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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.21 no.4 Campinas out./dez 2019  Epub 29-Abr-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v21i4.8652679 

Ensaio

HETEROTOPIAS

HETEROTOPIAS

HETEROTOPÍAS

Kátia Maria Kasper1 

Andre Pietsch Lima2 

Gabriela de Sousa Tóffoli3 

1Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Campinas, SP - Brasil. Professora do Setor de Educação - Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Curitiba, PR - Brasil. E-mail: katiakasper@uol.com.br

2Doutor em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre, RS - Brasil. Professor do Setor de Educação - Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Curitiba, PR - Brasil. E-mail: andrepietschlima@gmail.com

3Mestranda em Educação em Ciências e em Matemática - Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Curitiba, PR - Brasil. Professora da educação básica - Prefeitura Municipal de Araucária - Araucária, PR - Brasil. E-mail: gabrielatoffoli@gmail.com


RESUMO

Barthes (2006) convida a pensar o texto de fruição como aquele que leva o leitor a um estado de perda, desconforto, faz vacilar suas bases históricas, culturais, psicológicas, a consistência de seus gostos, valores, lembranças - faz entrar em crise sua relação com a linguagem. O texto de prazer, por outro lado, contenta, enche, dá euforia, vem da cultura sem romper com ela - sua leitura é confortável. Entre um e outro regime de escrita e leitura, o Texto (BARTHES, 2004) se reconstrói, fiando-se em meio aos prazeres da linguagem, descrevendo um pátio para a universidade, rabiscando com linhas que passam pelo lugar. Com os deveres e as obrigações em meio às bicicletas em ziguezague. Com motores. Entre vãos. Ordens. Entre braços que balançam. Rabisca com os espaços e tempos intersticiais das heterotopias (FOUCAULT, 2013) delimitadas por um retângulo aberto, o pátio. Também, trama lugares outros: as câmeras de segurança registrando o escoamento do tempo enquanto linhas carregam flores, varrem o chão, flutuam com balões vermelhos, planam pássaros, protestam e julgam com as gentes. Nem mesmo inatuais cães - das matilhas em Kafka (2002) -, entre faixas e cartazes, escaparam do rabiscado.

PALAVRAS-CHAVE: Escrita; Estilo; Experimentação; Biografia; Diferença

ABSTRACT

Barthes (2006) invites us to think the text of bliss as that which leads the reader to a state of loss, discomfort, unsettles the reader’s historical, cultural, psychological assumptions, the consistency of his tastes, values, memories - brings to a crises his relation with language. The text of pleasure, on the other hand, contents, fills, grants euphoria, comes from culture and does not break with it - it is linked to a comfortable practice of reading. In between these regimes of writing and reading, the Text (Barthes, 2004) constructs itself, spinning on the pleasures of language, describing a courtyard for the university, scribbling with lines that pass through the place. With duties and obligations amidst zigzag bicycles. Motors. In between spans. Orders. Arms that sway. It scribbles with interstitial spaces and times of heterotopias (FOUCAULT, 2013) delimited by an open rectangle, the courtyard. It plots othe>r places: security cameras recording the flow of time while lines carry flowers, sweep the ground, float with red balloons, glide birds, protest and judge with the people. Not even inactual dogs - coming from the packs of hounds in Kafka (2002) -, among banners and posters, escaped from the scribbled.

KEYWORDS: Scripture; Style; Experimentation; Biograph; Difference

RESUMEN

Barthes (2006) invita a pensar el texto de fruición como aquél que lleva al lector a un estado de pérdida, de malestar, que hace vacilar sus bases históricas, culturales y psicológicas, la consistencia de sus gustos, sus valores, sus recuerdos: que hace entrar en crisis su relación con el lenguaje. Por otro lado, el texto de placer, contenta, llena, da euforia, viene de la cultura sin romper con ella: su lectura es agradable. Entre uno y otro régimen de escritura y de lectura, el Texto (BARTHES, 2004) se reconstruye al hilarse entre los placeres del lenguaje y describir un patio hacia la universidad, al garabatear con líneas que pasan por el lugar. Con los deberes y las obligaciones entre bicicletas en zigzag. Con motores. Entre vanos. Órdenes. Entre brazos que se balancean. Garabatea con los espacios y con los tiempos intersticiales de las heterotopías (FOUCAULT, 2013) delimitadas por un rectángulo abierto: el patio. Y también trama lugares otros: las cámaras de seguridad registran el escurrirse del tiempo mientras líneas cargan flores, barren el piso, flotan con globos rojos; y pájaros planean, protestan y juzgan con las gentes. Ni siquiera inactuales canes -de las jaurías de Kafka (2002)− entre pasacalles y carteles le escapan a ese garabatear.

