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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.2 Campinas abr./jun 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i2.8659463 

EDITORIAL

VIRTUALIDADES E EDUCAÇÃO

Antonio Carlos Dias Júnior1 

Maria do Carmo Martins2 

1Pós-Doutor em Sociologia - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Estágio Doutoral na EHESS - Paris, França. Professor do Departamento de Ciências Sociais na Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: acdiasjr@gmail.com

2Doutora em Educação - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. Professora livre-docente - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, SP - Brasil. E-mail: carminhapousa@gmail.com


O segundo número da Revista ETD - Educação Temática Digital do ano de 2020 chega à leitora e ao leitor em meio a um contexto histórico inédito. Mistura de um episódio do universo tecnológico-distópico de Black Mirror com o panorama camusiano da Orã acometida pela Peste, vemos a aparente antinomia entre distanciamento e proximidade reconfigurar-se e converter-se em novas formas de sociabilidade e interação. Ao necessário isolamento social imposto pela disseminação virulenta de uma pandemia emerge mutatis mutandis um ser humano que não apenas media suas relações sociais via aparatos tecnológicos, mas agora se realiza (em termos ontológicos) através e, em enorme medida, na dependência deles. Potencialmente libertadora e subversiva na mesma medida que repressora e submissa, a virtualidade se impõe antes como necessidade que como escolha.

As transformações na intimidade, nos padrões (aliás, poderemos ainda falar em padrões?) de relacionamento social e profissional, enfim, nas variadas formas de interação que derivam mais ou menos diretamente de ambientes virtuais colocam em relevo as diversas facetas de um poliedro que reflete e superdimensiona tanto os seus aspectos mais reluzentes quanto os mais sombrios. Não precisamos reexaminar celeumas filosóficas datadas ou transcorrer as obras dos gurus da modernidade tardia para vermos que a tecnologia, aqui tomada em seu sentido mais amplo, é também mercadoria e, como tal, opera pela lógica segundo a qual a disponibilidade de determinado bem é universalizável, porém não universal. Ela está lá, mas apenas diferencialmente: parece libertar a quem deve libertar e oprimir a quem deve oprimir, reproduzindo em termos materiais, simbólicos e cognitivos dinâmicas bastante conhecidas (e consolidadas) de dominação e submissão.

Possui também possibilidades emancipatórias? Não há dúvidas de que sim. Poderíamos citar, entre tantas outras iniciativas contestatórias do status quo, ações coletivas em nível global, como o Software Livre e a Iniciativa pelo Código Aberto, que promovem alternativas aos monopólios informacionais; o ativismo que se organiza, mobiliza e que promoveu uma verdadeira revolução no seio dos movimentos sociais - do qual a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Los Indignados e Jornadas de Junho são exemplos; ou ainda as modalidades de jornalismo, como o Mídia Ninja, que se opõem à imprensa tradicional e que utilizam as redes sociais para divulgação de suas notícias e conteúdos. Os exemplos são muitos e diversos.

Atualmente, os limites, possibilidades e contradições dos ambientes virtuais reapareceram no contexto educacional como pauta incontornável em face da obrigatoriedade de isolamento social no qual nos encontramos. O assim propalado ensino remoto (outra forma em voga para qualificá-lo) aparece como necessidade, por hora temporária, para que estudantes, professores e professoras cumpram com suas respectivas obrigações. Como buscar soluções de manutenção para situações socioculturais que deixam de existir em contextos excepcionais? A busca pelos padrões de “normalidade” anteriores seria algo possível e desejável? Como esperar que os alunos e as alunas tenham condições psíquicas para cumprirem as atividades acadêmicas? E, como lidar com a expectativa que todos e todas tenham condições materiais para desenvolveram suas atividades nesse contexto de isolamento social? Como supor que professoras e professores, sem qualquer capacitação prévia, reúnam condições para oferecer cursos remotos com competência e desenvoltura? As circunstâncias, tão ao gosto dos interesses empresariais na educação, estariam colocando a última pá de cal na resistência à naturalização da pretensa obsolescência do ensino presencial? Por outro lado, de que forma poderíamos utilizar a tecnologia como potente aliada no combate às formas tradicionais, anacrônicas e excludentes de ensino?

Estas são questões que, não obstante as especificidades de cada momento, marcaram a trajetória de nossa publicação. A Revista ETD é um periódico multidisciplinar que sempre se dedicou ao acesso aberto e foi editada em suporte exclusivamente digital (nunca editada em papel, portanto) em um momento que tais opções eram ainda pouco utilizadas no campo educacional. Estávamos em 1999 e o vocabulário utilizado à época sequer poderia supor o alcance semântico e simbólico que o termo virtual assumiria: falávamos em “ambiente eletrônico” ou “ambiente online” e tínhamos no horizonte a democratização do acesso por meio da especificidade do suporte. Metaforicamente, pensávamos em termos de hardware; hoje a transformação se processa no âmago de nosso software, na maneira pela qual nos constituímos social e existencialmente.

Para nós é motivo de orgulho termos publicados ao longo dos anos centenas de textos críticos sobre o uso das tecnologias na educação em suas múltiplas dimensões. Conquanto o “Digital” do título se refira originalmente ao tipo de suporte e não a uma estratégia deliberada de indução de política editorial, o fato é que a ETD é entendida por autoras e autores como veículo privilegiado de divulgação de pesquisas pioneiras neste âmbito. Das submissões que recebemos quase que diariamente, pelo menos a metade delas tem como foco a interface educação e tecnologias.

O número que agora apresentamos não configura exceção. Constituída por originais recebidos exclusivamente via fluxo contínuo de submissões, oferecemos onze artigos dos quais três tratam diretamente de temáticas tecnológicas: cultura digital, robótica e arte e celulares, respectivamente. Há ainda uma entrevista, um relato de experiência e uma resenha. A resenha de livro, embora não trate de educação e recursos tecnológicos, nos convida a refletir sobre a política e a educação nessa era de virtualidades. Os demais artigos abordam as pesquisas em educação em suas variadas formas escriturárias e metodológicas, incluindo a alfabetização científica, a educação prisional, a evasão escolar, o ensino de filosofia, o capital cultural nas experiências de intercâmbio cientifico, a educação por abordagens geracionais e a gestão da evasão nas políticas educacionais. Destacamos ainda neste número a entrevista com o Professor Marlon Miguel, estudioso da obra de Fernand Deligny, abordando entre outros elementos a referência à obra dele com as crianças autistas. Um dossiê sobre o autismo foi publicado no número anterior da ETD (volume 22, n. 01, 2020) e consideramos importante a contribuição dessa entrevista para ampliar as abordagens sobre o tema.

Esperamos que a leitora e o leitor experienciem momentos frutíferos de reflexão e que, acima de tudo, cuidem com o maior zelo possível daquelas/es que lhe são caras/os. Nesse momento, parte dos contatos necessários aos cuidados ocorrem virtualmente, mas desejamos que em breve possam reencontrar a todas e todos, com muita vivacidade e nas cores que só a presença física nos permite captar.

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