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ETD Educação Temática Digital

On-line version ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.1 Campinas Jan./Mar 2020  Epub May 26, 2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i1.8653298 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

MOSAICOS DE DOCÊNCIA: RELATOS DA VIDA ESCOLAR DE ESTUDANTES DE BIOLOGIA E SUA PROFESSORA

TEACHING MOSAICS: REPORTS ON THE SCHOOL LIFE OF BIOLOGY STUDENTS AND THEIR TEACHER

MOSAICOS DE DOCENCIA: RELATOS DE LA VIDA ESCOLAR DE ESTUDIANTES DE BIOLOGÍA Y SU PROFESORA

Maria Jacqueline Girão Soares de Lima1 

Rafael de Oliveira da Silva2 

1Doutora em Educação - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. Professora do departamento de Didática da Faculdade de Educação - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: giraojac@gmail.com

2Graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. Especialização em andamento em Ensino de Biociências e Saúde - Fundação Oswaldo Cruz, FIOCRUZ - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: rafabioufrj@gmail.com


RESUMO

Partindo do pressuposto que a formação das identidades docentes tem início na vida escolar, este artigo apresenta uma discussão sobre a produção de memoriais de vida escolar realizada com estudantes de Licenciatura em Ciências Biológicas, o monitor da disciplina e sua professora. Os relatos foram hibridizados e reorganizados em três textos, denominados “mosaicos de docência”. O artigo traz impressões sobre a escrita e o compartilhamento coletivo dos memoriais e de objetos significativos da vida escolar, bem como sobre o primeiro contato dos alunos e alunas com a escola de estágio. Conclui-se, com base em referenciais do campo da pesquisa biográfica, que memoriais da vida escolar são ferramentas potentes para pensar sobre os sentidos da escola e para o deslocamento de certezas e estereótipos sobre docência, escola e conhecimento, como fios que guiam as nossas identidades docentes.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias; Docência; Identidade

ABSTRACT

Based on the assumption that the formation of teacher identities begins in school life, this article presents a discussion about the production of school life memorials held with undergraduate students in Biological Sciences, the monitor of the discipline and its teacher. The reports were hybridized and reorganized into three texts, called "teaching mosaics". The article brings impressions on the writing and collective sharing of memorials and significant objects of school life, as well as on the students' first contact with the internship school. Based on references from the field of biographical research, it is concluded that memorials of school life are powerful tools for thinking about the meanings of the school and for the displacement of certainties and stereotypes about teaching, school and knowledge as threads that guide our educational identities.

KEYWORDS: Memories; Teaching; Identity

RESUMEN

En este artículo se presenta una discusión sobre la producción de memoriales de vida escolar realizada con estudiantes de Licenciatura en Ciencias Biológicas, el monitor de la disciplina y su profesora. Los relatos fueron hibridizados y reorganizados en tres textos, denominados "mosaicos de docencia". El artículo trae impresiones sobre la escritura y el compartir colectivo de los memoriales y de objetos significativos de la vida escolar, así como sobre el primer contacto de los alumnos y alumnas con la escuela de práctica. Se concluye, con base en referenciales del campo de la investigación biográfica, que memorias de la vida escolar son herramientas potentes para pensar sobre los sentidos de la escuela y para el desplazamiento de certezas y estereotipos sobre docencia, escuela y conocimiento, como hilos que guían nuestras identidades docentes.

PALAVRAS-CLAVE: Recuerdos; Enseñanza; Identidad

1 FALA DA PROFESSORA:

“Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei?

Assim: como se me lembrasse. Com um esforço de "memória", como se eu nunca tivesse nascido.

Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva” (LISPECTOR, 1999, p. 24).

Se existe um lugar que frequentamos de forma mais ou menos regular e por um tempo relativamente grande, independente de classe social, religião, etnia ou orientação sexual, esse lugar é a escola. Tão iguais e tão diferentes, desse espaço/tempo provem algumas de nossas memórias mais vívidas, relacionadas a amizades, estudos, afinidades, amores, sucessos, fracassos, alegrias e tristezas que, inevitavelmente, emergem no processo de nos formarmos professores e professoras3. É preciso, pois, reorganizá-las, ressignificá-las e compartilhá-las, no eterno tecer de fios, riscos e tramas que constituem nossas identidades docentes.

Já é comum, em contextos de formação inicial docente, a escrita de memoriais sobre a vida escolar, com resultados bastante inspiradores. Relatamos, aqui, uma experiência de escrita de memoriais na qual os relatos foram reunidos em três textos, que chamamos de “mosaicos de docência” por terem se originado das memórias de vinte e três estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade federal, dois monitores e as minhas próprias. É, portanto, um relato sobre relatos, inspirados em Selles e Ayres (2004) que, partindo do pressuposto que a formação docente se inicia nas experiências escolares, reuniram memórias de seus alunos e alunas, recordando e localizando eventos e problemas vividos para discussão coletiva dos registros.

Em minha experiência na formação docente, tenho proposto esta atividade no intuito de reavivar memórias e histórias de vida escolar das turmas que oriento. A cada ano reafirmo o potencial formativo desta tarefa, que, por sua vez, se transforma em memória do período de formação. Em 2016, resolvi também escrever e dividir as minhas próprias memórias escolares, assumindo o lugar de professora em formação que, decerto, sempre serei. Assim, no dia marcado (uma aula de prática de ensino), os memoriais foram reunidos e trocados aleatoriamente entre nós. Em seguida, cada um e cada uma selecionou, do texto que leu, o que mais lhe mobilizou, compartilhando com o grupo.