PALAVRAS-CLAVE: Escritura; Estilo; Experimentación; Biografía; Diferencia

*

uma senhora varre o chão

sob câmeras de segurança

vista de soslaio

por outros olhos minúsculos

azuis -

pastilhados

entre fissuras de concreto por onde uma gramínea irrompe

sob o risco

do salto que se move

em cinzas

circulam

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

(das equações inexatas)

gostam de guardar fatos, memórias, fórmulas, filosofemas, teoremas

enquanto uma prova inevitável

pode mudar tudo

(sons de motores)

transitam para nenhuma parte

no retângulo de borda infinita

guardado pela silhueta de esmeraldas

que se eleva boquiaberta - para o céu e -

balões vermelhos ascendem

indiferentes aos olhares das vidraças

da Repartição

(seguranças em ronda: “tu não podes”)

gostam dos alívios

da razão

contemplam de dentro da indiferença

o louco atravessando em prantos

em trapos arrasados pelas causas e efeitos

estatelados

(todos debandam

para as ruas laterais)

indiferentes à senhora de vassoura na mão

que varre seu destino

sem querer

nada mais que nada

abaixo de nuvens que transitam

de estação em estação

*

bicicleta em ziguezague

atravessa a calçada e corta o pátio

veloz

inundado de luz

capacete mochila bermuda

dentes

tênis óculos cabelos olhos

dentes

capacete cabelos mochila verde brisa

dentes

camiseta mãos olhos capacete dentes verde mochila cabelos dentes óculos

toc-toc das botas de alguém

observado por muitos

enquanto outros lendo

apressados

tranquilos

pensativos

passam

circulam

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

vento gelado

segurança rondando

odores de cigarro

cartaz na janela: vigiar e punir

brincam no centro do pátio

percorrem as escadarias

coqueiros e araucária

impregnam-se nas páginas do livro

enroscam-se nas pernas do casal que cochicha

ofuscam as câmeras de segurança

enredam-se nos aros da bicicleta

tremem

riem

esvaem

*

motores

um vendedor de cookies passeia

em meio à multidão

- justo ele que evita drogas -

cookies feitos pela mãe

cookies que pagarão seu curso de socorrista

cookies num tupperware transparente

circulam e circulam e circulam

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

de motores

e cookies

vendedor fala

vendedor anda

vendedor respira

vendedor sonha

vendedor lamenta

vendedor canta

vendedor gira

olha ao redor

tem fome

esfria

um homem desvia da senhora que arrasta sua maleta

outros correm

- dos cookies? -

folhas e um saco de lixo voam

planam

arrastados pela súbita ventania

dos espaços intersticiais da Repartição

vendedor oferece um cookie

para a moça sentada

fresco, saboroso, doce

*

escada em dobras

pernas

(compõem cinco pares)

pernas

em grupo

galanteiam

meia calça e sapatos

o andar da moça da limpeza

sacos de lixo

(contrapeso)

corpo-pêndulo

mãos nos bolsos

cotovelo-asa

(vai e vem)

espera

pés em ventosa

calcanhares

aderem ao asfalto da Repartição

grude

pneus de bicicleta

pessoas em contorno refletem da janela

imagem borrada

encontro de texturas

(contrapeso)

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

a mulher mexe muito os braços e fala

*

há algo no ar

vento gélido

metade sombra, metade sol

um guarda-chuva fechado

colunas recortam

e vão-livre

espadas de um São Jorge

benzedeiras

flores em cacho

uma menina arruma o cabelo

passagem ao centro

periferia ocupada

(traços gastos)

clima invertido

céu de ontem

(afago)

bordas infinitas

em braçadas vão de um lado ao outro

morna a água

vidros sujos

das janelas solicitam

(traços gastos)

frestas cinzas em mandalas coloridas

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

calma matinal

*

uma ordem se atira do décimo primeiro andar

cumpra-se!

