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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.4 Campinas out./dez 2019  Epub 29-Abr-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v21i4.8654808 

Dossiê

QUEM AINDA RI DA BICHA PRETA, EFEMINADA E POBRE? FUNK, (RE)CONHECIMENTO E DIREITOS LGBT EM TEMPOS DE PÂNICO MORAL

WHO STILL LAUGHS AT THE BLACK, EFFEMINATED, POOR ‘BICHA’? FUNK, RECOGNITION AND LGBT RIGHTS IN TIMES OF MORAL PANIC

¿QUIÉN TODAVÍA SE RÍE DE LA ‘BICHA’ NEGRA, AFEMINADA Y POBRE? FUNK, (RE)CONOCIMIENTO Y DERECHOS LGBT EN TIEMPOS DE PÁNICO MORAL

Thiago Duque1 

1Doutor em Ciências Sociais - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP - Brasil. Professor - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) - Mato Grosso do Sul, MS - Brasil. E-mail: tiago.duque@ufms.br


RESUMO

Esse artigo discute a ideia de reconhecimento através da imagem da bicha preta, efeminada e pobre, para pensar a questão dos direitos LGBT no contexto contemporâneo. Isso é feito a partir das reações críticas de LGBT e não LGBT diante do clipe da música Me Solta, do cantor de funk Nego do Borel. O clipe da referida música é entendido nessa reflexão como um artefato cultural produzido e (re)produtor de relações de poder e subjetividades que, via a imagem risível de uma figura bastante difundida na mídia nacional, ensina o quanto a questão do reconhecimento tem sido diferente em relação há décadas. A metodologia empregada é a “etnografia de tela”, isto é, aquela que utiliza técnicas da etnografia associadas a estratégias de análises de imagens e filmes. A reflexão teórica é demarcada, principalmente, por autoras/es pós-críticos (feminismos, queers, pós-coloniais e decoloniais). Conclui-se, entre outros pontos, a necessidade de pensar, em tempos de pânico moral e de maior reivindicação dos direitos LGBT, o estigma e os campos de inteligibilidades diante das novas experiências de reconhecimento e identificação, dos LGBT e não LGBT, mesmo via os discursos de não representatividades.

PALAVRAS-CHAVE: Artefato Cultural; Reconhecimento; Direitos LGBT; Funk

ABSTRACT

This article discusses the idea of recognition through the image of the black ‘bicha’, effeminated and poor, to think about the issue of LGBT rights in the contemporary context. This is done from the critical reactions of LGBT and non-LGBT in front of the music video ‘Me solta’ by funk singer Nego do Borel. The clip of the aforementioned music is understood in this reflection as a cultural artifact produced and reproducing relations of power and subjectivities that, through the laughable image of a figure quite widespread in the national media, teaches how much the question of recognition has been different in relation to decades ago. The methodology used is the ‘etnografia de tela’, that is, the one that uses techniques of ethnography associated with strategies of analysis of images and films. The theoretical reflection is demarcated mainly by post-critical authors (Feminisms, queers, post-colonial and decolonial). It concludes, among other points, that one needs to think, in times of moral panic and greater claim of LGBT rights, the stigma and fields of intelligibilities in the face of new experiences of recognition and identification, LGBT and non-LGBT, even through the discourses of non-representactivities.

KEYWORDS: Cultural artifact; Recognition; LGBT rights; Funk

RESUMEN

Este artículo aborda la idea de reconocimiento a través de la imagen del queer negro, afeminado y pobre, para reflexionar sobre el tema de los derechos LGBT en el contexto contemporáneo. Esto se hace a partir de las reacciones críticas de LGBT y no LGBT en frente del video musical "Me solta" por el cantante de funk nego do Borel. El clip de la mencionada música se entiende en esta reflexión como un artefacto cultural producido y (re) productor de relaciones de poder y subjetividades que, a través de la imagen riable de una figura ampliamente difundida en los medios de comunicación nacionales, enseña lo mucho que el tema del reconocimiento ha sido diferente en relación con hace décadas. La metodología utilizada es la ‘Etnografia de tela’, es decir, la que utiliza técnicas de etnografía asociadas a estrategias de análisis de imágenes y películas.La reflexión teórica es delimitada principalmente por autores post-críticos (feminismos, queer, post-coloniales y decoloniales).Concluye, entre otros puntos, que uno necesita pensar, en tiempos de pánico moral y mayor reivindicación de los derechos LGBT, el estigma y los campos de la inteligibilidad frente a nuevas experiencias de reconocimiento e identificación, LGBT y no LGBT, incluso a través de discursos de no representactividad.

PALAVRAS-CLAVE: Artefacto cultural; Reconocimiento; Derechos LGBT; Funk

1 INTRODUÇÃO

Nas primeiras cenas do clipe da música Me solta2, na comunidade3 carioca que inspirou o seu nome, o cantor de funk Nego do Borel aparece vestido com roupas designadas como de mulher: são acessórios, maquiagem e trejeitos femininos estereotipados. Em dado momento do clipe, ele beija um homem na boca, o que contribuiu para a polêmica nas redes sociais. O clipe da referida música é entendido nesse artigo como um artefato cultural, isto é, “um dispositivo pedagógico da mídia” (FISCHER, 2007), produzindo e sendo (re)produtor de relações de poder e subjetividades que, via imagem risível de uma figura bastante difundida na mídia nacional - a bicha4 preta, efeminada e pobre -, ensina o quanto a questão da identificação tem sido diferente em relação há décadas. Assim, o objetivo aqui é discutir a ideia de reconhecimento para pensar a questão dos direitos LGBT no contexto contemporâneo.

