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ETD Educação Temática Digital

versão On-line ISSN 1676-2592

ETD - Educ. Temat. Digit. vol.22 no.2 Campinas abr./jun 2020  Epub 27-Jun-2021

https://doi.org/10.20396/etd.v22i2.8654564 

ARTIGO

ESCRITA E POÉTICA NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO: AUTOFICÇÃO E PERFORMANCE

WRITING AND POETICS IN EDUCATION RESEARCH: AUTOFICTION AND PERFORMANCE

ESCRITURA Y POÉTICA EM LA INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN: AUTOFICCIÓN Y PERFORMANCE

Diego Winck Esteves1 

Máximo Daniel Lamela Adó2 

1Mestrando em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: winckesteves@gmail.com

2Doutor em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. Professor Permanente - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: maximo.lamela@ufrgs.br


RESUMO

Este ensaio se ocupa do espaço do texto para desdobrar, na e pela escrita, problemáticas que perspectivam o pesquisar em Educação pela via da poética. Compreende que a pesquisa, ao se fazer pela escrita, não transcreve uma realidade prévia, mas sim cria uma realidade na composição do texto; que o real, então, só pode ser acessado por uma via ficcional. Para tanto, este ensaio apresenta algumas questões sobre as quais traça linhas que definem pontos provisórios, ancoragens para pensar o pensamento que pensa a escrita da e na pesquisa em Educação. Põe em cena, assim, o pensamento e sua relação com o desconhecido. Com efeito, esse pesquisador que dramatiza via a escrita, compõe-se num espaço coexistencial, no qual a noção de autoria é revista e permutada com a imagem do narrador de uma ficção. Essa imagem, por sua vez, é tomada como uma autoficção ao mesmo tempo que coloca a escrita em relação com certa noção de performance. O pesquisador, nesse processo, torna-se aquele que narra o pesquisar ao se compor, também, nesse espaço ficcional, múltiplo, polifônico e polissêmico.

PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa; Educação; Poética; Autoficção; Performance

ABSTRACT

This study addresses the text space to unfold, in and by writing, problems that prospect the research in Education through the way of poetics. It understands that research, when done by writing, does not transcribe a previous reality, but creates a reality in the composition of the text; that this reality, then, can only be accessed through a fictional route. To this end, this study shows some questions on which it draws lines that define our provisional points, anchorages to think the thinking that thinks the writing of and in the research in Education. Thus, it puts the thought and its relation to the unknown in scene. In fact, this researcher who dramatizes through writing is composed in a co-existential space, in which the notion of authorship is reviewed and exchanged with the image of the narrator of a fiction. This image, in turn, is taken as an autofiction while it puts the writing in relation to a certain notion of performance. The researcher, in this process, becomes the one who narrates the research when composing, also, in this fictional, multiple, polyphonic and polysemic space.

KEYWORDS: Research; Education; Poetic; Autofiction; Performance

RESUMEN

Este ensayo se ocupa del espacio del texto para desplegar, en y por la escritura, problemáticas que perspectivan la investigación en Educación por la vía de la poética. Comprende que la investigación, al hacerse por la escritura, no transcribe una realidad previa, sino que crea una realidad en la composición del texto; que ese real, entonces, solo puede ser accedido por una vía ficcional. Por lo tanto, este ensayo presenta algunas cuestiones por las cuales traza líneas que definen puntos provisorios, anclajes para pensar el pensamiento que piensa la escritura de y en la investigación en Educación. De este modo, pone el pensamiento y su relación con lo desconocido en escena. Con efecto, ese investigador que dramatiza vía la escritura, se compone en un espacio coexistencial, en el qual la noción de autoría es reexaminada y permutada con la imagen del narrador de una ficción. Esa imagen, a su vez, es tomada como una autoficción al mismo tiempo que coloca la escritura en relación con cierta noción de performance. El investigador, en ese proceso, se torna aquel que narra la investigación al componerse, también, en ese espacio ficcional, múltiplo, polifónico y polisémico.

PALAVRAS-CLAVE: Investigación; Educación; Poética; Autoficción; Performance

1 PESQUISA-TEXTO: O PENSAMENTO DA/NA ESCRITA

Este texto se desdobra numa problemática de pesquisa, precisamente sobre o espaço impreciso no qual ela se inscreve: o próprio texto. Deste modo, apresenta-se como uma pesquisa-texto a ser perspectivada enquanto perspectiva a pesquisa em Educação. Para isso, põe no centro desse espaço a própria matéria que o compõe, ou seja, a escrita. Trata-se de dar a ver o que, em princípio, tende a ser considerado como pano de fundo do pesquisar, trazendo-o para o primeiro plano: o real entendido como um dado empírico a ser representado pela escrita que operaria como ferramenta de descrição. Ao fazê-lo, deslocam- se também as relações entre real, realidade, escrita e texto e, nesse procedimento, ganha força a compreensão da pesquisa enquanto ação poética e autoficcional de e numa escrita performática.

