidade política constitui um ônus, aceito exclusivamente em prol da salvação daqueles que ela liberta da preocupação com os negócios públicos. Assim, a comunidade cristã imprimiu um caráter apolítico e não público a seus membros, ao definir que eles deveriam manter entre si a relação que têm os irmãos de uma mesma família. (ARENDT, 2008).

A noção de fraternidade, ou seja, “parentesco de irmãos; amor ao próximo; harmonia, concórdia” (FERREIRA, 2008, p. 418), lança um significado totalmente diferente ao termo igualdade, que passa a ser entendido como proximidade. A fraternidade e o amor são formas de suprimir a distância entre os homens, transformando a diversidade em singularidade e anulando a pluralidade, pois, na condição de irmãos, somos todos iguais (ORTEGA, 2018).

Pode-se dizer que o espaço público, para os cristãos, era insuportável por ser um espaço de visibilidade. Para atingir a salvação e o ideal de santidade, era preciso agir em segredo, porque o ser-visto e o ser-ouvido geram o brilho e a luz que fazem com que a santidade se torne hipocrisia. O amante da bondade não é um homem solitário - falta-lhe, sobretudo, a companhia de si próprio -, mas isolado, pois, apesar de conviver com os outros, deve ocultar-se deles e negar a região pública, onde todos são vistos e ouvidos por outros. Ou seja, Deus é a única testemunha admissível das boas obras (ARENDT, 2008).

Dentro dessa lógica cristã, vemos operar o poder pastoral, que é individualizante e totalizante. O poder pastoral não é de tipo político, uma vez que este último consistiria no problema da relação entre o um e a multidão no quadro da cidade (FOUCAULT, 2008a). No entanto, esse tipo de poder tem como foco a vida dos indivíduos e constitui o prelúdio do que Foucault chamou de governamentalidade, tal como esta vai se desenvolver a partir do século XVI.

O poder pastoral foi introduzido no mundo ocidental por intermédio do cristianismo e não cessou de aperfeiçoar-se e transformar-se, desde o século II depois de Cristo até o século XVIII (FOUCAULT, 2008a). Ele deriva do Oriente, especialmente da sociedade hebraica, apesar de ser diferente na sua forma cristã. Nesse âmbito, vale pontuar que a ideia de um governo dos homens não é uma ideia grega, ou seja, a reflexão grega sobre a política exclui o tema do pastorado. Para Platão, por exemplo, a política começa quando a antiga constituição da humanidade desaparece, quando a era da divindade-pastor termina. “A arte do rei não é portanto, de maneira nenhuma, a arte do pastor, é a arte do tecelão, é uma arte que consiste em juntar as existências, eu cito, ‘numa comunidade que se baseia na concórdia e na amizade’” (FOUCAULT, 2008a, p. 194).

Se tomarmos aqui novamente os gregos, veremos que o cidadão não se deixava dirigir e não aceitava deixar-se dirigir. Sempre há, na obediência grega, um objeto, uma finalidade e um momento em que a relação de obediência é suspensa e até invertida. Essa suspensão e inversão podem ser compreendidas por meio dos ditos de Nietzsche (1995, p. 20): “retribui-se mal a um mestre, continuando-se sempre apenas aluno”; ou seja, é preciso seguir o próprio caminho, deixando o mestre para trás.

Assim, pode-se dizer que o poder pastoral é apolítico. Segundo Foucault (2008a, p. 219),

[...] o pastorado não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica. É uma coisa inteiramente diferente. É uma arte de governar os homens, e é por aí, creio, que devemos procurar a origem, o ponto de formação, de cristalização, o ponto embrionário dessa governamentalidade cuja entrada na política assinala, em fins do século XVI, séculos XVII-XVIII, o limiar do Estado Moderno.

De acordo com Foucault (2008a), no curso do século XVI, haverá uma intensificação do pastorado em suas dimensões espirituais e em suas extensões temporais, além de um desenvolvimento da condução dos homens fora da autoridade eclesiástica - emergência da razão de Estado e de novas formas de condução das condutas. Essa nova arte de governo deverá responder à seguinte pergunta:

[...] como introduzir a economia - isto é, a maneira de administrar corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas, como fazê-lo no seio de uma família, como pode fazê-lo um bom pai de família que sabe dirigir sua mulher, seus filhos, sua criadagem, que sabe fazer prosperar a fortuna da sua família, que sabe arranjar para ela as alianças que convêm -, como introduzir essa atenção, essa meticulosidade, esse tipo de relação do pai de família com sua família na gestão de um Estado? (FOUCAULT, 2008a, p. 126).