A polêmica em torno do clipe é vista aqui como corroborando o poder dos artefatos culturais. Afinal, eles

funcionam como elementos de redes de significação, por onde circulam e são fabricados os sentidos que damos às experiências de gênero e sexualidade (e tantas outras), indicando-nos como devemos agir e pensar, anunciando modos de ser e estar mais ou menos conformes com as normas (FERRARI; CASTRO, 2018, p. 102).

Isso porque eles possuem determinados currículos culturais, “que produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser, fabricam identidades e representações, constituem certas relações de poder” (SABAT, 2001, p. 09). Essa pedagogia e esse currículo dos artefatos culturais diferem da pedagogia e do currículo escolares pelos recursos econômicos e tecnológicos que mobilizam, além do apelo afetivo, que tanto mais será eficaz quanto mais inconsciente for (SILVA, 2001).

Clipes de músicas, memes, jogos virtuais, séries on-line, canais do Youtube, e tantos outros exemplos, ganham espaço privilegiado nas redes de significação, na produção de valores e constituição de identidades na era digital. Isto é, no período em que há uma conexão em rede por meios comunicacionais tecnológicos, definidos como digitais. Esses meios “envolvem o suporte material de equipamentos como notebooks, tablets e smartphones, bem como diferentes tipos de redes de acesso, conteúdos compartilhados e, por fim, mas não por menos, plataformas de conectividade” (MISKOLCI, 2017, p. 23). Não é à toa que, na era digital, os clipes são lançados comumente na internet, e não mais em programas de televisão, como ocorria décadas atrás.

Assim, “ao contrário das primeiras investigações que trabalhavam com a oposição real-virtual, atualmente se tornou quase consenso o fato de que as novas mídias não criam um universo social à parte” (MISKOLCI, 2011, p.15). O on-line é uma continuidade da vida off-line:

A internet não forma um espaço autônomo, que existe em paralelo aos espaços físicos; a distinção on-line/off-line é circunstancial e precária, “real” e “virtual” estão constantemente articulados. A rede é parte do mundo, e não um “mundo à parte” (BRAGA, 2015, p. 228).

Nesse sentido, metodologicamente, a “etnografia de tela” foi utilizada para o levantamento de dados desse estudo. Ela é uma

metodologia que transporta para o estudo dos textos da mídia procedimentos próprios da pesquisa antropológica, como a longa imersão do pesquisador no campo, a observação sistemática, registro de caderno de campo, etc., e outras próprias da crítica cinematográfica (análise de planos, de movimento de câmaras, de opções de montagem, enfim, da linguagem cinematográfica e suas significações) (RIAL, 2005, p. 120-121).

Do ponto de vista teórico, a perspectiva adotada é a pós-crítica. Segundo Meyer e Paraíso (2014), as teorias pós-críticas são fruto do efeito combinado daquilo que conhecemos como abordagens teóricas com o rótulo de “pós” (pós-estruturalismos; pós-modernismos; pós-colonialismos; pós-gênero e pós-feminismo), assim como de outras abordagens que fazem deslocamentos importantes em relação às teorias críticas (Multiculturalismo, Pensamento da Diferença, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Estudos Étnicos-Raciais, Estudos Queer, entre outros). Por isso, se propõe uma rigorosidade na inventabilidade que esse referencial teórico-metodológico exige, afinal, “não temos qualquer grande narrativa ou método que nos prescreva como devemos proceder, não temos qualquer percurso seguro para fazer e nem um lugar aonde chegar” (MAYER; PARAÍSO, 2014 p. 43).

2 A POLÊMICA - MÚLTIPLAS (NÃO)IDENTIFICAÇÕES

Através de um aplicativo de celular, o WhatsApp, em um grupo de militantes de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), recebi áudios que foram apresentados como sendo de “traficantes do Morro do Borel”. As vozes masculinas dos áudios criticavam o cantor Nego do Borel por ter “colocado sangue rosa”. Afirmava-se que do Morro do Borel “sai sangue de homem, #$@!”. Outro o classificava como “otário”. Com sotaque carioca, dizia que “o bagulho ficou malvisto” para eles, moradores da localidade. O terceiro afirma que “esse moleque”, em referência ao cantor, “não representa o Borel”, nem o funk. Lembra que “no Borel ninguém fica beijando homem não, rapá!”. Conclui: “nem os viados estão aceitando ele”.

Independentemente da autenticidade das mensagens, críticas parecidas foram feitas por fãs do cantor nas redes sociais que também não se identificam como LGBT, nem mesmo como moradores do Borel, nem são apresentados como supostos “traficantes”. As reclamações são em relação ao clipe já citado. Ele foi produzido e divulgado pelo canal KondZilla, “maior canal brasileiro do YouTube, possui mais de 22 bilhões de views e 46 milhões de inscritos, ocupando a terceira posição mundial na plataforma”5. Me Solta foi publicado no canal em 09 de julho de 2018. Em 09 de fevereiro de 2019, sete meses depois, atingiu mais de 147 milhões de visualizações e aproximadamente 213 mil comentários, seja criticando ou elogiando o cantor.