Em outro momento, eu e a turma levamos objetos que guardamos como memória dos tempos de escola. Os objetos foram apresentados individualmente a partir das lembranças (boas e/ou ruins) que nos evocavam, bem como o motivo de sua escolha, dentre tantas possíveis. Assim, alguns dos fatos relatados nos memoriais ganharam materialidade a partir de um objeto da vida escolar, sobre os quais construímos significados e afetos. Cadernos, livros, lápis, borrachas, estojos, uniformes: objetos antigos, passados possíveis, recortes, esquecimentos e pescarias surgiram dessa experiência, rica em emoções e segredos revelados.

A qualidade dos memoriais produzidos e a intensidade de sua exposição me estimularam a registrá-los. Selecionei, dos textos, fragmentos e peças que, ao serem misturados e separados em temas, se transformaram e nos transformaram em um grupo de contadores e contadoras de histórias: as nossas histórias escolares. É, pois, em forma de mosaico que reconto um dos momentos mais delicados que vivi, como professora formadora, no movimento de construção de identidades, rotas e saberes da docência.

Após apresentar e comentar os mosaicos de docência, compartilho impressões do grupo sobre os dois encontros em que nos dedicamos, quase integralmente, a falar, acolher e ouvir uns aos outros. Trago, ainda, impressões iniciais de alunos e alunas a respeito da escola de estágio, primeiras memórias desse novo espaço que, como antropólogos em ação, investigam, estranham e reconhecem.

É importante ressaltar que, apesar de a atividade dos memoriais ter sido desenvolvida com estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas, não me ative às memórias relacionadas às disciplinas Ciências e Biologia. Antes, procurei estimular os estudantes a produzirem histórias em torno de escola, docência e relações humanas nesse contexto, que pudessem orientá-los em seu processo formativo. Não foi surpresa, para mim, constatar que a maioria optou por trazer relatos de experiências em escolas públicas, relacionadas, sobretudo, aos professores e professoras que tiveram.

Esclareço que, apesar de a escrita estar na primeira pessoa, um dos monitores me ajudou a colher e organizar os relatos e a buscar referenciais teóricos para o artigo. É, portanto, coautor deste trabalho. O mesmo frequentou minhas aulas, escreveu seu próprio relato e participou ativamente dos encontros em que os memoriais foram lidos. Rafael foi meu aluno de prática de ensino em 2015 e, desde então, vimos compartilhando experiências e concepções de docência, criando laços afetivos e acadêmicos que deram muitos frutos, dentre os quais, a parceria na escrita e organização deste relato. Vale destacar o papel da monitoria na construção (coletiva) das atividades da prática de ensino. A peculiaridade deste lugar reside, sobretudo, no fato de que o (a) monitor (a) deixou de ser licenciando (a) há pouco tempo. Assim, suas memórias se misturam às vivências das turmas que acompanha junto à (ao) docente da disciplina, auxiliando na comunicação entre os sujeitos e na orientação do estágio. Em se tratando de um relato de memórias entrelaçadas, a participação do monitor enriqueceu e dinamizou a escrita deste artigo, assim como as atividades descritas. ...Aos memoriais!

2 MOSAICOS DE DOCÊNCIA

Os “mosaicos de docência” surgiram da junção de trechos dos memoriais da turma e do meu próprio, numa tentativa de criar novas histórias a partir das nossas vivências. São fragmentos misturados e não identificados, podendo ter mais de um fragmento de cada autor/autora no mesmo mosaico. Não o fiz de forma aleatória, mas tentei reuni-los por “temas”, versando sobre professores, professoras e escolas “encantados”, dificuldades e superação. Em se tratando de recortes das vidas de vários sujeitos reunidos como em uma colcha de retalhos, não há linearidade nos mosaicos. De peça em peça, fui montando esse varal de memórias entrelaçadas, aparentemente descontínuas, que foi ganhando forma a medida em que os fragmentos se entremeavam e passaram a ter vida e sentidos próprios.

Esclareço ainda que optei por não construir um texto único, pois isso me obrigaria a fazer diversas intervenções e remendos que mudariam o sentido dos memoriais e deste trabalho. Inspirada pelos extraordinários momentos que compartilhamos na confecção e leitura dos memoriais, os “mosaicos de docência” são fruto deste instigante trabalho sobre a vida escolar desta turma de licenciatura em Ciências Biológicas, dos monitores e da professora da disciplina. Ao final de cada um, teço comentários que retomo nas considerações finais. Minha única interferência nos fragmentos foi algum ajuste de vírgulas, pontos e palavras com grafia diferente da norma culta da língua, que optei por padronizar.

