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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.4 Campinas Oct./Dec 2019  Epub Apr 29, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v21i4.8653271 

Relato de Experiência

TEORIA E PRÁTICA NA DOCÊNCIA NOS ANOS INICIAIS: DIMENSÕES (IN)DISSOCIÁVEIS?

THEORY AND PRACTICE ON TEACHING IN ELEMENTARY SCHOOL: (IN)SEPARABLE DIMENSIONS?

TEORÍA Y PRÁCTICA EN LA DOCENCIA EN LOS AÑOS INICIALES: ¿DIMENSIONES (IN)DISOCABLES?

Lissa Pachalski1 

Marta Nornberg2 

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - Pelotas, RS - Brasil. E-mail: pachalskil@gmail.com

2Doutora em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre - RS - Brasil. Professora Associada do Departamento de Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - Pelotas, RS - Brasil. E-mail: martanornberg0@gmail.com


RESUMO

Este artigo problematiza o discurso que dicotomiza a relação teoria e prática na profissão docente. Analisa um diário de registros de estágio nos anos iniciais a partir dos conceitos de conhecimento do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo, balizadores da argumentação. Argumenta em torno da possível e necessária dissolução da divisão e consequente hierarquização entre teoria e prática no exercício da profissão docente. Sustenta a teoria e a prática como dimensões relacionadas e indissociáveis da docência e da ação pedagógica.

PALAVRAS-CHAVE: Base de conhecimentos para o ensino; Conhecimento pedagógico do conteúdo; Teoria e prática; Docência nos anos iniciais; Estágio

ABSTRACT

This article problematizes the discourse which disengages the relationship between theory and practice in the teaching profession. It analyzes an internship record diary in the elementary school from the concepts of content knowledge and pedagogical knowledge of the content, indicators of the argumentation. It argues about the possible and necessary dissolution of the division and consequent ranking between theory and practice in the exercise of the teaching profession. It sustains theory and practice as related and inseparable dimensions of teaching and pedagogical action.

KEYWORDS: Knowledge base for teaching; Pedagogical knowledge of content; Theory and practice; Teaching in elementary school; Internship

RESUMEN

Este artículo problematiza el discurso que dicotomiza la relación teoría y práctica en la profesión docente. Se analiza un diario de registros de prácticas en los años iniciales a partir de los conceptos de conocimiento del contenido y conocimiento pedagógico del contenido, balizadores de la argumentación. Argumenta en torno a la posible y necesaria disolución de la división y consecuente jerarquización entre teoría y práctica en el ejercicio de la profesión docente. Sostiene la teoría y la práctica como dimensiones relacionadas y indisociables de la docencia y de la acción pedagógica.

PALAVRAS-CLAVE: Base de conocimientos para la enseñanza; Conocimiento pedagógico del contenido; Teoría y práctica; Docencia en los años iniciales; Práctica

1 A PROBLEMÁTICA E SEU CONTEXTO TEÓRICO-PRÁTICO

[...] Um momento interessante deste dia ocorreu fora do âmbito da sala de aula. Resolvi escrever a respeito [do] porque tocar em um assunto sobre o qual reflito bastante. Dei carona de volta para uma das monitoras da escola. [...] Ela perguntou a mim e à Luiza como estava sendo o estágio. Comentou supondo que deveria estar sendo bem difícil, porque ‘a teoria é bem diferente da prática’, que ‘a pedagogia é muito teórica’ e que ‘as teorias até são boas às vezes, mas não dá pra aplicar por causa das crianças’. Perdi as contas de quantas vezes já ouvi isso na escola, seja de funcionários ou professores (e mesmo na própria universidade). [...] discordo completamente dessa perspectiva - e acho altamente nociva para a prática pedagógica. Sempre defendi a ideia de um professorado intelectual. E mantenho a minha posição. Engraçado, porque mesmo com essa experiência turbulenta de estágio, com mil atravessamentos que tornam a ação pedagógica algo extremamente desafiador e confuso muitas vezes, não arredo o pé sobre a necessidade de uma reflexão teórica constante - e quanto mais profunda puder ser, melhor. Fico me perguntando: como eu conseguiria lidar com todos os ‘issues’ que tivemos até aqui sem recorrer à teoria? Sem a ajuda de meus professores universitários intelectuais (que, segundo algumas vertentes, estariam desconectados da ‘realidade’)? Sem todo conhecimento que fui construindo desde o início da graduação? Nunca coube tão perfeitamente a colocação de Smith (1989): ‘a teoria é nosso escudo contra a perplexidade’. De fato, a linha é muito tênue e é muito fácil acabar sendo fatalista, diante da realidade da educação brasileira (ainda mais nas periferias), e se entregando à prática pela prática e ao linchamento da teoria. Ficamos perplexos, realmente. Eu fiquei no início do estágio. Mas o que percebo até aqui é que não teria conseguido ir adiante (aliás, não conseguiria nem sequer ter iniciado esse processo, a contar da elaboração do projeto de ensino) se não tivesse o lastro dos conhecimentos ‘abstratos’. Como eu conseguiria selecionar o que ensinar? Como eu conseguiria avaliar aquilo que a turma precisa em termos de aprendizagem (e não aquilo que ela deveria estar aprendendo de acordo com programa de conteúdos da escola)? Como eu conseguiria abordar o ensino da ortografia e do sistema de escrita - e, dentro disso, fazer a organização adequada da condução do trabalho - sem ter bebido muito de Ana Ruth, Artur Morais e Magda Soares? Como eu conseguiria pensar em diferentes formas de abordar um mesmo conceito para estimular as crianças a desenvolverem diferentes formas de raciocinar? Como eu conseguiria defender as nossas propostas pedagógicas diante dos questionamentos da coordenação da escola? Como eu conseguiria entender as hipóteses que as crianças têm a respeito dos conceitos sem ter categorias para captar seu discurso? A teoria (e tudo que ela representa - universidade, professores, orientadores, pesquisa, livros, abstração) tem sido, para mim, escudo, espada e refúgio. A teoria está aí, pelo que percebo, muito menos para ser aplicada e muito mais para servir ao ato de se repensar, de desacomodar, de problematizar, de não deixar (ou às vezes deixar) reproduzir, de não se permitir ações no instinto (características de animais, não de seres humanos). A prática ensina, sim... que a teoria é necessária. (Diário de Registros Reflexivos do Estágio em Docência - Relato do dia 23/06/2017 - Semana 9).