De forma analítica, classifico parte das críticas negativas em dois blocos. Um dos LGBT, outro dos não LGBT. Essa classificação é estritamente estratégica para a análise que aqui desenvolverei. Na prática, o perfil das críticas e de sua autoria é muito mais diversificado. Ainda assim, o grupo de LGBT e de não LGBT também podem ser entendidos aqui como “pró direitos LGBT” e “anti direitos LGBT”, mesmo porque, há muitos LGBT não apoiando as críticas dos LGBT ao clipe.

As críticas dos não LGBT são em relação ao cantor ter beijado outro homem no clipe, não necessariamente por ele ter se apresentado vestido de mulher, performatizando uma bicha. Na página oficial do canal onde foi lançado o vídeo, por parte desse grupo aqui analiticamente identificado, pode-se ler: “@KondZilla estou me desescrevendo do canal”, “Nossa não tem vergonha na cara não virou bicha”, “Nada a ver ele beijar esse cara, sem sentido”, etc.

A imagem do homem heterossexual, másculo, vestido de mulher é bastante frequente no carnaval. Eles podem pegar vestidos, bijuterias e maquiagem emprestados de suas mães, irmãs, esposas e namoradas, mas, como apontou Green (2000), essa incursão pelo universo feminino é temporária, inclusive, comumente deixam pelos à mostra nas pernas, axilas, peito, braços e no rosto. Esses elementos masculinos, como o bigode que Borel manteve no clipe, os protegem de qualquer sombra de dúvidas em relação a sua identidade sexual. “A transgressão deles está limitada a símbolos de gênero superficiais da sociedade. Ao vestir trajes de mulher, eles não estão indicando uma inversão de sua identidade sexual ou seu papel como ‘homens de verdade’” (GREEN, 2000, p. 334). Mas, nesse caso, o problema está no beijo, que, diferente da performance carnavalesca culturalmente aceita, rompe com a segurança da masculinidade heterossexual travestida.

Por sua vez, as críticas dos LGBT são por ele ter se apresentado como uma bicha caricata, isto é, “montado”. Ao estudar travestis, Benedetti (2000) apontou para o uso do termo êmico “montagem” como se referindo a um processo de manipulação e construção de uma apresentação que seja suficientemente convincente, sob o ponto de vista delas, de sua qualidade feminina. Evidentemente que a “montagem” de Borel não tinha como foco o convencimento de sua imagem feminina, como discutido no parágrafo anterior.

Portanto, a imagem de Borel tornou-se caricata. No contexto das apresentações drag, o riso diante da caricata garante uma aceitação do público, ainda que, segundo Vencato (2002), o que se espera de uma caricata é que ela seja “ridícula”, “cômica”, “exagerada”, em oposição à estética da top-drag, que é “impecável” e “bela”. No entanto, sendo Borel alguém que não se identifica com nenhuma das categorias políticas identitárias LGBT, a reação foi de não identificação, de rechaços e críticas por parte do público LGBT. A maior parte delas o acusou de estar interessado no poder de consumo da “comunidade”6 LGBT, isto é, o artefato foi visto como um jogo de marketing, e não interessado em diminuir o preconceito, o estigma e a violência que essa população tem sofrido no país, em especial, as travestis e as/os transexuais7.

Esse poder de consumo tem sido identificado como “pink money”. Muitas críticas nas redes sociais e nos comentários ao clipe Me Solta, tem esse teor. Por exemplo, na página onde ele foi lançado, algumas postagens afirmam: “no início do vídeo deveria dizer ‘pink money’ e não ‘good morning’” (em alusão à primeira frase proferida pelo cantor na música), “Não tem como defender pink money” e “ganhar em cima da causa lgbtq+ é fácil né?”.

A acusação de oportunismo tem relação com outro episódio envolvendo o cantor, em que ele aparece supostamente apoiando o então pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro, político com posicionamentos contrários aos direitos LGBT. As críticas foram tantas que ele teve que se explicar: “Eu não apoio o Bolsonaro. Esta foto foi tirada em um jantar que eu estava também, a pedido do filho dele. Não costumo negar a tirar fotos com ninguém.”8 As justificativas não convenceram o público.

Assim, para muita gente engajada nos direitos pró LGBT, Borel não representa e não se identifica com o grupo de pessoas negras, pobres e afeminadas, que, como se sabe, têm sofrido diversas formas de violência no país. Por isso, não teria uma intenção real de transformar a realidade vulnerável desse seguimento, mesmo o clipe contendo um beijo do cantor em outro homem.

3 REGIMES DE VISIBILIDADE E DIREITOS

Conforme Miller (2013), reconheço a tecnologia da internet como um gênero cultural, e, como tal, impossível de se criar algo radicalmente novo, mas, antes, realizar um desejo já presente anteriormente, que, porém, não tinha como ser realizado, visto que faltavam os meios. Mas, pode haver uma consequência no seu uso, que é a possibilidade de explorar novas coisas, experimentar novas liberdades, “mas isso também induz ansiedades quanto ao controle sobre como essas liberdades e capacidades serão empregadas” (MILLER, 2013 p. 173).