No século XVI, a palavra economia designava uma forma de governo. No século XVIII, com a emergência da população, ela passou a designar um nível de realidade e um campo de intervenção do governo; ou seja, a Economia-Política, que foi se gestando no interior da Razão Governamental, tornou-se uma possibilidade de limitação do governo estatal e passou a se ocupar com a questão da verdade, uma vez que o governo não saberia os limites da arte de governar. Dentro dessa nova lógica que se instaurou a partir do século XVIII, o governo não é considerado econômico, como sonhavam os fisiocratas, mas sim um governo de sociedade.

Por conseguinte, quanto mais se vai no sentido de um estado econômico, mais paradoxalmente o vínculo constitutivo da sociedade civil se desfaz e mais o homem é isolado pelo vínculo econômico que tem com todo o mundo e qualquer um. É essa, portanto, a segunda característica da sociedade civil: uma síntese espontânea no interior da qual o vínculo econômico encontra seu lugar, mas que o vínculo econômico ameaça sem parar (FOUCAULT, 2008b, p. 412).

Fazemos tais considerações para situar duas das questões que, segundo Arendt, modificaram completamente os significados dos termos público e privado. A primeira delas diz respeito à ascendência da sociedade, e a segunda, à emergência da Economia-Política; ou seja, trata-se de fenômenos que estão diretamente inter-relacionados. Com a ascendência da sociedade - elevação das atividades econômicas ao nível público -, todas as questões que eram pertinentes à esfera privada da família transformaram-se em interesse coletivo (ARENDT, 2008). A distinção entre o que era do âmbito público e o que era do âmbito privado pressupunha a existência da esfera da família (economia) e da polis (política) como entidades diferentes e separadas. Assim, ao longo da Modernidade, surgiu uma combinação do par economia e política.

Na atualidade, a noção de público foi despojada de sua agenda própria e de seus conteúdos diferenciais, ficando restrita a um aglomerado de problemas e preocupações privadas. (BAUMAN, 2000). Os extravasamentos públicos surgem em festivais de compaixão e solidariedade, em acontecimentos que suscitam o envolvimento das pessoas, em eclosões de agressão contra um inimigo público, em situações que sincronizam a alegria da maioria das pessoas (como é o caso de uma copa do mundo); ou seja, trata-se de situações pontuais que perdem força assim que as pessoas retomam as suas vidas rotineiras e voltam a acordar tão solitárias quanto antes (BAUMAN, 2000). O aumento da liberdade individual, ainda de acordo com Bauman - no caso do Homo œconomicus, que é objeto e sujeito do laissez-faire-, pode coincidir com o aumento da impotência coletiva, uma vez que as questões ventiladas em público são ansiedades e agonias pessoais que não se tornam públicas apenas por serem exibidas publicamente.

O projeto moderno precisa da liberdade para funcionar. Contudo, a liberdade aqui tem um significado totalmente diferente dos significados a ela atribuídos - seja pelos gregos, seja por Foucault, seja por Nietzsche. Nesse sentido, Arendt (2007, p. 102-103) pontua que:

Seu local de origem jamais está situado num interior do homem, não importa com que forma, em sua vontade ou em seu pensamento ou em seu sentir, mas sim no interespaço que só surge quando muitos se reúnem e que só pode existir enquanto ficarem juntos. Existia um espaço da liberdade e era livre aquele nele admitido, e não-livre aquele dele excluído. O direito de admissão e, portanto, de liberdade era um bem para o indivíduo que sobre o destino de sua vida não decidia de maneira diferente da riqueza e da saúde.

Se considerarmos os trabalhos de Nietzsche e Foucault, percebemos que a liberdade, para eles, também não está situada no interior de um homem ou vinculada a uma ontologia da subjetividade. Foucault não teve a intenção de construir ou fundamentar uma ideia de liberdade, pois esta, para ele, está ao lado do acontecimento, da experimentação, da ruptura, da criação (LARROSA, 2000). Nietzsche (1988, p. 97), por sua vez, afirma:

Pois, o que é a liberdade? Ter a vontade da responsabilidade pessoal. Manter com firmeza a distância que nos separa. Ser indiferente à fadiga, à dureza, à privação, e até à vida. Estar disposto a sacrificar homens à sua causa, sem a si mesmo se excluir. Liberdade significa que os instintos viris, os instintos que exultam com a guerra e a vitória, adquirem a preponderância sobre outros instintos, por exemplo, sobre o da “felicidade”.