Não é recente a problemática envolvendo a relação entre teoria e prática, especialmente no âmbito da formação de professores. Conforme assinala Trevisan (2011, p. 197), esta é uma questão “que atravessa a relação entre Filosofia e Educação durante toda a história do ocidente”. Desde a filosofia grega (e possivelmente até antes disso), tendo Aristóteles como representante do estabelecimento dessa discussão, o mundo ocidental se divide em uma dicotomia, ora atribuindo mais peso à abstração, ora à experiência, parecendo ser impossível um posicionamento de articulação entre ambos. É na modernidade, entretanto, que essa ruptura ganhou mais força, a partir do estabelecimento do paradigma da racionalidade técnico-científica (SANTOS, 2002), o qual radicalizou a dualidade dos aspectos da realidade, de modo especial aquele que se ocupa do conhecimento.

Neste artigo, a proposta é discutir sobre tal dicotomia na profissão docente a partir da reflexão sobre uma experiência de estágio em docência compartilhada nos anos iniciais do ensino fundamental. Defenderemos a ideia de que é possível e necessária a dissolução da divisão e da consequente hierarquização entre teoria e prática no exercício da profissão docente, entendendo-as enquanto dimensões relacionadas e indissociáveis de um todo, isto é, a docência e a ação pedagógica.

Para tanto, serão analisados 26 excertos de texto extraídos do diário reflexivo de estágio em docência compartilhada. A escrita do diário trata-se de uma atividade obrigatória do estágio, sendo constituído de relatos literalmente diários da experiência pedagógica vivenciada pela(s) estudante(s), que os redigem individualmente. Sua proposição, enquanto atividade curricular, é baseada e justificada nas proposições de Weffort (1996, p. 44), a qual sugere que “a escrita, a reflexão, disciplina o pensamento para a construção do conhecimento e do processo de autoria”, e que “é nessa tarefa de reflexão que o educador formaliza, dá forma, comunica o que praticou, para assim pensar, refletir, rever o que sabe e o que ainda não conhece; o que necessita aprender, aprofundar em seu estudo teórico”.

O diário de registros reflexivos analisado neste artigo contém em torno de 50 registros/relatos e foi escrito pela primeira autora. O critério central utilizado para a extração dos 26 excertos dos registros do diário foi observar as situações descritas que apresentavam relações entre o ocorrido em sala de aula ou na escola, em geral, com aspectos teórico-conceituais, de forma implícita ou explícita, de modo que também evocassem os conceitos propostos por Shulman (2005, 2014), o que gerou, por sua vez, a elaboração das categorias de excertos. Após minuciosa análise, três diferentes categorias emergiram, baseadas nos conceitos balizadores da argumentação, especialmente em Shulman (2005, 2014), os quais serão discutidos em seguida: conhecimento (pedagógico) do conteúdo, que auxilia no diagnóstico, na avaliação de situações e no planejamento de futuras ações (baseadas no diagnóstico/avaliação); conhecimento (pedagógico) do conteúdo, que auxilia em intervenções imediatas; fragilidade do conhecimento (do conteúdo ou pedagógico do conteúdo), que prejudica intervenções, diagnóstico, avaliação e planejamento. Não há dúvida de que muitos excertos - senão todos - apresentam elementos híbridos, que legitimariam a presença daqueles em outras categorias. Entretanto, a divisão proposta seguiu aquilo que de mais saliente apresentou-se em cada excerto.

Relativamente ao estágio, importa mencionar que se trata de componente curricular obrigatório do curso de Pedagogia vinculado à Universidade Pública Federal, ocorre no último semestre e tem duração de três meses. Foi realizado em dupla, em uma escola municipal da periferia da cidade, com uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental. Esse é o contexto empírico a partir do qual emerge o problema a ser discutido neste artigo, como indica o excerto, prelúdio deste texto. É ali que a inquietação com determinados discursos, cuja característica principal é a eleição da prática como espaço de testagem, aplicação e julgamento da teoria, intensifica-se e conduz a um conjunto de indagações: o que significa dizer que a teoria é bem diferente da prática? A prática na sala de aula realmente prova o fracasso, a desimportância da teoria? Ou será que nós não entendemos bem o que a teoria sugere (e para que mesmo ela existe)? Tudo o que se aprende nos bancos universitários é irrelevante para a prática pedagógica? Qual o sentido do currículo dos cursos de Pedagogia (e da própria sala de aula)? Quando falamos em teoria, no âmbito da formação de professores, do que estamos tratando? E a que nos referimos quando falamos em prática?

Para pensar sobre essas questões, tomamos emprestadas as definições de Souza (2009, p. 50), que se refere à teoria como “conceitos, princípios, conjuntos de conhecimentos que, sistematizados, constituem um determinado domínio de conhecimento. [...] situam-se nesse campo tanto conteúdos das áreas disciplinares específicas quanto conteúdos pedagógicos” e, à prática, como “situações e formas variadas de contato3 com o mundo da escola e da docência e com experiências e vivências que dizem respeito ao universo escolar, ao ensino e à aprendizagem”.

Apesar de que, dados os limites temporais e espaciais do texto, não se realizará aqui uma exposição que faça jus à amplitude (e incerteza) dos conceitos, é crucial pensar, ainda com Souza (2009), em um alargamento necessário a eles. Muito recorrente, especialmente “em um modelo que identifica teoria com ciência e prática com senso comum” (SOUZA, 2009, p. 52), é pensar a prática como espaço de aplicação de teorias. Assim, prática está ligada à teoria em uma relação de hierarquia (inferior versus superior), de dependência e de oposição. O que acontece, assumindo-se essa perspectiva, é um reducionismo tanto dos conceitos quanto da relação entre ambos. Em contrapartida, assumimos a ideia de Carr (1996, p. 91, tradução nossa):

É possível que as três características da prática às quais se presta atenção (sua oposição à teoria, sua dependência da teoria, sua independência da teoria) sejam também características necessárias de uma prática educativa; no entanto, ao acentuar somente uma delas, excluindo as demais, cada uma dessas distintas descrições só pode oferecer uma versão incompleta, unilateral, daquilo que pode ser uma prática educativa.

Entendemos que o mesmo pode ser dito em relação à teoria: à medida em que a elevamos ou a rebaixamos a um estatuto de superioridade ou de inferioridade hierárquica, seja por qual motivo for, estaremos oferecendo e pautando-nos em uma versão incompleta e unilateral daquilo que pode ser uma teoria educacional.

Mas, afinal de contas, qual seria a base explicativa para uma proposta de articulação entre teoria e prática na profissão docente? Por que não deveríamos dualizar e ranquear teoria e prática quando se fala em pedagogia? Uma pista já pode ser extraída daquilo que foi exposto logo acima, a partir das reflexões de Carr (1996), sobre a incompletude de uma visão que rompe teoria e prática. No entanto, gostaríamos de ir além. Contamos, para isso, com as proposições de Shulman (2005, 2014), particularmente naquilo que ele define como “conhecimento pedagógico do conteúdo”.