O problema dos começos, como afirma Deleuze (1988) ao tratar da filosofia, pode ser dimensionado a partir da frase de Descartes: ‘Penso, logo existo’. Com essa frase ele considera um Eu fundamental, sem o qual as considerações tomadas a partir desse enunciado poderiam ser colocadas em cheque. Problema que reaparece na pesquisa que parte do real como um fundamento, sobre o qual passa a inferir em procedimentos investigativos, e em que a escrita se torna um dos meios pelos quais a pesquisa se afirma, transcrevendo os fatos do pesquisar e reapresentando seus feitos. Assim, ao pôr o real em dúvida enquanto fundamento da pesquisa, ao qual somamos o questionamento do Eu como unidade coesa pré-existente, a escrita precisa ser repensada. No limite, o real da pesquisa seria a própria escrita, e a realidade estaria nesse jogo dramatizado (performado) entre um presumível real (mundo das sensações) e o texto (linguagem e imagens em proliferação de sentidos).

A partir daqui, então, tomamos a escrita como uma ação performativa da e na pesquisa; ação essa que toma força de apropriações do real, transcriando-se em realidades possíveis. Passamos a desdobrar questões sobre a pesquisa enquanto uma composição do e no texto - no qual se inscreve e sobre o qual se escreve. Trata-se, como numa performance, de colocar as questões, de performá-las na escrita. Mais do que definir qualquer resposta, nos propomos a pensar o pensamento da e na escrita da pesquisa, numa estrita relação com nossas ignorâncias, com o que assumimos não saber e, justamente por isso, nos move a escrever. Questões que não se encadeiam como parte de um único problema, mas afirmam uma problemática e passam a compor o plano de um pensamento sobre e com o texto: espaço incerto de uma pesquisa que está em jogo - é o espaço se fazendo na escrita, criando- se no corpo de um pesquisar sempre por vir - da qual aqui apresentamos alguns pontos provisórios de um pensamento que se pensa ao escrever e compor um texto que intenta produzir efeitos para outros pensares.

2 REALIDADE E FICÇÃO

Partimos então deste ponto (que não é um começo, senão uma partida que reparte o que vem antes e depois): interpretar os fatos seria o mesmo que se apropriar deles, inventando uma versão da realidade e vivendo (e pesquisando) em função disso. Nas palavras de Larrosa (2009, p. 17), “é a vida em sua totalidade, e não só a inteligência, a que interpreta, a que lê. Mais ainda, viver é interpretar, dar um sentido ao mundo e atuar em função desse sentido”. E seria precisamente na pesquisa acadêmica, tal como na literatura, que nos encontramos de frente com este problema, ao travar nossas relações entre linguagem e real.

Ambos, pesquisa acadêmica e literatura, operam com a escrita. E, embora a ciência moderna anseie por presumir uma operação direta sobre o real, utilizando-se da linguagem como um meio que identificaria a realidade existente, o estado das coisas, opondo-se assim à fabulação literária - que estaria amparada numa imaginação arbitrária não passível de refutação (ou passível de refutação também arbitrária), e por isso sem valor científico - nossa conjectura se afirma na proposição de que ambos processos estão imbricados no mesmo problema. Compreende, portanto, que é no jogo com a linguagem, com aquilo que ela mostra e assume não poder mostrar, que supomos obter o mais eficaz instrumento, pois é assumidamente insuficiente e, sem embargo, um potencial produtor de pesquisas, uma vez que nos apresenta vastos campos a serem investigados, justamente ali onde não conseguimos (assumidamente) por ora chegar (mas intuímos, imaginamos e colocamos em questão ao escrever ficções).

Mas que ninguém se confunda: não se escreve ficções para se esquivar, por imaturidade ou irresponsabilidade, dos rigores que o tratamento da “verdade” exige, mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo da situação, caráter complexo de que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um empobrecimento. Ao dar o salto em direção ao inverificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento. Não dá as costas a uma suposta realidade objetiva: muito pelo contrário, mergulha em sua turbulência, desdenhando a atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como é essa realidade. (SAER, 2009, p. 2).

Essa perspectiva implica considerar que o pesquisar não pode se separar do fazer da própria pesquisa, de seus modos de composição e apresentação. O objeto da pesquisa, por essa via, passa a ser um objeto poético. A pesquisa é, ao mesmo tempo, uma forma de produção literária e de performance. Neste caso, a interioridade do pesquisador é posta em cheque, e o texto passa a ter mais o domínio do tempo e dos discursos no qual se pode inserir, do que de uma autoria dotada de subjetividade pessoal. “Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto do escrever, nem da fixação de um sujeito na linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT, 2001, p. 36). Portanto, a pesquisa é uma ação individual, enquanto escrita em ato, e coletiva: abertura de um espaço no qual o texto se faz com outros textos, em conexões infindáveis, transversais e indizíveis em sua totalidade; agenciamentos de linguagem nos quais a pesquisa se compõe.