Conforme comentamos anteriormente, uma espécie de bem comum podia ser pensada a partir da noção moderna de igualdade, que estava vinculada à ideia de justiça, dos sujeitos de direito, do amor ao próximo - e não do amor ao distante. Na Contemporaneidade, por sua vez, o que está em jogo, a partir de um processo de celebração das diferenças (diversidade), é o “hiperinvestimento do privado” (LIPOVETSKY, 1983, p. 41), ou seja, um processo de individualização exacerbada. Diante disso, como falar em igualdade (segurança) em um contexto de maximização da liberdade individual? Como resistir? Quais as contribuições do ato de educar na Contemporaneidade?

3 DO SILÊNCIO, DA DEMOCRACIA E DA POLÍTICA: A AULA COMO UM ESPAÇO MENOR DE ABERTURA AO MUNDO

Em “O prazer do texto”, publicado em 1973, Barthes afirmou que a escritura é “a ciência das fruições da linguagem”. Nessa mesma obra, o pensador diz que um texto escrito sem fruição é um texto “frígido”, um texto que “[...] tagarela. A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura”. (BARTHES, 2006, p. 9). As espumas de linguagem de Barthes, pois, atualizam-se no cenário político contemporâneo. De que maneira, então, podemos pensar a educação? Como a política pode ser concebida no âmbito educacional? Qual é o lugar da democracia nesse contexto? Que modos de existência estamos a formar? Qual é o papel da escola hoje? Que mundo estamos apresentando e legando às novas gerações? Qual é o nosso compromisso ético com as crianças e jovens e com aqueles que ainda não nasceram? Trata-se de perguntas que, de forma alguma, são retóricas, porque tivemos o privilégio, para o bem e para o mal - e não é esse binômio que está em jogo - de sermos apresentados ao mundo; assim, quando chegamos, ele já estava aqui, com seus paradoxos, problemas e potências.

Silêncio, portanto, pode ser concebido como uma forma de resistência - não um silêncio paralisante, mas uma ‘suspensão’; um silêncio de estudo, em que o estudante não se deixa ameaçar por nada: “nada o distrai. Nenhuma tarefa programada, nenhuma matéria, nenhuma obrigação se mistura a seu estudo. Por nada ter, não tem nem mesmo recordações, nem sequer projetos”, diz Larrosa (2006, p. 119). Trata-se de um silêncio que pode ser percebido como “abertura de um mundo fora de nós mesmos e o envolvimento da criança ou do jovem nesse mundo compartilhado” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 99): um mundo tornado público, artificialmente público. Nesse sentido, a escola não é algo natural; ela foi, como defendem Masschelein e Simons (2014, p. 105), inventada: “uma invenção histórica da polis grega e foi um ataque absoluto aos privilégios das elites de uma ordem arcaica. É uma intervenção democrática no sentido de que ‘cria’ tempo livre para todos, independentemente de antecedentes ou origem, e, por essas razões, instala a igualdade”. E, assim como foi inventada, pode ser “desinventada”, ou pensada de outras maneiras. “Com a escola”, dizem os professores belgas (2014, p. 105), “a sociedade oferece a oportunidade de um novo começo, uma renovação”. Essa renovação, pois, tem um forte componente político, visto que caberá às novas gerações a condução do mundo por vir.

O conceito de literatura menor, cunhado por Deleuze e Guattari na obra “Kafka: para uma literatura menor” e tomado de empréstimo por Gallo (2002) para pensar a educação, conforme discutimos na sequência, ajuda-nos a pensar na aula como um espaço menor de abertura ao mundo. Segundo os autores, esse tipo de literatura apresenta três características: “a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político, o agenciamento colectivo de enunciação. O mesmo será dizer que ‘menor’ já não qualifica certas literaturas, mas as condições revolucionárias de qualquer literatura no seio daquela a que se chama grande” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 41-42), ou canônica. No que se refere à primeira característica, a da desterritorialização, dizem Deleuze e Guattari (2003) que a literatura menor se dá a partir de uma língua construída por uma minoria no interior de uma língua maior, como era o caso dos judeus de Praga ou de Varsóvia, ao escreverem em alemão: produziam uma língua “desterritorializada, conveniente a estranhos usos menores”, concluem os autores (2003, p. 39). A segunda característica é a de que a política, diferentemente do que acontece nas literaturas maiores ou nas grandes literaturas, está atrelada aos problemas individuais, que, quando vistos de perto, tornam-se substanciais, visto que “uma outra história se agita no seu interior”. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 39). Por fim, a terceira característica da literatura menor diz respeito ao seu aspecto coletivo. Não há separação entre o talento individual e o coletivo, dadas as suas condições de possibilidade, de forma que “este estado de realidade do talento é, de facto, benéfico e permite conceber algo diferente de uma literatura dos mestres: o que o escritor diz sozinho já constitui uma acção comum, e o que diz ou faz, mesmo se os outros não estão de acordo, é necessariamente político”. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 40).