O autor, ao discorrer sobre quais conhecimentos comporiam uma “base de conhecimento para o ensino”, destaca o conhecimento pedagógico do conteúdo como aquele que seria o “terreno exclusivo dos professores, seu meio especial de compreensão profissional” (SHULMAN, 2014, p. 206). Nas suas palavras, esse conhecimento “representa a combinação de conteúdo e pedagogia no entendimento de como tópicos específicos, problemas ou questões são organizados, representados e adaptados para os diversos interesses e aptidões dos alunos, e apresentados no processo educacional em sala de aula” (SHULMAN, 2014, p. 207).

Se observamos bem, esse tipo de conhecimento exige pelo menos dois componentes, sem os quais não se constitui enquanto tal, os quais chamaremos teoria e prática. Ou seja, exige que haja conhecimento de conteúdo, o que, para Shulman (2005, 2014), seria algo muito próximo do conhecimento teórico, tal como o delineamos neste artigo (e dentro do qual subjazem outras categorias de conhecimento), e exige que haja um locus concreto onde se instalará a ação pedagógica - a prática. Conforme propõe o autor, é um conhecimento que combina - articula, une, relaciona, põe em diálogo - esses componentes intrínsecos. Não se trata de ter conhecimento teórico de um lado e contexto de atuação de outro, como elementos estanques. E se, consoante Shulman (2014), o conhecimento pedagógico do conteúdo, cuja natureza pressupõe a articulação entre teoria e prática, é exclusivo dos professores, nesse sentido desempenhando papel fundamental na constituição de sua profissionalidade (PINI, 2010), eis aí um excelente argumento para sustentar uma relação orgânica entre teoria e prática na docência.

Shulman (2014, p. 216) ainda propõe que “a ação e o raciocínio pedagógicos envolvem um ciclo de atividades: compreensão, transformação, instrução, avaliação e reflexão. O ponto de partida e de chegada do processo é um ato de compreensão”. Não necessariamente esse ciclo obedece a uma ordem linear. Em determinadas situações, algumas destas ações podem nem chegar a aparecer. No entanto, a ideia é que, sobretudo, o ponto de chegada seja um estado de “nova compreensão dos propósitos, da matéria, dos alunos, do ensino e de si mesmo” (SHULMAN, 2014, p. 216), implicando nos processos de ajuste e mesmo modificação da prática e do próprio olhar teórico. Este é um ponto importante, visto que todos os elementos constitutivos deste ciclo, que contemplam as principais etapas da ação pedagógica, são atravessados pela base de conhecimentos para o ensino. Por isso, inclusive, chama-se ciclo de ação e raciocínio pedagógicos, compreendendo a mobilização de conhecimentos da ordem do prático e do teórico.

2 TEORIA E PRÁTICA NA PROFISSÃO DOCENTE: É POSSÍVEL, AFINAL, OPTAR POR UMA DAS DUAS? “TEORIA OU PRÁTICA” OU “TEORIA E PRÁTICA”?

Na seção anterior, o problema do artigo, bem como seu enquadramento teórico geral, foi alinhavado. A intenção, agora, é costurar esse quadro com as situações relacionadas à ação pedagógica registradas no diário reflexivo elaborado durante o período de estágio. É importante retomar que os excertos analisados estão agrupados em 3 diferentes categorias, inspiradas em Shulman (2005, 2014), sendo elas: conhecimento (pedagógico) do conteúdo, que auxilia no diagnóstico, na avaliação de situações e no planejamento de futuras ações (baseadas no diagnóstico/avaliação); conhecimento (pedagógico) do conteúdo, que auxilia em intervenções imediatas; fragilidade do conhecimento (pedagógico) do conteúdo, que prejudica intervenções, diagnóstico, avaliação e planejamento. A partir desse exercício analítico tentaremos sustentar uma posição em favor da “teoria e prática”.

2.1 Conhecimento (pedagógico) do conteúdo: diagnóstico de aprendizagens, avaliação de situações e planejamento de ações4

Uma atividade que funciona bem com a turma (e que eles gostam) é a escrita de um texto (ou da própria rotina) no quadro, onde eles devem sugerir as grafias para as palavras que devemos escrever. Fizemos isso com a cantiga Escravos de Jó. Facilita quando eles pelo menos sabem o texto de cor, o que ocorre com as músicas/parlendas/cantigas, no caso. Ao escrever com as suas sugestões, pude perceber que eles refletiram bastante sobre as relações entre fonemas e grafemas (assim, estimularam sua consciência fonêmica - SOARES, 2016). Também percebi que a algumas (várias) convenções ortográficas eles ainda não foram chamados a atenção. Por exemplo, para a palavra 'guerreiros' a primeira grafia sugerida (pela aluna Rosa5) foi 'gereiros'. Três observações extraio disso: (i) eles não observam que o contexto muda o modo como o 'r' será pronunciado (se /X/ - então precisa 'rr' - ou /R/ - apenas um 'r'); (ii) eles observaram que existe na escrita o falso ditongo /ej/ porque há pouco eu havia explanado a respeito dele, com a palavra 'deixa' (‘nem tudo o que falamos nós escrevemos e nem tudo o que escrevemos nós falamos. Vocês falam [‘dejSa] ou [‘deSa]?’); (iii) eles não observam (mesmo) que o 'g', em determinados contextos, representa o som de /g/ ou /Z/. Está na hora de uma sequência didática sobre ortografia. (Diário de Registros Reflexivos do Estágio em Docência - Relato do dia 29/05/2017 - Semana 6).

Como poderíamos relacionar o título desta categoria com aquilo que o excerto acima apresenta? A categoria diz respeito a situações em que, a partir de conhecimentos teóricos (que, recordando, remetem a conceitos, princípios, conjuntos de conhecimentos que, sistematizados, constituem um determinado domínio de conhecimento sobre determinado(s) campo(s) do saber), consegue-se, em primeiro lugar, inferir hipóteses que as crianças têm em relação a determinados assuntos. Desta forma, realiza-se um diagnóstico que, em muitos momentos, conduz a pensar em o que se precisa ensinar mais sistematicamente e em como se pode fazê-lo, de modo a sugerir estratégias de ensino das quais se pode lançar mão em determinadas situações.