A pesquisa, assim, parte de uma relação com o real. Este real se transcria por meio do texto que, como um real da ficção, projeta-se sobre o real com o qual mantém certa relação. O que se apresenta é uma realidade possível. Deste modo, assume-se a pesquisa como uma ação inventiva, singular e dotada de potencial coletivo, pois é composta de forças que toma de outros textos e formas de expressão. Pesquisa que, como escrita e dramatização, apresenta os traços de um rosto para o qual olhamos e que esboça espanto ou alegria como efeito do que vê. Àquilo que passamos a imaginar do semblante desse rosto, creditamos um mundo de esperança ou de terror - e ao acreditar nisso, desenhamos o mundo em que vivemos e, ao mesmo tempo, outro.

Trata-se então de uma pesquisa-texto que se apresenta em jogo. Um jogo incerto sobre os resultados e possibilidades, e que aposta no leitor como um jogador. Pesquisa que se propõe um compromisso ético ao intentar potencializar os corpos, com os quais entra em contato, como um texto para ser usado, repensado, reescrito; texto como espaço de coexistência: produção de efeitos, imagens no pensamento, proliferação de sentidos.

3 UMA PESQUISA EM JOGO

A realidade, nesta pesquisa em jogo, é compreendida como uma apropriação inventiva do real, e a invenção, em seu turno, como um modo de conhecer que não faz do conhecido menos real do que outros modos (por sua vez também inventivo em maior ou menor grau); o conhecer passa assim a ser considerado um ato poético. Jogando com esses sentidos, escrever uma pesquisa não se distanciaria da escrita de um romance (de romances dentro de romances); apropriamo-nos, assim, de ideias presentes no livro A vida modo de usar de Georges Perec, conforme o estudo apresentado por Bahiense (1997, p. 83):

Estamos de fato diante de um livro-jogo. Não há como evitar a sensação de vertigem- bem coerente com o formato labiríntico deste romance(s), sucessão fascinante de histórias dentro de histórias. [...] E se A vida modo de usar for um romance - e felizmente o é - será sobretudo um romance sobre os romances, sobre a arte da combinação de seus componentes, sobre a produção artística e a inextrincável mistura de exploração, transformação e invenção que é a base do trabalho textual. A astúcia de Perec consiste em fazer essa demonstração sem abandonar a ficção global: sua reflexão sobre o romance tomou a forma de um romance.

Uma escrita da pesquisa que, ao se aproximar da escrita de um romance, não se produz numa lógica de causa e efeito, partindo de algo que veio antes, o real (que justificaria sua escrita), nem acredita, sobretudo, agir sobre este mesmo real no depois da pesquisa enquanto desenvolvimento e mudança de uma realidade previamente verificável. Trata-se de uma pesquisa que opera com a linguagem e com ela produz imagens, inventa verdades e realidades específicas enquanto singulares - não-totalizadoras, não-hegemônicas, não- salvacionistas. Escrita que não se processa entre um antes e um depois, ela é precisamente o instante do contato com o real. Este instante impreciso no qual se confunde presente, passado e futuro - e sobre o qual não se pode instalar senão sobre um feito inventivo (que inventa um real e a si mesmo, enquanto parte deste real).

Escreve-se a pesquisa nesse jogo, nesse entre mundo-pensamento. Ante essa imprecisão (que aqui é compreendida como positiva e potente) ainda temos o jogo incerto entre escrita e leitura; e neste ponto encontramos mais um destaque para o que nos interessa nos procedimentos perecquianos, numa operação que é da pesquisa, mas que, sem embargo, é do cotidiano: um flexionar-se sobre as coisas da/na vida. Assim, nas palavras de Bahiense (1997, p. 84):

O gigantesco puzzle de George Perec, espécie de antropologia do homem de hoje, união singular do imaginário do romance, do trabalho da memória e do sonho com os arquivos do saber, impõe-se como um texto marcadamente contemporâneo que, nutrido de textos passados, verá, com certeza, suas peças presentes nos textos do futuro.

O pesquisar compreendido como um trabalho sobre o texto, exploração e transformação com a linguagem escrita que trama pesquisa-texto - projeção de um tecido entre pensamento-mundo. Afirma-se um modo de pesquisar que é o de uma pesquisa sobre a pesquisa. É por isso, também, um texto para ser usado, no sentido do que pode dar a ver e a pensar - texto produtor de outras verdades que, por sua vez, produzem realidades possíveis. Nisso também sua potência enquanto pesquisa da e na Educação, pois a força do texto, e seus deslocamentos, procura atuar no movimento dos corpos, produzir outras imagens de uma aula, de si, dos processos, de possíveis e de mundos.