Sílvio Gallo (2002) toma de empréstimo o conceito “menor” dos pensadores franceses para pensar a educação. Uma educação menor, diz Gallo (2002, p. 173), é “um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas”. A sala de aula, pois, constitui-se como um espaço “a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização e de militância”. (GALLO, 2002, p. 173). É, pois, um espaço político. A aula, portanto, constitui-se como um espaço menor, desterritorializado, coletivo e político. Trata-se de um espaço em que a língua, embora se utilize dos padrões e das normas oficiais, ou maiores, apresenta características próprias do universo escolar; trata-se de uma língua, por conseguinte, artificial, menor - língua criada à semelhança da língua dos judeus de Praga e de Varsóvia. É uma artificialidade que, por um lado, tem de “dirigir-se à próxima geração como uma nova geração e, por outro, tentar transformar ‘objetos’ (algo do mundo) em matéria de estudo”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 202).

A aula, pensada como um espaço que se abre ao mundo, diz respeito à responsabilidade de acolher as novas gerações. Hannah Arendt, em seu conhecido texto originalmente publicado em 1958, intitulado “A crise na educação”, diz que “a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração”. (ARENDT, 2016, p. 235). Abrir, portanto, o mundo a partir da perspectiva arendtiana constitui-se como uma tarefa de dupla responsabilidade e compromisso: para com o mundo e para com as novas gerações. Tomar a aula como o lugar em que se apresenta o mundo significa trazer aquilo que foi construído pelas gerações anteriores, social e historicamente, para o tempo presente, não como forma de modelo ou ideal a ser seguido, mas como uma equipagem à vida, como um exercício do cuidado de si. Tal cuidado implica não somente o conhecimento de si, a partir da perspectiva socrático-platônica, mas também o “conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar de si é se munir dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade”. (FOUCAULT, 2004, p. 269).

É dessa ética que se está a falar, que se distancia muito da ideia contemporânea que coloca o cuidado como investimento: “as palavras ‘investir’, ‘investimento’, ‘investidores’, aparecem com enorme frequência na linguagem corriqueira e no uso quotidiano. ‘Investe-se’, assim, em quase todo, no aprendizado, na carreira, mas também na amizade e nos relacionamentos mais íntimos”. (LOPEZ-RUIZ; 2004, p. 241). Assim, o cuidado de si na Contemporaneidade diz respeito a um cuidado constante para não se tornar obsoleto ao mercado. Esses cuidados constantes e permanentes (com saúde, aparência, educação, carreira etc.) apresentam-se como possibilidades de ganhos futuros. Dessa forma, o cuidado de si e do Outro, na perspectiva a que nos referimos, constitui-se em um grande desafio, visto que vai de encontro a tais premissas individualistas. A apresentação do mundo, portanto, configura-se como uma forma de acolhimento e de preservação às novas gerações, para não “abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum”. (ARENDT, 2016, p. 247).

Tomar a aula a partir do conceito “menor” de abertura ao mundo possibilita pensá-la como um lugar público e democrático - um lugar em que não se estabelece, a priori, separação ou distinção de classe, gênero, etnia, escolha política ou religiosa. Como problematizam Alexandre Filordi de Carvalho e Sílvio Gallo (2017, p. 637), assim como a “cultura do cotidiano escolar, padecida pelos afetos de pseudo-eternidade, mina lentamente as ações que poderiam mobilizar os seus sujeitos a pensarem de modo diferente”, ela não seria também um lugar possível de encontro de afetos, produção da diferença, criação e invenção de novas possibilidades de existência? A aula como um espaço menor possibilitaria fazer dele um

[...] campo histórico de experimentum scholae [...] como um laboratório, lugar de constante ensaio e experimentação, no qual processos de criação e de produção de novos manejos com o saber, o conhecimento, as relações subjetivas e intersubjetivas de seus sujeitos encontrem sentido na explosão das estruturas de exploração, de sujeição e de hierarquia tão presentes nos equipamentos coletivos. (CARVALHO; GALLO, 2017, p. 638).

Como palavras finais, levando em consideração os assuntos aqui tratados e articulando-os ao contexto político atual, deveras complexo, a afirmação de Ítalo Calvino parece oportuna: “intolerância é aspiração a que o fora de nós não seja igual ao que acreditamos ser o dentro de nós, isto é, a uma cadaverização do mundo. Em alguns casos, o intolerante é mortífero; em todos os casos é ele próprio um morto”. (CALVINO, 2009, p. 273).

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3 Trata-se do estudo realizado por Klaus (2011).

Recebido: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 22 de Abril de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Aline Nardes dos Santos. E-mail: aline.nardes@gmail.com

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