3 PRIMEIRO MOSAICO DE DOCÊNCIA: DE PROFESSORAS, PROFESSORES E ESCOLAS ENCANTADAS

“Tenho para mim que os dois anos que passei no jardim de infância foram a fase mais importante da minha escolarização. Naquela escolinha, aprendi muito mais que letras e palavras, muitas das quais eu já conhecia, pois minha família sempre foi meio “apressada” em me ensinar as coisas, mas aprendi principalmente a conviver com outras pessoas fora do meu núcleo familiar. Uma professora em especial marcou minha passagem por esse colégio: “tia Rita”. Sempre muito atenciosa, desde a minha alfabetização, mandava cartas de natal e aniversário, frisando que ficaria muito feliz se eu respondesse. Na época, me achava importantíssima quando recebia essas cartas, principalmente por ser de uma professora querida. Hoje eu entendo que, além de ser um ato de carinho e dedicação para com os alunos, era uma maneira de incentivar a prática do que era ensinado em sala.”

“Participei de olimpíadas de poesia e português, mas sempre tive minha queda pelas ciências. Desde pequeno eu tinha interesse por ciências, vivia dizendo que queria ser biólogo marinho e mergulhar com os tubarões, montar em golfinhos e baleias, mas não me senti influenciado diretamente pelas disciplinas escolares. Na sétima série (oitavo ano), eu comecei a gostar um pouco mais de Português, principalmente por causa de um livro que nos passaram para fazer uma prova baseada no mesmo, que eu gostei muito e lembro até hoje da história principal. Depois eu fui perceber que todos os professores de Biologia se destacavam para mim. Eles tinham algo diferente, uma certa inquietação com o ensino e vontade de nos fazer aprender de um modo que considerássemos importante, talvez porque a Biologia tem questões que, inevitavelmente, impactam muito a nossa própria vida”.

“O colégio, como instituição, foi muito acolhedor e, por ser público, lá convive grande diversidade e todos prezam muito isso. Estudei da quinta série do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio na mesma escola, com a mesma turma. Compartilhamos muitas histórias, aprendizados e muitas primeiras vezes. A escola marca a vida de todos que passam por ela, e através das experiências que tive, cheguei à conclusão de que os maiores aprendizados que a escola pode oferecer ocorrem pelas relações humanas que construímos. Lá, também, tive muitos professores inspiradores, como um professor de História que acreditava e lutava (e continua lutando) para que o ensino fosse transformador, defendia uma “Educação emancipatória”, e nos levava questões de grande importância e ausentes nos grandes meios de comunicação e no currículo tradicional. Ainda na sexta série, um professor de geografia dava suas aulas com uma pitada (forte) de sociologia e criticismo. De lá, surgiram meus primeiros questionamentos e posicionamentos no que então eu descobriria que são político-ideológicos. O grêmio estudantil e a ocorrência de uma greve me fizeram começar a refletir a importância e o papel da Educação no país, e como desejávamos que esta fosse”.

“A biblioteca era maravilhosa e lá eu passava boa parte do tempo livre que havia entre aulas, almoço, intervalo. Era um colégio que incentivava muito a leitura, com professores excelentes. Em 12 anos eu cresci, amadureci, aprendi muitas e muitas coisas, tudo aconteceu dentro desse mesmo espaço escolar. Em um dos últimos momentos que passei nessa escola, posso pontuar uma noite em que eu e todos meus colegas acampamos na escola, acho que foi a primeira vez que acampei na vida, e era incrível ver aquele ambiente que costumávamos ver cheio de crianças, mesas, cadeiras e regras transformado. Pela primeira vez não tínhamos que abrir nossos cadernos, e podíamos correr pela escola e brincar a noite toda. As salas de aula se tornaram grandes quartos, com colchões e mochilas por todos os lados, crianças jogando vídeo games e brincadeiras pelos corredores, e naquela noite eu vi aquele lugar perder todas as grades que possuía, foi mágico”.

“Retorno à dona Jovita, que me tratava com muito carinho e com quem conversava por horas. Acho que por influência dela e porque já tinha inglês na escola, meu pai me botou na Aliança Francesa, outra escola importante na minha vida de duas escolas. Lá eu me sentia importante, inteligente e poderosa. Estudar francês era um diferencial naquele mundo de patricinhas, e eu amava de paixão. Não tínhamos condições de viajar pra Europa, mas eu já conhecia Paris como a palma da minha mão!”.

“Conheci novos colegas e fiz amizade com um jovem e eterno amigo Rafael (...). Lembro claramente que quando fiquei doente que comecei a ter os sintomas de diabetes e acabei ficando internado por um tempo, ele foi o primeiro a se manifestar depois que estava de alta) para me ajudar no empréstimo do caderno para eu repor as aulas que havia perdido. Mas, sempre estava com ele e sempre ele gostava de louvar as canções gospel (...). Tantas boas lembranças! Amizades, aprendizados, estudos, leituras, brincadeiras, aventuras, escolas, professores e professoras especiais”.

Esse mosaico trata de experiências, professores, professoras, colegas e escolas encantadoras e de como marcaram cada um e cada uma de nós. Selecionei trechos sobre estudos, amizades, brincadeiras e relações entre colegas e com professores e professoras construídas a partir do respeito, da amizade e da admiração. Não posso deixar de comentar o quanto essas experiências estiveram presentes nos relatos da turma, o que se evidencia pelo fato de este ser o maior dos três mosaicos.