4 A PESQUISA NA EDUCAÇÃO: APROPRIAÇÃO, FICÇÃO EFICAZ E VITALIDADE

Nietzsche, segundo Granier (2009), afirma que o mundo precisa ser decifrado enquanto uma superfície que produz efeitos; esse processo se dá através de um eterno ensaiar, um descrever o mundo pacientemente, decifrando-o pouco a pouco a partir de ideias reguladoras. Não se trata de explicá-lo por razões e provas; seria mais como um narrador que produz seus sentidos, não de forma aleatória, mas coadunado com o que o mundo lhe apresenta. Nietzsche associa a ideia de texto e caos, para o qual se evidenciam o perspectivismo e o valor.

A relação onde se realiza a própria manifestação do texto não é sofrida por um intérprete que se limitaria a “refletir” passivamente as imagens e as significações cambiantes, ela é moldada em favor de uma atividade original de cada “centro de interpretação”, e portanto é, de certa maneira, uma produção; mais exatamente, uma construção de formas, de maneira que o sentido para Nietzsche é sempre o resultado de uma mise en forme - uma configuração expressiva; “o homem”, diz ele, “é um criador de formas e de ritmos; em nada ele é tão experiente, nada lhe agrada mais do que a invenção de formas e de tipos” (GRANIER, 2009, p. 65, grifo do autor).

Nietzsche nos diz que “é preciso reconduzir aquilo que se chama o instinto de conhecimento a um instinto de apropriação e de conquista” (NIETZSCHE apudGRANIER, 2009, p. 66, grifos do autor). Assim, portanto, o conhecer o mundo é um ato de apropriação, uma vontade de travar com ele um contato, quer na forma de uma dança ou de um combate (e em ambas se mantém a imagem do jogo), e assim compor a sua realidade. Por essa via, ganha importância o pensar sobre o que o pesquisador nota a partir de certa perspectiva adotada (e que provavelmente não notaria através de outra perspectiva), o que ele anota (como escrita de pesquisa) e o valor que dá para essas anotações. Não é o regime de verdade que está em jogo, não se trata de separar juízos certos e falsos, com Nietzsche, estamos para além do bem e do mal. O que nos interessa é que tal juízo, tal interpretação e valoração do mundo lhe confira forças, potencialize e vitalize a vida. Assim, “para o pragmatismo vital, a utilidade de um conhecimento é em si mesma o critério de sua verdade, ao passo que, perante a arbitragem mais rigorosa da veracidade nietzschiana, ela mantém apenas o estatuto de uma ficção eficaz” (GRANIER, 2009, p. 76, grifo do autor).

5 POÉTICA: UMA CIÊNCIA PRODUTIVA

Passamos a nos apropriarmos, então, de um estudo de Umberto Eco, que em uma conferência na Sorbonne em outubro de 1990 - transcrita para uma versão abreviada denominada A Poética e Nós - faz uma abordagem da Poética desde Aristóteles. Destacamos dois pontos que nos parecem importantes para seguir desdobrando este texto. Primeiro, a partir do autor Kenneth Burke, segundo o qual a Poética seria a disciplina que explicaria a literalidade da literatura, ou o porquê de uma obra ser definida como literária. Teria assim um caráter de crítica. Já o segundo ponto, que questiona essa perspectiva, segue o pensamento de Eco (2003, p. 223) que afirma que:

Lubomir Dolezel colocou a questão de saber se a poética aristotélica é uma obra de crítica (que visa a avaliação das obras de que fala) ou de Poética que, justamente, visa a definir as condições da literalidade. Dolezel, citando Frye, recorda-nos que a Poética traz à luz uma estrutura inteligível do conhecimento, que não é nem a própria poesia, nem tampouco a experiência da poesia, e (remetendo-se a algumas distinções que aparecem na Metafísica), a considera como ciência produtiva, que visa a consciência com o objetivo de criar objetos.

Essas duas abordagens nos interessam, tanto por tomarmos a pesquisa em seu caráter inventivo, ou seja, de uma composição com a linguagem, donde nossa poética buscaria explicitar a literalidade da pesquisa (da nossa pesquisa), bem como, e sobretudo, a de uma ciência produtiva, que visa a consciência com o objetivo de criar objetos. Dois movimentos: um ativo, gênese, invenção da pesquisa que se cria, e outro, reflexivo, de interpretação do que se faz como o efeito de uma dobra que atua como uma invenção sobre o inventado. São movimentos permutados no transcurso do pesquisar, num contínuo repensar o que se faz ao fazer o que pensa fazer.