Nesse sentido, se, por um lado, o campo dos direitos LGBT avançou com a tecnologia digital, por outro, na mesma dinâmica de rede, o controle e a resistência aos avanços também se fez presente. Seja àqueles/as pró LGBT, ou aos/às que são contrários a pauta dos direitos em torno da diversidade sexual e da identidade de gênero, “a parafernália técnica da visibilidade é capaz de conceder sua aura a qualquer coisa (ou a qualquer um) e, nesse gesto, de algum modo o realizam: dão-lhe existência, confirmam que está vivo” (SIBILIA, 2010, p. 54). Todo esse cenário tem a ver com a ideia de regime de visibilidade. Entendo regime de visibilidade como aquilo que “traduz uma relação de poder sofisticada, pois não se baseia em proibições diretas, antes em formas indiretas, mas altamente eficientes, de gestão do que é visível e aceitável na vida cotidiana” (MISKOLCI, 2014, p.62).

Mas, ainda, há aquele controle/amarras revestido de direitos legais. É nesse sentido que afirmo que “se o imperativo da visibilidade no nível das políticas públicas fortalece certas identidades ou grupos, também os expõem a um controle mais minucioso por parte de diferentes instâncias do poder estatal” (CARRARA, 2010, p. 144). Nas palavras de Seffner: “A euforia pela conquista de direitos não pode nos fazer esquecer que muitos destes ‘direitos’ são no fundo amarras tirânicas em formas de experimentação dos prazeres e modos de ser da população LGBT” (2010, p. 65).

Dito de outro modo, não se trata de condenar a representação da bicha preta, efeminada e pobre em si. Afinal, as tentativas de apagamento de experiências mais escandalosas, menos discretas, tidas como não respeitáveis em relação às expressões de gênero e sexualidade em público, têm sido entendidas como parte de um regime de visibilidade em relação ao ainda persistente binário hétero-homo, à hegemonia heterossexual em nossa sociedade contemporânea.

Como aponta Miskolci,

Da exclusão e da invisibilidade do modelo que via nas relações entre pessoas do mesmo sexo uma doença mental e/ou um crime passíveis de prisão ou internamento passamos para o disciplinamento e a normalização que regem a visibilidade do modelo epidemiológico. Se, no primeiro, as forças eram predominantemente repressivas, coercitivas e externas; no segundo, elas são de disciplinamento, controle e internas. Não mais a ameaça do juiz ou do médico, mas a necessidade reconhecida individualmente do autocontrole e do autoajustamento, em um processo histórico em que quanto mais visíveis, mais as homossexualidades foram normalizadas a partir do modelo heterossexual reprodutivo. Esse novo regime de visibilidade não é exatamente heterossexista, tampouco serve mais à manutenção da heterossexualidade compulsória, mas permite a manutenção do binário hétero-homo por meio da heteronormatividade, a consolidação da hegemonia heterossexual (MISKOLCI, 2012, p. 45).

O que isso contribui para o campo dos direitos é pensar que o estigma existe, está presente e, ao mesmo tempo, não é o mesmo de outros tempos. Isso porque, segundo Goffman (1988), o estigma é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, relação essa que deve ser contextualizada historicamente.

A imagem mais popular da bicha preta, efeminada e pobre, é a da “Vera Verão”, protagonizada por Jorge Lafon (Jorge Luiz de Souza Lima), que ao final do ano de 1980 criou a personagem no programa Os trapalhões, da TV Globo, mas que ganhou o carinho do público na década de 1990 no programa “A praça é nossa”, do SBT. Em uma matéria, Zorzi (2018) escreve para O Estado de São Paulo:

O quadro marcou época e segue tendo milhões de visualizações em vídeos que o relembram até os dias de hoje em redes sociais. A história era sempre a mesma (como é costume dos esquetes do programa): Carlos Alberto de Nóbrega, ou Charles Albert, como dizia Lafond em cena, conversava com alguns personagens, até que aparecia Vera Verão, sempre com maquiagem carregada e roupas espalhafatosas. Após uma bem-humorada discussão, vinha o ponto alto: lhe chamavam de "bicha", de forma ofensiva, e a resposta vinha com o clássico bordão: "Êêêpa! Bicha não!".

A luta por direitos, inclusive de representatividade da bicha preta, efeminada e pobre, já constitui hoje uma experiência diferente das de outras épocas, entre outras coisas, porque o estereótipo desse perfil de bicha segue risível, mas não passa mais ileso, como se fosse inofensivo ao campo dos direitos LGBT.

O riso, nesse sentido, continua sendo a forma de apresentar esse tema, ou de falar sobre a tese que hegemonicamente se defende sobre ele, afinal, uma piada funciona por isso, não pela sua forma, mas por seu conteúdo, porque se necessita de um tema proibido ou controlado por regras sociais de bom comportamento (POSSENTI, 1998). Nesse caso, tendo o cantor Borel a representatividade que tem, de macho do funk e do morro, beijar outro homem não é piada, ainda que esteja vestido de mulher. Não é piada nem para o grupo LGBT, nem para os não LGBT, nos termos aqui definidos.