4 SEGUNDO MOSAICO DE DOCÊNCIA: DA DIFICULDADE

“A adaptação não foi nada boa. O Colégio era absurdamente pequeno comparado a minha escola antiga. Era um prédio alto, cheio de grades, as salas não eram grandes e as janelas eram estreitas, havia uma turma para cada ano de ensino e em média 25 alunos por sala. A escola oferecia todos os anos de ensino, do pré-escolar ao Ensino Médio e por esse motivo grande parte das pessoas estavam juntas há muito tempo, o que dificultava ainda mais a minha adaptação. No primeiro dia de aula, no portão, esperando o sinal para escola abrir, percebi que o comportamento das pessoas também era diferente, elas eram mais sérias, vaidosas e convencidas, com algumas exceções. Nas primeiras aulas me sentia perdido e incapaz de acompanhar a turma, as aulas de química e física foram as mais traumáticas. E sempre era comparado com as minhas irmãs, falavam de como eram boas alunas e como éramos parecidos fisicamente. Tudo isso somado a minha a dificuldade de fazer amigos me provocava um questionamento incessante de: 'o que estou fazendo nesse lugar?'”.

“Os dias foram passando e esse sentimento ruim não mudou. Eu sempre fui uma pessoa muito carinhosa e carente, então eu tinha mania de abraçar as minhas amigas e ficar esfregando o rosto no braço delas como os gatos fazem com seus donos e isso gerou um certo bullying durante o meu ensino médio, porque os outros alunos, principalmente aqueles que frequentavam a mesma série e turma que eu, ficavam me chamando de lésbica, sapatão e coisas do gênero. Também me zoavam por eu gostar de estudar e tirar boas notas em algumas disciplinas e porque eu costumava levar lanches para o colégio como pão com patê, cheetos, ‘fandangos’ etc4. Eu estava fazendo prova de matemática, fui a última a terminar a prova (sempre tive muita dificuldade em matemática). A professora de Artes apareceu na sala onde eu estava fazendo prova e ficou conversando com o professor de Matemática, fui tirar uma dúvida com o professor, estava com dificuldade em fazer uma conta de dividir, a professora de Artes então falou: ‘Essa aí não serve nem pra ser caixa de supermercado’. Saí arrasada de dentro da sala. Mas nunca fui estudiosa, sempre fui incentivada a praticar esporte, participar de equipes, ser uma atleta consciente (...)”.

“O primeiro trabalho me foi passado como uma segunda chance para melhorar minha nota, visto que a professora de Ciências, ao longo do ano, passou diversos trabalhos que contribuiriam para a nota, mas eu ignorei quase todos. O trabalho tinha que ser feito em dupla onde precisávamos criar um modelo de célula vegetal e animal com suas respectivas organelas. Decidimos fazer as células utilizando metade de bolas ocas de isopor, que representaria a membrana plasmática ou a parede celular, gel, tinta e massinhas. Passei uma tarde inteira e parte da noite criando as organelas com massinha e estudando as funções de cada uma, já que seria cobrado na prova. As células ficaram incríveis, nunca tinha visto nada parecido, elas eram perfeitas e muito coloridas. Deixamos tudo pronto, colocamos na geladeira e fomos dormir, no dia anterior bem cedo, ao olhar para os modelos, percebemos que as células tinham entrado em apoptose, o maldito fluido intracelular tinha derretido todas as organelas, foi um verdadeiro desastre”.

“Ser bolsista em escola de elite não foi fácil. As minhas amigas moravam em apartamentos luxuosos, bem diferente do meu, simples e cheio de livros. Dentro de sala sempre fui uma ótima aluna, daquelas que tira apenas notas altas e nunca 'matou' nenhuma aula, até mesmo porque sempre fui bolsista então não 'podia' tirar notas baixas. Posso dizer que sempre fui uma estudante muito boa. Do tipo que agrada professor. Notas 8, prestava atenção (apesar de falar muito), fazia todos os deveres, mas sempre tive problemas com meus amigos, já que em média, a cada 3 anos mudava de escola, sempre pra algum lugar distante, e as “amizades eternas” se desfaziam pela distância”.

Aqui, procurei destacar vivências de “bullyng”, preconceito, dificuldades de adaptação à escola e relacionamentos difíceis com colegas, docentes, disciplina e disciplinas escolares. Afinal, quem nunca teve, ouviu falar ou conheceu um professor ou professora impaciente com os alunos e alunas? Quem nunca teve dificuldade com alguma disciplina e/ou com a disciplina? O que me estimula nesse mosaico é pensar por que os estudantes que escolheram essas memórias para relatar estão empenhados em ser professores e professoras e em que medida essas experiências podem influenciar suas identidades docentes. Acredito que experiências negativas são importantes para identificarmos o que e como não queremos ser e fazer; é assim que, ao lançarmos um olhar retrospectivo sobre nosso baú de experiências, lembramos de algum momento em que encontramos colegas, professoras e professores que davam uma aula fantástica, levavam a turma para passear, nos ouviam e valorizavam.