6 ESPAÇOS POÉTICOS: O OBSERVADOR E A CIDADE

Com Valéry, em seu livro Introdução ao Método de Leonardo Da Vinci, consideramos o exercício da pesquisa como um pensar e um compor que parte, em um primeiro momento, de notar algo que nos chega de forma estranha e pungente.

A constatação é primeiramente suportada, quase sem pensamento, com o sentimento de se deixar preencher, a par dum sentimento de lenta e como que feliz circulação: acontece uma pessoa interessar-se e dar às coisas que se encontravam fechadas e irredutíveis outros valores; uma pessoa confere-lhes um acréscimo, aprecia sobretudo alguns pontos particulares, exprime-os e dá-se então como que a restituição duma energia que os sentidos tivessem recebido. (VALÉRY, 1979, p. 23).

Valéry, ademais, nos diz (1979, p. 26) que “o observador não é, em primeiro lugar, senão a condição desse espaço infinito: a todo o momento ele é esse espaço infinito”. Talvez por isso ele afirme que “a educação profunda consiste na destruição da primeira educação” (1979, p. 25). Com isso entendemos que sempre precisamos reaprender a ver. Antes mesmo de apreender o mundo, de possuir o que se vê (e ser possuído por ele), ou seja, de inventar para si o mundo (um mundo que reinventa a si), é preciso dar atenção ao modo como se vê, ou, pelo menos, colocar este em questão. Para Valéry, a arte “deveria nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos” (1979, p. 25). Como vemos/lemos/escrevemos o mundo é a condição primeira para o que dele/nele fazemos, é o modo como criamos nossa realidade. Se somos esse espaço, um corpo que perspectiva e se recompõe na relação com o que vê, ele também precisa ser pensado e inventado.

Seguimos do espaço do corpo para o espaço da cidade, e nesta uma imagem exemplar de composição heterogênea. Nela se manifestam nossos dias, nossos dizeres, nossas presenças e ausências. Flexionamo-nos ante o cotidiano e com os fragmentos que coletamos, do que vemos, ouvimos e sentimos (do que vivemos), ensaiamos uma descrição do conhecido, numa especulação da realidade: uma ficção que tem como princípio a impossibilidade da precisão explicativa dos fatos, enquanto identificação entre as imagens produzidas pelo texto e o passado transcorrido nos espaços cotidianos (o que faz do espaço do texto uma verdade que vale por si, ao mesmo tempo ficção e realidade).

Regra geral, desconhece-se a arquitetura. A opinião que se tem dela varia entre o cenário do teatro e o prédio alugado. Peço que nos reportamos a noção de cidade para lhe avaliarmos a generalidade, e para lhe compreendermos o encanto complexo, para recordarmos a infinidade dos seus aspectos; a imobilidade dum edifício constitui a exceção; o prazer consiste em deslocarmo-nos até lhe darmos movimento e gozarmos todas as combinações proporcionadas pela variação das partes dele. (VALÉRY, 1979, p. 50).

Viajando para outras cidades, chegamos às Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, e no que com elas podemos pensar sobre o espaço e o pensamento: “As descrições das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: era possível percorrê-las com o pensamento, era possível se perder, parar para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente” (1990, p. 41).

Kublai Khan percebera que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a passagem de uma para outra não envolvesse uma viagem, mas uma mera troca de elementos. Agora, para cada cidade que Marco lhe descrevia, a mente do Grande Khan partia por conta própria, e, desmontando a cidade pedaço por pedaço, ele a reconstruía de outra maneira, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. (CALVINO, 1990, p. 43).

Nos servimos da relação que O Grande Khan vai desenvolvendo com os relatos que Marco Polo faz de suas viagens, para pensar a pesquisa. Esta age sobre um número finito de matérias, mas pode recombiná-las quase ao infinito. De todo modo, no pesquisar, estamos a encontrar coisas que nos colocam a pensar (a pensar em outras coisas ou sobre a coisa em si). A cidade possui memória, seu espaço é repleto de sinais, de marcas: “Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios...” (CALVINO, 1990, p. 15).

Assim, é no encontro com as imagens da cidade que nos reconhecemos, como uma antropologia especulativa, mas também, sem embargo, nos estranhamos: “Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos” (CALVINO, 1990, p. 28). E esses lugares estranhos também habitam na mesma cidade e nos mesmos lugares, vistos sobre outra perspectiva.