Esta conduta está na base, por exemplo, das três observações realizadas sobre a percepção das crianças relativamente a algumas convenções ortográficas do sistema de escrita. Mas alguém pode estar se perguntando, por que este grau de detalhamento sobre essas questões? Qual é a sua repercussão na prática? Podemos pensar que a justificativa para o detalhamento é justamente a sua repercussão prática: é este exercício de analisar determinados outputs das crianças - isto é, realizar um diagnóstico - que auxilia na sustentação da conveniência da proposta que se faz em seguida - “está na hora de uma sequência didática sobre ortografia” - para tentar dar conta da necessidade de aprendizagem que se constatou.

E de onde viriam as condições para se realizar esse diagnóstico? Como ele se faz possível? Aqui entra o conhecimento do conteúdo de que fala Shulman (2014, p. 207) - ou conhecimento teórico - o qual “repousa sobre duas fundações: a bibliografia e os estudos acumulados nas áreas de conhecimento, e a produção acadêmica, histórica e filosófica sobre a natureza do conhecimento nesses campos de estudo”. De fato, difícil imaginar como conseguiria captar e descrever com tanta precisão os enunciados das crianças se não tivesse investido enfaticamente em uma compreensão sobre a natureza, organização e funcionamento do sistema ortográfico do Português Brasileiro, possibilitada, sobretudo, pela trajetória de iniciação científica em grupo de pesquisa sobre aquisição da linguagem escrita, com extensas horas de leituras individuais e compartilhadas, discussões de textos, produção de trabalhos, tratamento, levantamento e análise de dados. Enfim, o que seria isso senão “estudos acumulados nas áreas de conhecimento” e conhecimento da “produção acadêmica sobre a natureza do conhecimento nesses campos de estudo”?

É interessante observar, também, que estes procedimentos, em geral caracterizadores da atividade de pesquisa - tratamento, levantamento e análise de dados -, estão bastante presentes na ação pedagógica apresentada neste excerto. Ora, não estávamos falando há pouco sobre levantamento e descrição de falas das crianças? De processos de análise dessas falas para realização de um diagnóstico? E não há, de certa forma, um tratamento desses dados quando eles são registrados no diário reflexivo? Essa observação é instigante para a discussão e para a proposta do texto, visto que problematiza o rótulo de “puramente teórica e distante da realidade” que envolve a atividade de pesquisa. Assim, o professor pode (e deveria) ser, também, pesquisador (FAGUNDES, 2016). Na verdade, ele o é, mesmo que não assuma o papel, posto que a atividade de pesquisa compõe, aparentemente, a prática pedagógica. Mais uma vez, teoria e prática entrelaçam-se. A questão a se pensar sempre, é claro, é a qualidade desta relação, medida, sobretudo, pelo grau de consciência ou pela capacidade de explicitação do raciocínio que um indivíduo tem sobre ela.

Poderíamos pensar, ainda, naquilo que vem antes desse conhecimento mais específico sobre a linguagem. Possivelmente os próprios enunciados das crianças, dos quais se extraem essas informações - especialmente aqueles que vazam erros de compreensão sobre determinado fenômeno -, sequer teriam atenção se não os considerasse relevantes. E qual o motivo de considerá-los relevantes? Novamente, a existência de um posicionamento teórico, que, no caso, põe em evidência aquilo que a criança sabe - não importa se o seu pensamento está próximo ou não da estrutura de pensamento de um adulto sobre determinados assuntos. A criança sabe de acordo com a lógica que até então ela conseguiu construir cognitivamente e de acordo com sua etapa de desenvolvimento. Portanto, qualquer output produzido - falado, escrito, encenado - pode revelar grandes pistas sobre seu processo de pensamento.

Outro aspecto a salientar é uma conduta de avaliação crítica das situações ocorridas na sala de aula (onde se pensa sobre o porquê dos ocorridos), as quais podem ou não ter acontecido conforme o intencionado, levando a pensar em ações que poderiam ser mais eficazes no lugar das realizadas, ou mesmo em repeti-las. Neste item, ainda cabe a avaliação de situações relacionadas à performance das crianças em relação aos objetivos de aprendizagem previstos para elas.

Quando se constata que uma atividade “funciona bem com a turma” e que por isso será repetida em momento subsequente, está se realizando processos de avaliação e de escolha. Porém, como aponta Shulman (2014), esses processos podem ser meramente arbitrários, isto é, dissociados de qualquer fundamento ou princípio consciente, que justifiquem, de modo explicativo, a pertinência das práticas. Diante disso, o autor frisa que “os professores precisam aprender a usar sua base de conhecimento para prover fundamentos para escolhas e ações” (p. 214, grifo nosso), e mais: “o professor não só tem que entender que algo é assim, mas também porque é assim, quais são as razões que justificam um enunciado” (SHULMAN, 2005, p. 211, tradução nossa). Se assim não for, o “bom ensino” será sempre um golpe de sorte, inconsistente, e nunca algo que pode ser, com base em princípios, sustentado. No entanto, esta não é uma questão de olhar a prática apenas como submissa à teoria, em uma relação de hierarquia ou de dependência. Retomando a reflexão de Carr (1996), não é que a relação teoria e prática seja somente de dependência, pois com isso estaria partindo de uma visão bastante incompleta do que seja esta relação. Mas, ainda assim, este é, sim, um dos aspectos que a caracteriza, e, portanto, deve ser analisado. A prática precisa da teoria, do mesmo modo que a teoria também depende da prática.

Ora, a partir disso, emerge o mesmo tipo de pergunta já realizado em outro momento, agora em nova circunstância: como se constituem princípios que justifiquem, de modo explicativo e não-arbitrário, as escolhas feitas na ação pedagógica? Note-se o grifo realizado na citação anterior, de Shulman (2005). É necessária uma base de conhecimentos. Evidentemente essa base não envolve apenas conhecimentos teóricos. Para Shulman (2014), essa base é composta de vários tipos de saberes, dentre os quais se inclui o teórico. Tardif (2002) diz o mesmo. E a questão é justamente essa: a base inclui uma variedade de saberes, advindos de diferentes fontes, não hierarquizados entre si e que possuem uma relação orgânica. Saberes da ordem do teórico e do prático, por assim dizer. Sempre em relação.

Então, no caso apresentado pelo excerto, como poderíamos observar um fundamento explicativo para a constatação de que a atividade descrita “funciona bem com a turma”? Poder-se-ia ter parado quando se escreveu que “eles gostam” [da atividade]. Entretanto, se fosse o caso, não se conseguiria encontrar um bom motivo para desenvolvê-la novamente em outros momentos. Não basta que eles simplesmente gostem, se ela não provoca pensamento e aprendizagem nos alunos. Assim, ela segue idiossincrática.