5 TERCEIRO MOSAICO DE DOCÊNCIA: DA INSPIRAÇÃO E SUPERAÇÃO

“A escola era razoável, considerada uma das melhores do bairro, mas com todos os problemas que já conhecemos (falta de professores, infraestrutura precária, muitas aulas vagas etc.). Lembro que minha professora de Biologia nessa escola foi a mesma que me deu Ciências no colégio particular. Para minha sorte, ela dava aula nas duas escolas. Eu gostava de estudar lá. Jogava no time de Handebol da escola, tinha muitos amigos que moravam na mesma rua e bairro, ficamos muito próximos. Chegava a ir aos sábados para a escola, pois, começou um programa do governo do estado chamado 'Escola da Família' que abria a escola aos sábados e oferecia cursos diversos ministrados por universitários que ganhavam uma bolsa para tanto. Recordo-me de fazer um curso de Telemarketing. Às vezes tinha aula de capoeira, ou ia apenas para usar a quadra, jogar Handebol. Apesar de ter ficado pouco tempo lá, foi uma experiência maravilhosa. Os professores eram engajados na causa pela democratização do acesso ao ensino superior e nos incentivavam muito a entrar em universidades públicas. Lembro que as aulas terminavam, eles ainda ficavam com a gente até 23h fazendo cine debate, conversando, tomando cerveja. Até que um dia a polícia invadiu a escola com a truculência de costume na hora do intervalo. Soubemos que havia um policial à paisana há tempos, fingindo ser aluno”.

“Eu não sei se consigo descrever muito mais, de forma resumida, como foi meu ensino médio, talvez por ser mais recente. São centenas de pequenos momentos, como aulas de projeto preparatório à noite, aulas práticas dentro de um laboratório muito bem equipado, aulas de Geografia ministradas constantemente com materiais multimídia, dados de IBGE, matérias de revistas e jornais, mantendo os temas atuais e relevantes, histórias absurdas que meu professor de Biologia contava enquanto copiávamos esquemas e desenhos que ele passava para explicar os conteúdos. Teve até uma vez que um professor de matemática provou que 2+2=5. É por professores assim que eu ainda acredito na educação, que eu escolhi seguir esse caminho e mudar a vida das pessoas o máximo que conseguir. Não quero nunca ser um professor que não conhece sua turma, quero ajudar, entender e apoiar. Sei que é difícil, sei que é puxado, mas não quero só ser mais um, espero que consiga...”.

“Eu acho que poderia escrever um livro com todas as experiências do meu ensino médio, se eu lembrasse de tudo, e se chamaria 'Por que eu decidi ser professor?', a resposta curta seria por que eu me apaixonei pelo ambiente escolar, a resposta longa seria o livro. Lembro-me de olhar os diários da professora, cheios de planilhas e organizados em pastas tipo catálogo, e de falar com meus pais que queria uma pasta igual. Eles compraram a pasta e eu prontamente organizei meus trabalhos em seus envelopes de plástico e, nesse momento, lembro-me de pensar que queria, um dia, ser professor. Ainda na escola, eu aprendi que ser estudante está tanto dentro de sala quanto fora de sala e carreguei e carrego isso na minha vida universitária. Foi por isso que eu quis ser professor”.

“Senti necessidade de relatar tudo, além de deixar claro que, não fossem as cotas, muito provavelmente eu não estaria nessa universidade. Não acredito que seja o melhor caminho para redimir as falhas na educação básica, mas acredito que foi sim um começo para que o ensino superior público no país inicie de alguma maneira sua democratização e dê oportunidades a jovens com trajetórias de vida diferentes da maioria dos universitários que ainda ingressam no ensino superior público do país. Sou de origem pobre, resido em favela, e, devido à minha situação financeira, não pude estudar nos melhores colégios, mas nada disso veio a ser um fator prejudicial na minha vida. Hoje, eu vejo o sonho dos meus pais cada vez mais perto. Eu já venci pela educação e estou numa posição que posso fazer com que outras pessoas também consigam. Vou me formar professora! 'O cavalo quando passa temos que pular nele, porque não sabemos quando e se passará novamente'. E eu pulei, e não me arrependi”.

Este mosaico se diferencia do primeiro porque fala de dificuldades, de superação e da construção de identidades docentes. São comportamentos imitados e admirados de professores e professoras, boas escolas pelas quais passamos (que não deixam de ter seus problemas), reflexões sobre educação, docência, democratização do acesso e oportunidades agarradas com unhas e dentes. Reuni relatos sobre a diferença que escolas e professores fizeram nas vidas de pessoas que enfrentavam dificuldades de ordem material, pessoal e/ou familiar. Concluo que educação rima com emancipação e transformação.

6 OUVIR O OUTRO, FALAR DE SI...

“A escrita da narrativa remete o sujeito para uma dimensão de autoescuta de si mesmo,

como se estivesse contando para si suas experiências e aprendizagens que construiu ao longo da vida,

através do conhecimento de si”. (SOUZA, 2004, p. 13)

Penso em memoriais como artefatos que reúnem informações que registram e criam um passado/presente da nossa vida, ou de parte dela. Ao revisitarmos o passado em busca de construir relatos, organizamos nossas impressões e, nesse momento/movimento, as modificamos. São, também, ferramentas potentes para a construção de um olhar crítico sobre sujeitos e instituições, como fios que guiam as nossas identidades docentes, tecidas sempre de forma coletiva e, no caso deste relato, entrelaçadas. Creio que, nestes tempos de acirramento do individualismo, do conservadorismo e da polarização, uma atividade como essa ajuda a pensar no quanto nossas vozes são forjadas nas vozes dos outros, e como é importante que esse outro dentro de nós possa encontrar - e escutar - o outro dentro do outro. Assim, ao reunir os fragmentos dos textos da turma e formar novos textos, creio poder ajudá-los a recriar suas memórias, no confronto e no encontro com as dos colegas - esse encontro de outros e de nós mesmos. Alguns depoimentos sobre a escrita dos memoriais me dão pistas para esse entendimento:

“Ler e ouvir sobre as histórias de vida de meus colegas de turma fez com que eu identificasse pontos em comum e também eventos diferentes de minha própria história. Em meio aos relatos, houve alguns momentos marcantes, principalmente aqueles que eram dotados de luta e superação de dificuldades. De certa forma, o diálogo que tivemos foi uma continuação dos processos de autocompreensão e autoconfiança que vivenciei conforme escrevia meu memorial, já que todos pareciam ter vivenciado processos semelhantes em seus memoriais”.