Por essa via, a escrita da pesquisa pode ser compreendida como um modo de inventariar os encontros de um pesquisar - encontros que passam neste estudo (neste estúdio, nesta cidade) - e que se compõe numa pesquisa-texto como que ao costurar tecidos num ateliê (ateliê de escrita). Texto que pode ser pensado como autobiografia (da pesquisa e de si), na medida em que pode se dar a ver nas forças das quais se apoderou, e que são apropriadas pelo texto. Seria possível, assim, supor as sensibilidades e até os gostos individuais do autor, mas o texto transborda o sujeito, ainda que deixe traços de seu corpo. Trata-se, talvez, de um corpo-a-corpo, de fricções de um mundo-indivíduo-texto, do espaço do corpo, no qual se pensa o pensamento e no qual os corpos se pensam neste dinamismo espaço-temporal (corpo-humanos, corpos-objetos, matérias, energia).

7 O MITO DO PESQUISADOR

Estamos a jogar, jogando e sendo jogados. Ao compor a pesquisa, também somos compostos. Entrelaçados. O texto nos cria. Cria o pesquisador tão logo ele inscreve a pesquisa no espaço da folha. Quem fala? Ele, o texto. Mas não nos enganemos, por aqui estamos gerando uma espécie de autoficção de nós mesmos como pesquisadores.

A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a perguntar pelo lugar de fala (O que é ser escritor? Como é o processo de escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da autoficção não é a biografia mesma e sim o mito do escritor, nos permite chegar próximos da definição que interessa para nossa argumentação. Qual a relação do mito com a autoficção? O mito, diz Barthes, “não é uma mentira, nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade como sanção” (KLINGER, 2006, p. 55).

Deslocando um pouco o sentido dessa citação, afirmamos que a questão que se pretende perspectivar, e que nos cabe desnudar, não é necessariamente a da produção da realidade da pesquisa (uma vez que já foi afirmado que esta é compreendida como uma permuta inventiva entre real e ficção), mas, em grande medida, a do mito do pesquisador: o coletor de dados, o narrador com tendências para esconder-se atrás de uma terceira pessoa. Não nos parece bastante, portanto, afirmar que a pesquisa é inventiva para que ela desvie o suficiente das imposições do real; fazê-la ficção não acabaria com um problema que nos parece central, e anterior, qual seja, o da autoria (e assim retornamos ao problema dos começos e do Eu que pensa, logo existe).

Estamos então a falar, e a jogar, através da escrita, com o mito do pesquisador e, sem embargo, com o mito da pesquisa. A pesquisa que pressupõe uma autoria. Inevitavelmente estamos nesse jogo. Nós. Nós quem? Seguimos com Klinger (2006, p. 58, grifos da autora):

Segundo nossa hipótese, o texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Phillipe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autoficção como uma forma de performance.

Sobretudo aqui, ao pôr em questão a produção de uma pesquisa não calcada numa presumida representação do real, em que, portanto, não há nada a desvelar, senão coisas por investigar e apresentar (tal qual uma ficção que possibilita sua aparição), a noção de autoria é então posta em cheque, uma vez que o próprio autor precisaria ser ficcionalizado, como parte desta realidade (a performatização do narrador da pesquisa). E ainda que possa nos interessar a ideia do desaparecimento do autor (FOUCAULT, 2001), ou de sua morte (BARTHES, 2004), a academia e o fazer científico demandam uma autoria, bem como uma função para a pesquisa. Assim retomamos a ideia de que uma verdade só pode ser encontrada enquanto uma invenção, enquanto ficção em exercícios do imaginário.

“O imaginário, - diz Barthes - matéria fatal do romance e labirinto de redentes nos quais se extravia aquele que fala de si mesmo, o imaginário é assumido por várias máscaras (personae), escalonadas segundo a profundidade do palco (e, no entanto, ninguém por detrás)”. Daí que ele anuncie em Roland Barthes por Roland Barthes, um texto autobiográfico, que “tudo o que aqui se diz deve ser considerado como dito por um personagem de um romance”. Trata-se da posição oposta: não é que “a verdade sobre si mesmo só pode ser dita na ficção”, mas “quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve ser considerada ficção”. No final das contas, uma e outra posição são duas faces da mesma moeda. (KLINGER, 2006, p. 43).

Nossa conjectura é de que a pesquisa, ao se embaralhar entre o real e o corpo do pesquisador, projeta-se no texto como uma certa autobiografia, caso esta seja entendida na esteira da ficção; do mesmo modo que o corpo pode ser visto como um palco onde se reapresenta a realidade - uma reapresentação diferencial. Segundo Derrida (apudKLINGER, 2006), quando o homem representa tudo o que existe, se coloca também no círculo do representável, enquanto cena da representação.

E nesse apresentar-se novamente, o ente torna-se outro, e o escritor se confunde com o narrador de um pesquisar; a pesquisa assim pode ser percebida como um conto: um conto que conta um pesquisar, enquanto conta os feitos de uma voz que conta o que busca - e o drama se formula, e ganha força, na tensão dos (des)encontros.