Uma possível resposta para a pergunta, portanto, está na explicitação que vem logo a seguir, no excerto: “ao escrever com as suas sugestões, pude perceber que eles refletiram bastante sobre as relações entre fonemas e grafemas (assim, estimularam sua consciência fonêmica [SOARES, 2016])”. Ou seja, uma atividade em que, coletivamente - desse modo possibilitando o confronto de hipóteses -, as crianças possam sugerir livremente como grafar determinadas palavras, assenta-se, fundamentalmente, sobre o fato de que ela provoca a reflexão sobre a relação entre fonemas e grafemas, estimulando a consciência fonêmica dos alunos. Esta é um pilar especialmente importante para a aquisição do sistema de escrita alfabética e, consequentemente, para a aprendizagem da ortografia deste mesmo sistema de escrita (SOARES, 2016). Identifica-se aí, mais uma vez, aquilo que estamos chamando de conhecimento do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo. Neste caso, como algo que atua para fundamentar e tecer princípios de avaliação e escolha.

Atente-se: o fato de saber distinguir o que é prioritário relativamente àquilo que é secundário, dentro de determinado campo do conhecimento ou do próprio programa curricular - saber que provocar a reflexão sobre a relação entre fonemas e grafemas é importante porque auxilia na aprendizagem do sistema ortográfico, que, por sua vez, é de primordial investimento já que as crianças adquiriram o sistema de escrita alfabética - é característica distintiva de um professor que mobiliza conhecimento (pedagógico) de conteúdo (SHULMAN, 2005). Este mesmo conhecimento também possibilitará o estabelecimento de objetivos de aprendizagem, os quais fundamentam, paralelamente, a avaliação da performance das crianças em relação a determinados conteúdos. A estipulação e seleção dos objetivos de aprendizagem passam pela clareza que advém, em parte, destes conhecimentos, os quais discernem entre “o que entra e o que sai”, o que é primário e o que é secundário.

Os movimentos apresentados nesta categoria de excertos - avaliar, diagnosticar, planejar - resultam de uma espécie de transformação do conhecimento do conteúdo (ou teórico). Tais movimentos, típicos do ato pedagógico, parecem cobrar do conhecimento teórico uma transformação para que possam realmente acontecer. Nesse sentido, é interessante observar que vai sendo tecido um ciclo de ação e raciocínio pedagógicos: começa com processos de compreensão, a partir do conhecimento de conteúdo (no caso, relacionado à linguagem escrita), o qual é transformado (preparado, representado, selecionado, adaptado), gerando avaliação e reflexão, de modo a estabelecer e escolher a abordagem instrucional que será realizada em momento posterior. Nesse ciclo de ação e raciocínio pedagógicos, conhecimento de conteúdo e pedagogia são colocados em articulação, produzindo conhecimento pedagógico do conteúdo.

2.2 Conhecimento (pedagógico) do conteúdo mobilizado em intervenções imediatas6

Foi possível observar, na categoria de excertos anterior, a presença de quase totalidade dos itens que compõem um típico ciclo de ação e raciocínio pedagógicos: compreensão, transformação, avaliação, reflexão e nova compreensão, todas interligadas e envolvendo o conhecimento teórico ou de conteúdo em interface com as questões próprias do âmbito pedagógico, gerando o “amálgama” que é o conhecimento pedagógico do conteúdo. Na categoria de excertos atual, o elemento que prevalece, em especial, é o de instrução - o único não explícito na categoria anterior. Esta é precisamente a justificativa para a existência da categoria de que estamos tratando agora. Abaixo segue um exemplo sobre o qual será realizado o exercício analítico:

O jogo dos copinhos funcionou bem também. Eles estavam mais concentrados do que a última vez que fizemos. Tentei, depois de algumas rodadas com poucas intervenções minhas, explorar que o raciocínio que estava por trás do jogo era multiplicativo. Na primeira vez em que explorei isso, achei que ficou bem claro (eba!). Percebi isso, também, pelo retorno que os alunos davam às minhas perguntas. O que fiz foi mais ou menos o seguinte: ‘quantos copinhos tiramos nessa rodada? E quantos cubinhos? [3 copinhos e 6 cubinhos] E como vocês chegaram nesse resultado? [somando o que tem em cada copinho; seis mais seis mais seis] Então é que nem escrever assim, não é? (6 + 6 + 6 = 18) [concordaram] E quantas vezes o 6 aparece aqui? [três] Então será que eu não posso escrever isso de um outro jeito ainda? Ó, 3 vezes o 6 (3 x 6 = 18). O 'vezes' quer dizer isso, gente: que eu tô somando 3 vezes o 6, que o 6 aparece 3 vezes (Diário de Registros Reflexivos do Estágio em Docência - Relato do dia 07/07/2017 - Semana 11).

O “jogo dos copinhos” era bastante simples: havia duas rodadas. Em uma jogávamos um dado (de 1 a 6) para determinar a quantidade de copinhos plásticos que cada aluno deveria pegar. Na outra, um dado de 1 a 8 determinaria a quantidade de cubinhos (peças pequenas) que cada aluno deveria distribuir em cada copo.

Neste exemplo, é possível enxergar claramente aquilo que Shulman (2014, p. 219) descreve como processo de instrução, cujas características consistem nas ações de “organizar e gerenciar a sala de aula; apresentar explicações claras e descrições vívidas; atribuir e verificar trabalhos; e interagir eficazmente com os alunos por meio de perguntas, respostas e reações, além de elogio e crítica”. O autor também destaca que, apesar desta etapa do ciclo estar mais ligada aos movimentos de ação em sala de aula, ela, assim como as outras, exige compreensão do objeto de ensino, de modo que há repercussões bastante grandes no estilo de ensino.

Este é um ponto interessante, pois, como se verá mais adiante, a área da matemática, no caso, é justamente aquela que apresenta de modo arquétipo o quanto a incompreensão do conteúdo gera fragilidade nas etapas do ciclo de ação e raciocínio pedagógicos. Mas, no caso apresentado acima, aparentemente há clareza sobre os conceitos específicos que estão sendo abordados com o jogo (raciocínio multiplicativo), bem como sobre o objetivo de se estar realizando precisamente este jogo e não outro - explorar o conceito da multiplicação em sua base, que é a adição de parcelas iguais. Isto é perceptível na tentativa de explicação apresentada.