“A dinâmica parece ter aumentando a empatia entre as pessoas naquele momento, deixando as relações mais estreitas. Sinto que conheço mais os meus colegas e estou disposto a conhecê-los ainda mais”.

“Sem dúvidas, as leituras dos memoriais foi um momento ímpar na minha formação. (...). Enquanto aconteciam as leituras, um colega que estava ao meu lado me chamou a atenção para a atmosfera que tomou aquela sala de aula, e eu olhei para o rosto de cada pessoa e vi o encantamento no olhar de cada um (...). Após contar a minha trajetória escolar, me senti acolhida por todos e isso tornou o momento ainda mais especial”.

“(...). Então, eu só posso agradecer por esse exercício de conhecimento pessoal, empatia e que tanto me aliviou e me livrou de ‘fantasmas do passado’. Me alegrei com as histórias engraçadas, senti a dor das histórias mais difíceis e percebi que não estava sozinha, que nunca estamos. Hoje posso dizer que conheço mais as pessoas daquela sala e também minha professora, sinto que temos uma conexão e uma cumplicidade, me sinto acolhida, me sinto mais leve”.

... E foi assim que pessoas deixaram de ser rostos e se transformaram em histórias ricas que criaram entre nós uma profunda conexão, num exercício contínuo de conhecimento pessoal, empatia e acolhimento. Perceber que não estamos sozinhas/os e poder exorcizar fantasmas do nosso passado foram alguns dos frutos que colhemos ao compartilharmos nossas memórias escolares e tomarmos conhecimentos das histórias dos outros que, hibridizadas, se transformam em memórias coletivas. Viveremos para sempre nessas histórias, ainda que tomemos caminhos diversos e que alguns de nós não nos encontremos mais. Cada um vai tomar um rumo, conquistar territórios e alçar voos próprios. Espero poder encontrar esse grupo em outros momentos, em outros ou nos mesmos espaços, que nunca mais serão/seremos os mesmos.

7 CONSIDERAÇÕES, RETOQUES, DIVAGAÇÕES

Esse texto começou a ser escrito em março de 2016 e foi finalizado em agosto de 2018. Voltei a ele várias vezes neste período, mas nunca me parecia bom o suficiente para compartilhar. Algumas vezes, precisei retornar aos memoriais para relacioná-los aos objetos e recordar alguns dos dados que minha memória já confunde. Também percebi, com certa aflição, que nem todos os alunos e alunas tiveram parte do seu memorial incluído nos contos, mas optei por não mexer mais neles. Pareceu-me que mudar sua estrutura, tanto tempo depois, poderia quebrar a harmonia da composição do mosaico com suas imperfeições, bem como o encantamento que me orientou quando dei início à tarefa de escrever esse artigo. Seria como mudar o traço de um quadro ou desenho, depois de finalizado e exposto, ou reescrever um livro já lido e admirado por muitos. Concluí que estamos todas/os representadas/os de uma forma ou de outra, porque o que nos uniu não foi a escrita deste texto, mas o compartilhamento dos memoriais e objetos das nossas vidas escolares. Guardo os memoriais comigo, como objetos/memórias de minha trajetória de professora formadora.

Ainda que esta atividade seja sempre rica e formativa, eu não poderia imaginar o rumo que a turma daria a ela, nem o clima de acolhimento que se instalou nos dias dedicados à leitura dos memoriais e à exposição dos objetos. Alguns choraram ao comentar suas histórias e foram ouvidos e consolados pelos colegas; houve, também, quem se emocionasse com a história do outro, como a menina que perdeu um colega de turma com leucemia, a que perdeu o pai ainda criança ou o rapaz tímido que perdeu seu melhor amigo em um acidente. Em busca de referenciais teóricos sobre escritas de si, me dei conta que a produção de memoriais vem sendo destacada por diversos autores do campo educacional como “um caminho de construção de uma epistemologia e também como possibilidade de formação”, tanto na formação inicial quanto na continuada. (BRAGANÇA, 2016, p. 11).