nono

oitavo

sétimo

sexto

quinto

quarto

terceiro

segundo

primeiro

recolhida por alguém que passa distraído pelo pátio

(enquanto pássaros trançam ar)

alunizar

estatutos, regimentos, portarias

um avião de papel atravessa a janela do quinto andar, em direção à rua

chuva de regulamentos

(todos correm)

atrás

embaixo

ao lado

em cima

saltando

pulando

gritando

repetindo

(retornam)

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

(silêncio absoluto)

*

três cães caminham

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos que passam

(eles representam os sobreviventes)

param diante da senhora que varre

(ela se queixa de algo

fala demais, todos ao redor se sentem ameaçados)

“destes não gosto” -

o do meio: "não vives como um cão?"

situada no interior de algum mal entendido que ela mesma não podia desfazer, ouve pequenos cliques, estalidos

(cheiro de flores)

os três cães andam em círculos

param por um instante. traçam trajetórias caóticas. se posicionam no centro do pátio. circulam novamente. levantam-se nas pontas das patas. dançam. desenham coreografias complicadas. saltam uns sobre os outros.

de novo de novo e de novo

latidos uivos mais latidos

(a música fugitiva, repetitiva)

ela larga a vassoura e se precipita sobre eles

tapa os ouvidos

ouve chiados

a matéria sonora parece desossar tudo ao seu redor

(a fragilidade, a doença, a nudez)

ela e os cães: trocam de lugar

ela pede que se afastem

a gravidade aprofunda

os cães flutuam como balões

o coração acelera

os três cães circulam novamente. executam movimentos estranhos.

(ela os olha multiplicada)

os cães evoluem desenhando figuras insólitas mudando de forma e posição

venceram-na.

o silêncio é interrompido pelos motores

pessoas transitam para nenhuma parte

no retângulo de borda infinita

guardado pela silhueta de esmeraldas

que se eleva boquiaberta - para o céu e -

sobre azuis - pastilhados -

balões vermelhos ascendem

indiferentes aos olhares das vidraças

da Repartição

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

da câmera de segurança que testemunha o êxtase de um coração que bate sozinho -

veloz

*

o branco sobre o chão de concreto gasto

 

(sol entre nuvens)

 

esconde as manchas, os encontros e os passos apressados

 

(que desviam)

 

torres de metal suportam

tudo ganha altura

 

um teto

consola

 

esconderijo que recorta

o retângulo em sombra de bordas definidas

acomoda o que deve chegar

 

a lona -

habitat de olhares curiosos

 

repartido o espaço de ir

recortes no trajeto

passo torto que descompassado move

 

(outro lugar)

 

intervenção branca

invenção de sombras

 

vista de cima

a cobertura leve

dança com o vento

 

da janela alta

 

caçamba

 

trânsito interrompido

 

(está tudo branco agora)

 

como se atravessasse os cabelos azuis

e a estampa florida do casaco

 

(fusão glacial)

 

gostam de atravessar de um lado a outro

gostam dos deveres e das obrigações

gostam de pedalar bicicletas

gostam de exigir

gostam das flores

gostam do cheiro do café

gostam de galantear

gostam de protestar

gostam dos cães que passam

gostam de aconselhar

gostam de consolar

gostam dos juízos

 

sons agudos martelam o espaço

fissuras -

em obras

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Jovens pesquisadores. In: ______. O rumor da língua. Tradução brasileira de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 98-106. [ Links ]

______. O prazer do texto. Tradução brasileira de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições, 2013. [ Links ]

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético.Tradução brasileira de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. [ Links ]

KAFKA, Franz. Investigações de um cão. In: ______. Narrativas do espólio. Tradução brasileira de Modesto Carone. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 146-200. [ Links ]

Recebido: 10 de Junho de 2018; Aceito: 25 de Outubro de 2018

Revisão gramatical realizada por:

Elisa Moura Carvalho. E-mail: elisamouracarvalho@gmail.com.

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