Em primeiro lugar, a inteligibilidade desses elementos permite a decomposição progressiva das perguntas que vão sendo lançadas, sempre submetidas à avaliação das respostas dadas pelas crianças. Isto é, a seleção das perguntas feitas, bem como o modo como elas são encadeadas, não é fortuita. Esses processos partem de uma compreensão mais basilar sobre como ocorre o processo de aprendizagem pela criança (pelo conflito de hipóteses e a partir daquilo que a criança já sabe) e, como já dito, de uma compreensão sobre o objeto de ensino (o raciocínio multiplicativo). É por essa postura, e, de certo modo, por essa crença epistemológica, que se organiza o momento de instrução. Teoria e prática entrelaçadas mais uma vez. Ao invés de simplesmente reduzir a explicação à fala final (“O 'vezes' quer dizer isso, gente: que eu tô somando 3 vezes o 6, que o 6 aparece 3 vezes”), há um lançamento progressivo de perguntas que ativam o pensamento das crianças para aquilo que estão fazendo, encadeadas de acordo com o conceito que se pretende desenvolver. A redução apontada produziria um ensino altamente diretivo e descontextualizado, que desconsidera o movimento realizado pelas crianças com o jogo bem como seus conhecimentos já estabelecidos - situação na qual se possui conhecimento do conteúdo, mas se identifica pouca ou nenhuma transformação deste conhecimento com vistas à ação pedagógica. Para se chegar no produto final, enfim, foi necessário a elaboração de um processo de compreensão.

Philippe Meirieu (2005, p. 54) explora esse ponto nos termos do fazer (produto) e do compreender (processo):

[...] na Escola, ao contrário do que se passa no circuito econômico, o ‘produto’ é apenas um pretexto. Exercícios, deveres, dossiês, exposições: isso tudo não tem nenhum interesse em si mesmo. Eles são utilizados apenas na medida em que permitem confirmar competências que sobreviverão amplamente a eles. Ninguém conserva por toda a vida seus cadernos escolares… mas é de se esperar que todos conservem aquilo que puderam adquirir pelo trabalho em seus cadernos. O que conta, na Escola, não é o que se vê, mas aquilo que confirma o que se vê. O que conta não é a tarefa, mas o objetivo.

Ainda que a abordagem do autor esteja mais voltada à definição do papel da Escola, enquanto instituição, se partirmos do pressuposto que os professores e alunos devem também incorporar os princípios que a caracterizam (MEIRIEU, 2005), podemos capturar esta reflexão para a profissão docente: o que eu estou fazendo enquanto professora - seja propondo um jogo (como no caso do excerto), utilizando um determinado tipo de material, lendo um livro, escrevendo um texto ou cantando uma música - será muito pobre de significados possíveis se eu não tiver em mente o objetivo pelo qual estou fazendo, se eu não souber o porquê daquilo que proponho aos meus alunos. Quanto menos houver compreensão sobre meu objeto de ensino - ou quanto mais houver foco no produto (no fazer pelo fazer, na tarefa) - menor será a acessibilidade dada aos alunos diante daquilo que se pretende ensinar. Talvez por isso o “ciclo de ação e raciocínio pedagógicos” seja, de fato, um ciclo (dando a ideia de relação constante e infinita), e envolva essas duas dimensões: ação e raciocínio, fazer e compreender, tarefa e objetivo, teoria e prática.

Outro excerto bastante ilustrativo dos elementos explorados acima e que ajuda a corroborar a proposta de análise é o que segue:

[...] o momento de produção textual foi interessante também em função de uma situação particular: vários alunos vinham me mostrar as suas escritas, não necessariamente quando haviam finalizado, mas para conferir se estavam indo pelo caminho correto. Eu, então, pedi que eles lessem o que haviam escrito até ali. Confesso que inicialmente lancei mão dessa estratégia sem estar muito consciente do objetivo pelo qual estava fazendo (evidente, tinha em mente a questão da leitura em si). Mas depois percebi que ela estava sendo muito útil para que os alunos pensassem sobre o que escreveram e revisassem o texto. Jacinto, Narciso e Rosa foram alunos que lembro que, enquanto liam, se deram conta de alguns erros que cometeram. Fiquei bastante contente ao observar essa performance deles, pois esse tipo de habilidade é o que nós estamos tentando trabalhar ao longo dessas semanas. (Diário de Registros Reflexivos do Estágio em Docência - Relato do dia 19/06/2017 - Semana 9).

Nele, é possível perceber, sobretudo, as ações, constitutivas da etapa de instrução de que está se tratando, de “atribuir e verificar trabalhos” - pois os alunos vinham até mim com o intuito de que eu verificasse seus textos - e de “interagir eficazmente com os alunos por meio de perguntas, respostas e reações” - a partir da busca dos alunos pela minha avaliação, gerando uma reação da minha parte. Mais uma vez, a resposta, em face do requerimento dos alunos pela verificação, poderia ter sido simplesmente algo como “está certo”, “está pronto” ou, ainda, “está errado, substitua x por y”. Porém, dada a concepção de aprendizagem que fundamenta as ações pedagógicas, tal procedimento não faria sentido, pois não instiga os alunos a pensar, tampouco gera conflito de hipóteses (e muito menos aprendizagem, portanto).

A diferença, no entanto, deste excerto para o outro, está no momento em que e no modo como o processo de instrução foi gestado e executado. No primeiro caso, a intenção de explicar um conceito já está pré-concebida (e prevista no plano de aula do dia), articulada ao que se observou de compreensão das crianças sobre o jogo e sobre os conceitos envolvidos nele. No segundo caso, não há uma ação planejada previamente sobre o problematizar, instruir e verificar as produções das crianças. Diante da atitude delas de mostrar o texto, a única coisa que se sabe, no ato, é que não há desejo de limitar o dizer ao “está certo” ou “está errado”, em virtude do posicionamento epistemológico assumido. Assim, a alternativa encontrada é pedir que leiam o texto, mesmo que a ideia de que esta seria a melhor opção não estivesse clara. Mas, talvez por uma eventualidade casada com conhecimento teórico (situação típica de eventos de sala de aula, diga-se de passagem), a “escolha instrucional” é plenamente gestada no calor do ato pedagógico. A partir do momento em que percebo que a leitura do texto provoca processos de reflexão e revisão do mesmo pelos alunos - ou seja, os faz pensar - e que lembro a respeito dos objetivos de aprendizagem que traçamos para eles - “esse tipo de habilidade é o que nós estamos tentando trabalhar ao longo dessas semanas” - consigo perceber um bom motivo para demandar dos alunos a ação da leitura - e, sobretudo, para realizá-la reiteradamente com outros alunos depois disso.

Esta postura é muito semelhante àquela apresentada na primeira categoria de excertos, quando foram exploradas as ações de realização de diagnóstico, de avaliação e de planejamento. De certa forma, estes três elementos estão presentes no que foi descrito acima também. Avalia-se e diagnostica-se o ato de leitura do texto e a performance das crianças gerada a partir disso, com base em critérios elaborados através de conhecimento teórico. Planeja-se, no ato, a ação imediatamente posterior a partir desses procedimentos, quando se constata que a leitura do texto era uma boa ideia, tendo em vista o que provocava e os objetivos de aprendizagem que permitia serem desenvolvidos.