Dentro da vasta produção sobre escrita de memoriais, optamos por dialogar com a pesquisa autobiográfica - relacionada a histórias de vida, biografias, autobiografias, memoriais e narrativas autobiográficas - que, segundo Costa e Assis (2016, p. 443), “constituem uma ferramenta eficaz e eficiente para formação de professores na medida em que auxiliam a compreensão das práticas culturais cotidianas dos sujeitos que vivenciam este processo (NÓVOA, 2002; JOSSO, 2004)”. A abordagem (auto) biográfica pode também ser considerada

Uma epistemologia que inclui intersubjetividade, círculo vicioso entre palavra-escuta sensível e horizontalidade na construção de saberes emancipatórios e prenhes de projetos de futuro. No âmbito da formação, a abordagem (auto) biográfica perspectiva uma temporalidade alargada, para além do espaçotempo escolar, a formação humana tem na vida sua territorialidade. As experiências que nos derrubam e transformam, inscritas na memória, são recriadas pela narrativa em um movimento reflexivo, potencialmente formador para aquele que narra e para os que ouvem (BRAGANÇA, 2016, p. 11).

Araújo e Morais (2016) defendem que a escrita de si tem se mostrado um potente e inspirador recurso teórico-metodológico para práticas de pesquisa e de formação docente, na perspectiva crítico reflexiva defendida por Antonio Nóvoa. A partir do trabalho com memoriais e outras escritas (auto) biográficas, as autoras acreditam atravessar as fronteiras entre pesquisa e formação, “na direção de compreendermos que a investigação pode ser uma prática de formação e as práticas de formação podem ser instrumentos de investigação” (p. 21), rompendo com o paradigma técnico-instrumental e investindo na formação de docentes “que, ao pensarem sua prática, assumem-se como sujeitos e pesquisadores/as de seu fazer cotidiano” (idem). Assim, o trabalho autobiográfico pode abrir caminho para uma formação que estimule pensamentos e práticas interculturais que possibilitem a “reinvenção de uma escola fundada numa convivência humana mais ética” (ARAÚJO e MORAIS, 2016, p. 21).

As autoras trazem um outro aspecto importante do fazer narrativo como estratégia formativa: o tempo. Inspiradas em Walter Benjamim, propõem “a criação de espaços alternativos onde o tempo torne-se aliado (...), um tempo da lentidão, um tempo de fiar, onde o diálogo não expresse apenas um breve recado, mas onde as experiências de quem diz possam encontrar-se com as de quem ouve (...).” (P. 30). Como essas professoras, acredito que o encontro com o outro pode nos salvar do aniquilamento causado pelo choque da modernidade, da alienação e do silenciamento.

Afirmando a docência como local de narrativas de memórias docentes e discentes, da narrativa de todos para todos, do lugar do discurso plural se contrapondo ao discurso único, petrificado, desconstruímos certezas e abrimos espaço para conhecimentos e práticas educativas mais solidárias e voltadas para a construção de uma escola e um mundo mais justos e éticos. Essa perspectiva também me parece potente para articular as múltiplas identidades que o trabalho na universidade me proporciona: a de formadora de professores, extensionista e pesquisadora.

Não posso deixar de mencionar a atividade com os objetos, que penso serem materializações de nossas lembranças. É assim que, na concepção de Gonçalves (2007:21, apudGomes e Oliveira, 2010), os objetos possibilitam que os sujeitos “percebam e experimentem subjetivamente suas posições e identidades como algo tão real e concreto quanto os objetos que os simbolizam”.

Usarei um relato de uma das licenciandas - a que perdeu o amigo com leucemia - para ilustrar a produtividade desta atividade. Ela contou que, ao saber da internação do colega, a turma teve uma queda assustadora no rendimento. Só conseguiam se concentrar nas aulas de Geografia e Literatura, cujas professoras constantemente abordavam o assunto em sala de aula. Um dia, a professora de Geografia resolveu levá-los para visitar o colega por entender a necessidade, tanto dele quanto da turma, de estarem juntos. Nesta visita, o menino comentou que estava aprendendo a fazer origami da ave sagrada japonesa, o Tsuru. Segundo a lenda, se a dobradura fosse feita mil vezes, um desejo seria realizado. Assim, a turma passou a visitar o colega e a fazer Tsurus para ele. Esse movimento se estendeu a toda a comunidade escolar, e mil Tsurus transformados em móbiles foram entregues ao Lucas, que teve uma recuperação temporária, mas, pouco tempo depois, veio a falecer. A licencianda levou um móbile de Tsurus para a aula de prática de ensino e seu relato, junto ao objeto, causou grande comoção.

Apareceram também camisetas de times, uniformes, carteiras de estudante, diplomas, estojos, borrachas, cadernos, livros, emblemas de escolas, canetas e outros objetos, nem sempre típicos da escola. Todos foram fotografados e algumas fotos foram incorporadas ao vídeo produzido sobre a turma - que não deixa de ser uma memória visual das atividades do estágio.

Ao mesmo tempo em que acontecia essa atividade nas aulas de prática de ensino, a turma iniciava o estágio. Assim, pedi que me enviassem um pequeno relato sobre esse momento único de entrada na escola, que soava, ao mesmo tempo, familiar e estranha. As primeiras experiências na escola de estágio foram, para o grupo, um misto de medo, excitação, surpresa e encantamento. Como seria a recepção dos alunos e dos professores? Como seria o acompanhamento das turmas? O que lhes cabe fazer e não fazer? Foram perguntas que povoaram o imaginário desse grupo.