Por essa via, e para que a matéria da pesquisa compreendida como escrita aumente e sustente seu grau de potência, para que ela não perca suas forças acreditando ser serva de um real ao qual deva sua existência, é preciso que o autor ceda espaço para o que passa a ser, enquanto pesquisa-escrita, pesquisa-texto: pensamento como corpo, e corpo como espaço. Pensamento que não parte de uma interioridade do autor que escreve, mas atravessa esse espaço do corpo, compõe-se com o espaço da cidade, perde-se e se encontra para além de uma pessoalidade (não desaparecida, mas que se manifesta como mais uma coisa num estado de coisas inventado e permutável no jogo de escritas e leituras que compõem os textos da pesquisa).

8 O PENSAMENTO COMO AUTOR

Portanto, estamos de certo modo a proceder com uma autobiografia do pensamento, não como sinônimo de racionalidade, mas como um complexo jogo entre as faculdades. Se o que se vê e se (d)escreve é o pensamento, é preciso considerar acerca deste quem descreve que “a condição à qual a visibilidade se refere não é, entretanto, a maneira de ver de um sujeito: o próprio sujeito que vê é um lugar na visibilidade, uma função derivada da visibilidade” (DELEUZE, 2006, p. 66). Nesse sentido, seguimos com Deleuze (2006, p. 68), que nos fala com Foucault:

O que O Nascimento da Clínica já desvendava era um “olhar absoluto”, uma “visibilidade virtual”, uma “visibilidade fora do olhar”, que denominava todas as experiências perceptivas e não convidava à visão sem convidar também os outros campos sensoriais, a audição e o tato. As visibilidades não se definem pela visão, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que vem à luz. Como diz Magritte numa carta a Foucault, o que vê, e pode ser descrito visivelmente, é o pensamento.

E o ‘o que’ descrevemos segue a lógica do ‘sobre’ o que escrevemos, ou seja: se estamos falando que não há uma verdade que não seja uma invenção, e tampouco há uma pesquisa que não se coadune com os pensamentos do pesquisador (e neles suas memórias, intuição, razão, interesses e esquecimentos), é por crer que estamos fazendo o mesmo na pesquisa (ao menos é o que intentamos). É uma performance, e não uma representação teatral, não se vestem máscaras, mas se é as próprias máscaras.

O conceito de performance deixaria ver o caráter teatralizado da construção da imagem do autor. Desta perspectiva, não haveria um sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou mascara. Pelo contrário, tanto os textos ficcionais quanto a atuação (a vida pública) do autor são faces complementares da mesma produção de uma subjetividade, instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas que, em todo o caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é considerado enquanto sujeito de uma performance, de uma atuação, que “representa um papel” na própria “vida real”, na sua exposição pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e autorretratos, nas palestras. Portanto, o que interessa do autobiográfico no texto de autoficção não é uma certa adequação à verdade dos fatos, mas sim “a ilusão da presença, do acesso ao lugar de emanação da voz”. (KLINGER, 2006, p. 59, grifos da autora).

Por essa via, interessa-nos afirmar uma poética que se processa nos feitos cotidianos. Projeções do pensamento e o que dão a ver ao pensamento. Assim a pesquisa não aparta teoria e prática, mundo acadêmico e mundo não-acadêmico, pensamento filosófico e pensamento cotidiano. Como não separa o pesquisador do sujeito diário, escrita conceitual de fala ordinária. Tudo passa a ser desdobramento de um pensar sobre, de um pensar com. De um pensar da pesquisa. Pensar que se flexiona sobre o que conhece e encontra aí o não conhecido. Pensar que se dobra sobre a realidade e se confunde com ela na escrita, como uma escrita de si. Mas que também, em movimento simultâneo e atravessado, projeta-se ao fora e é por este atraído. Ambos movimentos se potencializam entre si: dos estratos ao fora, do sujeito ao devir, e de volta aos estratos, de volta ao indivíduo.

9 ESCRITAS DE SI, IGNORÂNCIA E O CHAMADO DO FORA

Somos fragmentos. Nossa interioridade é composta de uma exterioridade sempre permutada com o dentro. Em outras palavras, o dentro e o fora compartem um dinâmico jogo. O si é um processo, constante ruptura e devir em direção a um novo individuar-se (SIMONDON apudCORAZZA, 2013). Somos afetados por forças que nos colocam em movimento, em que o pesquisar se apresenta como um espaço-tempo de atenção suplementada a estes processos. Somos feitos do que nos afeta: nosso corpo é marcado e composto de tantos outros que em nós se inscrevem, enquanto escrevemos uma pesquisa, que simultaneamente é uma escrita de si.

[...] E este corpo há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim - de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão - como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez a sua respectiva verdade: a escrita transforma a vista ou ouvida 'em forças e em sangue' (in vires, in sanguinem). Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação racional. (FOUCAULT, 1992, p. 144).