2.3 Fragilidade do conhecimento (do conteúdo ou pedagógico do conteúdo)7

Assim como situações pedagógicas ilustram casos “afirmativos”, como as analisadas anteriormente, ou seja, situações onde se observam casos que auxiliam a corroborar o argumento do artigo a partir da presença de determinadas ações ou conceitos teóricos salientados (como conhecimento do conteúdo, ações de reflexão ou avaliação etc.), é possível também que elas ilustrem casos “negativos”. Estes são tão potentes quanto os anteriores, no sentido de colaborar com o argumento, especialmente pelo seu efeito contrastivo, pois trazem à tona um aspecto contrário: a fragilidade (ou relativa ausência) de elementos ou ações consideradas importantes para a docência, dentro do domínio teórico de onde estamos tratando. Eis um exemplo:

Confesso que tenho dúvidas com relação a como podemos nós mesmas ajudá-los a esgotar as possibilidades de exploração do material. Às vezes, percebo que não consigo ser clara ao explicar alguns procedimentos ou me faltam as perguntas para instigá-los a pensar no que estão fazendo, especialmente para os alunos que precisam de mais ajuda. Preciso ler mais a respeito, inclusive dos próprios conceitos do Sistema de Numeração Decimal, que estamos tentando consolidar com os alunos. Sinto dificuldade de explorar de modo claro principalmente a relação que existe entre o material dourado e o conceito de valor posicional (e de por que o algarismo é construído tal como é). Relacionado a isso, também entra a questão da exploração das situações-problema, em matemática. Já havia notado isso, mas hoje ajudando Jacinto e Girassol, especialmente nos problemas que exigiam raciocínio inverso, constatei minha insuficiência para ensinar melhor e problematizar esse tipo de conteúdo. O ‘conhecimento do conteúdo’ falha bastante na área de matemática, o que não é uma surpresa, diga-se de passagem. Ainda assim, fica a questão: como ajudar e como ensinar isso (raciocínio inverso) melhor? Só fazendo problemas? O que mais posso perguntar ou propor? (Diário de Registros Reflexivos do Estágio em Docência - Relato do dia 09/06/2017 - Semana 7).

Nesse relato, está explícita a fragilidade em relação ao conhecimento de conteúdo envolvendo a área de matemática. Tal fragilidade é inclusive reconhecida em determinado momento. Mas qual o problema dessa falha? Por que se observa que o conhecimento de conteúdo faz falta? Para o que ele faz falta?

A reflexão realizada em torno de Meirieu (2005) na categoria de excertos anterior também auxilia a abordar essa questão: sem que haja compreensão do conteúdo ou do objeto de ensino por parte do professor, dificilmente será possível auxiliar os alunos a compreenderem-no também. Assim, não basta que sejam dominados um conjunto de técnicas ou, como na situação colocada pelo excerto, conhecimentos procedimentais sobre determinado conteúdo (saber fazer a operação de multiplicação, por exemplo). Afinal, uma ação, para ser caracterizada como pedagógica, precisa explicitar os princípios, as tensões e os conceitos envolvidos, sejam eles teóricos ou práticos, pois, quando não o faz, deixa de ser pedagógica e passa a ser algum tipo de atividade meramente instrumental, técnica, burocrática, produtivista.

Além disso, se considerarmos que o conhecimento do conteúdo incorpora praticamente todas as etapas do ciclo de “ação e raciocínio pedagógicos”, conforme descrito por Shulman (2014), é difícil que o ato pedagógico não seja comprometido em pelo menos um de seus aspectos se tal conhecimento estiver fragilizado ou relativamente ausente. No excerto, salienta-se que a sua falta é sentida, sobretudo, no momento de realizar aquilo que, mais uma vez, está no cerne do ensino, isto é, no momento de problematizar, instigar e explicar alguma coisa, isto é, no momento de transformar as ideias compreendidas a fim de torná-las acessíveis aos alunos.

Note-se o termo que se está utilizando para caracterizar o conhecimento do conteúdo: frágil ou relativamente ausente. Isso implica assumir, em contrapartida, que ele não está inteiramente ausente. Dificilmente isso acontecerá, independente de quem seja o sujeito da circunstância, ainda mais se assumimos que os indivíduos não são tábulas rasas. Há algum conhecimento sendo acionado nesse momento. Neste caso, especificamente, lembremos de que todos os professores ao menos tiveram uma experiência de escolarização básica e nela aprenderam os aspectos mais elementares da matemática. Porém, se tal estudo não for minimamente aprofundado, provavelmente não saberão por que as coisas são assim. Isso, de fato, é uma falha, uma lacuna, se assumirmos aquela ideia já explorada, de que “o professor não só tem que entender que algo é assim, mas também por que é assim, quais são as razões que justificam um enunciado” (SHULMAN, 2005, p. 211, tradução nossa). Para ensinar, não é suficiente ter maestria procedimental. É preciso ter densidade teórica e intelectual.

Há também, em certos trechos do excerto, evocação de determinados conceitos relacionados à matemática (valor posicional, raciocínio inverso, Sistema de Numeração Decimal), demonstrando que existe algo mais do que apenas um conhecimento tácito da área. No entanto, esses conhecimentos são frágeis, isto é, não são potentes a ponto de possibilitar versatilidade na maneira de ensinar e nem capacidade de problematização das hipóteses que os alunos apresentam.

Nesse sentido, é interessante que contrastemos a situação ilustrada com base neste excerto com aquela apresentada na primeira categoria. O domínio conceitual apresentado na área de linguagem permitiu que, após uma breve avaliação, captada a partir das reações verbalizadas pelas crianças, fosse possível cogitar em uma maneira de lidar com as necessidades de aprendizagem, no caso, a elaboração de uma sequência didática sobre ortografia. Evidentemente, essa sequência ainda não havia sido planejada formalmente, mas já exibe um esboço mental prévio, que inclui os tipos de módulos dos quais ela poderia ser constituída e uma possibilidade de sequenciação dos conteúdos envolvidos.

O contrário é explícito no excerto aqui apresentado: além de assumir a dificuldade em lidar com as dúvidas das crianças, pela falta de insumos teóricos, mesmo realizando o processo de registro e reflexão, não é possível pensar em algo de que se possa lançar mão para melhor ensinar determinados conteúdos: “[...] fica a questão: como ajudar e como ensinar isso (raciocínio inverso) melhor? Só fazendo problemas? O que mais posso perguntar ou propor?”. As reflexões feitas sobre a ausência do conhecimento teórico reiteram nossa perspectiva, isto é, para ler as situações da escola precisa-se da teoria, pois com ela se criam condições para compreender o que é observado e, assim, tomar decisões no sentido de reencaminhar a prática educativa.