No decorrer do estágio, novas questões, como: qual é o lugar do licenciando/a na escola?; quais experiências escolares me ajudam e quais me atrapalham em meu projeto de ser um (a) professor (a) crítico (a) e reflexivo (a) ?; o que é ser um (a) bom (a) professor (a)?; por que aquele (a) professor (a) tomou tal atitude?; que modelo de docência devo adotar? emergiram nesse entre lugar entre passado - o tempo da escola - e presente - o tempo do estágio. Não me propus a respondê-las, mas, antes, deixei que buscassem na experiência adquirida, em confronto com as memórias escolares, os elementos para construírem suas identidades de futuros/as professores e professoras.

Na perspectiva de Bueno (2001:26), as histórias de vida escolar de docentes e sua discussão têm gerado o que as pesquisadoras do grupo de estudos “Docência, memória e gênero da FEUSP”, durante a experiência com professoras da rede pública em São Paulo, denominaram de uma “contra memória”, ou seja, “um processo de desconstrução das imagens e estereótipos que se formaram sobre o profissional no decorrer da história” (BUENO et al., 1993, p. 307). A pesquisa apontou ainda que seus sujeitos reconstroem, por meio desse processo, um modo próprio de se perceberem e de conceberem a relação entre teoria e prática no seu trabalho.

A “contra memória” atua desse modo no sentido de demolir as ideias que lhes têm sido impostas pela memória oficial e pela literatura didático-pedagógica, possibilitando a formação de “uma nova concepção sobre sua prática e o modo como esta se delineia e se estrutura” (p. 309).

Bueno lembra ainda que, ao examinar por meio de autobiografias o processo de socialização de alunos de um curso de formação, Gary Knowles (1992) os compara às experiências de alguns deles enquanto professores iniciantes, concluindo que a forma como futuros/as professores e professoras pensam sobre o ensino é em parte modelada por suas experiências anteriores. O autor afirma que os estudos com biografias sugerem “que não são os programas de formação de professores que estabelecem fundamentalmente a identidade do papel do professor, mas, sim, suas experiências prévias de vida relacionadas à educação e ao ensino” (KNOWLES, 1992:147, apudBUENO, 2002), argumentando em favor do uso das biografias nos programas de formação de professores.

Com base nestes autores e autoras e nas minhas experiências formativas/formadoras, defendo que adentrar nesse mosaico de memórias é uma rota frutífera na busca de elementos para ressignificá-las e questioná-las, no confronto com as experiências escolares trazidas pelo estágio e outras. Uma passagem do livro de Denise Cordeiro (2009) sobre a escrita, o tempo e a memória, fortalece meu entendimento. Citando Saramago, a autora lembra que o tempo “não é uma corda que se possa medir nó a nó: o tempo é uma superfície oblíqua, que só a memória é capaz de fazer mover-se e ondular” (p. 22). Ainda segundo Denise, “nas dobras do tempo” criamos ondulações e movimentos a partir de nossas vivências escolares para nos fortalecermos enquanto grupo e, também, nos desvencilharmos temporariamente dos julgamentos e preconceitos que pairam sobre a escola.

Estas metáforas me estimulam a pensar que nós, formadores (as) de professores (as), podemos nos apropriar de relatos de estudantes para ajudá-los a responder às perguntas que se colocam nesse período de formação inicial, numa tentativa de superar preconceitos e senso comum e evitar a consolidação daquelas máximas que circulam nas escolas, tais como: “os alunos/as não querem nada”, “as famílias não educam seus filhos e filhas” etc. Se, como dizia Hanna Arendt, o ato educativo consiste em humanizar o humano, é forçoso concordar com Pablo Gentili e Chico Alencar quando afirmam que “educar, mais do que nunca, é acumular saber para humanizá-lo, distribuí-lo e dar-lhe um sentido ético, isto é, solidário, cuidadoso com a dignidade do ser humano e do mundo” (GENTILI e ALENCAR, 2002, p. 100).

Para delinear o que de mais significativo tem para mim na produção deste relato coletivo, penso nos inúmeros desafios que encaramos em nosso ofício: um deles, como descrito por Perrenoud (2002:170), é o de “trabalhar o sentido e as finalidades da escola sem transformar isso em missão”. Para o autor, esta questão está no centro das contradições do sistema educativo, que se desloca “entre o desejável e o possível, entre as promessas e os atos, entre as belas ideias e as resistências à realidade, entre as aspirações democráticas e os mecanismos de exclusão” (PERRENOUD, 2002:171). Dentre as sugestões de Perrenoud, está a de criar espaços de discussão sobre o sentido e a finalidade da escola, sem se comprometer com respostas tranquilizadoras.

Penso que é esse, afinal, o papel da formação: buscar sentidos, contar histórias e deslocar certezas que nos aprisionam em estereótipos sobre professores/as, estudantes, escola e conhecimento. Que os mosaicos de docência possam se transformar em contra memórias para os que participaram desta construção; aos que nos leem, desejo que sejam inspiradores de novas e frutíferas experiências formativas, futuramente compartilhadas.

REFERÊNCIAS

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3Por princípio, optei pela escrita das palavras que, na norma culta, têm seus plurais no masculino, em sua forma feminina e masculina.

4Cheetos e Fandangos são alimentos industrializados salgados, fritos ou assados, produzidos a partir de milho.

Recebido: 28 de Agosto de 2018; Aceito: 04 de Dezembro de 2018

Revisão gramatical realizada por:

Morgana Maria Pessôa Soares.

E-mail: professoramorganapessoa@gmail.com.

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