No que se refere aos não LGBT, parece haver a quebra, via o beijo, no regime de visibilidade da heterossexualidade e masculinidade dos homens que se vestem de mulher como Borel, afinal, há que reconhecer que nesses regimes existe uma série de códigos e valores que se impõem como uma espécie de gramática às pessoas envolvidas, nas maneiras como elas podem parecer visíveis em relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Dito de outro modo, negociar com estes regimes de visibilidade exige a produção de uma série de estratégias de gestão desta visibilidade (PASSAMANI, 2018), o que Borel não soube praticar, afinal, o beijo pode ser lido como uma prova disso.

Já em relação aos LGBT,

quando indagamos se uma impressão adotada é verdadeira ou falsa, na verdade queremos saber se o ator está, ou não, autorizado a desempenhar o papel em questão, e não estamos interessados primordialmente na representação real em si mesma (GOFFMAN, 1985, p. 60).

Nesse sentido, o problema não é ser um homem não LGBT, antes, entender que não havia “autorização” para tal representação. Mas, por outro lado, sabe-se que não basta substituí-lo por alguém da “comunidade” LGBT.

Por mais que nas redes sociais a “comunidade” LGBT tenha sugerido que o cantor deveria ter convidado uma bicha preta, efeminada e pobre, “de verdade”, e não se “montado”, deve-se ter claro que, por um lado, “a experiência corporal é uma das dimensões para a produção da rebeldia”, mas, por outro, “a consciência política e a agência transformadora não são determinadas pelas estruturas biológicas, por experiência localizável exclusivamente no corpo” (BENTO, 2011, p. 105). Logo, a questão da representatividade, a tal “autorização”, nos termos de Goffman (1985), é mais complexa do que simplesmente uma substituição essencialista do cantor por alguma bicha preta, efeminada e pobre, “montada” “de verdade”

4 PÂNICO MORAL E DIFERENÇAS

O clima pré-eleições presidencial de 2018 no Brasil, sem dúvida, favoreceu a polêmica em torno do artefato cultural aqui analisado. Temas como gênero e sexualidade, quando ganham visibilidade nacional em um clima de pânico moral já instalado, implica em reações polêmicas de diferentes grupos sociais. Em linhas gerais, o pânico moral pode ser definido

como um movimento de massa que emerge em resposta a algo falso, exagerado, ou como uma ameaça mal definida à sociedade e propõe a endereçar essa ameaça através de medidas punitivas: penas severas, "tolerância zero", novas leis, vigilância comunal, expurgos violentos (LANCASTER, 2011, p. 23).

Nas últimas décadas houve um fortalecimento das áreas de pesquisa de gênero e das iniciativas de políticas educacionais na temática no Brasil. Em resposta a isso, ocorreu uma crescente reação conservadora articulada politicamente que passou a conceber gênero, a partir de uma leitura enviesada, como uma ameaça às famílias, às crianças e, com isso, à sociedade (DESLANDES, 2015). A sexualidade não ficou de fora dessa reação conservadora9. Em relação ao pânico moral, como afirma Miskolci (2007, p. 112), “o que se teme é uma suposta ameaça à ordem social ou a uma concepção idealizada de parte dela, ou seja, instituições históricas e variáveis, mas que detém um status valorizado como a família e o casamento”.

As explicações de Borel, conforme divulgado na imprensa, justificariam o clima de “ameaça”, aos olhos dos empreendedores morais10, diante daquilo que precisa ser “expurgado”:

“Quis mostrar que as pessoas podem se soltar, beijar, transar, amar quem elas quiserem - disse o cantor, que já esperava que o clipe pudesse levantar críticas na internet: - Quando eu decidi fazer esse clipe sabia que poderia ser algo polêmico, mas fui em frente. A Nega da Borelli é uma personagem que, pra mim, representa a liberdade de ser quem eu sou”.11

No entanto, diante dos grupos aqui identificados, de LGBT e não LGBT, essa explicação sobre a sua motivação enquanto cantor não teve efeito diante das críticas. Porém, a “liberdade” de ser quem se é, é algo marcadamente presente nos discursos de quem busca se livrar da armadilha do que foi instaurado pelo pânico moral, isto é, da cortina de fumaça que esconde os reais interesses dos empreendedores morais. Dito de outro modo, a política simbólica que estrutura os pânicos morais

costuma se dar por meio da substituição, ou seja, grupos de interesse ou empreendedores morais chamam a atenção para um assunto, porque ele representa, na verdade, outra questão. [...] Todo pânico moral esconde algo diverso e, ao invés de aceitar um temor social como dado, o pesquisador precisa desvelar o que reside por trás do medo (MISKOLCI, 2007, p. 114).

Nesse sentido, a questão da valorização das diferenças, como as de gênero e sexualidade, certamente é algo que não interessa aos empreendedores morais. Contudo, como ensina Brah (2006), a diferença não pode ser vista sempre como um marcador de hierarquia e opressão, isto é, necessariamente depreciativo. Ainda que seja via o ser risível de uma bicha preta, efeminada e pobre, ela pode se fortalecer como uma vivência altamente reconhecida e valorizada. Essa percepção da diferença está presente nos processos de identificação de parte da “comunidade” LGBT diante da imagem das bichas com esse perfil, que Borel não representa. Assim, diante desse artefato cultural, “é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política” (BRAH, 2006, p. 374).