3 REFLEXÕES FINAIS

Neste artigo, através da análise de excertos de um diário de registros reflexivos de estágio em docência, apresentamos a maneira como teoria e prática aparentam ser indissociáveis na ação docente. Essa relação de indissociabilidade foi explorada a partir daquilo que Shulman (2005, 2014) propõe como ciclo de ação e raciocínio pedagógicos, cuja sustentação está em uma base de conhecimentos para o ensino. Declaradamente, essa base é constituída de conhecimentos advindos de fontes bastante heterogêneas e organizados de maneira não-hierárquica. A ênfase ao longo deste texto, no entanto, esteve especialmente no conhecimento pedagógico do conteúdo, resultado da transformação do conhecimento de conteúdo, assumido aqui como conhecimento teórico, a partir de sua interação com os elementos pedagógicos por excelência, assumidos como prática.

Entendemos as limitações da abordagem proposta, uma vez que se baseia em uma análise de conteúdo que, pelo seu tamanho amostral, pode não ser representativa de outros espaços onde ações pedagógicas se desenrolam. Ao mesmo tempo, tal singularidade pode ser encarada como fator potencial porque explicita movimentos próprios da docência realizados em contexto de formação inicial, neste caso, o estágio curricular nos anos iniciais do ensino fundamental. Reconhecemos a importância do relato na medida em que se fundamenta em conceitos teóricos construídos ao longo de muitos anos de estudo e de pesquisa a partir de diferentes situações reais de ensino (SHULMAN, 2005, 2014), o que aumenta seu poder de observação, descrição e explicação. Essa é a razão pela qual estudos que procurem analisar outros aspectos da ação pedagógica podem se valer de uma metodologia semelhante àquela que foi empregada neste estudo. Nesse sentido, destacamos a dupla importância dos registros reflexivos: primeiro como condição para que ocorra a articulação relativamente consciente entre teoria e prática por parte dos professores, pelo seu potencial de sistematizar e organizar o pensamento (WEFFORT, 1996); segundo, sendo decorrente do primeiro, como espaço singular para a reflexão sobre como se caracterizam e se unem teoria e prática na ação pedagógica.

Cremos ser possível sustentar a ideia, partindo do quadro teórico-analítico sintetizado, de que, por mais que se deseje produzir uma cisão entre teoria e prática, ela será no mínimo artificial, e acabará resultando em uma “versão incompleta e unilateral” (CARR, 1996) da relação de que estamos tratando. Pelo que é possível observar, portanto, a teoria, na prática, se fará presente, quer se queira ou não, o que evoca a reflexão de Weffort (1996, p. 39): “[...] não existe prática sem teoria, como, também, não existe teoria que não tenha nascido de uma prática. [...] o importante é que a reflexão seja um instrumento dinamizador entre prática e teoria”.

Com isso, pode emergir a pergunta de por que, afinal de contas, defendemos a articulação entre teoria e prática se ambos os aspectos estão em relação, não importa o que se faça. A questão, porém, é a qualidade dessa relação. A maneira como se faz essa relação acontecer é responsabilidade do professor. É ele quem irá decidir se, pelo processo de reflexão, entendido como tomada de consciência, irá dinamizá-la, transformando o conhecimento de conteúdo em conhecimento pedagógico do conteúdo; se irá realizar apenas gestão de tarefas ou também gestão das ideias na sala de aula, desencadeando processos de compreensão e aprendizagem nesse espaço (SHULMAN, 2014; MEIRIEU, 2005); se irá, enfim, suscitar seu ciclo de ação pedagógica com um movimento de raciocínio e culminar com um movimento de novo raciocínio que comprometa as opções feitas no início do ciclo, conduzindo a um fluxo de transformação tanto do teórico quanto do prático.

Propomos que se pense, por fim, que é nessa opção de relação “teoria e prática” onde se desenvolvem algumas das principais condições para a construção de uma profissionalidade docente, se assumirmos como profissional aquele que, dentre outros aspectos, dispõe de conhecimentos específicos, os quais não podem ser erigidos sem um extenso processo formativo (PINI, 2010). E se o conhecimento pedagógico do conteúdo - essa capacidade de mobilizar e transformar conhecimento de conteúdo (teoria) para torná-lo acessível aos alunos (prática) - é a marca distintiva de um professor em relação a um mero especialista (SHULMAN, 2014), não estaria diante de nós um alerta evidente sobre o fato de que a questão não é, de fato, optar por teoria ou prática, mas sim investir na qualidade da relação teoria e prática? A nós, é evidente a necessidade de colocar em diálogo os antagonismos ao invés de a eles sucumbirmos ou diante deles ficarmos imobilizados; afinal, entendemos que só com a prática ou só com a teoria, por exemplo, não é possível pensar a realidade complexa da escola e da sala de aula e, nela, agir responsavelmente.

REFERÊNCIAS

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FAGUNDES, Tatiana Bezerra. Os conceitos de professor pesquisador e professor reflexivo: perspectivas do trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 21, n. 65, p. 281-298, abr./jun. 2016. [ Links ]

MEIRIEU, Philippe. O cotidiano da escola e da sala de aula. Porto Alegre: Artmed, 2005. [ Links ]

PINI, Mónica Eva. Profissão docente. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade; DUARTE, Adriana Maria Cancella; VIEIRA, Lívia Maria Fraga. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. Disponível em: http://www.gestrado.net.br/?pg=dicionario-verbetes&id=425Links ]

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3É interessante atentar, com vistas ao que aqui está sendo discutido, àquilo que a autora define como contato. Segundo ela, “a palavra contato [...] não precisa nem deve ser vista como indicando exclusivamente contato concreto, físico, material, com o chão da escola e com a sala de aula. Não vejo porque não possa ser visto como contato - e como prática no contexto curricular - a discussão de assuntos e problemas do cotidiano escolar em outro espaço que não a escola em si mesma” (SOUZA, 2009, p. 50). Acreditamos que esta definição é muito útil, pois ela amplia o próprio conceito do que seja prática, não o reduzindo apenas a situações ocorridas em sala de aula ou no ambiente escolar, em si mesmos.

4Dez (10) excertos configuraram-se dentro desta categoria.

5Nomes fictícios.

6Doze (12) excertos integram esta categoria.

7Quatro (04) excertos integram esta categoria.

Recebido: 26 de Agosto de 2018; Aceito: 08 de Janeiro de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Helena Beatriz Mascarenhas de Souza. E-mail: bitisamascarenhas@hotmail.com

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