Pesquisa que mistura conhecedor e conhecido, um processo experimental que não espera por estar pronto, entender conceitos, decorar sabe-se lá o quê. Como disse Queneau (1995): é escrevendo que se torna escrevedor. E é pesquisando que se torna pesquisador. Entendendo que a pesquisa parte do perguntar e do pôr-se a buscar, parece inevitável que essa precipitação, que promove um desequilíbrio, e que por sua vez nos coloca em movimento, acarreta diversos riscos (nesse sentido autoimpostos), aos excessos, aos erros, às inconsistências.

Talvez seja necessário colocar a questão: essa linha de pesquisa (que muitas vezes perde a linha) possui força? Essa que aceita o convite ao erro (inconsistência conceitual ou mesmo gramatical), que se abre ao dispor-se em uma exploração ao sabor (e saber) das perguntas; e essas que ao chegarem aos sobressaltos, de improviso, nos levam a desvarios: deveríamos ser comedidos, evitar as dúvidas e os excessos em prol de uma justa medida acadêmica (e quem faria esse cálculo)? Trata-se, neste aceite aos imprevistos, de afirmar a vitalidade de uma escrita que inventa seus objetos ao se colocar em jogo; de uma pesquisa poética pelas possibilidades das condicionantes de uma via ficcional. Não se trata de negar a sedução e os sentidos do real, tampouco o rigor com os conceitos e com a história do conhecimento, mas de assumir-se em jogo (um jogo alegre, não ressentido), tal como a filosofia que quis Nietzsche (2005, p. 14):

Uma filosofia que ousa colocar a própria moral do mundo no fenômeno, fazendo-a descer não apenas para o meio dos “fenômenos” (no sentido terminus technicus idealista) mas para o meio das “ilusões”, enquanto aparência, alucinação, erro, interpretação, arranjo, arte. [...] Pois toda a vida assenta na aparência, arte, ilusão, ótica, necessidade do perspectivismo e do erro.

Preferir pesquisar como um andar desequilibrado pela borda do conhecido, um decreto assinado acerca da ignorância que se apresenta numa escrita que corre, que não aguarda paciente o justo conhecimento dos fatos (que fatos?); pesquisa a quem interessa mais os feitos e efeitos da escrita, a força do texto (coadunados com a força do pensamento - que é corpo e produz corpos).

Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber de nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois, ou melhor, torna-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica. (DELEUZE, 1988, p. 18, grifos do autor).

Pela via do desconhecido chegamos ao espaço do fora. Ao caos. Espaço maior, que nos puxa, tal qual a força de um buraco negro: somos conduzidos pelo nosso não-saber e por nossa necessidade de explorar; mais do que isso, antes mesmo de um ato consciente, é o fora como espaço que nos convoca, que nos solicita; ele possui mais força de atração do que por vezes presumimos ter nosso desejo de conhecer. De toda forma, a estranheza desse desconhecido tem um ar de intimidade - talvez justamente porque este fora nos habite, porque em nós há muito de desconhecido, em cada recanto íntimo do nosso ser que, sem embargo, não é nosso, sem deixar de ser.

Todo o espaço do lado de dentro está topologicamente em contato com o lado de fora, independentemente das distâncias e sobre os limites de um “vivente”; e esta topologia carnal ou vital, longe de ser explicado pelo espaço, libera um tempo que condensa o passado do lado de dentro, faz acontecer o futuro do lado de fora, e os confronta do limite do presente. [...] Pensar é se alojar no estrato no presente que serve de limite: o que é que posso ver e o que posso dizer hoje? Mas isso é pensar o passado tal como se condensa no dentro, na relação consigo (há um grego em mim, ou um cristão...). Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno, mas “em favor, espero, de um tempo que virá” (Nietzsche), isto é, tornando o passado ativo e presente fora, para que surja enfim algo novo, para que pensar, sempre, suceda ao pensamento. O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, “pensar de outra forma” (futuro). É o que Blanchot chamava “a paixão do lado de fora”, uma força que só tende em direção ao fora porque o próprio fora tornou-se a “intimidade”, a “intrusão”. (DELEUZE, 2006, p. 265).

‘O que a pesquisa pode dizer hoje? O que ela pode pensar e o que esse pensar pode escrever? Quais efeitos pode produzir no leitor? A pesquisa se aloja no presente, nos espaços (dos corpos, da cidade, de uma aula, dos textos), escorre entre as coisas, inventa seus objetos numa ficção. Pesquisa-texto-performance que passa a ser o presente da/na leitura: o que ela nos diz agora?

REFERÊNCIAS

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Recebido: 04 de Fevereiro de 2019; Aceito: 25 de Abril de 2019

Revisão gramatical realizada por:

Fabiano Neu Pinto. E-mail: f.neu@hotmail.com.

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