Além disso, as diferenças precisam ser tomadas na processualidade dos jogos de identificação. Segundo Hall (2000), como todas as práticas de significação, a identificação está sujeita ao jogo da diferença/diferenciação/do diferenciado e opera por meio deles:

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma saturação, uma sobreposição, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado”, ou “muito pouco” - uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. [...] Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identificação opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de efeitos de fronteiras. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora - o exterior que a constitui (HALL, 2000, p. 106).

A partir dessa compreensão de diferença e identificação, adoto a postura de levar em consideração as diferenças para além daquilo que é valorizado e/ou buscado como legítimo, respeitável, adequado, apropriado, “normal”, isto é, digno de direitos. Assim, o que vem a significar uma bicha preta, efeminada e pobre, e, nesse caso, risível, diz muito a todos os grupos aqui em questão, porque no jogo da produção de diferenças e identificações, ela está implicando a identidade de várias pessoas, inclusive dos empreendedores morais e dos heterossexuais que reprovaram o beijo do Borel, mas também se vestem de maneira risível, publicamente, como no carnaval, para experimentar performances femininas. Isso ocorre porque “as identidades podem funcionar ao longo de toda a sua história como pontos de identificação e apego apenas por causa de sua capacidade de excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente em ‘exterior’, em abjeto” (HALL, 2000, p. 110).

Essa produção de identidades, mesmo em clima de pânico moral, isto é, de tentativas de não valorização das diferenças de gênero e sexualidade, é mais um exemplo de como se dão os corpos nesses campos de inteligibilidade, afinal “os corpos só surgem, só permanecem, só sobrevivem dentro das limitações produtivas de certos esquemas reguladores com alto grau de generalização” (BUTLER, 2008, p. 14); inclusive os corpos tidos como risíveis, com menos direitos, que Borel buscou performatizar.

5 FUNK E RECONHECIMENTO

Segundo Sansone (2003, p. 174), “o funk brasileiro é uma expressão cultural juvenil centrada no consumo coletivo da música”. Ele se fortaleceu no país no final da década de 1970, após o “movimento Black Soul12 praticamente terminar. Foi então que, enquanto os ativistas negros aderiram ao samba “de raiz”, os jovens de classes econômicas baixas, sem esses ativistas, e sem os intelectuais e os produtores musicais, decidiram explorar novos caminhos, o que fez o funk ser a palavra chave. Diferentemente do que ocorre hoje, até sua descoberta pela indústria fonográfica, no ano de 2000, em São Paulo e no sul do País, o funk não tinha chegado a realmente criar raízes populares (SANSONE, 2003).

Amaral (2011), ao estudar o funk e os raps do movimento hip-hop, apontou que, mesmo eles estando inseridos no fenômeno da mundialização da cultura, “tendem a negá-lo em seus aspectos reificadores ao assumirem uma atitude política de contestação (paradoxalmente, por meio de uma estética afirmativa) a todo tipo de discriminação e de exclusão social” (AMARAL, 2011, p. 603).

Ainda que a diversidade do funk hoje nem sempre traga tanta contestação, e atue mais como entretenimento, não se pode minimizar os seus efeitos políticos, em especial, para o campo do reconhecimento. Diante dos inúmeros elementos que compõe a experiência das pessoas no/do funk e o processo de identificação, a indumentária masculina e feminina merece atenção, afinal, o Me solta traz essa polêmica via a “montagem” de Borel. Para Mizrahi (2007), que estudou a indumentária funk, “os ‘funkeiros’ realizam poucas variações na composição do conjunto de roupas trajadas, especialmente em comparação com a grande variedade de modelos que compõe o vestuário feminino” (MIZRAHI, 2007 p. 247). Dito de outro modo, “de uma perspectiva interna ao baile, as estéticas feminina e masculina travam uma relação descontínua, se opondo uma à outra e remetendo ao contexto de sedução, que igualmente opõe mais do que aproxima os gêneros” (MIZRAHI, 2007, p. 255).

Essas experiências generificadas apontam para o quanto “o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como pré-existente à obra (BUTLER, 2003, p. 48)”. Isto é, gênero é um “estilo corporal, um ‘ato’, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde ‘performativo’ sugere uma construção dramática e contingente do sentido” (BUTLER, 2003, p. 199).

No entanto, a performance de gênero se dá também por elementos que estão além do ato reiterado em si, como, por exemplo, as diferentes tecnologias (PRECIADO, 2018). Parte destas tecnologias são protéticas. Penso prótese de gênero não como sendo essência, mas como trânsito. É um efeito múltiplo e não tem uma origem única (PRECIADO, 2002). Isso corrobora o quanto “a prótese é um acontecimento de incorporação”, como tantas outras zonas de produção do gênero. “Historicamente, é a única forma de ‘ser corpo’ em nossas sociedades pós-industriais. A prótese não é abstrata, não existe se não aqui e agora, para este corpo e neste contexto (PRECIADO, 2002, p. 168)”.

Nesse sentido, no clipe, Borel performatiza e utiliza-se de próteses de gênero. Inicia “montado”, com shorts jeans boyfriend (rasgado, desfiado e curto) e blusa cropped manga longa (mostrando a barriga, com recortes nos ombros e decote), tentando se equilibrar com uma sapatilha de bico fino, na cor vermelha, como a blusa, rodeado de homens mototaxistas. Usa brincos grandes e traz, em uma das mãos, um pirulito, enquanto, no ombro do outro braço, uma bolsinha feminina a tiracolo. Mas termina o clipe com o peito tatuado à mostra (um lobo e uma águia na cor preta), de calça e sapatos tidos como masculinos, rodeado de mulheres; inclusive, em um momento, com uma delas sentada sobre o seu ombro. Os óculos feminino do começo, na cor vermelha, é substituído por outro, masculino, na cor preta. Os gestos da dança não são mais uma imitação de um feminino estereotipado, antes, de um estilo másculo de dançar funk.

Essa realidade de diferenciação/identificação é mais um elemento da polêmica em torno do clipe discutido. Ela pode ser compreendia como um dos “campos de inteligibilidades”, isto é, aquilo que contextualiza a produção dos regimes de visibilidade, já discutidos aqui. Assim, o reconhecimento passa necessariamente por um caminho comum entre histórias singulares, e esse caminho o coloca em circulação. Isso porque “o reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer os campos existentes de inteligibilidade” (BUTLER, 2010, p.168).

A “montagem” de Borel, portanto, por ele não ser de fato uma bicha preta, efeminada e pobre - antes, um cantor heterossexual, tido como másculo, jovial e musculoso - traz uma reação diante da inteligibilidade com que um homem “de verdade” no funk pode usar em termos de indumentária. Funk não é carnaval. Isto é, Borel vestido de mulher só não é mais estranho para os não LGBT no contexto do funk do que o próprio Borel dando um beijo em outro homem. Por outro lado, essa “montagem” caricata do cantor também diz respeito a outro “campo de inteligibilidade”, o da “comunidade” LGBT, como já discutido.

Portanto, aqui não se trata de pensar em reconhecimento como apenas aquilo que os grupos sociais aceitam como sendo relacionado positivamente a eles, antes, compreender as críticas como uma forma de reconhecimento de uma não identificação com aquilo que se recusa. Dito de outro modo, reconhecimento nesses termos não é apenas aquilo que escolhemos como sendo algo que nos representa, é também nosso “exterior constitutivo” (HALL, 2000; BUTLER, 2003). A representatividade negada, comumente, anuncia também aquilo que não queremos ser, mas que nos constitui. Por exemplo, a bicha preta, efeminada e pobre, isto é, nesse caso, travestida de forma risível, não é apenas negada por não LGBT, ela também pode ter a performance e as próteses de gênero não desejadas por muitos da “comunidade” que, como já discutido, estão sob os valores da heteronormatividade, inclusive travestis e mulheres transexuais.

Contudo, como já afirmado, os artefatos culturais, com seus currículos, trazem uma pedagogia cultural, isto é, um

território político, ético e estético incontrolável que, se é usado para regular e ordenar, pode também ser território de escapes de todos os tipos, no qual se definem e constroem percursos inusitados, caminhos mais leves, trajetos grávidos de esperança a serem percorridos (PARAISO e CALDEIRA, 2018, p. 13).

No clipe, o beijo também sofreu críticas de LGBT, mas, em especial, pelo fato de ser uma bicha preta, efeminada e pobre, beijando o modelo assumidamente heterossexual Jonathan Dobal13, um homem branco, másculo, sem pelos aparentes, alto, corpo musculoso, com cabelos curtos e escuros - o tipo de homem que tem sido compreendido como modelo de beleza - isto é, o padrão que a sociedade/mídia tem hipervalorizado. Mas, por outro lado, aparece um outro personagem masculino, também de pele clara (mais devido à iluminação das imagens do que a branquitude de sua cor), sem camisa, de baixa estatura e bastante gordo, dançando, fora de qualquer relação mais direta de sedução. Com esses códigos de beleza e masculinidade racializada, Jonathan Dobal aparece assediando a bicha preta, efeminada e pobre. Ainda que ela ceda ao beijo, ele não parece ter o controle da interação como ela, até mesmo pela letra que é cantada antes e depois do beijo: “Me solta, porra!”. Assim, há campos de inteligibilidade que estão negociando com posição de poder e, de certa forma, construindo percursos inusitados que não estão sendo explorados pela crítica, mas estão lá, negociando subjetividades.

Portanto, são os campos de inteligibilidade que precisam ser problematizados para se compreender o motivo pelo qual a representatividade de grupos tão distintos se encontram nesse processo de não identificação diante desse artefato cultural, isto é, da polêmica que envolveu a “montagem” e o beijo de Borel no clipe do funk Me solta.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após analisar a polêmica em torno do clipe da música Me solta, considero que, a “montagem” de Borel para os LGBT e o beijo dele em outro homem para os não LGBT, permitiram a reflexão em torno do processo de reconhecimento e diferenciação/identificação em tempos de reivindicação por mais direitos aos LGBT na era digital. Nesse sentido, ao invés de buscarmos responder “quem ainda ri da bicha preta, efeminada e pobre?”, podemos questionar: “por que ainda se ri da bicha preta, efeminada e pobre?” ou “para que se ri da bicha preta, efeminada e pobre?”.

Diferentemente de outros tempos, em que essa bicha, interpretada por alguém LGBT ou não, seria “apenas” risível, hoje, vemos uma disputa nos campos de inteligibilidade por mais direitos em torno do que ela, uma pessoa da “comunidade” LGBT, representa/significa. Por isso, sua imagem em disputa mostra que ainda é uma personagem midiática que recebe investimento performático, e, por sua vez, já foi politizada a ponto de a “comunidade” não se sentir representada quando ela é usada de forma a pôr em dúvida, por parte de quem a performatiza, o interesse no fim das violências e preconceitos tão presentes para e entre LGBT.

Outra mudança histórica que podemos apontar via o clipe é o fato de que, em tempos como esse, a caricatura da bicha preta, pobre e efeminada, sai dos programas humorísticos e das festas de carnavais e ocupa o espaço das grandes produções musicais - nesse caso, do funk. Além do efeito do poder midiático, o que se pode concluir é, como o que era tipicamente piada, torna-se símbolo, para usarmos o discurso de Borel, de ser quem se é, mesmo em tempos de pânico moral. Ainda assim, parece ser necessário algo mais do que o artefato em si para que a “comunidade” LGBT reconheça Me Solta como algo valoroso para a luta por seus direitos.

Nesse sentido, precisamos pensar o estigma e os campos de inteligibilidades diante das novas experiências de reconhecimento e identificação, de LGBT e não LGBT, mesmo via os discursos de não representatividades. Talvez tenhamos chegado o momento de reconhecer que um artefato cultural, via a rejeição de grupos distintos, nos diz sobre quais são os sujeitos que precisamos seguir tomando como um desafio histórico quando a questão é a ampliação dos direitos. Para isso, saber identificar o seu currículo, e a pedagogia cultural produzia por ele, parece-me fundamental.

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2Clipe disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FY3m6hMyh3g. Acesso em: 12 fev. 2018.

3Favela no bairro da Tijuca, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

4Uso a categoria acusatória “bicha” como uma expressão ressignificada, em respeito aos seus usos identitários autoafirmativos, politicamente engajados.

5Disponível em: http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=372872. Acesso em: 10 fev. 2019.

6Uso “comunidade” entre aspas para problematizar as relações de reconhecimento, identificação, diferenciação e poder dentro do próprio grupo identitário LGBT, afinal, essas experiências de gênero e sexualidade não se mantém em relação sem conflitos, tensões, posições de sujeito de forma desigual, ainda que, em muitos contextos, estejam unidas em busca de diretos.

7"No ano de 2018, ocorreram 163 Assassinatos de pessoas trans, sendo 158 travestis e mulheres transexuais, 4 homens trans e 1 pessoa não-binária. Destes, encontramos notícias de que apenas 15 casos tiveram os suspeitos presos, o que representa 9% dos casos.” Disponível em: https://antrabrasil.org/category/violencia/. Acesso em: 11 fev. 2019.

8Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/nego-do-borel-explica-foto-ao-lado-de-jair-bolsonaro-22872434.html. Acesso em: 12 fev. 2019.

9Sobre o clima de pânico moral no Brasil, que caracteriza hoje uma cruzada moral em torno as questões de gênero e sexualidade, consulte Balieiro e Duque (2018).

10“Tais empreendedores morais são religiosos, dentro da Igreja Católica, de vertentes religiosas neopentecostais, seguidores laicos dessas religiões, pessoas que se engajam na luta por razões simplesmente éticas, morais e/ou políticas as mais diversas e não são necessariamente da sociedade civil, mas podem atuar dentro de instituições e até mesmo do governo”. (MISKOLCI e CAMPANA, 2017, p. 230).

11Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/nego-do-borel-explica-foto-ao-lado-de-jair-bolsonaro-22872434.html. Acesso em: 12 fev. 2019.

12“As primeiras experiências com a música soul ocorreram nas discotecas de classe média da zona sul do Rio, já em 1972-1973. Entretanto, o Soul só se tornou um ‘movimento’ alguns anos depois, ao se difundir pela imensa zona suburbana e pobre do Rio. A música Soul era ouvida e dançada em clubes e, muitas vezes, nas grandes quadras das escolas de samba. Não demorou muito para que esse fenômeno, originalmente uma criação carioca, recebesse a atenção da imprensa escrita, que o definiu como o movimento ‘Black Soul’ ” (SANSONE, 2001, p. 172).

13Sobre a sua participação no clipe, o modelo deu uma entrevista que está disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/mexerico/2018/07/17/noticias-mexerico,230777/modelo-que-beija-nego-do-borel-em-me-solta-fala-sobre-o-polemico-clipe.shtml. Acesso em: 12 fev. 2019.

Recebido: 28 de Fevereiro de 2019; Aceito: 04 de Setembro de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Yaisa Melina de Araújo Custódio. E-mail: melina.yaisa@gmail.com

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